MARCHIORO, M. 2002. O Inimigo em Pedaços: um ensaio de discussão bibliográfica acerca dos Tupi-Guaranis. Revista Vernáculo, N° 6-7, p. 20-52, Set 2001/ Abr 2002. ISSN: 2317-4021.

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o Inimigo em Pedaços: Um Ensaio de Discussão Bibliográfica acerca dos TlIpi-GlIarani Márcio Marchioro l

Introdução Esta pesquisa terá como IIlluilO dellllcar as principais tendências hiMoriográ ficas ex.istentes na abordagem a respeito dos Tupi-Guarani. Nosso ponto de partida será a análise da bibliografia existente sobre os Tupinambás residentes na costa litorânea brasileira no século XVI. No que

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respeito a

cSlrutura da pesquisa procuraremos dividi-Ia cm três tópicos que versara m, de acordo com a bibliografia existente. sobre quatro temáticas essenCIaiS: a demografia. a guerra. o canibalismo e o profetismo. Os assuntos da guerra e do ctlnibalismo, que a nosso ver não podem ser sccionados de modo algum, serão tratados em um capítu lo conjunto.

No primeiro capítulo, nos ateremos as questões levantadas acerca do processo designado de invasão tupi do litoral, procurando discorrer um pouco sobre as c3ractcríMicas gerais dos primeiros habitantes da Mata Atlântica. Em seguida, temos objetivo de comentar as distintas hipóteses tecidas no que condiz a migração e o tempo de permanência dos Tupi-Guarani nas regiões nas quais sua presença foi detectada pelos coloni7adores no século XVI. Em uma breve passagem do ensaio, delimitaremos a área ocupada pelos Guarani, assim como dos Tupinambá, tentando fazer algumas considerações sobre a tese cl~\striana acerca das relações da demografia C0111 o fortalecimento das chefias tupl-guaranls. Já no segundo capítu lo. faremos um pequeno apunhado das diferentes le~cs historicamente localizadas existentes sobre a relação da guerra com a religião tupi-guarani. Depois trataremos de abordar o assunto das ca tegorias de idade tupinambá, tendo em mente a idéia de que elas são estruturadas a partir das atividadcs guerreiras. Outra questiío impollante a ser analisada é o tema do resguardo de nascimento por qual todo pai deve se submeter. Além disso. também temos por objetivo neste tópico comentar as relações da guerra com a caça por meio da análise da mudança do discurso antropo lógico acerca deste Lema. E. finalizando a seçfio. discorreremos sobre alguns aspectos da morte ritual do inimigo no terreiro c ~lIJ relação com o resguardo do matador. rOI úhimo, em um terceiro capítulo, comentaremos como a mitologia IUpi-guarani inOui na decisão desses índiOS em buscarem a Terra Sem Mal. se m esquecer o fato de explicar a diferença ent re o pmaíso concebido pelos cri stãos I Graduaçao _ 11l ~lória UFI'R

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e O paraíso dos Tupi -Guarani . A diferenciação entre xa mãs e caraíbas será ta mbém uma te mática a ser analisada por nós em um trecho a seguir deste tó pico. Em seg uida. apresentaremos a tcoria da alma presente entre alguns gnlpos guarani, buscando tecer algumas relações entre esses índios e os Kaingang. Finalmente, faremos um breve panorama das tendência de interpretação do fenô meno da busca da Terra Sem Mal tanto entre os TupiG uarani do sécul o XVI como entre os Guara ni do sécul o XIX e XX.

Distribuição Geográfica Existem poucos indícios arqueológicos capazes de possibilitar uma reconstrução fidedigna dos traços culturais característicos dos primeiros habitantes da região tropical, localizada no perímetro conve ncionalmente designado como terras baixas da América do Sul. Segundo o hi sto riador ambiental Warren Dean (2002: 38). esses grupos humanos eram caçadoresco letores e, provavelmente. passaram por um período de escassez alimentar ocasionada graças à extinção de alguns animais de gra nde pone do cerrado. Com relação as justificativas elaboradas para explicar o surgimento da agricultura nessa região, Dean sustenta lima tese de teor prioritariamente demográfico. Ou seja, o autor dá preponderância a um aumento da população local, em detrimento da hipótese que Hponta uma suposta mudança climática como principal fator contribuinte para desenvolvimento da horticu hura indígena. Além disso, a acidez do so lo do cerrado tornou a área da Mata At lântica - vegetação preponderante na costa litorânca brasileira do nordeste mé o sul - preferida para o plantio de cultivares. O milho. o inhamc, a abóbora, o abacaxi , o amendoim c, sobretudo, a mandioca, se constituíram, ao longo do tempo, como base da alimentação dos primeiros povos agricultores dessa paisagem fl orestal. O processo utili zado na feitura do plantio era o da la voura itinerante, no qual ocupava-se determinada faixa de tCITa apenas durante duas ou três estações e, posteriormente. migrava-se criando o utra delimitação para as hortas. deixando o solo anteriormente desgastado restabelecer-se.! Por outro lado, a falta de animai s domcsticáveis - como a lhama por exemp lo - e o baixo rendimento da agricultura, fez COI11 que as atividades de CHça, pesca c co lela mantivessem sua impo rtância fundam ental na obtcnção da base protéica indígena .

