Marcia X no MAM

September 9, 2017 | Autor: Luiz Camillo Osorio | Categoria: Performance Studies
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A Performance e o museu: como guardar o efêmero?



Este texto mais do que uma reflexão sobre a trajetória da artista Marcia X – outros críticos, artistas e colaboradores que aparecem neste livro estão mais bem qualificados para isto do que eu – pretende ser uma análise, ainda preliminar, do que significa trazer um conjunto significativo de trabalhos da artista, na sua maioria de natureza efêmera, para o acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A possibilidade de ter este arquivo de performances da Marcia aqui no MAM deve ser comemorada e a Funarte, através de seu programa Pró-cultura, louvada por viabilizar toda a operação. Sem esquecermos, obviamente, Ricardo Ventura e a família da artista, pelo desapego e consciência em relação ao destino institucional deste material.


Primeiramente, cabe frisar que uma questão já colocada de início era a dificuldade em separar recortes documentais do que poderíamos denominar fragmentos de obras. Dentro de todo aquele conjunto de reminiscências, no interior das pastas, o que seria apenas um documento do passado e o que teria capacidade de reverberar relações de sentido deslocadas no tempo e no espaço? Além disso, como as performances da artista traziam sempre uma potência escultórica e instalativa, havia todo um conjunto de materiais guardados que nos cabia avaliar para decidir o que fazer. Como lidar com fragmentos que compuseram outrora uma performance sem reauratizá-los e transformá-los em relíquia ou objeto escultórico? Como guardar sem fixar o sentido na matéria morta? O que cabe preservar em uma performance?


Cabe lembrar que esta questão sobre a história, conservação e reencenação de performances referenciais vem sendo um tema recorrente em exposições e acervos de museus contemporâneos. Dois exemplos, entre vários, me parecem determinantes. Sem esquecer, é claro, o espaço criado na TATE Modern, com enorme sucesso de público e crítica, para a apresentação de Live Art. A primeira exposição que lembraria seria Out of Actions: between performance and the object, 1949-1979, organizada por Paul Schimmel em 1998 no MOCA de Los Angeles. A outra, de 2012, Moments: A History of Performance in 10 Acts na ZKM em Karlsruhe na Alemanha. Ambas lidavam com a história da performance na confluência entre dança, teatro e artes visuais, trazendo o efêmero e o movimento para o espaço consagrado da instituição museológica. A experiência mais recente, naturalmente, explorava de modo mais radical a performatividade curatorial, buscando explorar a processualidade e a contingência na própria forma expositiva. Não cabe aqui discutir estes exemplos – ou vários outros que poderiam ser lembrados. Apenas notar que o embate dos museus com a experiência performática é uma questão atual e urgente. Acolher no MAM o arquivo de Marcia X - e a exposição curada por Beatriz Lemos é o coroamento do processo - é um caso para nós interessante e que obriga o museu a repensar seus procedimentos de catalogação, conservação e exposição.


A vinda para o museu traz toda uma série de questões relativas à conservação e à temporalidade da obra, que põem normalmente em tensão o que é próprio ao estatuto preservacionista da instituição e o que é específico à natureza do acontecimento performático. Não cabe definir de antemão procedimentos problemáticos, apenas assumir estratégias de guarda e classificação que permitam uma sobrevida ao material e condições de pesquisa e de manuseio para futuras análises e exposições. Como salientou Pip Laurenson em artigo recente tratando de questões tangenciais, "para as formas de conservação tradicional a identidade da obra é tomada a partir da sua materialidade e esta é considerada como razão de ser da conservação. Ela opera segundo paradigmas científicos na qual o conservador evita envolver-se com qualquer tipo de interpretação."# A vinda de arquivos e de performances para os museus é coisa recente – assim como a possibilidade de reapresentá-los como material ao mesmo tempo histórico e atual. O que se propõe é que a partir da introdução destes trabalhos efêmeros, toda e qualquer conservação vai implicar interpretação e, assim, uma discussão urgente sobre o que cabe ser preservado e o que deve ser guardado como obra, tendo em vista sua natureza ef~emera e contingente. Se a arte sempre trouxe consigo esta ambiguidade entre ser de outro tempo e ser de agora, a performance, tornada linguagem plástica, potencializou esta contradição intrínseca ao sentido de obra.


