Mário Aviscaio, Homens e Macacos

June 9, 2017 | Autor: Fernando Chiavassa | Categoria: Literatura brasileira, Literatura, Literatura Brasileira Contemporânea
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Homens e Macacos

Mário Aviscaio*

Altair lê jornal sonhando emprego na ponta do dedo, faz compras e prepara o almoço. Tira as roupas do varal, que dobra aos montes. Enlouquecido, cuida do Lairzinho e repete tudo, todo dia, toda semana. Vida batida na casa da mulher, onde mal percebe que repete, angustiado, meses a frio. O medo o aterroriza. Mas Lairzinho, subverte tudo. De manhã, o danado faz de conta que é só criança e faz tudo de novo. Só Altair que não muda, desde os anos sessenta. Lá está o pai esfregando as mãos geladas, num pano, que viu seu filho enfastiado. Nenê estalou os beiços e permaneceu quieto. Bufando de frio, mas de peito cheio, bem alto pai dizia "Nenê comeu direitinho: papinha de amor comida, missão cumprida!" Mas depois da última colherada, a da fruta, Lairzinho largou a chorar. Foi acudido sem vacilo, num passo. Da cadeirinha, pai pegou no colo e bateu nas costas. "Mal cozida?" "Mal batida sopinha?" Soprando e sacudindo, pensou, engasgou? Atende o celular e congela. Digita: "Não tive culpa de roubar seu tempo com Lairzinho." A janela da cozinha virava as cortinas do avesso, atirando panos de prato engordurados no chão... A casa chora com a mulher distante já que tem um assado esperto e um medroso a seco. "Dor de barriga, Lairzinho?" Altair desnorteado pergunta o que será que foi, o que mais você sente: ― É o Blinco? Palavra por encanto. Silêncio. O tempo parou. Altair diz que não foi nada, que só comeu muito. "Chore não, vem comigo, vem?" Ai lembrou que quando venderam o Brinco, perderam o pé: o cachorro era a televisão da casa... Um caderno novinho dos classificados de domingo voava da mesa ao chão e dali voltava à sala, querendo ir pra rua, desfolhado... ─ Desculpa, Lairzinho...

Homens e Macacos Mário Aviscaio*

A papinha atrasou. Altair demorou no escritório, na cozinha e na feira. Às compras, alternava sacola num braço e filho no outro. Mesmo voltando pesado, brincava com dona Santa e seu Jorge, seguia saudando de banca em banca e na última, despedia do amigo, "Agora não, obrigado um abraço, beija as crianças!" Não é que o pai tenha feito besteira: Altair vive entre o telefone e o nenê a vida inteira, entre a louça e o tanque; fogão e feira: "Aflição, meu Deus". Mas, tendo alimentado o menino, muito parou. É quando Lairzinho chora de novo: o sebo chegou. Altair Marino olha as estantes. O rapaz do sebo vê o velho listar baixinho, títulos sonhados. Quanto mais tenta se salvar, mais os bolsos pesam... São contas a pagar, a mulher a rezar e o sebo a... "Ei aí, deixe os do Machado, os do Rosa e do Bandeira; do velho Bardo, do Cavaleiro e do Pança." E de nada reclamava. Lá seguia o coração de Altair despachado em caixas: trezentos livros e cem cedês, tudo por dois mil. Cheque pronto, silêncio de volta. "Não, não, espera aí, esse fica, por favor, deixa esse "O Amante" aí!" Tinha sono e fome, mas no fundo, mandava a falta de tudo. Dinheiro amansando feridas, na sala, estantes vazias. Agora tudo foi embora. A feira, a comida, a louça. Os livros. Mas a mulher chega e pergunta do leite do menino, sem olhar nos olhos. Ele não responde. Nem na cama se entreolham. Recai sobre ele o creme hidratante, o chá para cólicas e o Nenedent. Gritava a mulher "Pela última vez!" Prudente calou. Não tinha marcado retorno ao posto, muito menos comprado o xarope recomendado, mil vezes lembrado. Apanhou o jornal, tirou os panos do chão, pegou as chaves e olhou para ela, pensando: "Macacos proveem suas famílias. Macacas jamais abandonam seus filhos." Ao girar a maçaneta, o espelho da entrada mostrou alguém de fundas olheiras e faces molhadas, que nada mais ouviu. Cabisbaixo até o ponto, saquinho plástico nas mãos, mal pega o ônibus. Vai devagar, no coletivo, com muitos receios. Sonha a maior parte do trajeto, cabeça mole, chacoalhando abafado... O calor derretia até o câmbio, que tremia mais que o mosaico da capa do motorista, feita de triângulos coloridos. Ele pingava lambendo saldoce no canto da boca, lembrando a paçoca de São João vendo os balões no céu, ao cair da garoa.

