Mário de Andrade e Murilo Mendes: leituras, releituras, contraleituras

May 23, 2017 | Autor: V. Revista da Ass... | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Literatura brasileira, Mário de Andrade, Murilo Mendes
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VEREDAS 22 (Santiago de Compostela, 2014), p. 61-72

Mário de Andrade e Murilo Mendes: leituras, releituras, contraleituras ULISSES INFANTE

Universidade Estadual Paulista (Brasil)

Resumo: Este artigo percorre os textos em que Mário de Andrade analisou a poesia de Murilo Mendes e deles extrai as principais reflexões e juízos desenvolvidos. Ao mesmo tempo, percorrem-se textos em que Murilo Mendes aceita os julgamentos de Mário ou contrapõe-se a eles, elaborando uma visão autocrítica que oferece aos seus leitores. Os avanços e recuos dos dois escritores tendem a convergir em vários pontos em seus últimos juízos – ainda que essa convergência não se tenha tornado pública, pois a morte prematura de Mário de Andrade impediu que ele produzisse o ensaio crítico que planejava dedicar a Murilo depois da leitura de As metamorfoses. Neste trabalho reproduz-se parte substanciosa da marginália deixada por Mário no exemplar desse livro que lhe pertenceu. Palavras-Chave: Mário de Andrade; Murilo Mendes; poesia moderna; crítica; modernismo brasileiro.

Abstract: This paper examines the texts in which Mário de Andrade analysed the poetry of Murilo Mendes and extracts from them the main reflections and judgments developed by him. At the same time, it considers the texts in which Murilo Mendes accepted or rejected the judgments of Mario, developing a self-critical view that he offers to his readers. The advances and retreats of the two writers tend to converge at various points in their last judgments even though this convergence has not become public since the untimely death of Mario de Andrade prevented him to produce the critical essay that he planned to devote Murilo after reading As metamorfoses . One important aspect os this paper is that it reproduces part of the handwritten marginalia left by Mario in the copy of that book that belonged to him. Keywords: Mário de Andrade; Murilo Mendes; modern poetry; literary criticism; Brazilian modernism.

Data de receção: 14/02/2014 Data de aceitação: 07/10/2014

1. Introdução Mário de Andrade exerceu significativo papel de orientador crítico no Modernismo brasileiro. Sua produção crítica compreende textos de viés teórico, como o “Prefácio Interessantíssimo”, do li-

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vro Pauliceia desvairada , A escrava que não é Isaura , O banquete e textos de análise e avaliação, como os que formam os volumes Aspectos da literatura brasileira e O empalhador de passarinho . Além disso, assíduo e contumaz correspondente, Mário distribuiu juízos e diretrizes a inúmeros escritores – e em alguns casos deles recebeu também orientações. Constituem fecundos veios de material de estudo os conjuntos de cartas que trocou com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, para listar alguns poucos nomes. Três obras de Murilo Mendes foram objeto de leitura atenta e ponderada de Mário de Andrade: Poemas 1925 - 1929 (publicado em 1930), A poesia em pânico (de 1938) e As metamorfoses (de 1944). Este trabalho se propõe a percorrer essas leituras a fim de delas extrair os juízos márioandradinos; esse percurso, no entanto, não se desenvolverá apenas a partir dos textos de Mário, mas também a partir das leituras que Murilo Mendes contrapôs às de Mário, cujas opiniões parecem nunca ter deixado de ser consideradas por Murilo referenciais inescapáveis para o trabalho poético. 2. Advertência Um texto de Murilo Mendes a que frequentemente se faz referência e que, apesar disso, não foi incluído na edição da Poesia completa e prosa lançada pela Editora Nova Aguilar em 1994, é a “Advertência” da edição das Poesias (1925 - 1955) , publicada em 1959 pela Editora José Olympio. Esta “Advertência” figura numa página não numerada que segue a página XvIII (na qual termina o “Índice Geral” do volume) e antecede a página 1. O texto aqui reproduzido é, na edição mencionada, seguido da reprodução da assinatura manuscrita do autor. Personaliza-se assim o volume e elevase a “Advertência” ao estatuto de documento pessoal tornado público: Por motivos alheios à minha vontade, meus livros não foram publicados por ordem cronológica. A presente edição restabelece esta ordem. Excluí as poesias satíricas e humorísticas que compõem a História do Brasil , pois, a meu ver, destoam do conjunto da minha obra; sua publicação aqui desequilibraria o livro. O que se chamou de minha “fase brasileira” e “carioca” está suficientemente representado em algumas partes dos Poemas e em Bumba-meu-Poeta . Bumba-meu-poeta, Sonetos Brancos, Parábola e Siciliana são pela primeira vez publicados em livro. Para esta edição revi inteiramente todos os textos, tendo também suprimido vários poemas que me pareceram supérfluos ou repetidos. Procurei obter um texto mais apurado, de acordo com minha atual concepção da arte literária. Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo. Rio, novembro de 1956.

“Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo.” Isolada do texto de origem é como costuma ser apresentada esta frase – e é geralmente tomada como um mote pessoal do poeta, que se afirmaria por meio dele um perseguidor do hodierno e vigente. Para isso, aliás, ele mesmo parece ter colaborado: numa nota a seu ensaio “O ‘Surrealismo lúcido’ de Murilo Mendes”, Joana Matos Frias diz que, em entrevista a Walmir Ayala, publicada no Jornal do Brasil em 25 de julho de 1959, Murilo teria feito questão de destacar: “Não sou meu sobrevivente, mas sim meu contempo râneo, escrevi na nota de introdução às Poesias.” (Remate de Males , 2002, p. 64). Ao citar a si mesmo, Murilo substituiu a conjunção aditiva “e” pela adversativa “mas”, o que parece encarecer a

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preocupação com o propósito de apresentar-se como quem se mantém atualizado e se renova constantemente. Algum tempo depois de seu ingresso na vida acadêmica, em 1957, na Itália, Murilo passou a empregar com frequência o adjetivo “aggiornato” para referir obras, artistas e autores. Vejam-se, por exemplo, as ocorrências em duas cartas reproduzidas no volume comemorativo do centenário de nascimento de Murilo Mendes publicado pelo Cemm-UFJF em 2001, Murilo Mendes 1991 - 2001 . Em carta enviada de Roma a Haroldo de Campos e datada de 2 de maio de 1963, Murilo chama aos “neograndinos” de “aggiornatissimi” – o termo surge na página 137. Na página 139, em carta enviada de Roma a Alfredo Bosi e datada de 20 de fevereiro de 1971, Murilo avalia a História concisa da literatura brasileira como “livro ótimo, claro, inteligente, dum autor aggiornato, que sabe onde tem o nariz.” O manter-se a par das últimas correntes estéticas e críticas e o adotar alguns de seus pro cedimentos, portanto, passaram a ser critérios determinantes de valor. Um trecho de carta a Mário da Silva Brito em que Murilo comenta seus contatos com o grupo italiano dos Novissimi é citado por Júlio Castañon Guimarães e é uma síntese enfática dessa atitude: “Tudo – menos a estagnação e o conformismo.” (1986, p. 77). Apreciada em seu contexto de origem, a “Advertência” de 1956, a frase “Não sou meu sobrevi vente, e sim meu contemporâneo” pode conduzir a reflexões mais amplas do que as que uma interpretação como a que lê nela uma apologia da atualização pode trazer. A abertura do texto aponta que o volume que se tem em mãos restabelece a “ordem cronológica” de publicação dos livros de Murilo. O destaque que se dá a esse fato é meramente informativo ou se pode supor outro motivo para ele?. Por que excluir da própria obra um volume inteiro de poemas, mas preservar outros textos que pertenceriam à mesma vertente da obra excomungada? Por que calar totalmente sobre outro volume refutado (mas não destruído) em outro momento – O sinal de Deus? Por que silenciar sobre outro livro já pronto – O infinito íntimo – mas também excluído da recolha? Rever textos, eliminar o supérfluo e o repetido, apurar a própria expressão são operações também destacadas na “Advertência” – e todas teriam sido adotadas a fim de aproximar a obra da então “atual concepção de arte literária”. O movimento de releitura e integração da própria obra instaura o então momento presente como eixo organizador. Tal instaurar produz a questão: como moldar e oferecer ao pú blico uma leitura de si mesmo se não se toma aquilo que é permanência como parte integrante do que é a própria contingência? Se o já feito não é considerado vivo e em processo, por que pre servá-lo? Em suma: como ser contemporâneo de si mesmo sem ser de alguma forma também so brevivente a si mesmo? A “nota de introdução” da edição de 1959 das Poesias é na verdade uma advertência . Ora, uma advertência pode ser uma observação, um esclarecimento, mas também pode ser uma admoestação ou reprimenda. Há uma sugestão de movimento no prefixo “ad”: advertência é gesto de quem se volta para ou faz outrem voltar-se para. O poeta está indicando e prevenindo: sua obra deve ser reordenada (“restabelecida” seria a palavra mais literal) e parcialmente expurgada. No momento mesmo em que é celebrada como monumento literário a que somente grupo muito restrito faz jus – quantos poetas têm ainda em vida (ou mesmo postumamente) sua obra recolhida e publicada pela casa editora de maior prestígio no país? – a história dessa obra e da fortuna crítica a que deu origem deve ser retratada e relida a partir do que é proposto pelo próprio autor como sua atualidade. O poeta autocrítico pretende indicar para que direção se devem voltar os que vão reencontrar

