Marte Desvelado

July 7, 2017 | Autor: A. Dodsworth Magn... | Categoria: Astrobiology, Astrobiologia
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Marte Desvelado – Investigações astrobiológicas no planeta vermelho Alexey Dodsworth Magnavita de Carvalho Número USP 6746952

Preâmbulo sobre categorias lógicas

Não obstante este não seja um trabalho filosófico, um pequeno preâmbulo sobre proposições lógicas é apresentado, e discuto a sua relevância para a astrobiologia. Em filosofia e lógica, há quatro status de proposições, algumas das quais se sobrepõem. As elenco a seguir: 1. Proposições necessariamente verdadeiras, como 2+2=4, ou a afirmação de que um triângulo euclidiano tem três lados e a soma de seus ângulos internos é igual a 180 graus. Tais proposições são verdadeiras, independentemente das circunstâncias, ou seja, são universais e não demandam verificação. Em filosofia, as chamamos de tautologias. Tautologia, porque é absurdo verificar os lados de cinco mil triângulos euclidianos, para poder atestar que todos eles possuem três diferentes lados e que seus ângulos internos somam 180 graus. Não é preciso verificar, pois suas características estão implícitas na própria definição de “triângulo”. Uma questão filosófica significativa é se leis físicas são de fato universais, isto é, necessariamente verdadeiras. Físicos em geral responderão sim a esta questão, e as leis de Kepler são chamadas de “leis universais”. Quando dizemos em astrofísica, por exemplo, que os quadrados dos períodos de revolução ( ) são proporcionais aos cubos das distâncias médias ( ) do Sol aos planetas. proporcionalidade,

estamos

assumindo

esta

, onde formulação

é uma constante de

como

necessariamente

verdadeira para todo o Universo. O filósofo David Hume (1711-1776), por sua vez, insiste que não podemos dar valor de verdade necessária a algo apenas por ser “extremamente provável”1. A tese de Hume afirma que se algo demanda verificação, é porque não há garantia lógica de sua universalidade, mesmo quando algo parece, de modo muito convincente, ser universal. Ainda que algo se repita em muitos locais e ao longo do tempo, podemos estar iludidos pelo pensamento indutivo. Deste modo, pertenceriam à matemática pura e à geometria euclidiana as proposições necessariamente verdadeiras. A questão que se põe, no que tange à astrobiologia, é: seria a existência de vida 1

HUME, David. Investigações Sobre o Entendimento Humano. UNESP, 2004.

uma proposição necessariamente verdadeira? Obviamente, a existência de vida não é um fato no momento verificável fora do âmbito terrestre e não há nenhuma garantia lógica de que existirá em outro canto do Universo apenas porque existe aqui, na Terra. Tais considerações seriam, numa perspectiva humeana, suficientes para afirmar que “a vida existe” não é uma proposição “necessariamente verdadeira”. Ainda que argumentemos, como Descartes (1596-1650), que só o fato de pensarmos “eu existo” torna o “eu” necessariamente verdadeiro (e, assim, também a vida), tanto a vida quanto a consciência são locais e temporalmente verdadeiras. Existem aqui e agora, na Terra. A vida já pode ter existido num passado remoto, no planeta Marte. Ou pode ainda existir, não ainda identificada por nós, no mesmo planeta Marte. Do mesmo modo, a pujança de vida em nosso planeta não é uma garantia cósmica, e sim uma contingência espaço-temporal. Uma discussão filosófica significativa diz respeito à questão: seria a vida um resultado lógico necessário do nosso Universo que se manifesta fatalmente no tempo e no espaço? Raridade não significa ausência de fatalidade. Outro ponto: seria a vida necessariamente dependente de moléculas de carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre (CHONPS)? Não temos, ainda, estas respostas – e, justamente por isso, são problemas filosóficos. 2. Às proposições necessariamente verdadeiras, opõem-se as proposições necessariamente falsas, como 2+2=5 ou afirmar que a água é composta por átomos de selênio. Tais proposições são falsas, independentemente das circunstâncias. Não é possível fazer afirmações peremptórias sobre a vida e dizê-la “necessariamente falsa”. Dizer, por exemplo, que “é necessariamente falso que exista vida em Marte neste momento” é incorreto (o correto seria dizer “não temos evidência de que exista vida em Marte agora”). Ou, ainda por exemplo, afirmar que “é necessariamente falso que a vida possa existir com quiralidade invertida à que conhecemos na Terra”, ou “a vida não é possível sem elementos CHONPS”. Estes são pontos que simplesmente ignoramos. É preciso tomar cuidado e não confundir “ausência de evidência” com “prova de falsidade”. É possível determinar a falsidade da afirmação “a água é composta por átomos de selênio”, pois o conceito de “água” exige uma composição molecular muito específica. Por outro lado, não é possível afirmar categoricamente “não existe vida sem átomos de carbono”. Entretanto, se por um lado não podemos afirmar que tais assertivas são necessariamente falsas, é aceitável (e desejável) que a ciência faça afirmações em termos do mais provável, de acordo com as evidências que temos em mãos. A ciência não é o lugar da negação, mas da afirmação a partir de evidências correntes, e não se

