[Mar.15] Memórias apagadas - Os velódromos esquecidos de Porto Alegre

June 22, 2017 | Autor: Natália Santucci | Categoria: Modernidade e América Latina, Bicicletas, Esportes, Porto Alegre, Ciclismo, Século XIX
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MEMÓRIAS APAGADAS - OS VELÓDROMOS ESQUECIDOS DE PORTO ALEGRE Natália de Noronha Santucci1 Resumo A presente comunicação visa abordar a importância do ciclismo como prática esportiva na Porto Alegre da virada do século XIX para o século XX, assim como a utilização pelos primeiros ciclistas de diversas áreas da cidade para suas atividades, a criação pelas associações esportivas de espaços específicos para a prática - os velódromos - a gradual substituição da bicicleta por outros interesses e, consequentemente dos velódromos por novos usos e construções, sem que a memória destes espaços e clubes fosse largamente preservada - suas localizações e seus nomes, que uma vez foram frequentes nas páginas dos jornais, apagaram-se com o tempo. Palavras-chave: Ciclismo. Velódromo. Memória. Cidade. Modernidade. Considerações iniciais A partir da pesquisa em desenvolvimento no Mestrado em História do PPGH/PUCRS acerca da influência dos novos locais de sociabilidade e do ciclismo na indumentária dos porto-alegrenses durante o período de 1895 a 1905, e do atual interesse da sociedade na disseminação do uso da bicicleta em ambiente urbano, seja como transporte ou instrumento de lazer, esta comunicação abordará a importância do ciclismo como prática esportiva na Porto Alegre da virada do século XIX para o século XX. No item “Porto Alegre e a Modernidade” será apresentado o contexto no qual o esporte se desenvolveu na cidade no final do século XX; em “Bicycletismo” será comentada a utilização pelos primeiros ciclistas de outras áreas da cidade para suas atividades; em “Os Velódromos” veremos a criação de espaços específicos para a prática esportiva. Em “Olvidamento” temos a gradual substituição da bicicleta por outros interesses e dos velódromos por novos usos e construções, o desaparecimento da memória destes espaços e associações do conhecimento e do imaginário da cidade. “Outros tempos” contém as tentativas posteriores de recolocar o ciclismo no cotidiano da cidade. 1

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Especialista em Moda, Mídia e Inovação, Mestranda em História com bolsa CAPES, [email protected]

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Em um momento em que a sociedade em geral está envolvida na questão da presença da bicicleta por meio do estabelecimento de ciclovias em diversas cidades brasileiras e que chegamos a quase 120 anos desde o auge do esporte na capital gaúcha, parece bastante adequado dar início ao resgate destas memórias e ocasionalmente contribuir para novas perspectivas sobre o cavallo de ferro2. Porto Alegre e a Modernidade Primeiramente, é fundamental inserir a ascensão das novas sociabilidades em um contexto - a transformação da urbe, a construção de identidades e a identificação com a “modernidade” são pilares importantes para compreender a chegada do ciclismo esportivo ao auge durante o período abordado. De acordo com Sandra Jatahy Pesavento, “os

limites

em

termos

da

capacidade

à

acumulação

capitalista

local

e,

consequentemente, de uma mais profunda renovação urbana e tecnológica não impediram que Porto Alegre, assim como o País, vivesse o sonho das civilizadas cidades europeias” (1991, p.57) Assim, observamos que no século XIX Porto Alegre sofreu profundas alterações quanto à ocupação do espaço e interação de pessoas. Segundo Charles Monteiro, “a Revolução Farroupilha (1835-1845) iria modificar o ritmo e o sentido do crescimento de Porto Alegre” (1995, p.30), e um dos motivos é que durante o período de sítio “a cidade passou a ser abastecida por São Leopoldo, fator que permitiu o desenvolvimento da agricultura comercial nesta colônia alemã” (SYMANSKY, 1998, p.48-49), o que certamente possibilitou a ascensão social dos imigrantes e seus descendentes e pode ter determinado a presença dos teuto-brasileiros na burguesia que se formava na capital. Após o fim da revolução as fortificações que cercavam a cidade foram demolidas, possibilitando a expansão no sentido das estradas, dando origem aos arraiais, e foram feitos melhoramentos significativos na cidade (MONTEIRO, 1995, p.31) Mais perto do fim do século, sob influência de diversos fatores, Porto Alegre se aproxima do “sonho” da modernidade. Para Núncia Constantino “pensar a modernidade

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Assim foi apelidado o primeiro velocípede que se tem notícia no Rio Grande do Sul conforme uma carta enviada ao Correio do Povo, publicada na edição de 08.12.1907.