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essa obra e a história de sua recepção. Não há como ser contemporâneo de si mesmo sem incorpo rar a memória que é o passado preservado – memória que se pode reler e reinterpretar até mesmo com o esquecimento que o silêncio em muitos casos realiza – e sem implicitamente projetar um futuro que se tenta planificar. A contemporaneidade é um encontro mental de tempos. E, no caso de uma obra literária publicada ao longo de quase três décadas e de um poeta cuja recepção crítica se vinha realizando desde sua estreia em volume em 1930, esses tempos não pertencem a uma única mente, mas a muitas; pertencem a uma mente suprapessoal, à estratificação de obras e leituras que formam e reformam constantemente a história da literatura – com a qual, aliás, Murilo abertamente dialoga em sua “Advertência” quando se refere à “fase brasileira” e “carioca” e quando cala outras feições de sua obra. E o poeta quer que a partir desse diálogo o modo de ler sua obra contenha as sinalizações por ele propostas. A “fase brasileira” e “carioca” já não cabia na “concepção de arte literária” do Murilo de 1956 – se ele a mantém suficientemente representada em algumas partes dos Poemas e em Bumba-meuPoeta é porque, ao menos aparentemente, considerava importante que espécimes dessa fase sobrevivessem, ainda que como fósseis de uma prática poética superada. Bumba-meu-Poeta ainda não tinha sido publicado em volume – e talvez esse fato justificasse a opção de Murilo por esse texto em detrimento da História do Brasil. Talvez História do Brasil tenha sido totalmente rejeitado por ser mais longo, o que significa que o desequilíbrio que provocaria na edição de 1959 seria também quantitativo ou que talvez a edição tenha sido planejada para um número limitado de páginas. E, principalmente, deve ter pesado o fato de História do Brasil constituir uma experiência mais radical da poética “brasileira” e “carioca”. O que é inegável é que, muitos anos depois da redação da “Advertência”, textos e cartas de Murilo Mendes indicam que ele não parecia ser capaz de chegar a um acordo consigo mesmo sobre a História do Brasil. Laís Corrêa de Araújo reproduz em seu trabalho Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia correspondência várias cartas que lhe foram enviadas por Murilo Mendes da Europa entre 1969 e 1975, ou seja, durante os últimos anos de vida do poeta. Numa delas, enviada de Roma e datada de 27 de novembro de 1971, Murilo faz questão de dizer que não se lembra de “nem uma vírgula” do poema para o Aleijadinho da “H. do B.” e acrescenta: “meu exemplar desse livro renegado está no Rio” (ARAúJo, 2000, p. 214). Em 4 de agosto de 1969, no entanto, Murilo, em carta também enviada de Roma, havia exposto outra versão: “Note que não reneguei nenhum livro: não incluí no dito volume a História do Brasil porque assim o declaro no prefácio – achei que prejudicaria a unidade do mesmo.” (ARAúJo, 2000, p. 194) Em outra carta, também de Roma, datada de 30 de janeiro de 1973, Murilo Mendes não poupa nem sequer a capa do livro, desenhada por Di Cavalcânti: “Aqui entre nós, que ninguém o saiba, poderia se omitir a foto da capa da História do Brasil. Sou velho amigo do Di, estimo-o muito; mas acho que a foto desafina do conjunto do livro, aliás, como sabe, renegado por mim.” (Araújo, 2000, p. 228). Em Janelas Ver des, publicado pela primeira vez em 1970, Murilo diz que na História do Brasil se troçava de brasileiros e portugueses “de resto, por amor.” (MeNdeS, 1994, p. 1431). Poemas 1925 - 1929 era um caso mais delicado do que a História do Brasil , pois suprimir as partes “brasileiras” e “cariocas” desse volume significaria renegar parte da fortuna crítica construída a partir e em torno desse conjunto poético. Afinal, esse tinha sido o livro de estreia de Murilo – e a “carioquice” do poeta fora um dos pontos sobre os quais Mário de Andrade tinha embasado a aná-

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lise favorável que Poemas 1925 - 1929 lhe suscitara em seu ensaio “A poesia em 1930”. Exterminar toda a brasilidade e carioquice significaria para Murilo deitar fora uma parcela considerável do que ele mesmo significava (e significa) como parte da tradição da poesia moderna brasileira. Ainda que Murilo tenha pagado tributo às preocupações formalizantes da Geração de 45, tenha sabido dialogar com a poética de João Cabral de Melo Neto e com a lúcida densidade verbal a que então chegara Drummond, e tenha nessa mesma altura relido e reprocessado Camões – a expressão “texto mais apurado” da “Advertência” aponta para isso e a leitura da produção muriliana desse momento o confirma, – a verdade é que ele já tinha uma história pessoal como escritor e já fazia parte da história da poesia brasileira. Suas novas concepções poéticas o fizeram renegar a História do Brasil, mas não o levaram a uma eliminação completa de tudo o que era “brasileiro” e “carioca”. Ainda que aparentasse expressar o contrário, Murilo tinha consciência de que só se pode ser con temporâneo a si mesmo sendo também sobrevivente de si mesmo. Em “A poesia em 1930”, artigo publicado inicialmente em 1931 e depois incorporado ao volume Aspectos da literatura brasileira (cuja primeira edição é de 1943), Mário de Andrade analisa quatro livros publicados em 1930: Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade; Libertinagem , de Manuel Bandeira; Pássaro Cego, de Augusto Frederico Schmidt e Poemas 1925 - 1929, de Murilo Mendes. Sobre Poemas 1925 - 1929, Mário afirma que “historicamente é o mais importante dos livros do ano” (ANdRAde, 1978, p. 42). E fala em “integração da vulgaridade da vida na maior exasperação sonhadora ou alucinada”(ANdRAde, 1978, p. 43) e em “aproveitamento mais sedutor e convincente da lição sobrerrealista”(ANdRAde, 1978, p. 42), o que é explicado na enumeração “negação da inteligência superintendente, negação da inteligência seccionada em faculdades diversas, anulação de perspectivas psíquicas, intercâmbio de todos os planos” (ANdRAde, 1978, p. 42); é um livro em que “o abstrato e o concreto se misturam constantemente” (ANdRAde, 1978, p. 42). É claro que em 1956 Murilo dispunha de uma perspectiva mais favorável para ponderar o que signi ficava ser considerado por Mário o autor do livro mais importante de 1930, quando Drummond fez sua estreia e Bandeira publicou uma de suas obras mestras (“livro de cristalização” diz Mário). Por isso não era fácil, em 1956, pôr de lado completamente afirmações como: É inconcebível a leveza, a elasticidade, a naturalidade com que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação e os confunde. Essa naturalidade, essa coragem ignorante de si, no Brasil, só seria mesmo admissível no gavroche carioca. E de fato, Murilo Mendes, embora mineiro de nascença, é dono de todas as carioquices. E aquí lembro a contribuição nacional admirável dele. Impenetravel, visceral, inconfundível, há brasileirismo tão constante no livro dele, como em nenhum poeta do Brasil. Realmente este é o único livro brasileiro da poesia contemporânea que sinto impossível a um es trangeiro inventar. Todos os outros, com maior ou menor erudição, maior ou menor experiência pessoal, qualquer homem do mundo teria feito. O que nos outros é fruto duma vontade, em Murilo Mendes, é apenas um fenômeno por assim dizer de reação nervosa. (ANdRAde, 1978, p. 43-44; nesta e em todas as citações de Mário, manteve-se a ortografia original)

