Maria Cristina Volpi, \"Dançando sobre o vulcão\", In: I Congresso Internacional de Moda e Design - CIMODE, 2012, Guimarães - Portugal. CIMODE 2012 Livro de resumos. Guimarães - Portugal: Escola de Engenharia Universidade do Minho, 2012.

September 3, 2017 | Autor: M. Volpi | Categoria: Art History, Fashion History
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DANÇANDO SOBRE O VULCÃO MARIA CRISTINA VOLPI NACIF Tema constante das crônicas mundanas do período, os acontecimentos sociais que se seguiram à chegada ao porto do Rio de Janeiro do navio chileno Almirante Cochrane em outubro de 1889 e que duraram cerca de dois meses, ficaram conhecidos como as Festas Chilenas. No dia 09 de novembro de 1889, a menos de um mês da Proclamação da República, foi oferecido pelo presidente do Conselho de Ministros, o Visconde de Ouro Preto, o baile da Ilha Fiscal na Baía de Guanabara ao Comandante Constantino Bannen e a seus oficiais. Muito se falou deste baile que ficou conhecido como o último do Império brasileiro. A ideia do baile mobilizou a cidade e as opiniões divergentes expressas pela imprensa da Corte espelhavam os conflitos políticos entre conservadores e liberais que vinham dividindo a elite carioca. Criticavam-se os gastos exorbitantes, exaltava-se a beleza dos salões de baile do palacete da Ilha Fiscal, especialmente decorados para o evento. Foram expedidos três mil convites e estima-se em duas vezes mais o número de convidados presentes, aí incluídos o Imperador e sua Corte, os principais nomes do governo, da administração pública, do corpo diplomático, do comércio, da indústria, da imprensa e das forças armadas, bem como algumas personalidades que dias mais tarde participariam do golpe militar que iria derrubar a monarquia (Carvalho, 2008). A questão que norteou este ensaio foi a de desenvolver uma análise da indumentária usada na festa a partir dos relatos da imprensa da época. O uso prescrito e efetivo dos trajes é entendido como um dos signos materiais de uma sociedade e suas formas de representação simbólica (Bourdieu, 1979). O evento ilustrou, de uma maneira um pouco caricatural, o vínculo existente entre o consumo conspícuo (Veblen, 1970), a sociedade de Corte no Brasil e a imitação dos modelos estrangeiros em termos de aparência e sociabilidade (Freyre, 1996). O Império brasileiro emerge da elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarve (1815) com o deslocamento do centro do Império português para os trópicos com a chegada ao Rio de Janeiro em 1808 da Corte portuguesa, situando-se entre a Independência de Portugal em 1822 e a Proclamação da República em 1899. O primeiro reinado durou de 1822 a 1831 sob o governo de D. Pedro I1, o segundo reinado, de 1840 até o seu final, sob o governo de D. Pedro II2 e, entre os dois, o período da regência de

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Pedro de Alcântara de Bragança e Bourbon nasceu em 12/10/1798 e faleceu em 24/09/1834 em Queluz, Portugal. Foi o primeiro imperador do Brasil e 28° Rei de Portugal, com o nome de D. Pedro IV. 2

Pedro de Alcântara da Casa de Bragança e Boubon e Habsburgo nasceu em 02/12/1825 no Rio de Janeiro e faleceu em 05/12/1891 em Paris. Segundo e último imperador do Brasil.