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é apontar para formas de pensar e de viver” (1997, p.51). Quanto às formas de viver, Monteiro nos apresenta que em meados de 1880 crescia a influência da presença alemã na cidade com a prática de esportes como o ciclismo, o remo e o tiro, valorizava-se o rio e os arraiais para passeios e piqueniques. Fundam-se uma série de sociedades e clubes congregando a comunidade imigrante. Os alemães trouxeram esse novo componente da vida em sociedade para Porto Alegre. [...] Por volta de 1890, inicia-se uma nova fase do fenômeno urbano, caracterizada pela crescente complexidade da organização dos grupos sociais no espaço [...] abolição da escravidão [...] instalação da ordem republicana [...] crescimento das camadas médias urbanas [...] imigração maciça de trabalhadores livres [...] eram os novos elementos na equação urbana, por causa do dinamismo que imprimiram às relações sociais e à economia de Porto Alegre tornariam necessário realizar um reordenamento do espaço urbano. [...] (1995, p.33-34. Grifo nosso)

Este reordenamento foi iniciado na área central, para corresponder aos novos ideais de civilidade da burguesia em ascensão. Englobou desde melhorias estruturais a espaços de sociabilidade, que funcionariam também como um palco para representações correspondentes ao novo imaginário. A cidade moderna, inspirada no modelo parisiense, passa a ter iluminação pública a gás em 1874, e perto da virada do século o comércio exibe vitrines iluminadas pela Cia Fiat Lux. A capital contou aos poucos com melhorias no calçamento, na segurança, no saneamento, a inauguração do primeiro curso superior, e ganhou espaços como parques, jardins, cafés decorados com espelhos, confeitarias, cinemas, teatros, bondes e também os velódromos, junto ao hábito de diversas

práticas

esportivas

(CONSTANTINO,

1997;

MONTEIRO,

1995;

PESAVENTO, 1992; SILVA, 2013). Bicycletismo Porto Alegre foi transformada urbanisticamente ao mesmo tempo que se fazia “uma tentativa de introduzir novos costumes mais adequados, afastando a representação da cidade rural”, e desta forma coube na sociedade “uma cultura esportiva associada à

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modernidade” (MORAES, 2012, p.1). Um dos mecanismos para propagar os ideais e hábitos associados à “modernidade” era a imprensa e, durante a “moda do ciclismo”3: Os jornais divulgavam essa prática esportiva de diversas formas, tais como, a reportagem sobre competições, a convocação para atividades oficiais e eleitorais, o convite para participar dos festejos sociais, publicação dos resultados das provas ocorridas, os benefícios da prática do ciclismo para a saúde, o incentivo à presença de mulheres, entre outros (MORAES, 2012, p.4).

De acordo com Silva (2013), a imprensa construiu representações no imaginário porto-alegrense estabelecendo relações entre esporte e medidas de higiene, modernização, e a bicicleta como símbolo de modernidade. Em meados de 1895 o “velocípede de duas rodas” caiu no gosto de alguns jovens como forma de deslocamento, e passeios começaram a ser organizados partindo dos Campos do Bom Fim para os arraiais - foi como surgiu o primeiro clube dedicado à nova mania porto-alegrense, a União Velocipédica de Amadores (AXT e SCLIAR, 2011; FRANCO, 1998; MACEDO, 1982; MORAES, 2012). A fundação da União Velocipédica de Amadores, em março de 1895, foi amplamente divulgada pela imprensa - talvez pelo “importante papel [que o ciclismo] está desempenhando na Europa” (LICHT, 2002, p.9) e sua correspondência com o projeto de modernização em voga. Macedo comenta que Não havia, por certo, nenhuma intenção de competir, de emparelhar-se, de apostar corrida. Eram tranquilos e juvenis passeios dominicais que refrescavam o corpo e pacificavam o espírito do alegre porto-alegrense. Não competiam nem pretendiam se tornar grande sociedade, tanto que dois anos depois, apenas alcançavam cinquenta sócios (1982, p.62).

