Mar, medo e utopia

July 14, 2017 | Autor: A. Vidigal Alves | Categoria: Maritime History, Utopia
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MAR MEDO e UTOPIA

MAR MEDO e UTOPIA “ Há três espécies de homens... os vivos, os mortos e os que andam no mar”

Platão 427-347 a.C.

Pretendemos, com o trabalho que passamos a apresentar, incitar a uma reflexão sobre a imensa massa líquida que constitui a parte oceânica da Terra e os medos que lhe estiveram e estão ainda associados. Se actualmente é bem conhecida, num passado não muito longínquo, esta massa foi desconhecida, profunda e enigmática. O mar foi quase sempre uma região de fronteira que, embora permeável, permitiu estabelecer dialécticas indissociáveis como o velho e o novo, o próximo e o longínquo, ou mesmo, o bem e o mal. Não queremos formular uma tese. Tal seria ousado demais em tão poucas linhas e em tão vasto tema. Pretendemos apenas viajar um pouco pelo passado marítimo, sobretudo o passado marítimo relatado oralmente ou escrito. Nessa (pequena) viagem aspiramos visitar alguns temores e fantasias marinheiras, que, como qualquer outro tipo de fenómeno deste género, despertou acções tão distintas como a indiferença e o distanciamento em oposição à curiosidade e à ousadia.

Américo Vidigal Alves Escola Naval – Ensino Superior Politécnico

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No fim da Idade Média não era possível adivinhar que Portugal viria a tornar-se uma nação de expansão marítima. Os seus atributos não eram disso reveladores. Exceptuando alguma navegação de cabotagem, no seu litoral, e algumas ousadias mais a norte para a já existente pesca do bacalhau, Portugal não era um país de marinheiros, nem sequer tinha empreendido a construção de uma frota de comércio marítimo, como haviam feito os genoveses ou os florentinos.

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Portugal era um pequeno país com os seus pescadores e marinheiros costeiros que, exceptuando alguns conhecimentos náuticos extraídos destas viagens, não tinha ainda desenvolvido plenamente as artes da construção naval e da cartografia. Não tinha também criado mecanismos para extrair riqueza da terra, pelo que a agricultura era deficiente devido à pobreza dos solos e à falta de mão-de-obra, existindo ainda inúmeras terras por desbravar. Essa pobreza do solo poderia ter gerado o desejo de expansão terrestre na busca de terras férteis; no entanto, isso obrigaria ao recurso à guerra com Castela. O próprio atraso económico, aliado à relativa impossibilidade de procurar por terra as condições necessárias à mudança, pode ter estado na origem da opção pelo mar. Apesar destes condicionalismos, se usarmos a proximidade com o Atlântico como pretexto, podemos verificar que Portugal se encontra excepcionalmente bem colocado do ponto de vista geográfico. É a este excelente posicionamento que se fica a dever a audaciosa aventura da expansão e dos descobrimentos. Sobre isto Oliveira Marques refere na sua Breve História de Portugal que, “a posição geográfica e as características culturais favoreciam o encontro de processos novos, vindos do Atlântico, do Mediterrâneo cristão e do Mediterrâneo muçulmano... o sul de Portugal, com a sua longa tradição islâmica e moçárabe, teve importância decisiva no surto de navegação à distância e na recepção de influências múltiplas” (Oliveira Marques 2003, p.125). O que parece verificar-se é que, a localização geográfica, que depois se revelou estratégica, a “esquina da Europa”, como lhe chamou J. H. Parry em A Descoberta do Mar, permitiu ao povo lusitano dedicar-se ao comércio marítimo, à pirataria, à conquista, à descoberta e à colonização. Terão surgido certamente, no início, inúmeras dificuldades em encontrar pessoas capazes de empreender as viagens. Devido à limitação dos conhecimentos em áreas como a meteorologia a geografia e a navegação de alto mar, os primeiros passos no sentido da aventura atlântica foram seguramente curtos. Mas, como diz o provérbio, todas as grandes viagens começam com pequenos passos; assim, também estes o foram de facto, mas foram, além disso, não obstante as referidas dificuldades, passos firmes e seguros, tendo sido essa firmeza e segurança o sustentáculo do resto da grande viagem. Os primeiros empreendimentos marítimos terão sido, quase certamente, cometidos por marinheiros, aventureiros, mercenários e mesmo alguns indivíduos forçados, comandados por príncipes, cavaleiros ou escudeiros, cavalheiros de séquito, filhos segundos de famílias com alguma distinção e outras personalidades de segunda linha que, precisamente por viverem ofuscados, procuravam, para além de uma boa parte das pilhagens, sobretudo a 2