põe com um ponto definitivo sobre o que estuda. É razoável, no contexto da astrobiologia, que busquemos as condições contingencialmente verdadeiras, e então vamos ao terceiro tipo de proposição: 3. Proposições contingentes, que não são nem verdadeiras e nem falsas por essência, mas podem ser acidentalmente verdadeiras ou acidentalmente falsas. Elas podem ser verdadeiras ou falsas, mas estão relacionadas ao acaso. Por exemplo: a Terra é o terceiro planeta do sistema solar. Ela de fato é, mas esta constatação não deriva de uma necessidade. A Terra poderia ser o segundo, ou quarto planeta. Também é verdade que existe vida na Terra. Entretanto, a verdade contida na afirmação “há vida na Terra” é apenas local e temporalmente verdadeira – e, por isso mesmo, contingencial. Todas as afirmações biológicas são contingenciais, inclusive aquelas que parecem leis gerais, como o fato de todo organismo vivo ter a mesma quiralidade molecular levógira e essencialmente a mesma composição (CHONPS). Se algo demanda a necessidade de verificação, trata-se de contingência. 4. Proposições possíveis, que são ou poderiam ser verdadeiras em determinadas circunstâncias. Por definição, tudo o que é verdadeiro é possível, mas nem tudo o que é possível é verdadeiro. A diferença entre “possível” e “contingencial” é que o contingencial é local e temporalmente factível, enquanto o possível não é necessariamente verdadeiro. “A vida pode existir em Marte” é uma proposição possível e talvez seja uma verdade contingencial. Tais questões são significativas e relevantes em filosofia da ciência, pois previnem equívocos clássicos, embora muito tentadores. Afirmar a vida como um imperativo categórico apenas porque ela existe na Terra e o Universo é muitíssimo grande é uma boa aposta, mas não há garantia lógica disso. Do mesmo modo, afirmar que a vida não faz parte de alguma lei universal desconhecida, é precipitado – pode muito bem ser uma lei que no momento desconhecemos. Se a vida decorre de alguma lei, entretanto, é um debate filosófico. Nenhuma validação científica há a este respeito. Para a astrobiologia, há várias questões que envolvem a dicotomia “necessidade” versus “contingência. Os que defendem que a vida é uma contingência cósmica dada a sua raridade, cometem um erro básico: coisas podem ser necessariamente verdadeiras, mesmo sendo raras. Os que defendem que a vida é uma necessidade cósmica considerando nosso próprio exemplo, o da Terra, pecam por ingenuidade. Dito tudo isso, e entrando no tema deste artigo, cabe afirmar que os planetas não “são” habitáveis, eles estão habitáveis, não se trata de uma questão de essência, mas de

circunstância que se conecta não apenas a um lugar, mas a um tempo. Um dos grandes problemas da busca por vida fora da Terra é a falta de sincronia. No presente momento, nosso planeta abriga vida inteligente capaz de procurar indícios biológicos em outros mundos, ou seja, temos tecnologia para isso. Na maior parte do tempo da existência humana, até tínhamos o interesse, mas não a tecnologia. Enquanto estamos aqui, mundos podem passar de efetivamente bióticos para pós-bióticos, ou seja, abrigavam vida e, por uma série de razões, deixaram de abrigar. Pode haver vida inteligente que se extingue antes do contato. Por isso, uma astroarqueologia muito bem pautada em geologia deve ser parte integrante do conjunto transversal de saberes que compõem a astrobiologia.

