Maria Cristina Volpi, \"Ventarolas cariocas oitocentistas: entre a moda européia e a arte plumária nativa\", 23ª Conferência Geral no Conselho Internacional de Museus - ICOM, Cidade das Artes, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, de 10 a 17 de agosto de 2013

September 3, 2017 | Autor: M. Volpi | Categoria: Art History, Fashion History, Feather's Fan
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VENTAROLAS CARIOCAS OITOCENTISTAS_ENTRE A MODA EUROPÉIA E A ARTE PLUMÁRIA NATIVA Maria Cristina Volpi

Resumo: A comunicação apresenta a investigação da ventarola de penas do século XIX fabricada no Rio de Janeiro e que faz parte da Coleção Ferreira das Neves do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com a fundamentação teórica dos estudos de cultura material aplicados à história cultural, mostra como essa manufatura de penas oitocentista feita por não índios pode ser a expressão da influencia indígena na moda ou ainda, num sentido inverso, ter influenciado as composições da arte plumária nativa.

Palavras-chave: ventarola, arte plumária não indígena; objetos de adorno do séc. XIX/XX; Museu D. João VI.

Introdução O ponto de partida dessa pesquisa é o estudo da ventarola de penas do século XIX fabricada no Rio de Janeiro e que faz parte da Coleção Jeronymo Ferreira das Neves do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes da UFRJ. Este estudo visa compreender como as elites urbanas cariocas interagiam com os códigos de civilidade europeia, como se davam a produção, circulação e ressignificação desses objetos de adorno no Rio de Janeiro e como essa manufatura de penas oitocentista feita por não índios pode ter sido a expressão da influencia indígena na moda ou ainda, num sentido inverso, ter influenciado as composições da arte plumária nativa. 1. Plumas, pássaros e a moda no século XIX Abano que serve para refrescar, espantar moscas e avivar o fogo, o leque tem uma dupla origem americana e oriental. Usado em todas as grandes civilizações antigas, sua origem remonta ao III milênio a. C. Como atributo sagrado e politico, servia para manter acesso o fogo dos altares, identificar a hierarquia e o status, ou insígnia mundana de refinamento e conforto. Existem dois tipos básicos a partir dos quais todas as suas manifestações derivam, um rígido – o mais antigo - que pode apresentar formatos geométricos ou de folhas ou frutos, e outro dobrável, circular ou semicircular, de variados tamanhos (Blondel, 1875).

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A evolução da moda no vestuário contribuiu para fomentar o desenvolvimento de importantes manufaturas e o uso dos leques como objetos de adorno e coqueteria femininos atingiria seu auge na sociedade cortesã do rococó e durante o romantismo, período em que se afirmou a liderança da França em termos de hábitos de vestir e cujo centro irradiador era Paris. Durante o século XIX o leque se tornou cada vez mais popular, o seu uso se expandiu e os estilos se misturaram, surgindo leques pastiche dos séculos anteriores. As mudanças mais aceleradas na forma da moda feminina nessa época vão contribuir para que os leques do período sejam mais facilmente datados. A partir do advento das exposições universais contribuiu para o aperfeiçoamento e divulgação de novas técnicas e novos designers. Leques de alta qualidade eram exibidos e premiados, enquanto outros eram confeccionados em grande escala para fazer a publicidade desses grandes acontecimentos que atraiam milhares de visitantes. Paralelamente, a moda do uso de penas como ornamento de penteados viveu seu apogeu durante o período rococó. Junto de fitas e flores artificiais, as penas foram um material apreciado ainda durante o século XIX, para acabamento de chapéus e toucados. O uso de animais mortos ou partes deles como ornamento tanto no traje, cabelo, chapéu quanto na decoração de interiores teve um grande desenvolvimento durante as ultimas três décadas do século XIX, e em muitos lugares, como a Nova Guiné, América Central ou América do Sul, houve uma intensificação da caça às aves para prover ao mercado europeu (Schindler, 2000:1090). Um vendedor londrino declarou nessa época ter recebido numa única carga 32.000 beija-flores, além de outros pássaros e partes deles (Johnston, 2009:108). 2. Da China à Paris “Meu pai eu quero seda Quero um chale de Tonquim Quero um anel de brilhante Quero um leque de marfim.” (Teixeira Leite, 1995)

Até meados do século XIX, o Brasil recebia regularmente chalés, joias e leques do Oriente. No processo de europeização apontado por Gilberto Freyre (2003), a moda parisiense passou a ser copiada por modistas e alfaiates de diversas categorias, sendo que os mais famosos indicavam em seus anúncios que atendiam à família Imperial. Desde a década de 1820, eram importados artigos de luxo por lojas do centro do Rio, a maioria situada na área limitada pelas ruas do Ouvidor, Uruguaiana, São José, do Rosário e dos Ourives. No comercio do Rio de Janeiro eram encontrados tanto o leque pronto como armações e cabos trabalhados.