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fama. Aliado a estas motivações estaria, acreditamos, enraizada uma cultura de ódio pelos muçulmanos, pelo que era legítimo saquear e matar, sobretudo se o inimigo fosse o infiel. A estas aventuras iniciais (que se vão transformar depois em aventuras constantes apoiadas por D. Henrique) parece a Coroa ter acedido, talvez esperançada em fins que, ainda que não sendo bem claros, faziam antever revelarem-se importantes a longo prazo. Além disso, estas incursões para fora do reino começavam a enformar a ideia de expansão, no sentido de alargamento de fronteiras, algo que agradaria certamente a qualquer monarca da altura. Neste contexto dá-se em 1415 a conquista de Ceuta apontada por alguns como o primeiro passo na expansão marítima portuguesa, intensificaram-se depois da conquista as explorações atlânticas e foram descobertas ou redescobertas as ilhas dos Açores e da Madeira. Quer a costa africana, quer as ilhas e a sua terra livre, que iam sendo encontradas na volta do mar, constituíam atractivos fortes para os capitães portugueses e suas guarnições de marinheiros. A atracção por essas novas realidades foi vencendo pouco a pouco os receios e medos que envolviam as partidas. Um marco importante na vitória sobre o medo, foi sem dúvida o dobrar do Bojador, por Gil Eanes, corria o ano de 1434. Nas profundezas do universo do temor, o medo assumia formas distintas, com diferentes origens e de tal maneira difundido que seria impossível a qualquer marinheiro da altura ser-lhe indiferente. Se definirmos o medo como um temor ou uma grande inquietação em presença de um perigo real ou imaginário, podemos também encontrar na própria explicação os ingredientes necessários para a sensação de medo do mar, pois quer os perigos reais, quer os que correspondiam à fantasia estavam presentes. Entre perigos reais e imaginários circulavam histórias de que para lá da linha do horizonte havia ondas enormes de água fervente, abismos e redemoinhos. O oceano escondia monstros capazes de engolir navios inteiros com as suas guarnições e de entre a espuma podiam surgir belas sereias que precipitavam os marinheiros para o mar. Além disso havia os ventos contrários à progressão, as borrascas violentas, os recifes e rochedos aguçados e submersos, os piratas, a angustiante incerteza do regresso. O quando? Tudo isto eram questões causadoras de constrangimento, ainda mais sabendo que o regresso da costa africana implicava perdê-la de vista e rumar bordejando para noroeste e nordeste. Muito mais do que os monstros marinhos, evocados por inúmeras gerações de poetas, seria a volta do mar, o regresso ao norte, à Península, um dos motivos de maior tensão e 3

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temor, causados pelo medo de se perderem, de se afastarem demasiado da costa, de não haver vento durante demasiado tempo; o medo da desorientação, das visões e da loucura a que muitos chegavam ao observarem a diminuta força humana perante a hercúlea força da natureza. Reveladores deste universo marítimo, onde o medo se encontra sempre presente, são, sem dúvida, os legados da cultura popular e também de várias gerações de escritores. Ao nível das populações encontramos preservados, através da simples oralidade, alguns provérbios, curiosamente difundidos por povos com fortes tradições marítimas. Por exemplo na Holanda um destes provérbios diz que melhor se viaja por terra num velho carro, de que no mar num navio novo. Os dinamarqueses, descendentes dos valentes Vikings, afirmam que quem não sabe rezar deve ir para o mar e quem não sabe dormir deve ir para a igreja. Entre nós, corria no inicio dos Descobrimentos o dito quem for ao Cabo Não voltará ou não. Além dos perigos existentes no próprio mar, quando neste se navegava, existiam também os perigos que dele chegavam. Ao longo de séculos hordas de invasores surgiram nas costas de pacíficas comunidades, matando e pilhando sem qualquer tipo de dó nem compaixão. Os Vikings, os normandos, os muçulmanos, os cristãos e muitos outros povos guerreiros atemorizaram desde sempre as populações das orlas marítimas. Do mar sopravam também os ventos ciclónicos e rebentavam as ondas gigantes que destruíam as culturas. Para quem partia, para quem o enfrentava, havia ainda a somar as tempestades, os cabos e os calhaus medonhos, que embora não sendo humanos, foram durante séculos considerados seres vivos, coisas más... monstros. Depois havia também a falta de vento, a calma sufocante que dizimava os marinheiros bloqueados sem deslocamento no deserto de água. Quanto às terras de além-mar, constava serem povoadas por seres medonhos e estranhos, uns homens com cabeça de animais, outros com um olho na testa e com pés enormes, outros ainda sem cabeça e com um olho no peito. Apesar de tudo, com as conquistas feitas ao mar, a partir da época dos Descobrimentos, alguns destes medos fantásticos foram sendo vencidos. Mas a verdade é que, mesmo após o século XV e apesar de alguns avanços tecnológicos terem melhorado a previsão e precisão das viagens, outros temores surgiram ou continuaram a fazer parte do universo marítimo. Vencidos alguns monstros, temia-se agora o apodrecimento dos alimentos, o escorbuto, as febres das zonas exóticas e os ciclones tropicais.