1831, ano da abdicação de D. Pedro I até o Golpe da Maioridade, com a coroação de D. Pedro II aos 15 anos. À época do baile, o governo imperial era formado por dois partidos, o Conservador, que reunia a burocracia imperial, o grande comércio e a grande lavoura de exportação e o Liberal, articulado entre os profissionais liberais urbanos, a agricultura de mercado interno e de áreas mais recentes de colonização (Carvalho, 2008). O progressivo desgaste do regime monárquico frente aos desafios da desagregação das relações escravistas, as tensões entre o Estado e a Igreja e os conflitos entre o governo imperial e o Exército, resultou no movimento republicano com levantes nas províncias do nordeste, sul e sudeste, cujos ideais remontavam ao século XVIII. Serviu de palco para o golpe que derrubou a monarquia brasileira em 15 de novembro de 1889, por ato do Marechal Deodoro da Fonseca, a Corte do Rio de Janeiro, centro político e administrativo do Império. Com sua privilegiada localização portuária, a cidade seria, desde a segunda metade do século XVII em diante, um importante elo entre o comércio da África centro-ocidental e Portugal, as Minas Gerais e a região platina3, com grande crescimento populacional e urbanístico depois de 1850, devido ao cultivo do café, em expansão no interior do Estado do Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. Sede política do Império e residência oficial dos soberanos brasileiros, no final do século XIX, o Rio de Janeiro era uma cidade com quase 500.000 habitantes, espremida entre morros e o porto, cercada por brejos e mangues. O casario e a arquitetura religiosa colonial estavam distribuídos nas ruas estreiras, sujas e malcheirosas dos bairros centrais, convivendo com alguns palacetes em estilo neoclássico e o Passeio Público, única area ajardinada da cidade (Vainfas, 2002). Neste cenário, circulavam brancos, índios, negros e mulatos, em grupos de convívio de uma grande diversidade interna em sua dinâmica. Embora não exista registro de como os diversos grupos se definiam, vários autores, dentre eles Freyre (1979), Leite (1997) e Shwarcz (2000) estabeleceram o que poderiam ser as faces de uma sociedade multicolorida, multirracial e de grande diversidade cultural. No Brasil, a nobreza hereditária era garantida somente ao sangue real, enquanto que a titularidade concedita por ato imperial era vitalícia, mas não podia ser legada aos descendentes. Em sua maioria, a nobreza era formada por fazendeiros, parlamentares, militares e profissionais liberais, mas também pela burocracia imperial que ocupava cargos públicos, incluindo a Casa Imperial. Muitos nobres acumulavam atividades diversas, assim, fazendeiros eram militares ou tinham cargos públicos ou eram profissionais liberais ou eram parlamentares (Schwarcz, 2000).

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Ao sul do território brasileiro, compreendendo partes do antigo Vice-reinado espanhol do Rio da Prata (1776) onde se situam Argentina, Uruguai e Paraguai.

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A Corte era um pequeno núcleo urbano cercado por um ambiente rural e por toda parte encontrava-se a escravidão. Nesse contexto, a população negra dificilmente era livre; os índios ainda numerosos e próximos dos núcleos urbanos conviviam com brancos pobres e mulatos interagindo com uma população formada por famílias brasileiras e com outros grupos de população branca agrupados segundo a nacionalidade e padrões culturais e religiosos, como as colônias de franceses, alemães, suíços e ingleses. Além disso, embora existisse uma miscigenação importante, as condições econômicas e raciais eram barreiras para uma homogeneização em termos da educação formal e do manejo de regras de civilidade importadas da matriz europeia (Leite, 1997). A educação formal e as leituras de manuais de etiqueta, muito comuns ao longo do século XIX, reforçavam o “caráter” europeu do modelo de comportamento socialmente aceito pela elite brasileira e um novo tipo de vida em sociedade marcado por práticas urbanas que foram se afirmando ao longo do século. No processo de reeuropeização (Freyre, 1996) sofrido pela população urbana carioca, os antigos hábitos coloniais foram lentamente abolidos. Desse modo, novas obrigações sociais levaram homens e mulheres das camadas altas e médias a um investimento na aparência, no comportamento e nas novas práticas de convívio (Rainho, 2002). A partir do estudo crítico da literatura da época, sejam romances, peças de teatro ou relatos de viajantes, o estrangeirismo dessa elite, a importação excessiva de bens de consumo, incluindo aí o consumo de luxo e a apropriação singular dos modelos por parte da população urbana, testemunham as contradições e tensões presentes no convívio desses grupos heterogêneos (Schwarcz, 2000 e Leite, 1997). Os usos, cerimônias e etiquetas da Corte e da Casa Imperial do Brasil tiveram origem e fundamento na Corte Portuguesa, guardando algumas influências da maneira espanhola. Durante os dois primeiros quartos do século XIX, os trajes associados à etiqueta da Corte brasileira evoluíram a partir dessas referências e da moda usada na França e na Inglaterra. O traje feminino, depositário do consumo conspícuo de seus pares (Veblen, 1970), adequava-se tanto à faixa de idade quanto ao tipo de acontecimento a que se destinava. Em torno de 1889, o vestido de gala, feito de tecido de seda colorida, tinha a saia, sobressaia e, às vezes, uma cauda, armada na parte de trás, com anquinhas, corpete rígido, mangas curtas ou até o cotovelo e decote mostrando o colo; o cabelo era usado preso, enfeitado com uma joia ou com flores. Além disso, completavam a indumentária luvas ¾ e leque. O traje de gala masculino por sua vez, consistia em calça de casimira preta com uma listra de seda preta sobre a costura lateral, usada sobre botinas de pelica preta, colete de seda branca, casaca preta com seda na gola, claque preta com forro branco, gravata e luvas brancas, botão de brilhante fechando a camisa.