O que Mário escreveu sobre os Poemas 1925 - 1929 de Murilo em “A poesia em 1930” é reaproveitamento parcial de um texto anterior publicado no Diário Nacional em 21 de dezembro de 1930, com o título de “Murilo Mendes”: Murilo Mendes são dois poetas. É mesmo extraordinário como ele é um dois. Tem nele um observa dor satírico e um Ariel maluco. O que apenas une os dois poetas em Murilo Mendes é o carioquismo irredutível do homem. Murilo Mendes é mineiro de origem. Mas ninguém mais ‘carioca’ do que ele. É que ‘carioca’ não esclarece a origem de ninguém, é uma determinação psicológica. Nem são mesmo as

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ULISSeS INFANte pessoas nascidas no Rio de Janeiro que são cariocas. No geral ‘carioca’ é muito mais o estaduano que vai prá cidade do emprego. Aquele ar de farra sentimental que o Rio de Janeiro tem, faz o emigrante um ‘carioca’. O que é o carioca? Leiam Murilo Mendes. O prazer da festa, a maldadinha sem malvadeza e tudo pelo amor. (ANdRAde, 1976, p. 294)

No mesmo artigo, Mário opta: Mas o que eu gosto mais nele são as poesias de lirismo livre, independendo da compreensão intelectual. Nesse gênero, se aproximando do sobrerrealismo, que o poeta se expande com uma riqueza excepcional de lirismo. Toda a parte ‘Máquina de sofrer’ é admirável de apelos profundos, assombrações de sonho, vaguezas eficientes, nitidez de irrealidade. E aí o carioquismo de Murilo Mendes dá o melhor da originalidade dele, porque funde com o real, as coisas mais misteriosas, mais intelectualmente incompreensíveis, mais delicadamente vagas, por meio dum traço forte, bem rapaz desabusado mas família. (ANdRAde, 1976, p. 294 – 295)

É o brasileirismo ou carioquice do Murilo das décadas de 20 e 30 que importuna o Murilo de 1956. Para ser mais exato: são os poemas-piada, a linguagem desabusada, o “prazer da festa, a maldadinha sem malvadeza, tudo pelo amor”. As outras feições do poeta de então apontadas por Má rio no livro de estreia – e, note-se, integradas por ele, Mário, ao “carioquismo” – recebem o sutil aval do silêncio e a chancela da republicação, ainda que se tenham efetuado cortes e revisões em alguns casos. No exemplar de Poemas 1925 - 1929 que pertenceu a Mário de Andrade e que agora pode ser consultado na Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, há uma nota manuscrita aposta pelo próprio Mário ao título do livro na página de rosto: “Crítica de Tristão de Athayde, junto à do Remate de Males”. Essa referência conduz a um artigo de Alceu de Amoroso Lima que agora figura no volume Estudos - Quinta Série (1930 -1931) e que fora inicialmente publicado no Jornal de Notícias como rodapé literário. Esse é provavelmente o texto inaugural da recepção crítica à obra de Murilo Mendes: Neste [poeta], o que me interessa sobretudo é o senso do invisível que possui e que dá à sua poesia um movimento por vezes formidável. Irrita-me ter de louvar o que para o intolerável ‘espírito moderno’ é apenas procura de originalidade. Mas o fato é que esse poeta, que positivamente tem momentos de puro desvario, tem um contato com o invisível e um senso concreto da espiritualidade que o colocam inteiramente à parte. Quanto caminho andado desde os tempos do naturalismo poético, que se julgava uma aurora e era uma agonia! O sr. Murilo Mendes é um poeta que luta quase que tangivelmente com os anjos e os demônios. Sua poesia é um dissídio constante e angustioso entre o angelismo e o de monismo. (LImA, 1933, p. 134, grifos do autor; ortografia atualizada)

Destaque-se que o crítico nesse mesmo texto elogia o “senso epigramático” (LImA, 1933, p. 135) do poeta e alguns poemas do que Murilo passaria a caracterizar como sua “fase carioca” baseado na leitura que fez de Mário: “Neste volume há vários bons poemas satíricos e caricaturais.” (LImA, 1933, p. 135). Ao sintetizar sua análise, Alceu conclui com palavras nas quais não parece ser des propositado enxergar o gérmen de algumas avaliações mário-andradinas: Mas essa coexistência do senso vivo do grotesco da vida e de um senso doloroso do trágico, que levam o poeta a estados de puro desvairamento e a uma triste exibição de misérias humanas que a arte até hoje preferia recalcar mas que o freudismo um pouco pueril desengaiolou, – esse contraste é outro traço típico desse grande poeta raro, mórbido, que oscila entre o exibicionismo passageiro e a dor profunda de uma alma que se não satisfaz com a unidade. (LImA, 1933, p. 135, destaques do original; ortografia atualizada)