A prática do ciclismo em Porto Alegre originou-se destas excursões que, mesmo após a construção das próprias sedes e velódromos pelas associações, continuaram a acontecer para diversos lugares, como Belém Velho, Tristeza, Tramandaí, Ponta do Dionysio, Teresópolis, Canoas e Cascata. Os velódromos são pistas específicas para corridas de bicicleta e, durante a década áurea do ciclismo porto-alegrense, houve 3

De acordo com Soares “é importante lembrar que não são poucas as vezes em que encontramos nos periódicos a expressão “sports da moda”, para se referir ao rowin, turf ou ao foot-ball, principalmente. Porém, antes deste último tivemos o ciclismo como o principal esporte da moda.” (2014, p.155)

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quatro destas pistas pela cidade, conforme veremos a seguir. Os ciclistas também circularam em préstitos pelas ruas da cidade em ocasiões solenes e movimentaram outros lugares para reuniões, como os Prados Riograndense, Boa Vista, Independência, as Praças da Caridade, 15 de Novembro, Senador Florêncio, do Menino Deus, da Conceição, o Restaurante e Café do sr. H. Schroeder e o Hotel Lagache, ou outros acontecimentos nos Salões da Germânia e da Turner-Bund, e continuavam organizando corridas e desafios que tomavam o Caminho Novo, a rua da Azenha, as estradas de Viamão e Belém (LICHT, 2002). Um ano e meio depois, em outubro de 1896, surgiu a segunda associação de ciclismo, a Radfahrer Verein Blitz4, fundada por um grupo de jovens teuto-brasileiros (LICHT, 2002; MACEDO, 1982; SOARES, 2014). É importante fazer aqui um apontamento quanto à nomenclatura do clube - optamos por chamá-lo pelo que parece ser mais correto, uma vez que os termos que aparecem em algumas fontes como Rodforvier não foi localizado como palavra alemã e Ruder significa remo. Radfahrer, conforme aparece nas notícias coletadas por Licht, é a palavra alemã para ciclista. Acreditamos que houve alguma confusão na transcrição de manuscritos e entrevistas por parte de alguns autores e que, com o objetivo de resgatar a memória da associação, seja apropriado buscar esta correção. Para Moraes (2012) e Silva (2013), a Blitz possivelmente foi idealizada como uma forma de manutenção da identidade cultural alemã e, conforme Macedo (1982), para desafiar a União Velocipédica. E houve de fato o desafio e o aceite, divulgados pelos jornais da época - no dia 10 de janeiro de 1897 realizou-se “a primeira corrida de bicicletas da história de Porto Alegre” (FRANCO, 1998, p.110), com o “percurso de ida e volta da estação de ferro de Porto Alegre a Novo Hamburgo até aos Navegantes” (LICHT, 2002, p.13) - no Caminho Novo, atual Voluntários da Pátria. Dois dias depois foi publicado um relato da disputa, na qual concorreram três ciclistas de cada associação: [...] A luta foi então fortemente travada entre Luiz Rist [União] e Oscar Schaitza [Blitz]. [...] O interessante torneio correu na melhor ordem e com extraordinaria animação, de modo a fazer crer que agora mais a miudo se reproduzirão as agradaveis diversoes desse genero. (LICHT, 2003, p.15) 4

Em tradução livre: “Clube Ciclista Blitz (Raio)”.

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Talvez motivados pela corrida - e pela vitória de um dos seus, João Alves - um mês depois o Correio do Povo noticiava o futuro estabelecimento pela União de uma pista de corridas - seria o primeiro dos velódromos de Porto Alegre, e sobre eles falaremos a seguir. Os Velódromos Em 30 de janeiro de 1898 foi finalmente inaugurado o primeiro velódromo na cidade, pela União Velocipédica. A pista em forma de elipse tinha 550 metros de comprimento e esteve localizada na parte interna do Prado da Independência, que mais tarde seria conhecido como Hipódromo Moinhos de Vento (FRANCO, 1998; MACEDO, 1982). Era uma pista rudimentar, de terra socada, inaugurada após uma chuva mas, ainda assim, com “as archibancadas repletas de exmas. famílias” e “uma festa muito concorrida e animada” (LICHT, 2002, p.23-24) Também em 1898 a Blitz inaugurou sua pista, contando com a presença de membros da União e da Turner-Bund - clube de ginástica - de muitas famílias. De acordo com Licht: O velodromo construido com muito gosto tinha a pista de 400 metros toda revestida de lage e cimento. O terreno na rua Voluntários da Pátria foi cedido gratuitamente pelo Dr. Luiz Englert, pelo prazo de 10 anos. [...] O construtor Gustavo Koch fez uso da palavra e entegou (sic) à Blitz o seu velodromo. (LICHT, 2002 p.10)