Estudo de caso: o planeta Marte

Marte é um dos objetos de estudo mais relevantes para a astrobiologia. Ele é considerado um planeta pós-biótico, ou seja, é possível que já tenha abrigado algum tipo de vida ao longo de sua história e, então, esta vida foi extinta. Ou talvez ainda a tenha, em nichos muito específicos, ou mesmo no subterrâneo, e não a tenhamos identificado. Ausência de evidência não significa evidência de ausência. Mas o que justifica apostarmos nosso tempo e recursos materiais numa investigação astrobiológica em Marte? Não seria meramente uma questão de fé, mas é uma questão de crença. Filosoficamente, há uma diferença substancial entre “fé” e “crença”. A fé é uma categoria da crença, a fé é uma crença sem evidência. Já a crença fundamentada se pauta em apostas, que podem ser acertadas ou se revelarem vãs, mas é impossível viver sem apostar. À crença fundamentada, damos o nome de “suspeita”, e embora o vulgo se valha desta expressão num sentido negativo, é perfeitamente razoável dizer que investimos tempo e dinheiro na investigação de Marte porque suspeitamos que ele tenha abrigado vida em seu passado remoto. E, por isto, apostamos. Investigar Marte não é mera questão de fé. O planeta vermelho nos apresenta evidências mínimas que justificam apostas em sua direção. Ainda que as formas de vida conhecidas sejam contingenciais, astrobiólogos se valem da aposta em fatores essenciais para a existência de vida: presença de água em estado líquido é um dos indicadores mais significativos. É possível um tipo de vida absolutamente distinto do nosso? Sim, esta é uma proposição possível. Não faz sentido, contudo, procurar por algo que deveras desconhecemos. Buscamos, portanto, um tipo de

vida que seja similar ao que conhecemos e, deste modo, justifica-se que a busca astrobiológica se norteie a partir de parâmetros tão delimitados.

Os períodos de Marte

O planeta Marte passou por transformações radicais em sua crosta, manto e núcleo ao longo de sua história. Definem-se três grandes períodos geológicos em Marte, baseados no mapeamento da superfície a partir de imagens espaciais. São eles: 1. Noaquiano, entre 4.1 e 3.7 bilhões de anos atrás (entre 4.5 e 4.1 bilhões de anos, definimos o período como sendo “pré-noaquiano”); 2. Hesperiano (a maior parte do Hemisfério Sul), entre 3.7 e 3 bilhões de anos atrás; 3. Amazônico (a maior parte do Hemisfério Norte, onde se encontram os maiores vulcões), de 3 bilhões de anos atrás até os presentes dias. Para o presente trabalho, nos interessa especificamente o período noaquiano. Por que estudar este período? Se considerarmos que Marte atualmente não apresenta vida evidente, ele já teve condições para isso. E é isso o que justifica a nossa aposta no planeta vermelho como um sítio investigativo interessante: seu passado remoto. O nome “noaquiano” é baseado em Noé, significa “Terra de Noé”. O período preciso é incerto, mas é de aproximadamente de 4.1 a 3.7 bilhões de anos atrás, quando Marte apresentava um vasto oceano em seu Hemisfério Norte (em média 5 km mais baixo que o Hemisfério Sul), o Oceano Boreal. É o período mais antigo, onde se encontram as maiores crateras. O período noaquiano foi caracterizado por alta taxa de impactos de meteoritos e asteroides, além de uma muito provável presença de água na superfície. Este foi o período no qual tanto Marte quanto a nossa Lua receberam o maior número de impactos espaciais. Neste período, a atmosfera marciana era muito mais densa do que a atual, e havia aquecimento suficiente para proporcionar ciclos de chuva. Havia a presença de lagos imensos e rios no Hemisfério Sul. Um oceano pode ter coberto as planícies de baixa altitude, ao Norte. Havia intensa atividade vulcânica na região conhecida como Tharsis (latitude 0 N, 260 L). O intemperismo das rochas na superfície produziu uma diversidade de minerais argilosos (filossilicatos) que se formaram sob condições químicas favoráveis à vida microbiana. O “quadrante noaquiano” está localizado em torno das coordenadas 45 S de latitude e 340 O de longitude do planeta vermelho.

