Maria Madalena: um mito no cristianismo.

July 4, 2017 | Autor: Wilma Tommaso | Categoria: Teologia, História das religiões e religiosidades, Ciências das Religiões
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Maria Madalena, um mito do cristianismo. Profa. Dra. Wilma Steagall De Tommaso CV: http://lattes.cnpq.br/8209900139809763  

1- Introdução “O gênio dos Pais da Igreja latina os conduziu a confrontar em uma só figura, três mulheres que aparecem na narração do Evangelho” 1. Assim começa Georges Duby o “Colóquio Internacional de Avignon: Maria Madalena na Mística, Artes e na Literatura” nos dias 20-21 e 22 de julho de 1988. Duby, nessa introdução ao Colóquio sobre Maria Madalena, referiu-se à confusão que pairava desde o cristianismo primitivo sobre a identidade de Maria Madalena. Madalena recebeu os epítetos de “Portadora de Mirra”, “Nova Eva”, “Apóstola dos Apóstolos”, pois os Pais da Igreja intuíam nessa figura intrigante, o exemplo para

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DUPERRAY, Eve (Coord.) Marie Madeleine dans la mystique, les arts et les lettres. Paris :Beauchesne,1989. (Actes du Colloque International, Avignon 20-21-22 juillet 1988)

2 que os fiéis compreendessem a natureza da fé e da redenção humana. No entanto, nos tempos modernos ela foi mais conhecida como “pecadora”, “prostituta” e “penitente”. Sabe-se muito pouco sobre Maria Madalena. Da mulher que foi eleita para ser a testemunha-chave do evento fundante do cristianismo, a Ressurreição de Jesus, predomina a imagem da mulher formosa, de longos cabelos dourados que chora por seus pecados e que encarna a antiga relação entre a beleza, a sexualidade e o pecado femininos. 2 A única certeza que podemos ter vem dos Evangelhos Canônicos, onde Maria Madalena é a mulher mais citada, porém são referências breves, como é usual nos relatos evangélicos que dão prioridade à vida pública de Jesus e a seus ensinamentos em detrimento à sua vida pessoal e daqueles que o cercavam. Maria Madalena não tem sua origem relatada nos Evangelhos. A questão que ainda permanece é: quem foi Maria Madalena? Os exegetas, teólogos e historiadores não deram conta de responder a esta questão, porém sua história continuou e em uma construção teológica que deu a ela uma biografia e um final de vida digna à criatura que entendeu a mensagem do seu Mestre em vida e a pôs em prática. Antes mesmo de Pentecostes, Maria Madalena anunciou a Boa Nova cristã: “Vi o Senhor”.

2- O que contam os Evangelhos Canônicos Em uma leitura atenta pode-se saber pelo Novo Testamento que Jesus expulsou de Maria Madalena sete demônios. Depois deste episódio que está no evangelho de Lucas 8, 1-3 o evangelista também relata que Madalena seguiu e serviu a Jesus, junto a outras mulheres, com seus próprios recursos. Esta é uma importante informação, pois o fato de as mulheres disporem de seus recursos tem um significado de peso. Elas não faziam parte do grupo que seguia Jesus para realizarem tarefas como cozinhar, cuidar das roupas e outros serviços domésticos. As mulheres seguiam Jesus porque eram também discípulas. Sobre isso, Mateus 27 conta que essas mulheres estiveram com Jesus desde o tempo em que Ele pregou na Galiléia até quando Jesus foi a Jerusalém no final de seu ministério, na Paixão, morte e Ressurreição.

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HASKINS,Susan. Maria Magdalena : mito y metáfora.p.23