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No dizer de Jean Delumeau (1978, p.34), como alguém escreve já em 1600, “...disoient les Anciens de ceux qui vont sur la mer n’avoir entre la vie et la mort que l’epasseur d’une table de planche que n’est que trois ou quatre travers de doights”. O mar esteve associado, no ideário comum, até às recentes vitórias da tecnologia, a imagens de destruição. Este era um lugar de morte, de noite e de abismo. Mesmo assim, além deste sentimento de insegurança em relação à preservação da vida no mar, havia uma relação com o tempo e com o espaço. A relação entre o longe e o próximo, entre o novo e o velho, enfim uma relação paradoxal. Por um lado havia a necessidade de conhecer o longínquo e o novo, assente na curiosidade e na sedução. Em contrapartida existia o respeito pelo que é próximo, pelo que é velho, conhecido e seguro. A segurança de que falamos é, por exemplo, reclamada pelo Velho do Restelo retratado por Camões em Os Lusíadas. Nesta dialéctica novo/velho, próximo/distante, confinando-nos à aventura dos Descobrimentos, nomeadamente ao seu início, podemos verificar que foram os portugueses a relatar e a espalhar as notícias dos temerosos monstros marinhos, das vigorosas ondas e das profundezas tenebrosas. Depois, pouco a pouco, foram vencendo as fantasias que eles próprios criaram, enfrentando os monstros e as profundezas e indo sempre um pouco mais além. A epopeia dos Descobrimentos é distintamente relatada no genial poema heróico de Camões. Em “Os Lusíadas” coexistem a mitologia e o relato histórico, tal como o real e o imaginário. Na obra, podemos encontrar alusões maravilhosas ao fantástico, desde o fogo de santelmo, predestinador de tempestades, passando pelo encontro com o Gigante Adamastor, ou a descrição das vitimas do escorbuto, presentes no canto V. O real e o imaginário são registados de forma tão soberba que continua hoje a ser indiscutivelmente uma obra de referência em todo o mundo. Vejamos a descrição que o autor faz do temível Gigante Adamastor, comparando-o com o Colosso de Rodes: “O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má e a cor terrena e pálida; Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos.”

Ou vejamos ainda quando recorre à personificação: “Eu sou aquele oculto e grande Cabo A quem chamais vós outros Tormentório”

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Por fim, digna também de transcrição, a passagem em que o autor descreve o escorbuto, a doença mais temível dos marinheiros de então: “Quem haverá que, sem o ver, o creia, Que tão disformemente ali lhe incharam As gingivas na boca, que crescia A carne e juntamente apodrecia?”