I COulO nos di z John IIcmm in g ( 1998: 1O~). "( ,.) isso ocorre porque os solos lateríticos sob as norcstas s;1o fracos, os predadores c os parasitas ataC:lIlI continuamente. a compeliçào çom outra \egelação é intensa e o sol inclemeTlte e a ChU\'3 incessante, aliados a uma auscnl'Ía de mudanças sazon ais de tcmpcratur:t. deseslimularn o planlio repelitlo tio rnC\I11O ~lllo"

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Explicando melhor, a região guarani possuía, segundo P. Clastres, cerca de 500 mil km 2 em seu total. Ao se descartar as áreas ocupadas por outras tribos, como os Kaingang, por exemplo, chega-se a um total aproximado de 350 mil km 2 ocupados apenas pelos Guarani. Através disso, a polêmica começa a se instalar no momento em que P. Clastres, pautado em dados de alguns cronistas quinhentistas, calcula que os Guarani pré-contato possuíam uma população dc aproximadamente 1,5 milhõcs de índios. Contrariando essa lese, ao elaborar uma pcsqui sa regi onal sobre demografia guarani nos dois primeiros séculos da conquista, Bartomeu Melià (1988: 88) critica de forma veemente a metodologia adotada para a obtcnção desses dados. De acordo com O seu ponto de vista, "los 'eléments de démografie amérindiennc' de P. Clastres ( ... ) no pasan de lima fantasia aritmética. Esse autor, a pesar de sus declaraciones de principio, no consideró necesario leer a los cronistas de un modo sistemático, apoyándose para sus cálculos en algunos datos de textos secundarios y parciales, que usa para fincs decorativos ( ... )". A idéia central de P. Clastrcs (1986: 68-9) era propor que, por ocasião do aumento demográfico, os chefes tupi-guarani s poderiam reunir milhares de combatentes ao seu lado, fortalecendo, assim, sua innuência perante à sociedade. Conforme a visão clastriana, as entidades metafísicas designadas "sociedades primitivas" teriam antecipado o perigo representado pelo poder coercitivo nas mãos de um indivíduo, ou seja, conhcceriam previamente O mal caracterizado pela imposição de um conjunto de pressupostos elaborados no exterior da sociedade. 2 No caso especial das terras baixas sul -americanas, as sociedades indígenas seriam, então, compostas de grupos com pouca densidade demográfica vivendo em constante guerra, uns contra os outros. Mas, haveria lima exceção nesse modelo estrutural: P. Clastres (1986: 149) considcra "os lupi -guaranis como um caso de sociedade onde começava a surgir O que teria pod ido se tornar o Estado". Ao se debruçar sobre a teoria claslriana a respeito das sociedades primitivas, o antropólogo Marshall Sahlins pede cautela quando se pressupõe localizar nelas mccanismos que impedem a ascensão de uma instituição soci almente desconhecida como o Estado. Mesmo assim, ao confrontar uma ampla bibliografia, Sahlins reitera apenas a sugestão de P. Clastres referente ao poder ter uma origem exterior à sociedade. 3 Além disso, sugere um ~

"Lon ge. portanto. de nos oferecer ri imagem Icma de uma incapacidade cm resolver a questão do poder po líti co, essas sociedades II OS espantam pela sutileza com a qual elas a colocaram c regularam. Elas prcsscTllimm muito cedo que a transcendência do poder encerra para o grupo um ri sco mortal. que o princípio de uma autoridade ex.terior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da própria cullura ; foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidad e de sua filosofia política" (I'. Clastres 1986: 33). ) ';( ... ) ex iste muito a ser criti cado na noç50 de que as pessoas possam rejeitar a priori, por ' illtu iç50' c ' prcmon ição' um tipo de sociedade da qual jamais tiveram e;
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