Representação artística do planeta Marte no período noaquiano. Fonte: Sci-News.2

Há alguns anos, em junho de 2011, participei de uma oficina de exploração espacial na Universidad Internacional Menendez Pelayo, em Santander, Espanha. O curso girou em torno das investigações acerca do planeta vermelho. O objetivo do curso era estabelecer, dentro de sítios noaquianos, qual seria o mais interessante dentro de uma perspectiva astrobiológica. A NASA, na forma de professores presentes na oficina, queria saber qual sítio, dentre os quatro oferecidos, os alunos escolheriam para enviar a sonda Curiosity, do Mars Science Laboratory. O curso foi em junho, e a escolha se deu em julho. Evidentemente, a escolha da NASA não se deveu por causa deste curso, mas eles consideraram seriamente o que os estudantes avaliaram. Eis os tópicos fundamentais da investigação, conforme priorizados por Carl Pilcher, então diretor do Instituto de Astrobiologia da NASA, na oficina de exploração espacial: 1. Identificar sítios noaquianos relevantes para investigações astrobiológicas; 2. Determinar a natureza e inventariar componentes orgânicos de carbono; 3. Inventariar também as moléculas CHONPS, partindo do pressuposto de que existe uma relação de necessidade entre a existência de vida e estes elementos específicos; 4. Identificar ambientes que possam revelar os efeitos de processos biológicos. No que tange ao primeiro tópico (identificação de sítios), os critérios de seleção 2

Imagem coletada em http://www.sci-news.com/space/science-ancient-ocean-mars-larger-earths-atlanticocean-02568.html , link acessado em 09 de julho de 2015.

deveriam ser os seguintes: 1. Presença de filossilicatos e argilas; 2. Mineralogia e geologia diversificadas; 3. Evidência de água em estado líquido (ainda que no passado remoto). A ideia era: a partir de critérios astrobiológicos, onde seria mais conveniente fazer pousar uma sonda investigativa, e por que? Foram estabelecidos quatro locais de pouso como possíveis e interessantes para investigações astrobiológicas: as crateras Gale, Holder e Eberswalde, assim como a região conhecida como Mawrth Vallis.

Este mapa mostra os quatro locais que foram disponibilizados como possíveis (descritos em letras brancas), e as missões realizadas em Marte até 2011 (descritas em letras amarelas). Fonte: NASA.3

Durante o período noaquiano, em média uma cratera de até 100 km de diâmetro surgia a cada milhão de anos e, enquanto isso, diversos impactos menores ocorriam. Todos estes impactos fraturaram a crosta até uma profundidade de muitos quilômetros. Impactos poderosos foram os prováveis responsáveis pela remoção de grande parte da atmosfera marciana. É interessante destacar que se nesta época havia vida no planeta Marte, impactos poderosos podem ter arrastado microrganismos para nosso próprio planeta. Ou seja: não se descarta a hipótese de que a vida teria se originado em Marte e posteriormente migrado para a Terra. Estes impactos frequentes produziram uma zona de leito de rocha fraturada e 3

Imagem coletada em http://mars.nasa.gov/msl/mission/timeline/prelaunch/landingsiteselection/ , link acessado em 09 de julho de 2015.