A descrição do fantástico e do irreal na literatura não nasce contudo com Camões, mas sim muito antes. Já os principais autores e artistas da época clássica misturavam o real e o irreal, os deuses e os mortais, numa mescla a que o autor lusitano haveria de recorrer mais tarde. Uma das obras mais conhecidas do período clássico é, sem dúvida, a Odisseia de Homero. Na Odisseia são feitas várias descrições de viagens marítimas. Um episódio ilustrativo da alusão aos mitos do mar é o das sereias e seu canto encantador. Assim, como está descrito, quando o herói Ulisses e seus companheiros aportam na ilha de Eeia, depois de efectuarem os ritos fúnebres ao corpo de Elpenor, a deusa Circe disse-lhe, “chegarás primeiro à terra das Sereias, cuja voz seduz qualquer homem que caminhe para elas”. Após tais palavras a deusa aconselha o herói a tapar os ouvidos dos companheiros com cera doce e mel amassados. Quanto a ele, Ulisses, para que possa ouvir o canto das sedutoras mulherespeixe e não ser tentado a ir em sua direcção, deve fazer-se amarrar de mãos e pés e deve ser atado ao mastro da sua nau para que não possa mexer-se. Tal como Ulisses, vários heróis ao longo dos tempos vão empreendendo viagens, concretizando-as, e regressando aos locais donde partiram cobertos de glória. Uma lenda muito em voga na Idade Média é a do Preste João, rei-sacerdote cristão, descendente de um dos três reis Magos. Reinava numa parte desconhecida de África onde existiam animais estranhos ao mundo ocidental, tais como, a fénix e o unicórnio, assim como anões e gigantes e onde não havia pobreza nem crime. (Mékis p.448). Presume-se terem partido várias vezes por mar e terra marinheiros e aventureiros na busca deste enigmático rei. Outra imagem do mundo da Idade Média é-nos dada pela obra da literatura latina medieval Navigatio Brandani, onde há também “um herói que parte em busca de uma terra distante; enfrenta inúmeros perigos e sai ileso; por fim chega ao destino e acaba por ser exaltado e recompensado no regresso à pátria”(Aires Nascimento, 1992, p. 216). No conjunto de relatos que compõem esta obra, que compreende 120 manuscritos, podemos observar um fenómeno denominado por alguns autores de mito-projecto. As várias ilhas que Brandão e seus companheiros de viagem vão encontrado - a dos rebanhos, a da baleia, a das aves e a de Alben - têm relações com o claustro monástico; a viagem tem o seu

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mundus próprio, sendo muito mais simbólica que geográfica. A fantasia transmitida pela obra parece querer conduzir os seus leitores a uma lição, a um projecto; segundo o mesmo autor (p.223) “trata-se de uma tentativa de assegurar a superação de equívocos possíveis por uma mediação pedagógica eficaz.” A pedagogia patente na obra é direccionada aos membros de ordens religiosas: Os lugares visitados pelo abade Brandão e a sua tripulação constituem uma espécie de antecâmara do Além. Ora, é justamente esse lugar que necessita ser descrito para ser acreditado e incrementar a fé e a crença. Estes mito-projectos e todos os que se seguiram, enformam quase sempre um ideal que se deseja ver divulgado. Se por um lado o mito pode ser definido por “o contar de uma história sagrada, o relato de um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo dos «começos» … e as suas personagens são seres sobrenaturais…” (Eliade, pp.12,13) o mito-projecto surge como um sonho a realizar através do mar, e pode ser encontrado em vários autores, até porque, sendo o mar um meio que não é completamente conhecido torna-se muito mais potenciador de expectativa e esperança, mesmo quando pouco se sabe acerca do sucesso das viagens e aventuras daqueles que o desafiam. Depois, e por outro lado, como em todos os projectos audazes, há aqueles que, sendo mais comedidos, criticam. O já referido episódio do Velho do Restelo em Os Lusíadas revela isso mesmo, ou seja, a ideia de que enquanto uns sonham e desejam a aventura marítima, outros guardam reservas. A seguinte passagem do Canto IV da obra é disso ilustrativa: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça Desta vaidade a que chamamos Fama! (...) (...) Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!”

Além dos sonhos possíveis de concretizar por serem, de certa forma, previsíveis, como é o caso do ouro, prata e outras riquezas conhecidas, que podiam tornar-se realidade através do mar, havia também o novo, o exótico e o fantástico. Estes podiam funcionar mesmo como medida de propaganda, pois serviam para fazer crescer o interesse pelo mar àqueles a quem corria nas veias algum sangue inquieto, com a dose de coragem necessária para a ele se fazerem. No mundo literário podemos inscrever, neste contexto, o relato da Ilha dos Amores: “De longe a Ilha viram, fusca e bela, Que Vénus pelas ondas lha levava (Bem como o vento leva branca vela Para onde a forte armada se enxergava;”

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Esta ilha pode ser vista, por um lado como a justa recompensa pelos inúmeros perigos já passados; mas pode, por outro, ser vista como o trampolim para novas aventuras. O afastar do ócio e o retomar da viagem para os que desejam ainda maiores recompensas é observável no sentido alegórico da ilha e na exortação aos que aspiram à imortalidade. “Agora co´as espadas, que imortais Vos farão, como os vossos já passados. Impossibilidades não façais, Que quem quis, sempre pôde, e numerados Sereis entre os Herois esclarecidos E nesta Ilha de Vénus recebidos”