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A Murilo agradaram as palavras de Alceu. Em carta de 23 de fevereiro de 1931, o poeta escreveu ao crítico: Li o seu artigo que me confortou sobremodo – não tanto pelos elogios que contém – mas pela juste za de certas observações. Você disse o essencial sobre o meu livro. É claro que, se dispusesse de mais espaço, poderia entrar em maiores detalhes – mas dentro daquelas reduzidas duas colunas você tinha mesmo que espremer seu pensamento. Vejo que você me toma a sério, o que para mim é muito importante: não ver no sujeito dos Poemas um jogral, nem um mistificador – mas sim um indivíduo dissociado, mas que se esforça por atingir uma ordem. Já o mesmo não viu, por exemplo, o Agripino Grieco – cujo artigo, aliás, me serviria mesmo muito se eu pretendesse forçar a atenção do público – o que não é o caso dum sujeito que publica sem nenhum aviso, e tira só 200 exemplares, sendo 100 fora do comércio. O Grieco censura minha irreverência, como se o livro todo fosse em tal tom. Entretanto, é só uma parte, e um pouco na 2ª – poemas, aliás, que eu introduzi ali mais para documentação; como é fácil verificar (a data da composição está indicada no frontispício) os tais poemas-piadas foram escritos em 1925. Aliás, não abandonei tais manejos – exercito sempre assuntos ligeiros, que é para não ficar muito pesadão na horinha do apocalipse. Tenho horror às comadres, arranjos, etc – se lhe mando dizer isto, é porque vou dizer o mesmo, e mais ainda, por estes dias, ao Grieco – que tem, aliás, algumas anotações muito certas no seu artigo. Espero com o meu próximo livro, que está entrando para o prelo, afastar a queixa, justa, da monotonia dos temas e da técnica fatigante – e não desmerecer a confiança de meia dúzia de sujeitos a cuja opinião dou apreço, e entre os quais se conta você, naturalmente. (RemAte de MALeS, 2000, p. 125-126)

Essa carta esclarece muito: segundo Murilo, já nos Poemas a fase “brasileira” ou “carioca” era mantida devido a uma preocupação documental. Avaliar o que há de verdade nessa afirmação quando se sabe que em 1933 seria lançada a História do Brasil e que em 1956 Murilo iria excluir e ao mesmo tempo preservar exemplares dessa fase é questão melindrosa, e obviamente já estamos às voltas com o Murilo Mendes que Murilo Mendes queria oferecer ao público. Na própria carta, aliás, Murilo afirma com graça que não abandonara tais “manejos”. E, fato ainda mais digno de nota: o poeta já se punha em perspectiva histórico-crítica, documentando-se a si mesmo. A mesma carta destaca como Alceu tomou-o a sério e soube reconhecer o efetivo valor da poesia desse “indivíduo dissociado, mas que se esforça por atingir uma ordem.” “Coexistência do senso vivo do grotesco da vida e de um senso doloroso do trágico ”, havia escrito e sublinhado Alceu; “integração da vulgaridade da vida na maior exasperação sonhadora ou alucinada”, “observador satírico” e “Ariel maluco” escreveu Mário. Murilo endossava assim esse caminho interpretativo de sua obra, que faria história em sua fortuna crítica. Em 1956, consagrado com a publicação da obra poética completa, Murilo refazia sua opção por essa trilha interpretativa e, com a autoridade que lhe con feria o estatuto que então alcançava, advertia que já era passada a hora de abandonar de vez as interpretações que atribuíam muito peso à sua produção satírica e de tomá-lo a sério , o que, aliás, vinha sendo feito desde sempre por “meia dúzia de sujeitos” como Alceu. Murilo Mendes, a exemplo de Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, lutava contra a fama de piadista inconse quente que durante muito tempo perseguiu os autores que empunharam a irreverência verbal nos momentos de combate do Modernismo brasileiro. A “Advertência” prolonga ainda seu diálogo de falas e silêncios com a recepção crítica à obra de Murilo. E o interlocutor privilegiado é mais uma vez Mário de Andrade. Um dos livros que a edição de 1959 recoloca na ordem cronológica de publicação é A poesia em pânico. Composto em 1936 e 1937 e publicado pela primeira vez em 1938, o livro se tornou público antes de O visionário (que, escrito entre 1930 e 1933, só foi publicado em 1941) e Os quatro elementos (criado entre 1931 e

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1935 e publicado em 1945). O sinal de Deus - poemas em prosa, composto em 1935, chegou a ser publicado em 1936, mas foi imediatamente recolhido do comércio. Mário de Andrade não recebeu bem A poesia em pânico : em artigo publicado em 1939 e que se incorporou ao volume O empalha dor de passarinho , de 1946 (póstumo, portanto), escreveu: Esta é a observação técnica que o livro impõe. Êle se apresenta cheio de pequenas falhas técnicas, provando despreocupação pelo artesanato. Si o que mais se salienta na religiosidade do poeta é a colaboração do pecado, havemos de convir que êle põe o pecado mais no espírito que na carne. Os elementos da perfeição técnica, os encantos da beleza formal estão muito abandonados. O verso-livre é correto mas monótono, cortado exclusivamente pelas pausas das frases e das idéias. A linguagem é oralmente correntia, vazada em geral dentro do pensamento lógico: o poeta abandonou aquele seu saboroso jeito de dizer, tão carioca, do primeiro livro. O ritmo é bastante pobre, principalmente porque, pela altura do diapasão em que está o poeta lhe deu um movimento muito uniforme, sempre rápido. (ANdRAde, 1955, p. 49)

Ao que se acrescenta o seguinte: Na sua procura da poesia essencial, Murilo Mendes se descuidou bastante do problema estético. A poesia em pânico é um livro mais de lirismo que de arte. O poeta não foge às mais rudes banalidades, que chocam no meio de uma invenção lírica no geral rara e bem achada. É possível que o poeta trabalhe os seus poemas, porém será sempre em função do maior realismo da idéia, da maior eficiência do sentimento vivido, não será por certo em função da obra-de-arte. Enfim: sempre essa inflação do artista e êsse esquecimento da obra-de-arte que vem sendo o maior engano estético desde o Romantismo até nossos dias. (ANdRAde, 1955, p. 50)