Analisando o conteúdo reunido por Licht e a ocorrência de resultados visuais, notamos que há bem menos registros da Blitz no geral, embora o Fuss-ball, time de futebol que se originou do clube, como veremos a seguir, tenha jogado ainda por décadas. Não foram localizadas até o momento fotos ou material iconográfico da Blitz, as fotografias disponíveis estão todas identificadas como da União Velocipédica. Houve ainda, em 1900, a notícia de outro velódromo dos quais os registros são ainda mais escassos - o Recreio Militar. Talvez não possa ser considerado um clube, tendo em vista que a imprensa da época levanta a possibilidade funcional do ciclismo para as forças em operação, não apenas a finalidade recreativa conforme o nome nos faz supor. De qualquer forma, a pista estaria no centro do edifício de alojamento do 3º Sessão temática Cidade - 717

Batalhão de Infantaria da Brigada Militar, localizado no bairro Cristal, onde anteriormente havia a Hospedaria para Imigrantes (FRANCO, 1998; LICHT, 2002; PROCEMPA, s.d). Foi inaugurado no dia 11 de março de 1900, “vistosamente ornamentado de flores, folhagens, galhardetes” (LICHT, 2002, p.53), com duas menções pelo Correio do Povo, inclusive constando a programação de corridas e posteriormente os vencedores, mas nada mais foi localizado além de uma menção à inauguração na 14ª edição do “Almanak do Rio Grande do Sul”, publicado em 1902. Na outra extremidade está a segunda pista da União - o Velódromo do Campo da Redenção - que certamente foi a principal e mais documentada pista da cidade. Segundo Macedo (1982), em 1899 a União Velocipédica já tinha 1100 sócios, mais de 700 “montados”, ou seja, ciclistas, e em 19 de novembro daquele ano o clube inaugurou sua nova pista. Inicialmente a União cogitou a aquisição de um terreno no Moinhos de Vento, mas a localização escolhida foi considerada imprópria e sofreu críticas pelas péssimas condições de acesso. O Intendente Municipal à época, José Montaury, então ofereceu à União Velocipédica o arrendamento de um terreno na Várzea por nove anos, próximo a rua da Conceição (LICHT, 2003, p.30). O engenheiro Koch, também responsável pela pista da Blitz, realizou a planta, que teve alterações feitas pelos engenheiros Alfredo Leyraud e Lindolpho Silva. A firma Koch e Schubenzuber foi contratada para fazer a pista e o pavilhão, a E. Berta e Companhia para colocação do gradil. O contrato de arrendamento foi assinado e poucos meses depois houve a cerimônia de colocação da pedra fundamental do novo velódromo - um grupo de sócios foi fotografado com seus uniformes e bicicletas por Virgilio Calegari, discursaram o presidente da comissão construtora, o ciclista Gustavo Maynard e o ciclista, advogado e jornalista Germano Hasslocher, entre outros. Foi oferecido um almoço no Hotel Lagache com cardápio todo em francês, divulgado pela imprensa, o que nos dá indício da pompa envolvida na ocasião (LICHT, 2002). A festa de inauguração teve ares de espetáculo, com préstito saído do Menino Deus composto por cerca de duzentos ciclistas fazendo entrada triunfal no velódromo, comparecimento de autoridades como Pereira Caldas, José Montaury, Borges de Medeiros e major Cherubim Costa (MACEDO, 1982; LICHT, 2002) e foi destaque na primeira página do Correio do Povo, que descrevia o novo espaço: Sessão temática Cidade - 718

[...] occupa uma vasta area de 17.000 metros quadrado [...] grande portão fronteiro á rua da Conceição [...] A pista é de forma oval, e tem pela linha de medição 333m, 33 [...] A sua contrucção é a mais solida possivel, tendo uma camada superior de concreto de cimento de 0m,10 de espessura. Aos olhos desprevenidos de um extranho ao cyclismo, parece incrivel que se possa andar ali de bicycleta, tal é a elevação das curvas. Devida a sua construcção moderna, pode se obter a velocidade maxima de setenta kilometros por hora. O elegante chalet da sociedade, ao lado da pista, apresenta a par da belleza que presidiu a sua architectura, todo o conforto em uma casa daquella ordem. Tem elle de frente a extensão de 40 metros, sendo a parte superior dividida em diversas salas destinadas á toilette das senhoras, directoria, secretaria, archivo, enfermaria e grande salão para restaurante, como sejam, cópa, cosinha [...] (LICHT, 2002, p.43-44).