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A adaptação desse modelo para ser usado sob um sol que podia chegar a 40°, resultou em um estilo vestimentar posto em prática na Corte brasileira, diferenciado não só por cores e formas, mas também pelo próprio ritmo das mudanças, estabelecido pelo tempo que os modelos levavam para chegar ao Brasil. Enquanto as jovens escravas descalças, usavam o traje caseiro comprido, em folhos, solto e largo exibindo as costas, às vezes enfeitando cabeleira com uma grande flor vermelha (Langsdorff, 1843 apud: Leite, 1997), as senhoras da alta sociedade carioca ainda conservavam em seus trajes alguns traços coloniais, como o uso do preto para ir à igreja, as cabeças cobertas com véus de renda em estilo andaluz, ou deixando à mostra „as ricas cabeleiras de ébano, suspensas com arte e encanto“ (Leontine, 1872 Apud: Leite, 1997), Em sociedade homens e mulheres geralmente demonstravam desconhecimento das regras básicas de civilidade em termos de vestuário comuns nas capitais europeias, esquisitices que os europeus de passagem pela cidade assinalavam em seus relatos. O estreito convívio entre os europeus de vários estratos sociais e os brasileiros (escravos e livres) contribuía para a imitação, adaptação e ressignificação do padrão vestimentar num outro contexto social. A eminência do baile mobilizou artesãos e convidados. A festa longamente anunciada levou curiosos, desde a tarde, a se dirigir para o cais Pharoux e proximidades, onde famílias se aglomeravam nos hotéis próximos, em casas de parentes, à espera dos convidados que chegavam para tomar as lanchas que os conduziriam à Ilha. A descrição dos trajes mobilizou os cronistas nos dias que se seguiram. Sua Majestade, o Imperador Pedro II, vestia a farda imperial de grande gala, enquanto que Sua Alteza, a Princesa Isabel, foi a rainha da festa trajando preto cambiante e brilhantes no cabelo, acompanhada pelas Damas do Paço, cobertas pelo manto regulamentar da farda do Império. Os homens evergavam o traje escuro de gala, as fardas azuis e brancas da Guarda Nacional com o barrete e a pluma vermelha espetada na frente, ou ainda as fardas de gala azuis-ferretes e douradas da armada imperial, e muitos ostentavam as faixas e condecorações dos grandes do Império. As damas usavam vestidos de diversos tipos de seda, com guarnições de renda, vidrilho, flores e bordados. As senhoritas usavam cores claras, como o branco, o creme, o azul-claro e o rosa. As mulheres casadas, o preto, o grená, o vermelho, diversos tons de verde, listrados, cambiantes. As decorações de renda, filó ou vidrilho eram de cores constrastantes, formando um conjunto colorido. O destaque era para o traje da Sra. Paulina de Figueiredo cujo vestido azul celeste tinha cenas pintadas por seu marido, o pintor acadêmico Aurélio de Figueiredo. O quadro era composto por contrastes de cores, de superfícies brilhantes ou opacas, que se opunham num mesmo conjunto. Os tons vibrantes ou pretos, bordados ou dourados, as plumas ou flores das toaletes das senhoras se opunham aos tons claros, às flores miúdas das senhoritas. Ao lado das casacas pretas dos