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De Cantão, Nanquim ou Macau vinham os leques comemorativos da vida politica e dos casamentos do Império no Brasil. A partir de 1840, com o decréscimo das importações orientais e o aumento de mercadorias manufaturadas na Europa, o mercado brasileiro passou a comercializar leques espanhóis, italianos e, principalmente franceses (Teixeira Leite, 1994:194). 3. As ventarolas e a produção carioca Através do relato de viajantes europeus aventureiros ou com vocação cientifica temos noticias dos hábitos de consumo e das praticas sociais, muitas vezes percebidas com extravagantes ou deslocadas, com relação ao padrão europeu. Em meados do século, o francês Ferdinand Denis relatou que na Bahia, no convento de Soledade, havia uma indústria de flores em ramos e guirlandas, feitas de penas de aves (tucanos, araras, periquitos, garças), desconhecida das modistas francesas (Silva: 1993:234). Entre 1844 e 1880, no Rio de Janeiro, mais de meia centena de lojas ou fábricas situadas na Rua do Ouvidor ou em seu entorno fabricavam, comercializavam e exportavam flores de penas. A produção de flores de penas de Mlle. M. & E. Natté com loja na Rua do Ouvidor, 46, foi premiada em diversas Exposições Universais de Viena em 1873, Santiago em 1875, Filadélfia em 1976 e Rio de Janeiro em 1876. Rivalizando com o comerciante Barthel que oferecia “grande e variado sortimento de ramos e flôres de pennas, passarinhos empalhados, insectos encastoados em ouro e objectos de historia natural.” (Almanack Laemmert, 1879:909)

Desrousseaux, Finot ou Natté eram comerciantes estabelecidos na Rua do Ouvidor onde vendiam as ultimas modas parisienses. Os modelos europeus em termos de vestuário eram importados ou abertamente copiados, como fazia questão de ressaltar Nicolao Dehoul, que tinha comércio na Rua do Hospicio: “Esta fabrica se distingue, sobretudo pela fineza dos artigos que confecciona, o bom gosto e as ultimas modas, visto receber por todos os vapores as modas as mais recentes de Paris, tanto em grinaldas como em flôres, que trata de immediatamente imitar.” (Almanack Laemmert, 1856:645)

Por essa época, a produção de flores de penas brasileiras já era bem conhecida, como relata o escritor alemão de aventuras Friedrich Gerstäcker: “A principal Rua do Rio, pelo menos a que mostra as lojas mais brilhantes, a rua do Ouvidor, foi quase exclusivamente tomada por franceses, e, como consolo, pode-se ir a qualquer loja e falar o seu idioma... Nesta rua estão também as grandes lojas do Rio nas quais

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são preparadas e vendidas, no mais das vezes por jovens francesas, aquelas encantadoras flores de penas do Brasil.”(Schindler, 2001: 1094)

A ventarola de penas da Coleção JFN é formada de um lado por um arranjo de penas brancas e plumas, no centro um beija-flor e oito besouros vermelhos furta-cores (Eurhinus sp), e de outro lado, um arranjo formado por uma rosa de penas sobre plumas. O cabo de madrepérola lavrado é finamente decorado, exemplo de artesanato de luxo carioca feito para exportação. A caixa perfeitamente preservada tem a assinatura do fabricante, em cartão forrado de papel verde com etiqueta onde se lê „Ao Beija-Flor‟ Rua d‟ Ouvidor, 89, Rio de Janeiro, estabelecimento comercial fundado em 1850 por Mme. Clemence, que passou às mãos de Domingos Ferreira Braga a partir de 1887. A direita está impresso “Flores finas das melhores casas de Paris” e à esquerda “Feathers, flowers, birds, insectes and Bresilian‟s curiosites.” No centro escrito a caneta num pedaço de papel colado: “D. J. Ferrª Braga” e assinado pelo proprietário, Domingos José Ferreira Braga. Essas ventarolas brasileiras feitas de penas ou pássaros empalhados empregavam penas de aves e insetos tanto do Rio de Janeiro quanto da Amazônia ou até mesmo da Guatemala (Schindler, 2001: 1096 – 1098), evidenciando a circulação dessas matérias primas por todo território brasileiro e mais além. As caixas originais conservadas permitiram a identificação dos exemplares encontrados em acervos em todo o mundo (Roberts, 2005: 194 e Johnston, 2009: 108-109), sendo comercializadas ainda hoje em feiras ou leilões de antiguidades. 4. Indústria nacionalizada pelos índios? Como anotou em seu diário de viagem em 1888 a princesa Teresa de Wittelsbach (1850-1925), essa manufatura de penas oitocentista feita por não índios “deve remontar à indústria nacionalizada pelos índios brasileiros há séculos,” ou ainda, num sentido inverso, ter influenciado as composições da arte plumária nativa (Schinder, 2001: 1094). O desafio dessa pesquisa é comprovar a hipótese, proposta conjuntamente pela princesa bávara e por Helmut Schindler, pesquisador do Museu de Etnologia de Munique, cujo acervo é repleto de ventarolas, flores e fitas furta-cores de penas de pássaros brasileiros formados pelas coleções da Imperatriz do Brasil Amélia de Leuchtenberg (1812-73) e de Teresa de Wittelsbach (Schindler, 2001: 1089-1108). Os índios que habitavam o Rio de Janeiro faziam parte de duas famílias linguísticas – tupi e puri (Bessa, 2009: 25). Embora as informações ainda sejam precárias, os povos tupis, que