É interessante notar que o “elegante Velódromo da União” possuía estrutura de esgoto e iluminação a gás para as atividades noturnas e festas (LICHT, 2003). Ou seja: também estava incluído no contexto de sociabilidades noturnas e elitizadas discutido por Constantino (1997).

Imagem 1: Vista da Exposição Estadual de 1901. Ao centro da foto vemos uma das extremidades da pista do Velódromo. Acervo do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa.

Associações como a Blitz e a União tinham destaque e era socialmente representativo fazer parte delas - as altas e médias camadas da cidade se mobilizaram Sessão temática Cidade - 719

em torno do ciclismo, que era dispendioso devido às mensalidades dos clubes, aquisição de bicicletas que na época eram importadas, e ainda eram taxadas com um imposto anual (FRANCO, 1998; MORAES, 2012; SOARES, 2014). A presença nas pistas não era exclusividade dos homens, houve também participação feminina e infantil (LICHT, 2002). O prestígio da União Velocipédica era tanto que em 1904 o clube enviou para uma exposição em Saint Louis (EUA) uma delicada réplica em madeira do velódromo, sua planta, fotografias, programas, um uniforme e outros objetos (LICHT, 2002), que infelizmente não pudemos apurar se retornou ao Brasil e a quem pertenceria. Toda essa movimentação em torno deste “modernissimo genero de sport” (LICHT, 2002, p.9) contudo, não impediu a decadência do bicycletismo até seu quase completo esquecimento. Olvidamento A palavra “moda” interpretada como “hábito em voga por um determinado período” pode ajudar a explicar o olvidamento das corridas de bicicleta - por cerca de dez anos o ciclismo esteve na moda, começando timidamente, com passeios bucólicos, atingindo o auge com dois clubes expressivos e, gradualmente, sendo substituído por novas práticas de esporte, lazer e sociabilidade. Em 1903 a moda do futebol fez seus primeiros movimentos em Porto Alegre - as associações esportivas receberam a visita do Sport Club Rio Grande para uma partida de foot-ball nas dependências do velódromo da União no dia 07 de setembro (LICHT, 2002), e já no dia 15 foram fundados dois clubes: o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e o Fuss-Ball Club Porto Alegre pelos sócios da Blitz (SOARES, 2014) - o que seria, de acordo com Licht “o inicio da decadência da Blitz como clube de ciclismo” (2002, p.83). No fim do mesmo mês, a União estabeleceu relações com o Grêmio, o que para Soares (2014) indicaria uma escolha gradual entre o ciclismo e o futebol. Voltando aos velódromos - conforme já vimos, a pista da União no Prado foi substituída pela da Várzea e não se falou mais em ciclismo naquela área. O Fortim da Baixada, primeiro estádio do Grêmio, foi instalado nas imediações - hoje um monumento discreto relembra o campo. Quanto à pista da Blitz, teve ao seu lado o campo do Fuss-Ball “como um apêndice da mesma, até que sucumbisse à preferência Sessão temática Cidade - 720

pelo futebol, diminuindo suas atividades, gradativamente, até mais ou menos 1906” (SOARES, 2014, p.51). Em 1911 as menções à Blitz desapareceram definitivamente quando a associação devolveu o terreno ao proprietário (SOARES, 2014). Soares (2014) relata ainda que, enquanto a Blitz teve uma sobrevida devido ao vínculo com o Fuss-Ball, a União pereceu antes, já que seus sócios pareciam estar se transferindo para o Grêmio. Em 1905 houve campanhas para resgatar o clube, retomar seus dias de glória, mas percebe-se que não deram resultado pois o velódromo começou a ser cedido para outros usos à Associação Protectora da Infancia e ao Club Gymnastico Rio-Grandense (LICHT, 2003).