brechas na crosta, chamadas de mega-regolitos. A alta porosidade e permeabilidade dos mega-regolitos permitiram a infiltração das águas subterrâneas. O calor gerado pelo impacto, reagindo com as águas subterrâneas, produziram sistemas hidrotérmicos que podem ter sido aproveitados por microrganismos termofílicos, se eles existiram. Saliento que alguns modelos computacionais de calor e transportes de fluidos na antiga crosta marciana sugerem que o tempo de vida destes sistemas hidrotermais poderiam durar centenas de milhares de milhões de anos após o impacto. As elevadas taxas de erosão durante o período noaquiano podem decorrer da precipitação e escoamento superficial. Muitos (mas não todos) os terrenos noaquianos em Marte são densamente cortados por redes de vales. Estas redes de vales se assemelham a bacias de drenagem dos rios terrestres. Embora sua principal origem (erosão hídrica, as águas subterrâneas minando, ou derretimento da neve) ainda esteja em discussão, redes de vales são raras em períodos marcianos posteriores, indicando condições climáticas únicas no período noaquiano: o planeta era extremamente quente e úmido. Mais de 200 leitos de lagos noaquianos foram identificados nas terras mais altas do Hemisfério Sul. Alguns são tão grandes quanto o Lago Baikal ou o Mar Cáspio, na Terra. Muitas destas imensas crateras noaquianas mostram canais que as interligam, de modo que é evidente que havia rios e lagos. Exemplos particularmente marcantes ocorrem nas crateras conhecidas pelos nomes de Holden e Eberswalde. Outras grandes crateras, como no caso da cratera Gale, mostram depósitos de sedimentos no fundo do que um dia foi um lago. A maior parte do Hemisfério Norte de Marte está 5 km abaixo das terras do Sul. Esta diferença existe desde o começo do período noaquiano. As águas do Sul correriam para as terras mais baixas ao Norte, formando o que seria um Oceano Boreal. O período noaquiano também foi muito intenso em termos de atividade vulcânica, sobretudo na região conhecida como Tharsis. O crescimento da região Tharsis provavelmente desempenhou um papel significativo na produção de atmosfera do planeta. Segundo uma estimativa, a região Tharsis contém cerca de 300 milhões de quilômetros cúbicos de material ígneo. Assumindo que o magma continha dióxido de carbono e vapor d’água em quantidade considerável, o vulcanismo em Tharsis pode ter produzido uma atmosfera de dióxido de carbono de 1.5 bar. Em muitas áreas do planeta vermelho, principalmente na região conhecida como Mawrth Vallis, impactos subsequentes expuseram áreas ricas em filossilicatos. Este é um ponto-chave, pois filossilicatos, para serem formados, exigem a presença de água líquida e de um ambiente alcalino para se formar. Ou seja: se há filossilicatos, houve água um

dia, e isto é condição necessária (embora não suficiente) que justifica o investimento das investigações astrobiológicas em nosso vizinho planetário. A seguir, descrevo as características dos quatro sítios apontados como relevantes pela NASA, e as considerações de minha equipe da oficina “Mars Unvealed”, ocorrida um mês antes do pouso da sonda Curiosity no planeta Marte. Ainda que não seja objetivo do presente trabalho abordar os detalhes de engenharia da Curiosity, convém informar como a sonda procedia em suas investigações astrobiológicas. Tendo o tamanho aproximado de um carro médio, a Curiosity inicialmente avalia a superfície da região com câmeras de alta resolução, em busca de indícios interessantes. Diante de imagens significativas, a sonda se vale de um laser infravermelho, a fim de analisar a assinatura espectral do material e, assim, identificar a composição química. Se os resultados forem intrigantes, a Curiosity utiliza um braço robótico para coletar material que será analisado por um microscópio e um espectrômetro de raios-X. Por fim, se o material apresentar indícios astrobiológicos significativos, a sonda introduz o material num instrumento interno denominado CheMin (abreviação de Chemistry and Mineralogy).

Cratera Gale

Cratera Gale. Fonte: Wikipedia.4

A cratera Gale (que terminou sendo escolhida como local de pouso da Curiosity) se localiza a 5.4°S de latitude e 137.8°E de longitude. Possui um diâmetro de 154 km, e foi formada no período noaquiano, ou seja, tem entre 3.5 e 3.8 bilhões de anos. Sendo uma típica cratera noaquiana, é uma excelente candidata para investigações astrobiológicas e apresenta múltiplos hidrominerais. Estes são os prós. Os contras, definidos por minha equipe, referem-se à presença de abundantes óxidos de ferro, que podem comprometer a conservação de matéria orgânica. Este é o principal aspecto contrário. Na época, todos os engenheiros presentes na oficina demonstraram grande receio no que dizia respeito à performance da Curiosity na cratera Gale, mais especificamente por conta da presença de uma montanha com 5.5 km de altura (Aeolis, informalmente conhecida como “Monte Sharp”). Considerando missões anteriores ao planeta vermelho, estes engenheiros temiam que a sonda quebrasse ao tentar se mover no monte Aeolis. É claro, eles se pautaram em experimentos passados, pois os detalhes de inovação de engenharia da Curiosity não foram alvo de maior aprofundamento nesta oficina (e nem são objeto de estudo do presente trabalho). Basta dizer que os engenheiros da Curiosity aprenderam com os erros das missões anteriores, e seria muito difícil que a nova sonda capotasse ou emperrasse por qualquer mínimo problema.