3 Quando Jesus foi levado para ser crucificado, Marcos 15,40-41 e Mateus 27, 5461 contam que Madalena e outras mulheres o seguiam de longe. Quando Jesus foi sepultado Marcos 15,47 escreveu que Madalena estava entre as mulheres que observaram onde o corpo foi sepultado. No amanhecer do primeiro dia da semana, Mateus 28,1-8 e Marcos 16,1-8 falam que Madalena e outras duas mulheres foram embalsamar o corpo de Jesus. Segundo João 20,1-10 ao encontrar o sepulcro aberto, Maria Madalena foi correndo avisar Pedro e João. Um anjo próximo ao sepulcro aberto anuncia à Madalena e às outras mulheres que Jesus havia ressuscitado segundo Mateus 28, 9-10 Lucas 24,1-11 ainda acrescenta que depois do anúncio do anjo Madalena vai dar a boa nova aos discípulos. Marcos 16,9-11 e João 20,18 a privilegiam como primeira testemunha da Ressurreição. São estes os episódios que podem ser lidos nos Evangelhos Canônicos sobre Maria Madalena. João Evangelista concluiu de forma e poética a participação de Madalena nos Evangelhos, no entanto as histórias sobre a vida dessa discípula proliferaram no imaginário do povo cristão. Inconformismo com a ausência? As muitas versões sobre o seu paradeiro após a Ressurreição trouxeram muitas histórias sobre ela. O “Noli me tangere” é o último episódio em que Maria Madalena foi citada nos Evangelhos Canônicos. Ela é citada, nos quatro evangelistas — Mateus, Marcos, Lucas e João — dezessete vezes. Madalena vai, no entanto, desaparecer nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas. Paulo e Pedro não fazem nenhuma alusão a ela. Mesmo João, o autor do 4º Evangelho que a prestigiou com a maravilhosa cena do Noli me tangere, não acreditou na importância de falar sobre ela nas suas cartas ou no Apocalipse. O silêncio dos apóstolos trouxe aos exegetas diferentes interpretações e, para o imaginário coletivo, muitas histórias que ainda hoje pairam sobre a imaginação de homens e mulheres do mundo cristão ocidental. Crentes ou ateus, todos conhecem alguma história sobre Maria Madalena. Ela não pode ser esquecida.

3- Não está escrito nos Evangelhos

4 Não há nos Evangelhos nenhuma referência a que Madalena tenha sido uma mulher pecadora ou uma mulher adúltera. O texto em que Lucas conta sobre a mulher que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas, secou com seus cabelos e os ungiu com perfume é conhecido como a história da pecadora anônima. O interessante é que este texto está no final do capítulo 7 do Evangelho de Lucas e, quando Lucas refere-se à Madalena sobre a expulsão dos sete demônios, está no início do capítulo 8. Foi esta proximidade de textos, umas das alternativas que pode explicar como as duas mulheres se tornaram homônimas. A mulher anônima recebeu um nome e Maria Madalena se tornou a pecadora arrependida que ungiu Jesus e foi também associada à Maria irmã de Marta e de Lázaro que também ungiu Jesus. Maria Madalena não era irmã de Marta e de Lázaro. Os irmãos Maria, Marta e Lázaro eram de Betânia, uma região próxima a Jerusalém. Maria Madalena era de Magdala uma cidade que ficava na região da Galiléia.

3.1 Gregório Magno Quando primeiro Orígenes hesitou, mas depois sucumbiu à tentação da alegoria, onde Santo Agostinho defendeu a hipótese de Maria Madalena ser uma só mulher, mas sem apresentar uma solução, a não ser a sua convicção, Gregório Magno sob a influência desse último, Santo Agostinho, faz um corte de maneira abrupta em sua homilia 33 sobre Lucas, 7 no episódio da pecadora anônima: “Quando penso no arrependimento de Maria, tenho vontade de chorar[...] Ela considerou o que havia feito e não impôs limite àquilo que ela iria fazer.[...] Amando a Verdade, ela lava com suas lágrimas as manchas dos seus pecados.” [...] Para Gregório Magno é a universalidade da mensagem do Cristo que necessita dessa “doce” violência feita nos textos, a “conflation”da pecadora anônima, da possuída por sete demônios e da irmã de Marta e de Lázaro.3

Foi no início do cristianismo que Maria Madalena foi confundida pelos feitos, na verdade, de três mulheres citadas nos Evangelhos e muito discutidas entre os Pais da Igreja. Havia duas escolas, duas correntes de pensamento: a tradição bizantina ou grega dominada por João Crisóstomo (349-407), que defendia que duas mulheres ungiram Jesus: a pecadora anônima e Maria, irmã de Marta e de Lázaro, e na tradição latina,

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DAUZAT, Pierre-Emmanuel.L’invention de Marie-Madeleine. p.77

