Marvila moderna: uma cidade operária ergue-se a oriente

June 7, 2017 | Autor: J. Santana da Silva | Categoria: Industrial History, Urban History, Lisbon (Portugal)
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Marvila moderna Uma cidade operária ergue-se a oriente

e a sua capacidade produtiva agrícola eram um polo de atração para atividades industriais que tivessem alguma ligação àquelas matérias-primas, facilmente disponíveis nesta zona. Mas o aproveitamento que já se fazia das terras não foi a verdadeira força motriz da atenção que começou a dedicar-se à zona oriental e, em particular, à área que iniciava em Xabregas e seguia para norte e para o interior. O principal atrativo era o espaço. O espaço disponível e aberto que não se encontrava em Lisboa e que era evidente nas propriedades de Marvila, construídas com o objetivo de serem utilizadas enquanto “quintas de recreio”. Assim, por volta do final do século XVIII, começam a instalar-se na Lisboa Oriental as primeiras indústrias, ainda manufatureiras, de sabão, curtumes, trefilaria e açúcar. A tendência era para o aproveitamento de “quintas que se encontravam degradadas desde o terramoto de 1755, como era o caso, entre outras, da Quinta dos Alfinetes”4. Esta tendência manteve-se até ao século XX, tendo mesmo sido assumido, pelos poderes públicos, um “destino industrial” para o Oriente lisboeta. Uma caraterística que, nos anos oitenta e noventa desse século, com o encerramento de muitas fábricas, começou a ser menos evidente.

Os interesses do tabaco estavam profundamente ligados aos do sabão, para cujo fabrico era necessário o azeite.

João Santana da Silva historiador

Gravura da antiga fábrica de tabaco de Xabregas, que se instalou no edifício do extinto Convento de Xabregas e aí se manteve até à década de 1960. [Arquivo Municipal de Lisboa – Estúdio Mário Novais, PT/AMLSB/MNV/S01462]

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A póvoa urbana por aqui tardou. Fêz-se entre quintas e rincões onde, primeiro, foram os nobres e os frades a edificar, e logo o povo maneirinho, à sombra de uns e de outros […]. Vai entre um passado só de vestígios e um presente febril: as fábricas tomaram o lugar dos mosteiros […]. Por aqui – é assim. Hortas, quintas, jardins, herdades; fortificações, solares, ermidas e portas – foram sacrificadas à urbanização e aos cais acostáveis […]. E por Xabregas, Beato e Grilo – alfobre de mosteiros –, sítios onde as fábricas, os armazéns, os cais e as pontes se sucedem e confundem gritando trabalho […]; E pelo Poço do Bispo, com o seu bate-bate de arcos de aduelas, e por Marvila, ribamar entre hortas, que teima em subsistir; E enfim, por esta área onde o eco do passado se afoga no tumulto ruidoso do resfolegar das máquinas, e onde o sino foi substituído pelo silvo das oficinas1.  Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa A I N D U S T R I A L I Z A Ç Ã O E M P O R T U G A L E N O O R I E N T E L I S B O E TA

1  ARAÚJO, Norberto de – Peregrinações em Lisboa. 2.ª edição. Vol. XV. Lisboa: Veja ( Coleção Conhecer Lisboa ), 1993, pp. 7-10. 2  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Lisboa: Livros Horizonte, 1999, p. 14. 3  Idem, ibidem.

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Se no final do século XIX chegasse a Marvila um visitante de meados do século XVIII, vê-la-ia irreconhecível, de tal modo foram as transfigurações no território efetuadas entre esses períodos. Bem mais provável seria um habitante atual da freguesia viajar para trás no tempo e identificar vários locais e edifícios que se tornaram icónicos e muito presentes no seu quotidiano – decididamente referências arquitetónicas muito fortes para si, para os seus pais e avós –, mesmo que hoje muitos se encontrem em ruínas. De facto, tudo começou a mudar a partir do século XVIII, já que o povoamento de Marvila se intensificara, impulsionado por vários fatores. Para além de acontecimentos que afetaram todo o país, aquele século é marcado por dois eventos decisivos para a Marvila atual: por um lado, multiplicam-se as quintas, na sua maioria criadas em parcelas de outras maiores; por outro, começam a verificar-se os primeiros passos da industrialização da zona oriental, com a edificação das primeiras fábricas, tendo sempre em vista a proximidade

ao Tejo e a facilidade de acessos que tal localização proporcionava às indústrias. No livro Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Deolinda Folgado e Jorge Custódio identificam em toda a zona oriental de Lisboa a “gradual mutação dos espaços rurais em empreendimentos manufactureiros e fabris”, mutação que tem o seu verdadeiro início ainda no Antigo Regime, associada “ao desenvolvimento do comércio atlântico e ao florescimento de uma burguesia comercial ligada ao Brasil e às matérias-primas coloniais – tabaco, algodão, açúcar”2. Os interesses do tabaco estavam profundamente ligados aos do sabão, para cujo fabrico era necessário o azeite. “Em toda a área agrícola do termo de Lisboa”, continuam os autores, “havia olivais e lagares de azeite em abundância que permitiriam fixar algumas regras de exploração deste combustível, no tempo de Pina Manique, para a iluminação pública de Lisboa”3. As próprias caraterísticas do solo