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habitavam aldeias no litoral, estabeleceram contato com os europeus, sendo os mais conhecidos e as características mais importantes foram registradas por relatos deixados por cronistas quanto por documentos das autoridades coloniais. Agricultores e caçadores plantavam e teciam o algodão, fabricavam cestas de cipó, panelas de barro, pintavam o corpo e se enfeitavam com colares feitos de conchas marinhas, penas coloridas de aves e outros materiais. Do grupo puri, não tão conhecidos, fazem parte os índios que falavam as línguas goitacá, guarulho, puri, coroado e coropó. Os dois primeiros desapareceram semdeixar uma só palavra de sua língua. Ao contrário, os vocabulários dos puris, coroados e coropós, inimigos intertribais, foram registrados no século XIX por estudiosos. Pertenciam às regiões localizadas na bacia do Paraíba e seus afluentes ou então territórios em várias serras de difícil acesso e só mais tarde tomaram contato com europeus, alguns apenas no século XIX. Esse grupo, formado por hábeis caçadores e coletores não eram muito avançados nas técnicas de agricultura. Pintavam o corpo com urucum (vermelho) e preto (Jenipapo), tatuavam-se e usavam cocares de penas coloridas, colares, braceletes e pulseiras de dentes de animais e sementes de plantas. O combate metódico da catequese aos costumes indígenas durante o período colonial, a desagregação e mesmo a extinção de grupos em contato com as politicas de colonização levou a repressão e marginalização dos índios, levando-os a se fundir pouco a pouco com a grande massa de pobres e escravos. A presença de índios na corte vai diminuindo gradativamente até desaparecerem, como constatou o francês Charles Ribeyrolles em 1860: “O que não se encontra como outrora, no Rio de Janeiro, são os indígenas, os verdadeiros filhos da terra, os selvagens de Villegagnon e de Jean de Léry”.

No entanto, embora perdidos na sociedade multicolorida e multi-racial da corte, os antigos habitantes da região do Rio de Janeiro continuaram a existir na imaginação daqueles que conheciam os relatos e ilustrações feitos pelos primeiros europeus em contato com as costas brasileiras. Até hoje, a relativa escassez de estudos permitiu que as expressões da cultura material indígena fossem agrupadas no singular: arte indígena (van Velthen, p. 62), desconhecendo as especificidades culturais das diferentes etnias no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo, como os ornamentos de penas tem visualmente maior impacto se tornaram portanto, a forma mais reconhecida de expressão da arte indígena.

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Conclusão O delicado trabalho de artesanato dessa arte plumária nacional, o colorido das plumagens dos pássaros, os insetos cambiantes semelhantes a rubis, evocava as terras distantes, maravilhosas, exóticas que povoavam o imaginário europeu (Davi-Weil, 1998). Notável exemplo de uma expertise reconhecida internacionalmente, um artesanato pouco estudado, essas peças evidenciam a ação de caçadores, empenhados na matança indiscriminada de aves e insetos, o intercambio entre mateiros, caboclos e índios bravos. Mudos testemunhos de práticas artesanais, redes de comercio ultramarinas e hábitos mundanos e cosmopolitas dos oitocentos, as ventarolas que se tornaram peças de museu, ambiente propicio para que possam contribuir singelamente, uma vez desvendadas, para uma escrita da história da indumentária no Brasil. Referências Almanack Laemmert, Ano 1856 e Ano 1879. BLONDEL, S. Histoire des éventais chez tous le peuples et a toutes les époques. Paris : Livrairie Renouard, 1875.

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