5 Santo Agostinho (354-430) que defendia a hipótese de que as duas unções foram realizadas pela mesma mulher. 4 O Papa Gregório Magno (540-604) pôs fim à questão ao declarar que Maria Madalena, Maria de Betânia e a pecadora anônima de Lucas eram a mesma pessoa. Deve-se entender essa síntese das três mulheres dentro do contexto do século VI. Foi no pontificado de Gregório Magno que a Inglaterra se converteu ao cristianismo, ele deu seu nome à música composta para liturgia, conhecida como canto gregoriano, foi um homem profundamente devoto e um pregador muito popular cujos sermões emocionavam as massas. Seus temas favoritos, entre outros eram os do advento, do arrependimento e do juízo final. Ao pronunciar seus sermões, esse papa tinha consciência das angústias de seu povo. Ele se dirigia a pessoas que, se não estivessem convencidas sobre a sua danação, tinham uma visão mais realista em relação ao pecado, entendiam o poder da tentação em suas vidas e a necessidade que tinham de Deus. Lamentavam seus passados em pecado e buscavam a misericórdia de Deus. A homilia de Gregório Magno sobre o Evangelho de Lucas, na Basílica de São Clemente em Roma [...] depois do dia da Exaltação da Santa Cruz, 14 de setembro de 591, estabeleceu de uma vez por todas a identidade de Maria Madalena [...]. 5

Gregório ofereceu Maria Madalena como exemplo de conversão ao povo romano que estava acuado pela fome, pelas pragas e pela guerra, a fim de que cada indivíduo refletisse sobre seus próprios pecados e buscasse a salvação. 6 Para a humanidade do século XXI que age e vive segundo sua santidade original sem convicção de pecado e danação, isso deve parecer muito estranho. O homem da Idade Média tinha uma visão mais realista, mas esperançosa do ser humano e de suas fraquezas. O exemplo de Maria Madalena da pecadora que deveria ter sido desprezada, pois muito pecou, mas foi perdoada porque muito amou, causava um impacto benéfico na vida daquele fiel cristão pecador.

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Ibid.p.73-74 HASKINS, Susan. Maria Magdalena : mito y metafora. p.119 6 HASKINS, Susan. Maria Magdalena : mito y metafora. p.119 5

6 Ao pronunciar a homilia onde reúne as três mulheres, Gregório Magno não pensou em rebaixar a mulher, muito menos em denegrir a imagem de Maria Madalena. Como homem piedoso e consciente da condição caída do ser humano, Gregório quis dar Esperança, no sentido teologal, aos homens e mulheres tementes a Deus. Gregório Magno ousou violentar a revelação dos textos para fazer nascer o mais belo rosto de mulher dos Evangelhos e da iconografia cristã.7 A trindade de Maria Madalena se realiza ao mesmo tempo em que ela desaparece. De Eva fatal, ela se torna virgem e volta a ser Eva. Como disse Gregório Magno: “O Senhor parece querer usar não a linguagem das palavras, mas a dos fatos” e, para falar do ser humano: “Se no Paraíso foi uma mulher que levou o homem à morte, é uma mulher também, que tendo ido ao sepulcro, anuncia a vida aos homens”.8

3.2 Maria Madalena inventada e desaparecida Em nenhum dos Evangelhos Canônicos encontra-se qualquer citação que sugira que Madalena e Jesus tiveram algum relacionamento especial ou íntimo. Os apóstolos eram casados, se Jesus tivesse constituído uma família, não haveria motivos para que este fato fosse omitido. O celibato para os sacerdotes só aconteceria depois de séculos. Os apócrifos gnósticos mencionam uma predileção a Maria Madalena, mas não há ênfase a um possível casamento. Após a Ressurreição, o nome de Maria Madalena foi apagado dos Atos dos apóstolos, das Epístolas e do Apocalipse de João. No entanto, estava escrito nas estrelas que ela não poderia ser esquecida, por isso, há muitas histórias sobre ela. Bem-aventurada encarnação do niilismo cristão, Madalena pode então se apagar. Sua vida é breve, muito breve. Ela vai desaparecer nos Atos dos Apóstolos e das Epístolas. Nem Paulo, naturalmente, nem Pedro “não dão um piu” sobre ela. Mesmo João não acreditou na importância de falar sobre ela nas suas cartas, nem no Apocalipse. Para todos aqueles que seguem, ela inexiste. Uma terceira vez, Maria Madalena não existe: “Non mi bisogna e non mi basta”, dizem em coro todos os apóstolos, “Eu não preciso mais dela e ela já não me basta”. 9

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DAUZAT, Pierre-Emmanuel. L’invention de Marie-Madeleine.p.144 Ibid. p.144 9 DAUZAT, Pierre-Emmanuel. L’invention de Marie-Madeleine. p.144-145 8