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Imagem obtida através do link https://en.wikipedia.org/wiki/Gale_(crater)#/media/File:Topographic_Map_of_Gale_Crater.jpg , acesso em 11 de julho de 2015.

Cratera Holden

Cratera Holden. Fonte: NASA.5

A cratera Holden possui 140 km de diâmetro e se localiza a 26° 24′ 0″ de latitude S e 34° 0′ 0″ de longitude O. Apresenta diversos prós que a tornam adequada à investigação astrobiológica, dentre os quais destaco: evidências de atividade fluvial intensa no passado; a presença de sedimentos finos indicam que a cratera abrigou um lago calmo; dentre os quatro sítios, é um dos que apresentam grande depósito de argilas; é o maior leque aluvial. Por fim, ressalto que a cratera Holden foi formada no fim do período noaquiano e no início do hesperiano, ou seja, permitiria a compreensão da 5

Imagem extraída do link http://mars.nasa.gov/msl/mission/timeline/prelaunch/landingsiteselection/holdencrater2/ , acesso em 12 de julho de 2015.

transição entre períodos. Entretanto, é esta singularidade de ter surgido na transição entre períodos que estabelece o principal argumento contra a escolha da cratera Holden para o pouso da Curiosity: não se compreende ainda muito bem a duração do ambiente no qual os depósitos de argila foram formados. Cratera Eberswalde

Delta da cratera Eberswalde. Fonte: Malin Space Science Systems.6

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Imagem extraída do link http://www.msss.com/mars_images/moc/2005/09/20/eberswalde/ , acesso em 13 de julho de 2015.

A cratera Eberswalde, também conhecida como Holden NE, localiza-se a Nordeste da cratera Holden, em 24° 0′ 0″ de latitute S e 33° 0′ 0” de longitude O. Possui 65.3 km de diâmetro e apresenta o que muito provavelmente foi o delta de um imenso rio. Abundantes minerais de argila foram identificados na região. Não foram identificados muitos filossilicatos, em contrapartida. Dentre os quatro sítios apontados como possíveis, a cratera Eberswalde é a região mais jovem. A despeito de ser o local mais jovem, foi votado como segundo lugar para o pouso da Curiosity, pela equipe do Mars Science Laboratory, a partir da consideração de que apresenta o delta de um antigo largo rio.

Mawrth Vallis

Mawrth Vallis. Fonte: NASA.7

A região conhecida como Mawrth Vallis se localiza na latitude 22.3°N e na longitude 343.5°L e é um antigo canal de escoamento de água riquíssimo em argilas e filossilicatos. Esta região, desponta com a mais intensa assinatura espectral de argilas em todo o 7

Imagem extraída do link http://mars.nasa.gov/msl/mission/timeline/prelaunch/landingsiteselection/mawrthvallis2/ , acesso em 13 de julho de 2015.

planeta, de acordo com o espectrômetro Ômega da ESA. A presença de argilas é altamente desejável para investigações astrobiológicas, pois indicam a presença de água em abundância no passado e, além disso, minerais argilosos preservam com facilidade vida microscópica. Em verdade, Mawrth Vallis parece ter sido uma região varrida por inundações imensas, num quente passado noaquiano. Considerando que Mawrth Vallis é um dos vales mais antigos do planeta Marte, caso a vida tenha algum dia existido neste mundo, esta região desponta como um excelente candidato para investigações astrobiológicas.