Ainda no Canto X, na parte final, conseguimos novamente encontrar esta porta aberta a novas navegações. Este desejo de voltar ao mar para novas conquistas pode ser encontrado sobretudo nas estâncias 91 a 141, onde Tétis mostra aos portugueses as suas futuras navegações e conquistas. Também a própria exortação que o poeta faz a D. Sebastião e às futuras glórias, deixam antever uma necessidade de continuar no mar, não obstante todas as dificuldades a ele inerentes. Seguindo esta linha utópica, encontramos na obra de Vitorino Magalhães Godinho, Mito e Mercadorias, Utopia e Prática de Navegar séculos XIII-XVIII, uma curiosa oposição entre os mitos do passado e aquilo a que chama os mito-projectos que, conforme refere, se trata de “mitos e utopias na continuidade e no ‘mudar de viver’ ” (p. 63). Simbolicamente o livro de Thomas More, Utopia, onde o autor imagina concretizada numa ilha longínqua a organização ideal da sociedade, é um dos exemplos do desejo ou projecto de uma organização social e política perfeita que nunca passa de um futuro desejável mas tido por quimérico. Trata-se de uma concepção impossível de realizar, até porque o Estado que o navegador português Rafael descreve é autoritário e totalitário e nele existem os escravos. O que devemos observar é que a obra, escrita em 1516, rompe com os mitos do passado e salta para o tal mito-projecto que é, no entanto, composto por aventuras que confundem o real e o fantástico, tal como anteriormente os relatos dos mitos do passado. Percorre-se um caminho muito semelhante para se chegar a um destino completamente diferente. De uma maneira geral, a partir dos Descobrimentos e do movimento renascentista, a arte de navegar e o conhecimento do mar e da terra transformaram-se. Com esta mudança alteraram-se também as geografias míticas e os seres fantásticos que habitavam os oceanos. Desapareceram os gigantes, os reinos cristãos perdidos, os desertos escaldantes e inultrapassáveis que vão sendo substituídos por projectos, sonhos e El Dorados que por 8

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vezes continuam vivos até à época contemporânea e que podemos encontrar, por exemplo, em quase todos os movimentos migratórios da história universal. Efectivamente, com o avanço dos descobrimentos marítimos (agora já ibéricos) e não somente portugueses, aliada à percepção de que a terra era redonda, cessa a procura pelo Preste João e seus homónimos mitológicos e procura-se o paraíso terrestre, sobretudo no interior da América do Sul. Em relação aos portugueses e à sua ligação com o fantástico através do mar, Magalhães Godinho afirma que estes “foram muito menos influenciados pelos mitos e pelo fantástico. Nunca confundiram, por exemplo, as Américas com as Índias”.( p. 78). Em nossa opinião, o desconhecimento parece ter sido um dos maiores criadores de fantástico e talvez possa haver uma relação entre o domínio do irreal e do fantástico preconizado pelos portugueses e o próprio empreendimento magnífico que conseguiram realizar. Se o controlo do espaço físico não era possível devido a um desconhecimento inicial das técnicas e se este oferecia barreiras reais como as tempestades, as correntes e os cabos, houve necessidade de o contornar, desenvolvendo a cultura e a ciência náuticas. Este desenvolvimento inicial pode ter direccionado as navegações marítimas no sentido da expansão. Depois, à medida que se foram vencendo os medos (que obviamente sempre existiram) e desmistificando os mitos, parece ter sobrado mais ânimo para prosseguir. Embora avançando-se sempre, nem por isso os perigos reais desapareceram. Além dos livros e relatos mitológicos e utópicos (alguns como já verificámos oriundos do período clássico e da Idade Média), a temática do mar também originou o aparecimento de outro tipo de autores, nomeadamente os que se dedicaram a uma literatura realista e muitas vezes dramática das navegações. Na verdade a história das grandes navegações deixou-nos um legado de relatos de tragédia, para além de um conjunto de obras de ficção que não raras vezes se baseavam em personagens e eventos históricos. A conhecida História Trágico-Marítima (antologia de textos do século XVI) elaborada por Bernardo Gomes de Brito foi publicada pela primeira vez entre 1735 e 1736. Trata-se de uma inesgotável fonte para estudos sócio-antropológicos, históricos e literários e constitui um testemunho de uma época rica em aventuras e perigo. A obra é um conjunto de relatos de naufrágios de algumas naus portuguesas na rota da India. No primeiro relato que retrata o Naufrágio do Galeão Grande «São João» na Terra do Natal no Ano de 1552, são descritos os acontecimentos a bordo, que demonstram profundo conhecimento dos navios, do mar e das terras exóticas por onde iam passando. 9