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Faz muita conta de si em sonhos. Acorda, dá o sinal e corre a mão pelo cano. Puxa ansioso o bolso da calça que tem nada, cadê o dinheiro? "Ah!" Pega do bolso de trás, duas notas de dois e paga a passagem de três. Já vê o próximo ponto, mas o troco demora... A sobra era para dois pães, que de noite em casa, espera a mulher e o nenê. Trombando no corredor – povo esperando – pensa no pão, que não come. O ônibus para, mas o dinheiro não vem. Portas abertas... Desce o degrau, mas recua. Sente o desemprego. Motorista esperando... Ele desce devagar, gritando, eu quero meu troco! Mas as rodas partem e as portas se fecham contra seu pé. Altair Marino cai na calçada e reclama no ato, gritando pelo pão e pelo sapato. O motorista xinga, se muito quiser, que reclame na viação". Atento, um mendigo leva as moedas atiradas pelo ônibus. O cobrador joga também o sapato, que o mendigo esperto pega, olhando no pé do Altair. Sempre descalço, na mesma amolação, Altair revelho. Sentia que o céu escurecia. No fundo, irado, agora sem pão e raso – sem moedas –, atordoado, ainda sonha na calçada... Não eram só dois dinheiros, provação em veredas, mas contas e males inteiros. Perde o ônibus de vista e com fome, sonha um pão fiado. Encolhido da surra de relho sentencia: "Ninguém vê a vida passar: a maioria não cuida dos outros com vara curta e ninguém para, não dá conta do que vê e ninguém ouve! Faço conta de parar, não sou contra de pagar e não desanimo, nem se a maldita carregar! Vibra! Mensagem no celular: "Você não faz nada para mudar, Altair?" Lá está ele, pé no chão, de olho no céu: vê folhas a voar... Pipa na mão, linhada na outra, segue distante das árvores despenteadas que nervosamente lançam milhares de frutinhos no chão de terra e pedras. Lá está ele ao lado do Zé, carretilha na barriga. O vento enfunando as costas e as pipas cabeceando. No fim das linhas pensas, as pipas dançam iradas a fugir do cerol de marrudos piratas: ─ Você não tem medo desses malvados, tem Zé? ... Zé? ─ Fala mais alto aí! ─ Do que você tem medo Zé, daqueles malvados? ─ Não, eu tenho medo da escola e você? ─ Eu, eu...

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─ O que?, Tair, fala mais alto! ─ Eu tenho medo de ficar pobre, Zé! ─ Fica não, Tair, fica não! Corre que eles vêm vindo, recolhe, recolhe! ─ Quem? ─ Vai, corre Tair! O vento dançava a chuva insana, que aflita não parava de chorar. O saquinho do supermercado cheio d'água e de frutinhos tinha as alças vibrando aos ventos. A água do céu molhava as pipas e os rabos de trapos... Meninos nunca se molham. A tonta da chuva foi embora, o céu clareou e as pipas se foram. No entanto, a alegria é amarela, branca e vermelha, plantada no chão. Abaixo de um céu inocente, poças no asfalto refletem, confiantes, uma criança sorridente. Ela chega à sua viela querida, para onde sempre volta. Mas dessa vez, não viu a mesma rua de terra empoeirada com pedrinhas redondas a cantar na roda dos caminhões. Ali tinha uma rua de mansões e carros importados. Ao fundo, a ponte estaiada. Sua pobre rua ficou chique, mas sem folhas e ventos. "Mas chique?" Logo viu sua escolinha de muro talhado à cantaria batida. Maravilhado, o sol já cantava de novo... Crianças trepadas no brinquedo de pedra jogam aviõezinhos de papel por cima do muro e pedem aos passantes que os devolvam... E atiram cada vez mais. Altair Marino vê pelas frestas do portão que as professoras tomam café nos fundos e o diretor que escreve na frente, nada vê, nem ouve: o Zé já ouvia mal desde menino. Todos brincavam de aviãzinho, menos o diretor e as professoras. As crianças adoravam e jogavam de volta os papeizinhos. O primeiro aviãozinho, devolvido, voou pouco: o passante desajeitado levou divertida vaia. Irritado, atirou o papel e sumiu. As crianças morreram de rir, do ir e do vir, e jogavam de volta. Pouco importava o aviãozinho, que virava bola amassada: o muro e as gentes é que eram atração. Logo, outro passante fez mais bonito. Já assistia de longe, brincado das mesmas vontades. Modelou um lindo papel e atirou molequinho outro e mais outro. Logo caía uma chuva de papeizinhos como a esperança chora solidão: despencavam por um desfiladeiro, os aviõezinhos, a ver os rios de seus destinos. A gurizada vibrava!