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cavalheiros, havia o brilho e o colorido das fardas dos oficiais. Os peitos lisos. Os brancos e negros das casacas, ornamentadas com a minúscula flor em oposição à coleção brilhante das comendas e fitas. Se a elite carioca era ávida em imitar nos trópicos as práticas sociais das grandes capitais europeias, o fausto mundano esbarrava aqui com uma Corte pouco afeita a festas, onde se jantava em família às cinco horas no Paço de São Cristovão e cujo último grande baile deu-se aí no dia 31 de agosto de 1852 (Schwarcz, 2000). A distância do centro difusor e o tempo que levavam os navios para trazer as novidades, a própria dinâmica da sociedade brasileira, com suas diferentes influências culturais conservadas do periodo colonial, a persistência de hábitos coloniais herdados da cultura ibérica, contribuíram para subverter os paradigmas importados. Não só o desconhecimento das normas de civilidade e da aparência prescritas, mas também a adaptação extravagante do modelo alimentaram as crônicas mundanas nos dias subsequentes, com a descrição das esquisitices e gafes. Alguns cavalheiros envergavam camisas coloridas, outros entraram num dos salões de baile com as botas fazendo barulho, ou então aqueles que, não possuindo a cartola protocolar, se contentaram em usar no baile barretes de diversos tipos, para diversão dos leitores. A falta de traquejo mundano e o desconhecimento das regras de cortesia e do vestuário adequado a diferentes práticas sociais ficaram evidentes em algumas escolhas vestimentares. Como a aparência vestida não condizia com os códigos prescritos, essas escolhas marcavam as distâncias sociais e simbólicas, localizando os agentes muito mais no espaço rural do que na vida na Corte carioca. Tais escolhas revelavam também o desconhecimento de certos símbolos, como é o caso da ostentação de comendas e medalhas aleatórias ou das escolhas de chapéus improvisados de uso diário e cotidiano. A posição dos agentes na hierarquia social ficava evidente tanto pela falta de domínio das regras, quanto pela prática caricatural. No dia seguinte ao baile, a coluna “Novidades” do Diário de Notícias publicou uma relação de itens de vestuário esquecidos nos salões do palacete da Ilha Fiscal. Durante a festa, que durou até a manhã do dia seguinte, perderam-se oito claques, 16 chapéus masculinos, nove dragonas caídas de uniformes, vários lenços, sendo 15 de cambraia, 13 de seda e nove de linho, um xale de seda cor-de-rosa (Braga, 2007). Além desses objetos, desprendidos pelos movimentos das danças, foram encontrados oito raminhos de corpete, 17 travesseiros, seis almofadinhas e grande quantidade de algodão em rama, usados como enchimento dos vestidos (Diário de Notícias, Novidades. 12/11/1889). Quanto às 17 ligas e aos três coletes de senhora encontrados, falam por si quanto ao comportamento de parte dos convidados e reiteram a afirmação do engenheiro André Rebouças presente no grande baile: “Foi um verdadeiro bacanal” (Braga, 2007).

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As práticas sociais da alta-burguesia europeia pareciam deslocadas na Corte tropical, porque tal modelo de civilidade, embora admirado pelas elites brasileiras e praticado em menor grau no âmbito da Corte carioca, esbarrava com uma dinastia conhecida por sua austeridade e simplicidade e uma vida de Corte bastante reduzida nos Paços imperiais. O hábito de valorizar os modelos europeus típicos da sociedade mundana carioca e sua "mania de francês“ revelavam um certo deslumbramento que se chocava com o estranhamento do sertanejo (o homem rural) na Corte. O fato de o último baile realizado durante o Segundo Reinado ter sido uma festa monumental, marcando, assim, o fim da monarquia no Brasil, foi por isso mesmo um duplo paradoxo do destino. O evento fez recordar outras trágicas coincidências, como o grande baile de 1848 que antecedeu a revolução em França ou a última festa da Restauração francesa em 1830 realizada em homenagem a Francisco I, rei de Nápoles, sobre a qual Salvandy comentou: 'c´est bien une fête napolitaine, car nous dansons sur un volcan'. (Pinho, 1970) A Proclamação da República em 15 de novembro arrefeceu, mas não extinguiu as comemorações da presença dos chilenos na Capital. Os mesmos detratores dos excessos ocorridos por ocasião do Baile da Ilha Fiscal participaram ativamente das cerimônias festivas que se seguiram à instalação do governo provisório, até meados de dezembro de 1889, quando o Almirante Cochrane partiu. A conjuntura única, incomum, na qual se deram os acontecimentos políticos que se seguiram ao baile, marcou, sobretudo, o fim de uma visão de mundo, expressa pela vida na Corte e suas relações sociais marcadas pela tipologia das fardas civis e militares, pelas comendas e pelas rígidas hierarquias. As práticas vestimentares efetivas opunham-se ao modelo e expressavam-se nas escolhas vestimentares adequadas ou extravagantes e no comportamento adequado ou esdrúxulo, afirmando o domínio dos códigos ou o seu desconhecimento, o cosmopolitismo ou o provincianismo, revelando também o comportamento lícito e o ilícito, o que era adequado e permitido e o que não condizia com o papel imposto pelas regras sociais. Pelo vestuário era possivel visualizar as altas frações da boa sociedade e as camadas médias em sua diversidade de origem. Um estilo de vida social que não desapareceu de imediato com a queda da monarquia, mas declinou lentamente, adaptando seus símbolos à república recém iniciada até desaparecer por completo, ficando seu registro nos relatos, nas imagens e em algumas peças de vestuário que subsistem.

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