Imagem 2: Localização do velódromo da Blitz em primeiro plano, à esquerda, da União à direita. No topo da imagem o Prado da Independência. Recorte da Planta da Cidade de Porto Alegre, 1906.

Observando a planta de 1906, vemos que o velódromo da Blitz estava localizado entre a rua Sete de Abril e a rua do Parque. A rua Almirante Tamandaré teria cortado o campo do Fuss-ball ao meio (CRUZ, FROSI, MORAES e MAZO, 2001). Entretanto, considerando o trajeto da antiga Sete de Abril (hoje Câncio Gomes neste trecho) e a distância da Rua do Parque, levantamos a possibilidade de que a rua em questão fosse

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na verdade a Álvaro Chaves, e que a Blitz estaria desta forma localizada na Voluntários da Pátria, próxima à altura do 2337. O velódromo do Recreio Militar esteve localizado, conforme vimos, no alojamento do 3º Batalhão que, de acordo com Franco (1998), ficava na área onde hoje se localiza o hipódromo do Cristal. Por último, o “bello e confortavel velodromo do Campo da Redempção” (LICHT, 2002, p.55). Conforme comentamos anteriormente, em 1905 a União já enfrentava dificuldades e começava a emprestar as instalações do velódromo para outras práticas - segundo Licht (2013), em 1907 firmou um acordo com o Club Gymnastico Rio-Grandense, que lá permaneceu até 1910, quando a Intendência Municipal retomou a posse do terreno que a edificação ocupava (CORREIO DO POVO, 13 out. 1910). Após retomada pelo município, a sede foi remodelada para oferecer cursos técnicos (LICHT, 2013). Talvez por isso algumas fontes mencionem que o velódromo ficaria onde hoje está o edifício do Instituto Parobé5. Porém, a Planta da Exposição Estadual de 1901 e a Planta da Cidade de 1906 o posicionam do outro lado da rua, o que é reforçado por diversas outras fontes que o localizam onde hoje se situa a Rádio da Universidade Federal, à Rua Sarmento Leite, no atual prédio da Reitoria, ou na Faculdade de Arquitetura (AXT e SCLIAR, 2011; FRANCO, 1998; LICHT, 2002; MACEDO, 1973). A confusão com o Parobé talvez possa ser explicada pela existência, à época da remodelação do lugar, da divisão feminina do instituto, que não compartilhava o mesmo prédio dos rapazes - construção que também não existe mais, substituída pela atual Faculdade de Arquitetura, conforme é possível observar na imagem 3. Segundo Corrêa (2000), foi no apenas no final da década de 1930 que instituiuse a figura jurídica do tombamento e, conforme Pelegrini, somente no fim do século XX a preservação de bens culturais "passou a ser admitida como uma atitude positiva e inteligível" (2006, p.121). Desta forma, percebemos que, nos anos 1910, Porto Alegre se transformou novamente, ainda no veloz ritmo da “modernidade”, substituindo os velódromos por novos usos e construções, sem que a memória destes espaços e associações fosse largamente preservada. Em Licht vemos uma citação de 1916 relembrando o

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Como AXT e SCLIAR (2011, p.69) e CRUZ, FROSI, MORAES e MAZO (2011, p.6).

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desaparecimento das duas associações de ciclismo, das quais só restavam os nomes “para se ter uma grata recordação do que foram os seus campeonatos e as suas bellas e attrahentes excursões aos pontos pittorescos de Porto Alegre" (2013, p.9). Nem a União, tampouco a Blitz, possuem qualquer tipo de memorial das pistas de sua consagração, e nenhuma das fontes consultadas nos dá indícios da existência de um acervo que abrigue os registros do ciclismo.