7 Os homens não se importaram em registrar qualquer fato sobre Madalena depois da Ressurreição de Jesus, no entanto para o cristianismo, a vida de um santo não acaba com sua morte física, tampouco por não haver registro, por isso, surgiu o Mito de Madalena. A voz do povo se manifestou e o anonimato das narrativas sobre a vida de Madalena que não se encontram nos Evangelhos, fez jus à mulher que seguiu e serviu a Jesus, sendo-lhe fiel na Paixão e Crucifixão junto a outras mulheres. Foi a ela, segundo o Evangelho de João que Jesus Ressuscitado pediu que levasse a seus amigos a BoaNova: ”Não me retenhas, pois ainda não subi ao Pai. Vai, porém a meus irmãos e dizelhes: ‘Subo a meu Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus’. Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: ‘Vi o Senhor’, e as coisas que ele disse.” Jo 20, 17-18.10

4-Tradição e Histórias sobre Madalena. 4.1 A prostituta arrependida A lenda que justifica o título enganoso de que Maria Madalena era uma prostituta arrependida conta que Madalena fugiu com um soldado romano que depois a repudiou. Sozinha no mundo, ela ainda foi violentada por outros soldados e se entregou à vida de prostituição. Quando Madalena se encontra com Jesus, Ele expulsa dela sete demônios e ela passou a ser sua seguidora.

4.2 Maria de Magdala, uma aristocrata. Reza uma lenda que Madalena era a Maria, irmã de Marta e de Lázaro. Procedia de uma abastada família aristocrática. Era conhecida com Maria de Magdala, pois herdara um castelo na região da Galiléia na cidade de Magdala. Levava uma vida de luxúria até que conheceu Jesus de Nazaré que expulsou seus demônios, ela foi purificada e se tornou sua seguidora.

4.3 A noiva de Caná11 Madalena seria a noiva e João Evangelista, o noivo, nas bodas de Caná. Foi nessas bodas que Jesus realizou seu primeiro milagre, transformou água em vinho. 10 11

A Bíblia de Jerusalém. 9º ed. São Paulo: Paulinas, 1993. Essa lenda é citada e esclarecida por Jacopo Da Varazze em a Legenda Áurea.

8 João, o noivo, teria se maravilhado com o que presenciara e abandonou a noiva, Madalena, para seguir Jesus, tornou-se um discípulo. João passou a ser chamado de o “discípulo amado” por Jesus. Por outro lado, Madalena que fora preterida pelo noivo, revoltada, optou por levar uma vida dissoluta. Depois de algum tempo, quando se encontrou com Jesus na casa de Simão, o fariseu, arrependida, lavou os pés de Jesus e os secou com seus cabelos. Pela atitude de arrependimento sincero e de humildade, Jesus lhe concedeu o perdão dos pecados. Madalena também teve por isso o privilégio de ser a primeira a ver Jesus Ressuscitado e ser chamada de “apóstola dos apóstolos”. Diziam que Cristo distinguiu com a doçura de sua amizade João e Madalena por tê-los privados do deleite carnal, porém compensou-os prodigamente com o deleite espiritual. Neste caso, temos uma lenda baseada em narrações dos Evangelhos. As Bodas de Caná, o primeiro milagre de Jesus, está descrita no Evangelho de João, porém os noivos não são denominados e também não existe nenhuma pista que leve a crer que teria sido o casamento de João e de Maria Madalena. A pecadora descrita no Evangelho de Lucas, que unge os pés de Jesus e os seca com seus cabelos também é anônima. Esta história de que o noivo de Caná tenha sido João Evangelista apareceu pela primeira vez nos escritos de Santo Agostinho, porém o nome da noiva não foi citado.

4.4 Madalena vai a Roma Após a morte e Ressurreição de Jesus, Madalena, inconformada com o que havia acontecido a Jesus, partiu para o Ocidente. Seu objetivo era contar ao imperador o que acontecera em Jerusalém. Conseguir marcar uma audiência em Roma com o imperador Tibério César não fora difícil, pois Madalena embora fosse uma hebréia, por sua descendência nobre, era considerada uma patrícia romana assim como também era o apóstolo Paulo. Sua intenção era denunciar a injustiça e o crime cometidos pela negligência de Pilatos, e para isso, contou em detalhes ao imperador a vida do Cristo, Sua morte e Ressurreição.