Mário não abrandou os termos com que expressou seu julgamento: “falhas técnicas”, “despreocupação pelo artesanato”, abandono dos “encantos da beleza formal”, “monótono”, “pobre”, “rudes banalidades”. Referiu-se a qualidades que ele mesmo apontara quando lastimou: “o poeta abandonou aquele seu saboroso jeito de dizer, tão carioca, do primeiro livro.” E fixou um veredito: obra de lirismo e não de arte, “inflação do artista” e “esquecimento da obra de arte”. A relação pessoal en tre Mário e Murilo parece não ter passado incólume por esse texto crítico tão sincero. Em carta datada de 12/11/1944 e enviada do Rio de Janeiro, Murilo escreve a Mário: Estou para lhe escrever há muitos dias, mas. você sabe, os doentes têm regalias. Queria lhe dizer apenas isto: gostei muito da sua página sobre A poesia em pânico . Se não lhe disse, é porque sempre fico encabulado com os críticos. De um modo geral, não agradeço quando elogiam, nem me zango qdo. me atacam. (Não quero evidentemente dizer que você esperava agradecimento.) Acho apenas que o criticado é suspeito para se manifestar. Por conseguinte não há mais razão para v. – como diz na s/ carta – guardar um “sofrimento estúpido” pelo meu silêncio. (Cemm, 2001, p. 132).

O fato é que na “Advertência” de 1959 as palavras de Mário de Andrade ainda ecoam: a saudade da “deliciosa” carioquice muriliana e o desleixo artesanal ainda repercutem, pois Murilo polemiza a questão, enfatizando a necessidade de buscar “um texto mais apurado” como resposta ao desancamento crítico relativo ao excesso de lirismo e correspondente falta de artesanato. Comprova que Murilo dialoga com este ensaio de Mário a leitura de “A poesia e nosso tempo”, texto publi cado no Suplemento dominical do Jornal do Brasil em 25 de julho de 1959, data que denuncia sua vinculação ao lançamento das Poesias (1925 - 1955) – o colofão do livro informa que a impressão terminou em junho de 1959. No texto, Murilo usa três vezes a expressão “artesanato literário”, sempre reiterando que, ainda que o considere importante, nunca se deve tomá-lo com um fim em

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si mesmo nem como um critério inabalável na condução dos procedimentos poéticos. Em certa passagem do texto, seu diálogo com Mário é ainda mais explícito: Sendo de natureza impulsiva e romântica, cedo percebi que no plano da criação literária devia me im por um autocontrole e disciplina. Tendo em conta esta minha primeira natureza, julgo ter feito um trabalho de verdadeiro polimento de arestas, pois se os relacionar à minha contínua necessidade de ex pulsão, meus textos são até muito construídos e ordenados. (Cemm, 1999, p. 55)

Em carta de 1963 a Haroldo de Campos, Murilo enaltece o fato de Haroldo ter julgado Tempo espanhol obra de um poeta que possui “domínio estilístico, quando quase toda crítica negava ou duvidava do fato”. E, ainda ruminando palavras de 1939, acrescenta: A maioria apoiava-se no famoso artigo de Mário de Andrade sobre A poesia em pânico , esquecendose (ou fingindo ignorar) que em passagens posteriores o mesmo Mário escreveu coisas muito diversas a meu respeito. Enfim, seus artigos constituem o reconhecimento de um trabalho sério, aprofundado, não baseado apenas em impulsos líricos.” (Cemm, 2001, p. 137).

Murilo Marcondes de Moura, em seu Murilo Mendes - a poesia como totalidade, destaca que no “Texto branco”, dos anos 60, Murilo Mendes ainda respondia à crítica de Mário. Cita o trecho “O branco mistura, separa, elimina. Corrige o temperamento do artista que tende a sobrepor-se à obra de arte.” e comenta: “Essa última frase retoma, com incrível semelhança, os termos de uma antiga crítica de Mário de Andrade ao livro A poesia em pânico.” (1995, p. 56). A leitura mário-andradina da obra poética de Murilo Mendes registra ainda um capítulo que permaneceu em projeto, mas que pode ser conhecido em detalhes. Em carta a Carlos Drummond de Andrade datada de 15 de outubro de 1944, Mário mencionava um ensaio que pretendia escrever sobre Murilo Mendes – que, segundo Mário, ao lado do próprio Drummond e de Manuel Bandeira “acabaram se distanciando bastante dos outros grandes poetas do Brasil” (ANdRAde, 2002, p. 533). Em carta a Drummond de fevereiro de 1945, Mário anunciava o projeto de escrever um li vro, O pico dos três irmãos, dedicado à análise das obras dos três poetas. No que diz respeito a Murilo Mendes, parecem estar na origem desse projeto as anotações feitas no exemplar de As metamorfo ses que pertenceu a Mário de Andrade e que hoje integra o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Murilo Marcondes de Moura na obra já citada destaca a importância dessa marginália para o estudo da leitura que Mário continuava a fazer da poesia muriliana. A consulta a esse material permite recolher observações e juízos que apon tam para uma releitura da poesia muriliana; a seguir, transcrevem-se as principais anotações antecedidas do nome do poema a que se referem: – “O visionário”: “Dança. Estudar a rítmica coreográfica pelo emprego sistemático (mas não único) dos versos com duas tônicas.” – “Armilavda”: “magnífico”. – “Encontros”: “O misticismo de M.M. é essencialmente de princípio eucarístico. De comunhão. De unificação num Todo em adoração e gozo de Deus. Ele não tem aquela noção mais terrestre da fraternidade da mística franciscana. O misticismo de M.M. é menos ‘católico’ do que universal e primitivo. Deriva daquela noção eucarística e socialista das culturas primitivas, de que o canibalismo é a prática mais virulenta, e culminado no princípio da Eucaristia, do Catolicismo. M.M. porém vai mais longe ou mais instintivo se quiserem. As suas relações com o seu Deus são integralmente católicas, não tem dúvida, uma comunhão que identifica mas não integra nem imerge. Nada tem