Se tomarmos o caso do teatro ou mesmo da dança, tradicionalmente esta separação entre o efêmero e o permanente ficava restrita à separação entre a cena e o texto, entre a presença física da matéria visual e a articulação semântica da palavra escrita. A cena era experienciada, o texto interpretado. O desenvolvimento da cena moderna foi uma constante desconstrução desta dicotomia e a possibilidade de se perceber uma escrita cênica, ou seja, de se pensar o corpo como sendo ao mesmo tempo presença e sentido, experiência e interpretação. A partir daí, os campos das artes visuais, da dança e do teatro começam a se misturar e a se redefinirem enquanto performance. Articular experiência e interpretação é fazer com que a obra se traduza a cada momento a partir das perspectivas de sentido que lhe sejam ao mesmo tempo sugeridas e desveladas, tendo em vista uma relação sempre viva entre potencialidade intrínseca e atualidade manifesta de sentido.


Consequentemente, com o aparecimento da performance e sua possibilidade como arte (neste aspecto o ready-made é um antecedente e uma influência importante para o vir-a-ser da performance), entrou em crise uma noção estável de obra colada à qualidade física e fixa do objeto. Certa instabilidade ontológica vem à tona, seja no que diz respeito à dificuldade de se demarcar e definir de antemão o que é arte e o que é uma coisa qualquer, como também em relação ao que se toma como sendo processo e obra acabada. É nesta instabilidade que temos que trabalhar para pensar os modos de catalogação, de conservação e de exposição destas obras vinculadas ao acontecimento performático. Tarefa difícil, mas irrefutável caso queiramos pensar as transformações propostas por estas atitudes poéticas radicias e não apenas subsumi-las nas categorais e formas de compreensão já sabidas e catalogadas.


Não podemos apenas repetir padrões tradicionais de conservação; nem tampouco, desconsiderar a necessidade de conservar uma obra efêmera.
Há que se discutir o que cabe conservar e o que pode e deve se recriar a cada nova montagem. O que não vai ser perdido e nem prejudicar a integridade da obra (dentro deste estatuto de ser uma obra-performance).


Um ponto delicado aí é o do valor de mercado. Um Bicho da Lygia Clark já foi capturado pela lógica do objeto que atribui valor à integridade física da peça original, independentemente do que era (ou é) a razão de ser participativa da obra. No mínimo, quem tem um Bicho deveria, por princípio, poder produzir cópias de manuseio carimbadas sem ter que pedir permissão. O mesmo para os Parangolés de Oiticica ou qualquer outra proposição com este estatuto de uso incorporado ao seu modo de ser arte. Como fazer isto sem desorganizar o mercado? como controlar estas réplicas dentro de uma rede cuidadosa de certificações? Afinal o objetivo não é ser contra o mercado, mas sim contra a maneira como a lógica do mercado interfere no futuro da obra. Em que medida se interfere no valor da obra ao se substituir uma peça de plástico comprada pela Marcia X e usada por ela em uma performance por outra idêntica comprada quando de uma remontagem? Como explicitar esta opção da contingência material e forçar uma adaptação do valor de mercado, preso ao elemento físico autêntico, ao valor poético de uma instalação-performance, que é efêmero e desfetichizado por natureza?
 
Soma-se a isto o fato de a artista ter deixado uma nota escrita afirmando sua vontade de não ver suas performances re-encenadas por outro corpo.



pela relevância de uma obra iniciada na década de 1980, que se manteve sempre à margem das convenções e modismos, jamais abriu mão da radicalidade, soube ser coerente, crítica e bem-humorada e foi interrompida pela doença e morte abruptas. Além disso, abrigar estas obras e proposições em nossa coleção é um convite à reflexão institucional, a pôr em questão formas convencionais de catalogação, conservação e exposição.
A fronteira conflituosa entre o sagrado e o profano foi constantemente deslocada pelos objetos irreverentes da artista. Sua atuação sempre habitou o atrito, nunca quis acomodar-se no conforto da adequação. Sua presença nas performances que realizava sempre foi marcada por uma espécie de contenção expansiva, algo da ordem de uma sintonia fina entre fisicalidade e espiritualidade, entre corpo e transcendência. A contenção – assim como a ironia em outros momentos de sua obra é importante para desidratar qualquer adesão à pieguice ou ao kitsch.
Indo além da crítica institucional, vivemos um momento de institucionalidade crítica. Uma importante questão para o museu hoje é como lidar com um tipo de obra que não se quer fixar na natureza física do objeto. Ao mesmo tempo, é obrigação do museu cuidar de um acervo e preservá-lo. Como apresentar ou reencenar estas performances com toda a sua materialidade fragmentária – documentos, textos, fotografias, vídeos, resíduos materiais etc. é uma questão em aberto, cuja pesquisa de possibilidades se amplia com esta vinda para o MAM.


Luiz Camillo Osorio – Curador MAM-Rio


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