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Através do relato, fica a saber-se que o galeão estava já demasiado velho e degradado e que alguma falta de prudência aliada à cobiça de lucros e uma carga excessiva a que se juntou uma forte tempestade fez com que se desse o naufrágio. Abandonados à sua sorte numa praia do Natal alguns náufragos conseguem no entanto sobreviver após sofrerem mil agruras numa terra hostil habitada por guerreiros indígenas bastante violentos. Outros relatos se seguem como o Naufrágio da Nau «São Bento» no Cabo da Boa Esperança no Ano de 1554 e o Naufrágio da Nau «Conceição» nos Baixos de Pêro dos Banhos no Ano de 1555. Todos os relatos à excepção da Descrição da cidade de Colombo pelo Padre Manuel Barradas da Companhia de Jesus, descrevem tragédias marítimas, nomeadamente naufrágios e batalhas navais. Realidade ou ficção, a verdade é que este tipo de relatos contribuiu em muito para o conhecimento do nosso passado marítimo. Quanto às descrições míticas e fantásticas, apesar de terem sido ultrapassadas por registos mais realistas tudo parece indicar que, estes podem, ao contrário do esperado, ter continuado sempre vivos em terra e também «noutras terras», por onde iam passando os navegantes lusitanos. Esta exploração do imaginário, ainda que hipoteticamente inventado (algum) e relatado (outro) ou ainda somente desenvolvido consciente ou inconscientemente por alguns navegadores portugueses, pode, num nível inicial, ter persuadido alguns marinheiros estrangeiros a reflectir sobre futuras aventuras marítimas. Pode mesmo ter levado, em conjunto com outras variáveis (com maior peso e perfeitamente identificadas pelos historiadores), a uma desistência de viagens inéditas. Além disso pressupõe-se ter existido uma forte política de sigilo nas navegações levada a cabo por parte da Coroa portuguesa durante os descobrimentos. É quase certo que seria do interesse régio manter secretos determinados factos e conhecimentos, para afastar os potenciais concorrentes a empreendimentos marítimos para espaços importantes. Assim se compreende a escassez de documentos oficiais acerca das viagens e sobretudo de valiosos conhecimentos náuticos, doutro modo não faria sentido que se tivesse negligenciado tamanho manancial de informação. Segundo alguns autores esta política de secretismo era um instrumento basilar à disposição da coroa portuguesa. Numa Europa que combatia o principio do mare clausum, o fundamento jurídico do poder ultramarino de Portugal e Castela, e numa Península Ibérica que rivalizava entre si, a preocupação de ambos os governos de manter determinados assuntos confidenciais e mesmo secretos era normal e mais tarde tal procedimento foi mesmo adoptado por outros estados europeus de expressão marítima

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A exploração do mar e do seu “fantástico”, assim como a política de secretismo e de (porque não) contra informação, pode ter-se devido a uma espécie de rumor enganador ou de uma mistificação. Ainda que sem a existência dos media, tal como conhecemos actualmente, teve, talvez , alguma expressão, sobretudo em portos famosos a nível europeu. Elegendo a oralidade como meio privilegiado de divulgação da notícia e, sabendo que esta cria por simpatia a própria deturpação da mensagem original, fácil será adivinhar que não terá sido muito difícil o fantástico tornar-se ainda mais fantástico consoante o número de contadores e ouvidores foi aumentando. Pois, como diz o ditado, quem conta um conto acrescenta-lhe sempre um ponto. Depois, não só a transmissão oral, mas também a escrita, foi preponderante neste fenómeno. Como verificámos, o próprio Camões enaltece os feitos dos lusitanos, fazendolhes crescer os feitos e misturando na sua obra perigos reais com perigos imaginários. Toda esta criação e “manipulação” (voltamos a afirmar, porventura inconscientes) da informação terão provavelmente sido cruciais em determinado momento da história e terão possivelmente contribuído para o próprio prosseguir da expansão portuguesa. Sabemos que não terá sido o único factor e muito menos o mais importante. Os factores determinantes estão hoje perfeitamente identificados por historiadores, economistas e outros teóricos. No entanto, acreditamos que talvez tenha jogado também no desenvolvimento da relação de Portugal com o mar. A possibilidade da exploração da relação com o fantástico aliada a uma política de sigilo por parte dos nossos marinheiros, cronistas, escritores e contadores de histórias, pode ter sido perfeitamente um pequeno dente de uma grande roda dentada da máquina expansionista portuguesa no mundo durante os seus três séculos de expansão e descobrimentos.

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