9 Ao terminar seu relato, Madalena pegou sobre a mesa de jantar um ovo branco para ilustrar seu ponto de vista sobre a Ressurreição. Ao ver isso, Tibério César riu e em completo descrédito replicou que: era mais fácil um ovo branco se tornar vermelho do que existir alguém que tenha retornado dos mortos. No mesmo instante, o ovo nas mãos de Maria se tornou vermelho como sangue. Ainda hoje os cristãos ortodoxos trocam ovos vermelhos na Páscoa para comemorar esta vitória do cristianismo.12

4.5 Maria Madalena em Éfeso Há em Éfeso uma casinha, onde teriam vivido Maria, mãe de Jesus, e João Evangelista, esse local que ainda hoje recebe inúmeros visitantes. Associar a Virgem Maria a João vem da passagem bíblica quando Jesus estava na cruz e pediu a João que cuidasse de sua mãe. Há também uma tumba de Maria Madalena, também muito visitada. Este sepulcro de Madalena junto à entrada de uma gruta é conhecido em Éfeso como a “Cova dos sete que dormem”. É sobre a história de sete jovens cristãos que foram perseguidos e enterrados no ano 250 d.C. pelo imperador romano Décio. Conta-se que duzentos anos depois, quando reinava o imperador cristão Teodosio II, por uma graça, os jovens foram milagrosamente despertados. Este lugar ficou conhecido como “Santos Lugares de Éfeso”. É lá que Madalena descansa. Modesto, patriarca de Jerusalém, que morreu no século VII, no ano de 634, justifica a chegada de Madalena a Éfeso: Depois da morte de Nosso Senhor, a mãe de Deus e Maria Madalena se reuniram com João, o discípulo bem amado, em Éfeso. Foi ali que a portadora da mirra terminou sua missão apostólica mediante o martírio ao se recusar até o último instante a se separar do apóstolo João e da Virgem.13

É nesse relato, na cidade de Éfeso e na ida a Roma que a Igreja Ortodoxa situa o final da vida de Maria Madalena na sua Tradição.

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Susan HASKINS. Maria Magdalena, mito y metáfora. p.442 Citado em Haskins.op. cit., p. 130

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4.6 Maria Madalena e a origem dos reis Merovíngeos14. A dinastia Merovíngea reinou sobre parte significativa da atual França, Alemanha, Suíça e Países Baixos, entre os séculos V e VII. Segundo a tradição, os Merovíngeos devem seu nome a Meroveu, um rei semi-lendário. Ele teria sido o pai de Childeberto I e avô de Clóvis I, este, fundador da primeira linhagem real da França. Não se tem dados concretos sobre Meroveu, esse mítico monarca cuja descendência, reza uma lenda, havia sido concebido por uma mulher e uma divindade marinha, o Quinotauro, que não resistiu à beleza da rainha grávida, ao banhar-se no mar, acasalouse com ela. Meroveu teve, portanto dois pais. Foi dessa lenda e da tradição de que os merovíngeos foram reis taumaturgos que Dan Brown, o autor de O Código Da Vinci, atualizou o mito, relacionando-o à lenda com Maria Madalena. Maria Madalena e Jesus teriam tido uma filha de quem descendem os reis merovíngeos. O fato é que não se sabe a razão, mas os monarcas dessa dinastia — que teve seu reinado findo em meados do século VIII — eram tidos como divinos curadores através de um simples toque, isto é, taumaturgos. Apesar de ser interessante e rica a tradição francesa dos reis taumaturgos, relacioná-la com Maria Madalena é por demais complexo, pois nem mesmo os textos apócrifos falam de um relacionamento sexual entre Jesus e Maria Madalena. Tudo não passa de pura imaginação. Clóvis I, neto de Meroveu, foi o responsável pela conversão dos franceses ao cristianismo em 496 e pela unificação do que hoje conhecemos como França. Clóvis morreu no ano 511. Essa é uma das histórias que tem alimentado o neo-gnosticismo. Foi desse relato que Michel Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, três jornalistas ingleses publicaram O Santo Graal e a linhagem sagrada em 1981, obra que deu a idéia para Dan Brown escrever O Código D a Vinci, best-seller internacional.

5- A Legenda Áurea15 14

Maria Julieta MENDES DIAS: Paulo MENDES PINTO. A verdadeira história de Maria Madalena. p. 133-141.