O século XVIII trouxe à Europa os primeiros passos para abrir portas a um universo produtivo industrial. À exceção da Grã-Bretanha e de alguns outros exemplos pontuais, este processo de modernização e transformação do espaço económico europeu fez-se lentamente em todo o continente. A realidade europeia setecentista era sobretudo rural, continuando a agricultura a ter um peso determinante no quadro económico dos países. Era a principal atividade na qual as populações encontravam ocupação e sustento. É apenas próximo do século XIX que, beneficiando do aumento da produtividade, da maior circulação comercial e da diversificação das fontes de crédito, começam a surgir na Europa modelos primitivos de fábricas, na forma de pequenas oficinas artesanais. A juntar a estas circunstâncias, é o grande crescimento populacional deste período que dará quer a mão-de-obra quer a necessidade impulsionadora para a produtividade fabril aumentar. E com esta, o próprio tamanho das fábricas.

Nesse contexto, Portugal não pautou o seu ritmo de industrialização de forma muito diferente dos restantes países. Na alvorada do século XVIII, durante o reinado de D. João V, são os setores do papel, dos vidros, dos curtumes, dos têxteis e da metalurgia ( de produção de armas e munições ) que beneficiam no país de algumas fábricas de maiores dimensões e da aplicação de melhores qualificações técnicas. Um crescimento só possível graças às facilidades criadas pela coroa, que concedia a estes empresários – na sua maioria, estrangeiros – isenções fiscais e exclusividade de fabrico por longos períodos ( até trinta anos ). Mau grado os efeitos secundários da intervenção da coroa na economia, foi o protecionismo que permitiu à indústria portuguesa não perder de vista a média do desenvolvimento industrial europeu, garantindo-lhe capacidade competitiva. Ainda assim, à altura da morte de D. João V, em 1750, a indústria portuguesa estava numa posição de desgaste e, no caso de muitas unidades fabris, à beira da falência5.

4  ABEL, Marília; CONSIGLIERI, Carlos – O formoso sítio de Marvila. Lisboa: Junta de Freguesia de Marvila, 2004, p. 26. 5  PEDREIRA, Jorge – “A indústria”, in LAINS, Pedro; SILVA, Álvaro Ferreira da ( org. ) – História Económica de Portugal ( 1700-2000 ). Volume I: O Século XVIII. 3.ª edição. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2010, pp. 193-196.

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Último vestígio da quinta construída no século XVII pelo 1.º marquês de Marialva, foi deste antigo mirante que D. Pedro V assistiu à passagem do primeiro comboio Lisboa-Carregado. [Nuno Alexandre Jorge, 2014]