Imagem 3: Fotografia de 1929 indicando os Institutos que viriam a se tornar a Universidade. Acervo Patrimônio Histórico da UFRGS

Outros tempos Licht (2013) considera que houve quatro fases no ciclismo porto-alegrense, estando a Blitz e a União e toda a movimentação da cidade moderna na primeira delas. As seguintes teriam ocorrido nos intervalos de 1917 a 1925, 1935 a 1938, 1967 a meados de 1980, sem que isso resultasse em algum resgate do passado recente que tenhamos conhecimento por ora. De acordo com Monteiro, no período em que houve esta 4ª fase “chegava-se ao fim de uma cultura urbana ligada às experiências sociais das Sessão temática Cidade - 723

elites e camadas médias [...] Visando, também, superar a falta de áreas verdes foi criado o Parque Marinha do Brasil” (2004, p.68 e p.71) . Então, Licht nos apresenta que o velódromo deste parque “nunca pode ser usado em competições pelo comprimento e a força centrífuga, o mesmo problema do Velódromo do Cristal no início do século” (2013, p.2) e que “lamentavelmente, era um ‘velódromo recreativo’, sem condições técnicas para ser usado em competições e treinamentos” (2013, p.48). Talvez por inadequação técnica, falta de segurança ou de divulgação, a pista remanescente também possa ser categorizada como um dos velódromos esquecidos de Porto Alegre. Atualmente ocupado pelo projeto Biciescola, o histórico do programa anuncia um pedido de resgate como ponto de partida para sua recuperação. Considerações Finais Conforme vimos, na virada do século XIX para o XX, Porto Alegre vivia um momento de busca pela modernidade, da qual o ciclismo e a bicicleta eram símbolos. Houve neste período quatro velódromos, sendo dois deles frequentados por milhares de pessoas da elite da cidade. Entretanto, muitas novidades ganharam espaço nesta época novas formas de lazer, o aumento do trânsito de veículos, outros esportes, como o futebol, que desde o princípio esteve vinculado aos clubes de ciclismo - o que contribuiu para o enfraquecimento da popularidade do ciclismo. A discussão de preservação patrimonial inexistia nesta época, assim os velódromos foram substituídos por outras construções. Os acervos dos clubes também não se mantiveram preservados e ao alcance da sociedade em geral. Tomando a liberdade de apontar uma quinta fase no ciclismo em Porto Alegre na atualidade, relacionada à militância e à implementação de ciclovias, o resgate da memória dos antigos clubes e do velódromo do Marinha para o imaginário da população poderiam ter, além de valor histórico, valor social ao adicionar novas perspectivas sobre a presença da bicicleta na cidade. Esta última construção, exemplar temporão atualmente em uso por um projeto que ensina adultos a pedalar, encontra-se parcialmente resgatado. Digamos parcialmente pois, ainda que ocupada, a pista talvez não ocupe uma posição consolidada no imaginário porto-alegrense, que talvez até as ciclovias já tenham conquistado por sua visibilidade. Quanto à memória da Blitz e da Sessão temática Cidade - 724

União, esperamos que o andamento da pesquisa possa trazer à luz ao menos alguma organização e ampliação do material disponível atualmente. Referências AXT, Gunter; SCLIAR, Moacyr. Parque Farroupilha “Redenção”. Porto Alegre: Paiol, 2011. BICIESCOLA. Nossa História. Disponível em: . Acesso em 08.02.15, 17h47. COMPANHIA DE PROCESSAMENTO DE DADOS DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE - PROCEMPA. História dos Bairros de Porto Alegre. Disponível em: . Acesso 03.02.15, 15h35. CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Modernidade, Noite e Poder: Porto Alegre na Virada para o Século XX. Tempo, Rio de Janeiro, Vol.4, 1997, p.49-64. CORRÊA, Alexandre Fernandes. Mudanças no paradigma preservacionista clássico: Reflexões sobre patrimônio cultural e memória étnica. Apresentado na XXII Reunião da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), 2000. Disponível em: . Acesso em 08.02.15, 15h50. CRUZ, Lucas Lopez da; FROSI, Tiago Oviedo; MORAES, Ronaldo Dreissig de; MAZO, Janice Zarpellon. A prática do ciclismo em clubes de Porto Alegre/RS. Pensar a Prática. Goiânia. Vol. 14, n. 3 (set./dez. 2011), p. 1-18. FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: Guia Histórico, 3ª edição revista e ampliada. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1998. LICHT, Henrique Felippe Bonnet. Ciclismo no Rio Grande do Sul: 1869-1905, Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte da Escola de Educação Física - UFRGS, 2002. Disponível em Acesso em 09.02.15, 14h43 __________. Ciclismo: subsídios históricos (18.11.2013). Disponível em . Acesso em 01.02.15, 12h40. MACEDO, Francisco Riopardense de. Porto Alegre: História e Vida da Cidade. Porto Alegre: URGS, 1973.

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