11 Jacopo um italiano nascido na cidade de Varazze, que fica próxima a Gênova foi um frade dominicano que viveu no século XIII (1230-1298). Ficou conhecido pela qualidade de seus sermões. Para auxiliar seus confrades na elaboração de homilias que tivessem um conteúdo teologicamente correto e que também despertassem o interesse dos crentes, portanto, que fossem agradáveis e compreensíveis ao público leigo, escreveu a Legenda Áurea Legenda — aquilo que deve se lido no que se refere à vida dos santos, — Áurea pelo grande valor, de ouro. A Legenda Áurea é um tratado hagiográfico onde foram compiladas as vidas dos santos que até então eram conhecidos pelos leigos cristãos pela tradição oral. Este gênero literário que se tornou muito popular no século XIII e nos posteriores, tinha como finalidade a edificação da fé do fiel através do exemplo da vida daqueles que a Igreja considerava como santos. Na Legenda Áurea, mais da metade dos capítulos se inicia com a etimologia do nome do santo, mas esta etimologia passa longe do seu sentido literal, aquele que busca o verdadeiro sentido da palavra. Para Jacopo De Varazze, o “verdadeiro” não era a correspondência com a realidade objetiva e concreta. Era, entretanto, a relação com tudo aquilo que escapava à esfera humana, com tudo o que poderia revelar o magnífico destino do santo simbolicamente anunciado por seu nome. As imagens simbolicamente apresentadas na Legenda Áurea remetem o ser humano a uma realidade transcendente a qual só pode acontecer pela intermediação do símbolo. O símbolo permite entrever o mistério do que é divino. É assim a etimologia do nome de Maria Madalena na Legenda Áurea: Maria pode ser interpretado como “mar amargo” ou “iluminadora” ou “iluminada”. Por estes três caminhos que excelentemente escolheu, o da penitência, o da contemplação interior e da glória celeste [...] Ela ainda é chamada de “Madalena” que vem de “manens rea”, considerada ré: ou Madalena pode ser interpretada como “fortificada” ou “invicta” ou “magnífica”, indicando as três etapas de sua vida: antes de se converter, durante a conversão e depois e convertida.16

Ao se ler a história de Madalena na Legenda Áurea que parece tão fantástica e naïf ao mundo moderno, não se pode deixar de lado a época em que foi concebida, a 15 16

Jacopo DE VARAZZE. Legenda Áurea: vida de santos. p. 543-553 Jacopo DE VARAZZE. Legenda Áurea. p. 543

12 Idade Média. Também se deve considerar o que o Positivismo e o Século da Luzes desconsideraram tudo o que não se pudesse provar empiricamente. Nesse período, a Idade Média, a sociedade era teocêntrica, tinha uma fé fervorosa e as verdades não eram testadas pela experiência, a maioria do povo era iletrado, portanto a veracidade nesses casos dava espaço à pedagogia. Desse modo, esta história de Maria Madalena não deve ser julgada pelos parâmetros da atualidade. Em 1293, quando foi editada a Legenda Áurea, foi imenso o seu sucesso, não só na Itália, mas em outros lugares. Em relação à santa Maria Madalena que já era conhecida e venerada, seu prestígio aumentou consideravelmente. A devoção e a peregrinação aos lugares em que a santa viveu, ou naqueles em que se dizia haver suas relíquias também passaram a ser mais visitados. De acordo com a narração de De Varazze, quatorze anos depois da Ascensão de Cristo, um grupo de discípulos de Jesus foi expulso da Judéia pelos infiéis. Estes cristãos eram Lázaro, suas irmãs Maria Madalena e Marta, Martila criada de Marta, os beatos Maximino e Cedôneo, o cego curado por Jesus e outros cristãos. Seus detratores, os romanos e alguns sacerdotes os obrigaram a subir em uma barca sem vela nem leme para que morressem no mar, porém, a Divina Providência não só cuidou deles como os conduziu até o porto de Marselha, no sul da França. Foi lá que Maria Madalena fez várias pregações que converteram muitas pessoas. Mais tarde, parte do grupo se dirigiu a Aix-en-Provence e se tornaram os evangelizadores da Provença. Maria Madalena, no entanto, retirou-se à gruta de Sainte-Baume e se dedicou à penitência e à contemplação e assim viveu durante trinta anos até a sua morte. Sete vezes ao dia, nas horas canônicas da oração, os anjos a transportavam ao céu para que assistisse aos ofícios. A gruta de Sainte-Baume, desde a Idade Média até hoje, ainda é um lugar de peregrinação. Jacopo quando terminou a narração da história de Madalena na Provença, serviu-se também para dar um esclarecimento: condenou a versão de que a santa Maria Madalena tenha sido a noiva de Caná. Deu uma nova versão à história ao revelar que a noiva das bodas de Caná permaneceu virgem e foi companheira de Maria, a mãe de Jesus.

6- A estrutura do Mito em Maria Madalena.