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de budista, nem muito menos daquela integração no Todo Infinito. Mas M.M. alastra o seu senti mento eucarístico ao mundo exterior, com este é que ele comunga e nele se integra, não apenas identificado mas imerso. É típico disto este poema, que principia de sensível inspiração francisca na, parte em seguida pra ilações mais irredutíveis (as estátuas) ou sensuais (a bailarina, o deslumbramento da comunhão sexual) pra terminar no esquecimento do poeta de si mesmo e. dos ou tros, tudo nulificado na perfeição única do ‘princípio divino’. Mas os exemplos dessa comunhão que anula num Todo os seres e as coisas perseguem este livro todo, como já perseguiram Poesia em Pânico, na confusão maravilhosa de mulher acuada com Deus, com Nossa Senhora com a Igre ja.” Relacionados com este comentário: “1999”, “Fim”, “Cântico”, “História”, “Remover nuvens” (“O mundo público/ Eu te conservo pela poesia pessoal”) – “Tema antigo”: “A consciência do indivíduo em M.M. é sempre uma dor.” – “Paternidade”: “O poeta comunga tudo. Daí a constância da sua antítese – condor. – “Mulher vista do alto de uma pirâmide”: “pura eucaristia”. – “A operação plástica”: “A mistura comunicante de coisas díspares, separadas na experiência da vida. Neste sentido o aspecto mais virulento do sentimento eucarístico do poeta está na fusão, nele indiscutível e legítima, de coisas antigas e moderníssimas. ‘A sereia telefona’ coisas assim. – “Beira-mar”: “Poeta aliás marítimo. Poeta do mar e do sal.” – “Poema oval”: “típico poema da anti-comunhão, da dor do Eu, Talvez dar título ao ensaio “O Vate Eucarístico”. – “1941”: “A participação instante do poeta com a vida do momento. Recusa mas participação. Esplêndido não conformismo que si é ‘valores eternos’ sabe se datar. Ninguém melhor que M.M. reúne o imediato ao eterno.” – “Iniciação”: “Notar a fatalidade com que o poeta universaliza o homem – ser pelo homem que foi, pais, avós.” – “Os amantes absurdos”: “Fazer comparação íntima entre este livro e os Poemas de 1930.” – “Metamorfose” e “Poema em pé”: “Parece ser a mesma do admirável ‘Poema em pé’. (tb po ema-abraço) – “Visão”: “Esplêndido. Obra-prima”. – “Tarde”. “Na verdade o poeta, com sua experiência nova, trágica e aprofundada volta ao poe ta de 1930, dos Poemas, o poeta ‘carioquista’. Parece que com o mar a mais.” – “O guia do cego”. “Poemas às vezes dum magnífico cristianismo, porém sem nenhum ranço catecesimal.” – “Nuvem”. “o princípio da dança” “O poeta parece agora mais coreográfico. V. p. 26 o poema todo [“Inspiração’]. A libertação do gozo do pecado. A dramática sexual de Poesia em Pânico foi substituída por uma conquista de interior, em que a sensualidade se amainou. Hoje o poeta é mais sensual, mais vivedor das coisas externas e as aferra com delícia e sem furor. Mas nenhuma irres ponsabilidade isso, nenhuma gratuidade ou leviandade. Essa mesma dança da vida, hoje, nada tem dos movimentos em allegro, e nada dos graves largos. É um andantino, é muitas vezes um alegreto esquerzoso, que deriva duma grande, radiosa, carinhosa, firme, serenidade interior. Si o poeta esteve sempre na posse do seu Deus, desque o possuiu, agora ele não o subjuga nem possui. É como que uma espera e uma prelibação do Deus. Uma eucaristia de mundo. Não mais paraísos que neste mundo serão sempre artificiais. Ou inferiores. Tipo disso é o admirável poema seguinte “Estudo”.