A escolha

Por ocasião da oficina Mars Unvealed, o então diretor do Instituto de Astrobiologia da NASA, Carl Pilcher, foi bastante enfático ao afirmar que qualquer um dos quatro sítios sugeridos seriam ótimas alternativas para um eventual pouso da sonda Curiosity. Não havia um “lugar certo” e um “lugar errado”, não se tratava de verificar qual equipe acertaria uma resposta já pré-estabelecida. No que tange a uma missão deste tipo, o que nos restam são apostas, ou seja, uma crença fundamentada a partir dos dados anteriormente obtidos por meio de análises com espectrômetros. Como é amplamente sabido, a região escolhida para o pouso da Curiosity foi a cratera Gale. O pouso ocorreu no dia 26 de novembro de 2011. Os temores dos engenheiros das diversas equipes da oficina quanto aos riscos de performance da sonda no Monte Sharp não se concretizaram. Mawrth Vallis e a cratera Gale despontaram, ao longo da oficina, como o lugar preferido de todas as equipes. Como nos foram solicitados dois lugares dentre os quatro, praticamente todos os grupos escolheram Mawrth Vallis e Gale, embora a preferência do primeiro lugar variasse de um grupo para outro. No caso específico de meu time, composto por estudantes de biologia, engenharia, física e astrofísica, a preferência tendeu na direção de Mawrth Vallis, e esta é a região que recomendamos para missões futuras, pelas razões abaixo elencadas: 1. Numa perspectiva astrobiológica, a crosta noaquiana em Mawrth Vallis é o mais provável locus de indícios de existência de vida no passado; 2. Rochas antigas restringem as condições de formação de Marte, assim como seu potencial para a vida prebiótica; 3. Elucida o “capítulo faltante” da história da vida na Terra; 4. Elevado potencial de conservação de material orgânico nas argilas;

5. As vantagens dos outros sítios marcianos são em grande parte abrangidas por Mawrth Vallis. Ou seja: quase tudo que há em Gale, Holden e Eberswalde, há em Mawrth Vallis, com a vantagem adicional de que, em Mawrth, a assinatura de argilas é a mais intensa conhecida, além de ser a região que foi mais atingida por inundações incessantes. Não afirmo, aqui, que a escolha da cratera Gale tenha sido um erro da NASA. Conforme diversas vezes repetido pelo professor Pilcher, todos os quatro sítios eram astrobiologicamente interessantes. Entretanto, não há como ignorar que escolhas deste tipo não se dão apenas por dados objetivos e científicos. Tudo gira em torno de políticas, e diferentes grupos fazem lobbies distintos por razões muito particulares, em prol de uma escolha ou outra. A cratera Gale, por exemplo, foi preterida pela missão anterior. Além disso, os engenheiros da Curiosity estavam bastante empolgados diante da possibilidade de testar a nova sonda num lugar tão íngreme quanto a cratera Gale e o Monte Sharp – ou seja, o temor dos estudantes de engenharia da oficina era justamente o maior desejo dos engenheiros da NASA. No fim das contas, não apenas o critério astrobiológico contou, mas também a expectativa do desafio tecnológico. Em missões futuras, sustento a conclusão de minha equipe, em 2011: que uma eventual nova sonda seja enviada para Mawrth Vallis. Se um dia houve vida no planeta vermelho e se ainda houver, este vale devastado por dilúvios recorrentes pode nos revelar muito mais do que hoje sabemos. Como em tudo, se trata de aposta. E uma aposta que, se bem esmiuçada, justificará todo o investimento em exploração espacial, estimulando futuras missões tripuladas e a criação de laboratórios geridos in situ por agentes humanos. Como diz a velha máxima latina, aude sapere: “ousar provar” e ao mesmo tempo “ousar experimentar”. É preciso ousadia para conhecer, e o mundo (seja lá qual for), é dos que ousam.

Bibliografia Abramov, O.; Kring, D.A. (2005). “Impact-Induced Hydrothermal Activity on Early Mars”. Bishop, J. et al. (2008). “Phyllosilicate Diversity and Past Aqueous Activity Revealed at Mawrth Vallis, Mars”. Science. Grotzinger, John P. (2014). "Habitability, Taphonomy, and the Search for Organic Carbon on Mars". Science. Jet Propulsion Laboratory. (2011) “Mars Science Laboratory: Curiosity's Landing Site: Gale Crater". NASA.

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