13 Para o cristão Maria Madalena traz uma revelação primordial: algo que nunca havia ocorrido na tradição judaico-cristã: a Ressurreição, base fundamental da fé cristã. Na carta de Paulo aos Coríntios lê-se: E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. I Cor.15, 17. Maria Madalena é um modelo, um exemplo de vida para o cristão. “Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens”

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. Cada membro da Igreja que caminha

para a busca da transcendência deveria se identificar com Maria Madalena, a pecadora que muito amou. Ter sido pecadora faz Maria Madalena muito humana, o seu exemplo torna-se para o cristão a esperança da salvação apesar das fraquezas, dos pecados e da culpa inerentes à condição humana. O relato sobre Maria Madalena não é uma fábula, em sua história está inserida a essência da mensagem cristã, o amor até aos inimigos. A pecadora que lava com suas lágrimas os pés de Jesus na casa de Simão, o fariseu, está naquele momento nos ensinando o “Dom das Lágrimas”, a compuccion. Esse dom se dá no momento místico em que a criatura se depara com sua miséria humana e se vê diante da misericórdia infinita de Deus. Maria Madalena não traz uma mensagem moral, mas um ensinamento iniciático, ela trilhou o caminho que leva à verdadeira conversão. Quando a procura de Deus é particularmente intensa e tomou posse já de toda a alma, cai o temor e ela diz: "Agora já não temo a Deus; eu O amo!" E aparece então o dom das lágrimas . É a alma de Maria-Madalena, que se derrama em pranto aos pés de seu Senhor. Lágrimas de dor por tê-lo tanto ofendido no passado, lágrimas por lhe ter sido tão ingrata, lágrimas de desejo, lágrimas de alegria, lágrimas de amor. Se na ascese conventual os monges têm como propósito "a vida angelical na terra", os cristãos que vivem no século devem ter propósitos complementares: permanecer no mundo (cf.Jo 17 15-16) para instaurar o reinado de Deus no mundo (cf.Jo 17:21; Mc 16,15; At26,13) e levar o mundo transfigurado a Deus (cf. Jo 3,16-17; 6,37-52). Os dois caminhos devem conduzir ao mesmo cume, ao repouso em Deus, à alegria de Deus. Por isso, São João Crisóstomo se dirigia deste modo aos seus fiéis: "Quando Cristo ordena que o sigamos pelo caminho estreito, dirige-se a todos os homens. Por conseguinte, o monge e o secular devem alcançar os mesmos píncaros". 18

Através das variantes, as quatro narrativas evangélicas fazem das mulheres, e em particular de Maria Madalena, contra o costume judeu, testemunhas da Ressurreição, 17

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. p.12 http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/a_deificacao_na_teologia_espiritualidade_e_litur gia_crista-oriental.html. Acessado em 13 de setembro de 2008. 18

14 encarregadas de anunciá-la aos discípulos, por um anjo, por anjos, pelo próprio Jesus. É certo que a incredulidade masculina, em Marcos e em Lucas, é bem marcada. Mas o lugar privilegiado das mulheres e, entre elas, de Maria Madalena, beneficiada em Mateus com as outras, sozinha em Marcos e, sobretudo em João, na célebre cena do “Noli me tangere” da primeira aparição de Jesus, é ainda mais significativo. Devoção e imagens guardarão a sua memória. 19 Maria Madalena da Legenda Áurea é a primeira anacoreta. Grandes santos e santas ascetas que levaram uma vida de oração, jejum e renúncia aos apelos do mundo, se inspiraram em Maria Madalena. Dentre tantos, podemos citar Santa Catarina de Sena e Santa Teresa de Ávila. Maria Madalena é a padroeira dos frades dominicanos, da França e há uma capela dedicada a ela na Basílica de São Francisco em Assis, Itália. Os santuários dedicados a ela abundam em todos os lugares onde se firmou a fé católica. Os textos evangélicos deixam claro, pela presença unânime de Maria Madalena, que ela é a testemunha-chave da morte e da Ressurreição. Ela anuncia a Boa Nova aos discípulos, embora só em João ela mesma diga: “Eu vi o Senhor”. A Páscoa cristã é a celebração mais importante da Igreja Católica, e tem sempre como leitura litúrgica a aparição de Jesus Ressurreto à Maria Madalena o que a consagra pela fidelidade e a privilegia por ser a primeira testemunha do maior evento do cristianismo e revive o feito dessa mulher que corre ao sepulcro no primeiro dia da semana depois da crucifixão. Antes do Concílio de Trento, existiam ainda calendários de santos que não conferiam atributos a Maria Madalena ou que a celebrassem como a primeira testemunha da Ressurreição de Jesus. O dia dedicado a ela variava de um lugar para outro. Entretanto, com a autoridade do Concílio, foram produzidos livros litúrgicos que ligavam toda a Igreja Romana. Deste modo, o missal Romano apareceu em 1570. No primeiro missal compulsório, foi dado à Maria Madalena o epíteto “penitente”. Neste caso, o missal não estava apenas levando em conta a imagem de Maria Madalena propagada por Gregório Magno e outros. Esta imagem também surgiu da Igreja da Contra-Reforma. Completamente contra o protestantismo e sua doutrina da graça e da predestinação, a Contra-Reforma enfatizou a doutrina da penitência e do mérito. Aqui,