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a produção manufatureira; promove-se a requalificação técnica das fábricas portuguesas; e adotam-se medidas mercantilistas que bloqueiem a saída de capital do país6. Construiu-se assim um terreno fértil para a criação ou revitalização de algumas das maiores fábricas que o país viu, como a Real Fábrica das Sedas em Lisboa ( reorganizada em 1757 ) ou a Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande ( fundada em 1769 pelos irmãos Stephens, grandes industriais ingleses ). Aliás, a constituição da Junta do Comércio em 1770 estará na origem de muitos destes empreendimentos industriais, que beneficiaram dos privilégios e contratos de exclusividade concedidos pela coroa para fazer face à competição industrial e comercial estrangeira. No reinado de D. Maria I houve uma gradual retração do papel interventivo do Estado na economia. No entanto, o estabelecimento de um mercado ultramarino e a forma privilegiada com que Portugal passou a comercializar os seus produtos no Brasil contribuíram para que o impulso pombalino não esmorecesse. O desenvolvimento desta colónia sul-americana transformou-a num mercado consumidor dos produtos portugueses, a uma escala sem par no resto da Europa. Não conseguindo competir com artigos de países estrangeiros já com mercado garantido – sobretudo os tecidos orientais ( algodão ) e britânicos ( lanifícios ) –, a indústria portuguesa encontrou no Brasil a oportunidade de escoar a produção, aumentar as exportações e estimular a indústria. Foi o que sucedeu. Como afirma Jorge Pedreira, “as exportações para as colónias, a par da substituição de importações, desempenharam um papel relevante na promoção do desenvolvimento industrial”7. Um setor em particular da indústria portuguesa viu a sua dimensão aumentar vertiginosamente: o dos tecidos estampados, que substituíram, no mercado ultramarino, os produtos equivalentes vindos da Índia ( de uma única fábrica existente em 1777, passaram a laborar 23 em 1789 e mais de 40 no início do século XIX )8. Apesar de nunca se aproximar do pelotão da frente na Europa no que se refere a inovações técnicas, a indústria portuguesa cresceu, proliferou e, nos finais do século XVIII, passou de uma natureza sobretudo oficinal para uma estrutura fabril, com dezenas ou centenas de operários a laborar no mesmo espaço. Nesta transformação teve Lisboa uma posição preponderante. E, dentro da capital, teve relevo a zona ribeirinha com as suas novas fábricas. Quer a ocidente, com Alcântara e Belém, quer a oriente, a partir de Santa Apolónia até Cabo Ruivo. A presença de algumas manufaturas no lado oriental de Lisboa já vinha de períodos anteriores, desde o início da época moderna, ligada à génese da fábrica de armamento do Arsenal do Exército, com a fundição e tercenas ( estaleiros ) de artilharia das Portas da Cruz – desenvolvidas pelo rei D. Manuel por volta dos anos de 1515-1521 – ou o fabrico de explosivos na Casa da Pólvora. Nos séculos seguintes, inventariaram-se diversas oficinas e pequenas fábricas nos arredores: fornos de vidro; olarias ( cujo exemplo mais

À medida que nos aproximamos do final do século xvııı, verifica-se uma tendência crescente para instalação das novas fábricas mais a oriente:

Passado, presente e futuro vivem lado a lado em Marvila: em primeiro plano, os jogadores das camadas jovens do Clube Oriental de Lisboa defrontam um adversário num dos campos do clube; em segundo, o palácio da Quinta dos Alfinetes, onde terá funcionado uma trefilaria no século XIX; ao fundo, os prédios dos novos bairros da freguesia. [Francisco Albergaria da Silva – Memoriar, 2014]

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Contudo, na segunda metade do século, os ritmos de desenvolvimento alteram-se. O período pombalino trará um grande impulso à atividade fabril portuguesa, não sendo por acaso que as origens das fábricas mais antigas e de maior renome no país coincidam com estas décadas. Procurando contrariar o peso que a Grã-Bretanha tinha na balança comercial portuguesa e os devastadores efeitos do terramoto de 1755, o marquês de Pombal reforçará o papel do Estado na economia através de uma extensa e duradoura política de “fomento” nacional: reduzem-se drasticamente as importações ( a entrada de produtos ingleses desce cerca de 40% entre 1765 e 1770 ); estimula-se

conhecido será a Fábrica Real da Bica do Sapato ); fornos de cal e de carvão; curtumes9. Mas, à medida que nos aproximamos do final do século XVIII, verifica-se uma tendência crescente para instalação das novas fábricas mais a oriente, já que o enorme crescimento urbano lisboeta – e, como consequência, da sua densidade populacional – deixava pouco espaço para projetos industriais ambiciosos, que se viravam para a zona ribeirinha e, em especial, para a zona das atuais freguesias do Beato, de Marvila e dos Olivais. O setor das estamparias foi um dos que procurou esta cintura litoral: “A zona ribeirinha, ao longo do Tejo e do curso final das ribeiras suas afluentes, de Sacavém até Pedrouços, é a mais procurada e nela se vêm implantar cerca de metade das estamparias nacionais, sobretudo em Xabregas, Chelas e junto à ribeira de Alcântara”10. Ralph Delgado, que se debruçou sobre a história de Marvila e da freguesia dos Olivais, enumera algumas das indústrias do Oriente mais em pormenor em A Antiga Freguesia dos Olivais: “Já havia indústrias instaladas nos Olivais, realmente em tempos muito recuados: de sabão e de preparação de açúcar, na antiga Rua Direita do Poço do Bispo, em 1762; de curtumes, na Quinta das Varandas, em 1779; de marroquins, na mesma altura, na Quinta do Guilherme Adam; de