MáRIo de ANdRAde e MURILo MeNdeS: LeItURAS, ReLeItURAS, CoNtRALeItURAS

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O exemplar de As metamorfoses que pertenceu a Mário é obviamente da primeira edição, de 1944. Murilo alterou o livro quando o incorporou às Poesias 1925 - 1955 e anotou ainda outras alterações no seu exemplar dessa edição, as quais foram incorporadas à edição de 1994 da Poesia com pleta e prosa. Além de modificar diversos textos, o poeta suprimiu alguns, entre os quais “Poema oval”, “Tarde” e “O guia do cego”. “Mulher vista do alto de uma pirâmide” foi transposto para o livro O visionário. “Visão” passou a chamar-se “Visão lúcida”. O estudo detalhado dessas modificações, no entanto, foge ao escopo deste trabalho, para o qual interessa indicar os principais pontos dessa última leitura que Mário dedicou a Murilo. E adjetivos como “esplêndido” e “magnífico” deixam claro que desta vez a impressão geral era francamente positiva. Merecem destaque a interpretação do misticismo muriliano num sentido totalizante, de integração de elementos díspares e até opostos, o que retoma e aprofunda uma linha interpretativa que remonta a Alceu de Amoroso Lima. Nessa operação totalizadora, a incorporação e transfigu ração poéticas têm papel fundamental – dessa mirada advém o próprio nome projetado para o ensaio, “O vate eucarístico”. Murilo também estaria retornando a procedimentos do livro de estreia e superando tensões apresentadas em A poesia em pânico. Além disso, Mário destaca a elaboração rítmica dos textos, o que sugere que este Murilo tem apuro artesanal – no caso do poema “O visionário” menciona-se uma “rítmica coreográfica”; nos comentários ao poema “Nuvem”, Mário destaca a imagem “o princípio da dança”, dando relevo ao elemento “coreográfico” desse texto. Ao que é matéria rítmica no texto, Mário associa matéria existencial: “Essa mesma dança da vida, hoje, nada tem dos movimentos em allegro, e nada dos graves largos. É um andantino, é muitas vezes um alegreto esquerzoso, que deriva duma grande, radiosa, carinhosa, firme, serenidade interior.” Apontar os desenvolvimentos “coreográficos” da poesia muriliana de As metamorfoses é desentranhar dessa poesia o “espírito que dança” nietzschiano, ao qual o próprio poeta se refere num momento posterior: Murilo Mendes conhecia e apreciava a obra de Nietzsche, ainda que lhe fizes se ressalvas, como fica claro pelo “Retrato-relâmpago” dedicado ao alemão: Sou grato a Nietzsche por certas palavras: “o espírito que dança”, “criação de valores novos”; “tudo o que não me faz morrer torna-me mais forte”; “o poder oculto da alma”; “no homem acham-se reunidos criatura e criador”. Sou in-grato a Nietzsche pelo seu culto extremo da força, do mandarinato; pela sua incompreensão do cristianismo. Renovar sua didascália sobre o espírito grego como ponto de partida da cultura, e sobre o espírito is raelita como organizador da ação. Desnazificar Nietzsche. Desprussianizá-lo. Transcristão? Interpreta a disciplina do sofrimento. Cada cristão deveria explorar a parte de Dionísio que lhe toca. ... Levantar uma Alemanha onde figure entre os elementos da composição o melhor de Nietzsche lúci do sem espada: na claridade mediterrânea. “A palavra do passado é sempre palavra de oráculo: só a compreendereis se fordes os construtores do futuro e os visionários do presente.” (1994, p. 1210)

Esse diálogo com Nietzsche é recorrente na obra de Murilo e impregna seu catolicismo pouco ortodoxo que reúne criatura e criador no homem e que incentiva cada cristão a que explore a parte de Dioniso que lhe toca. Não surpreende, portanto, que no poema “O rito geral”, de As meta -

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morfoses, o “Filho do homem” surja “dançando sobre as ondas”. Leveza e inquietude estão por trás do que Murilo pretende alcançar: Não existe fórmula para o quanto um espírito necessita para a sua nutrição; mas, se tem o gosto orientado para a independência, para o rápido ir e vir, para andanças, talvez para aventuras, de que so mente os mais velozes são capazes, então prefere viver livre e com pouco alimento, do que preso e empanturrado. Não é gordura, mas maior flexibilidade e força, aquilo que um bom dançarino requer da alimentação – e eu não saberia o que o espírito de um filósofo mais poderia desejar ser, senão um bom dançarino. Pois a dança é o seu ideal, também a sua arte, e afinal sua única devoção também, seu ‘culto divino’ (NIetzSChe, 2001, p. 286, destaques do original)

Por essa via coreográfica, a visão crítica de Mário de Andrade e o Murilo Mendes que Murilo Mendes planeava oferecer aos leitores convergem em vários pontos. Na “Microdefinição do autor”, texto de 1970 que abre o livro Poliedro, Murilo Mendes se refere ao seu “não-reconhecimento da fronteira realidade—irrealidade” (1994, p. 45) e ao seu “dom de assimilar e fundir elementos díspares” (1994, p. 45); acrescenta ainda que não separa “Apolo de Dioniso” (1994, p. 46) e que tem “substrato pagão” (1994, p. 46). E mais: Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das ideias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. (1994, p. 46)

“O poema comunga tudo”, anotou Mário no seu exemplar de As metamorfoses. Obtém, assim, ainda de acordo com outra observação de Mário, “a mistura comunicante de coisas díspares”. Esse parece ser o Murilo de Mário com quem se harmoniza o Murilo de Murilo. Referências ANdRAde, Carlos Drummond de. Carlos e Mário: Correspondência entre Carlos Drummond de Andrade – Inédita – e Mário de Andrade: 1924 – 1945. Rio de Janeiro: Bem-te-vi Produções Literárias, 2002. ANdRAde, Mário de. O Empalhador de Passarinho. 2. ed, São Paulo: Martins, 1955. ANdRAde, Mário de. Táxi e Crônicas no Diário Nacional . São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. ANdRAde, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira. 6. ed, São Paulo: Martins, 1978. ARAúJo, Lais Corrêa. Murilo Mendes. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. CeNtRo de EStUdoS MURILo MeNdeS (Cemm). Catálogo da Exposição Murilo Mendes: acervo, Juiz de Fora: UFJF/Cemm, 1999. CeNtRo de EStUdoS MURILo MeNdeS (Cemm). Murilo Mendes : 1901-2001. Juiz de Fora: Cemm/UFJF, 2001. GUImARãeS, Júlio Castañon. Murilo Mendes – A Invenção do Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1986 LImA, Alceu Amoroso (Tristão de Athayde). Estudos . Quinta série (1930-1931). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933. MeNdeS, Murilo. Poesias (1925 - 1955) , Rio de Janeiro: José Olympio Livraria Editora, 1959. MeNdeS, Murilo. Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. MoURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: a Poesia como Totalidade. São Paulo: edUSP/Giordano, 1995. NIetzSChe, Friedrich. A Gaia Ciência . São Paulo: Companhia das Letras, 2001. RemAte de MALeS. Departamento de Teoria Literária IeL/UNICAmP, n. 21 (2001). Campinas, 2002.

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