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Monique ALEXANDRE. Do anúncio do reino à Igreja. In: Georges DUBY; Michelle PERROT (Org.) História das mulheres no ocidente. p.511

15 a Santa Maria Madalena exerceu um importante papel como a penitente e como a pessoa que foi favorecida por excelência.20 Ainda hoje a Igreja Católica celebra o dia vinte e dois de julho como o Dia de Santa Maria Madalena onde se proclama o Evangelho de João (Jo 20,1-2.11-18), no qual Maria Madalena é a primeira testemunha da ressurreição e o Cristo lhe confere a tarefa de anunciar a Boa Nova aos discípulos. Para a Igreja Ortodoxa, Maria Madalena tem o mesmo peso que os apóstolos e recebe também o epíteto de “Portadora do Ungüento”. A partir de meados do século IV, a Igreja grega celebra o segundo domingo depois da Páscoa como o “Domingo daquela que porta o ungüento”; a festa de Maria de Betânia é quatro de junho e a quarta-feira da Semana Santa é dedicada em honra à pecadora anônima de Lucas (Lc 7). Maria Madalena lança seu olhar ao céu e vê o invisível, seu coração é preenchido pelo o que não pode ser tocado. Ela não buscou o espetacular, com a fé, viu e ouviu o que os olhos e os ouvidos comuns não conseguem ver nem ouvir. Sua fé superou a ausência e o vazio da espera. Talvez nos passe a lição de que no amor, quanto mais se quer possuir o que se ama, mais esse amor escapa. Para ela que viu a Ressurreição, a ausência tornou intensa a Presença dessa ausência. Este é o caminho para quem quiser a alcançar a beatitude na vida, é essa a espiritualidade de Madalena. Ver na ausência, a Presença, talvez tenha sido essa a intuição de Maria Madalena ao conhecer Jesus e de onde ela conseguiu pela Graça dar à sua vida um verdadeiro sentido. Maria Madalena é um mito vivo para todo o cristão que caminha na busca da transcendência, ela, assim como todos os seres humanos, foi pecadora, mas também, muito amou, por isso teve seus pecados perdoados. “Se no Paraíso foi uma mulher que levou o homem à morte, é uma mulher também, que tendo ido ao sepulcro, anuncia a vida aos homens.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 20

BOER, Esther de. Maria Maddalena:oltre il mito alla ricerca della sua vera identità. p.26-27

16 ALEXANDRE, Monique. Do anúncio do reino à Igreja. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle, (Org.) História das mulheres no ocidente. Porto: Afrontamento,1990. APÓCRIFOS E PSEUDO-EPÍGRAFES; tradução de Cláudio J. A. Rodrigues. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2004. A BÍBLIA de Jerusalém. 9º ed. São Paulo: Paulinas, 1993. BOER, Esther de. Maria Maddalena: Oltre il mito alla ricerca della sua vera identidà. Torino: Claudiana, 2000. DAUZAT, Pierre-Emmanuel. L’invention de Marie-Madeleine. Paris: Bayard, 2001. DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vida de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. DUPERRAY, Eve (Coord). Marie Madeleine dans la mystique, les arts et les lettres. Paris : Beauchesne, 1989. (Actes du Colloque International, Avignon 20-21-22 juillet 1988) ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 6ª edição, 2000. HASKINS, Susan. Maria Magdalena : mito y metafora. Barcelona: Herder, 1998. MENDES DIAS, Maria Julieta; MENDES PINTO, Paulo. A verdadeira História de Maria Madalena. Cruz Quebrada-Portugal: Casa das Letras, 2006. SEBASTIANI, Lilia. Maria Madalena: de personagem do evangelho a mito de pecadora redimida. Petrópolis: Vozes, 1995. http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/a_deificacao_na_teologia_espiritu alidade_e_liturgia_crista-oriental.html. Acessado em 13 de setembro de 2008.

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