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Agora, sim, brincadeira pegou fogo. Até o diretor viu: juntou mais gente na calçada. Molecada de um lado, vizinhança de outro... E todo mundo brincou de aviãozinho, até que o sinal tocou. Ao silêncio, a criançada sumiu. O diretor da escola, a jogar papéis no lixo, não suportava mais seu texto obrigatório. Amassou de novo seu riscado papel e lançou longe, por cima do muro. Do outro lado, um tanto senil, seu velho amigo voltou a si, quando recebeu a bola de papel na testa. Lembrou da casa, do pão e do troco; do mendigo e do sapato, mas continua feliz com sua pipa. Lembrou da mensagem atirada. Desfeita a bolada – iluminado – viu no papel, o discurso: " Poucos homens gritam na madrugada. Conversam corujas, mas, raposas, vislumbram seus interesses – a tudo vendo – salvando ou matando. Religiosos, não trabalham aos domingos. Muitos homens arrotam ignorâncias e se enchem de besteiras no fim da noite. Mas de dia, com seus amigos, trabalham arduamente e espertos, planejam viver em ordem. Suas mulheres fingem não trair e de nada reclamam. Durante o dia, mesmo insatisfeitos, homens dignificam sua atenta cidade. De noite, quando dormem, são milhões de macacos sonhando que nunca repetem seus erros. Suas mulheres não sonham. " Sorrindo, alisou o papel no peito. Tomou dos versos, lendo mais uma vez. Virou de lado o papel e escreveu – sem demora –, o que lhe vinha cabeça. Escrito e feliz, amassou o surrado papel... Correu e pulou, lançando a bolota de papel, com toda força, muro abaixo. Longe das crianças de sua vida, sozinho tinha ficado com velhos jornais, mulher e nenê. E o Zé! Ninguém precisou da escola naquela hora, mas do velho Altair! Foi o diretor carrancudo que tomou, de volta, a bolada na cabeça. Mas foi o Zé que sorrindo, pegou da bolota e devolveu em cima das professoras, que à frente do portão, amaram a brincadeira. A escola viu que a lição do dia não foi dela: era da energia das crianças, dos passantes e do Altair Marino. Uma delas, que viu pela fresta o velho professor escrevendo, pegou da amassada surpresa, abriu e leu para todas:

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Homens e Macacos Mário Aviscaio*

" Muitos macacos guincham à luz da manhã. Relincham quadrúpedes, grasnam bípedes e diante de suas polêmicas marciais – sem ver nada – subjulgam a todos. Hipopótamos, não saberiam sobrevoar flamingos. Alguns macacos peidam ares de cultura e cagam asneiras no meio da manhã. Ao meio dia, longe dos companheiros, se masturbam, brincam idiotamente e dormem. Suas macacas transam com tribos mais férteis. À noite, satisfeitos, os macacos aterrorizam a incauta floresta. De manhã, quando acordam, acreditam que não são apenas alguns homens e fazem tudo de novo. Menos as suas macacas. "

Mário Aviscaio* é um heterônimo criado por Fernando Chiavassa. Neste conto é criado o personagem Altair, que daí em diante se constituiu em novo heterônimo de Fernando Chiavassa, o Altair Marino. Esta narrativa é parte integrante da antologia de contos intitulada "Alguma Objeção" produzida durante oficina literária dirigida pelo escritor Marelino Freire (2014), que também participa com o conto "Lavagem a Seco". Fernando fez cursos livres de literatura no Museu Lasar Segall e participou do Curso Livre de Preparação do Escritor (Clipe), na Casa das Rosas e é parte integrante do Coletivo Literário Palavraria. Escreve poemas, crônicas e ensaios, enquanto seu heterônimo, Mário Aviscaio, trata da ficção. Mário escreve pintando enquanto Fernando pinta escrevendo. Os textos do Fernando, do Mário Aviscaio e do Altair Marino, dentre artigos, ensaios, estudos, cartas, crônicas e contos, podem ser encontrados nas suas páginas do Facebook e nos seguintes sites: https://unisantos.academia.edu/fernandochiavassa e http://pt.scribd.com/fernando_chiavassa

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