pregos, em 1798, na Quinta dos Pregos, aos Moinhos de D. Garcia; de trefilaria, na Quinta dos Alfinetes, também no mesmo ano; de chitas, em 1804, na Quinta do Feijão; de marroquins, na Quinta dos Quatro Olhos, também em 1804, e de ourivesaria e esmalte, em 1825; de vinagre, em 1833, na Quinta dos Ingleses, na Rua de Vale Formoso de Baixo, onde hoje se fabricam tecidos; e, nos fins do século XIX, de rolhas de cortiça, na Matinha, de curtumes, na Quinta dos Serrões, e de tecidos, na Quinta do Castelo”11. Com a entrada do século XIX, o processo de industrialização acelerará. Apesar de nunca se ter verificado em Portugal uma verdadeira “revolução industrial”, nos termos em que tal sucedeu em realidades como a da Grã-Bretanha ou dos Estados germânicos, é possível identificar alguns pontos de viragem no início do século, estimulados por mudanças políticas e pelo aparecimento de novas infraestruturas que vão alterar os horizontes de crescimento industrial e urbano. O economista e historiador Armando Castro, mesmo admitindo que o nível de desenvolvimento industrial em Portugal era muito baixo naquele século, confirma que “a importância económica da pequena produção no conjunto da economia industrial vai diminuindo, ao passo que crescem o valor e o peso específico da grande indústria”12.

6  Idem, pp. 196-197. 7  Idem, p. 203. 8  Idem, ibidem. 9  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, p. 18. 10  PEDREIRA, Jorge Miguel – “Indústria e negócio: a estamparia da região de Lisboa, 1780-1880”. Análise Social. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Vol. XXVI, n.os 112-113 ( 1991 ), pp. 537-559, p. 544. 11  DELGADO, Ralph – A Antiga Freguesia dos Olivais. Lisboa: Imprensa Municipal de Lisboa, 1969, p. 32. 12  CASTRO, Armando – A Revolução Industrial em Portugal no Século XIX. 4.ª edição. Porto: Limiar, 1978, p. 73.

de sabão, de açúcar, de curtumes, de marroquins, de pregos, de trefilaria, de chitas, de ourivesaria e esmalte, de vinagre, de rolhas de cortiça e de tecidos. 39

A S FÁ B R I C A S N A M E TA M O R F O S E

Gravura representando a inauguração das obras do caminho de ferro em Portugal, em 7 de maio de 1853, publicada num jornal britânico. Note-se que a inauguração do primeiro troço completo – e, como tal, data oficial do primeiro caminho de ferro português – se faria apenas a 28 de outubro de 1856.

13  LAINS, Pedro – “A indústria”, in LAINS, Pedro; SILVA, Álvaro Ferreira da ( org. ) – História Económica de Portugal ( 1700-2000 ). Volume II: O Século XIX. 3.ª edição. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2012, pp. 267-270. 14  RAMOS, Rui ( coord. ) – História de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros, 2009, p. 524. 15  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, p. 17. 16  MATOS, José Sarmento; PAULO, Jorge Ferreira – Caminho do Oriente: Guia Histórico. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, Vol. I, pp. 9-10.

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As grandes transformações de Marvila serão feitas a par do normal decurso da evolução política, social e económica do próprio país, e nunca desligadas deste. Esta ligação é bem visível à entrada do século XIX, com nova passagem dos terrenos para as mãos de outro grupo social. Assim como antes se verificou uma transmissão de quintas e edifícios das ordens religiosas e de membros do clero para as famílias nobres, nesta altura assistir-se-á à passagem destas propriedades para as mãos de elementos da nova burguesia, testemunhando a ascensão de novas fortunas em Lisboa e no país. A par dessa situação, a extinção das ordens religiosas em Portugal, por decreto de 30 de maio de 1834, leva à incorporação dos bens móveis e imóveis de várias destas instituições, passando para o Estado “[o]s bens dos Conventos, Mosteiros, Collégios, Hospicios e quaesquer Casas de Religiosos das Ordens Regulares”. Também os das ordens militares e alguns da própria família real, como os bens da Casa das Rainhas e os da Comissariaria-Geral da Terra Santa, serão incorporados entre 1833 e 183517. Estes bens serão vendidos publicamente nos anos seguintes para amortizar a dívida pública, permitindo a vários investidores particulares e com capital adquirir imóveis em todo o país para, entre outras aplicações, fazer obras de recuperação, criar estabelecimentos comerciais ou instalar fábricas modernas. No século XIX, vários antigos conventos, propriedades eclesiásticas ou edifícios da aristocracia darão lugar a indústrias e a habitações operárias no país. Assim, “comerciantes manufactureiros transferem as suas residências secundárias para as antigas quintas que, entretanto, haviam comprado aos não menos antigos proprietários arruinados e onde viriam a instalar as primeiras fábricas”, fenómeno que se acentua logo após a guerra civil de 1832-3418. Surgem assim, na primeira metade do século XIX, novas quintas em Marvila, já não da nobreza, mas

Entre 1813 e 1822, o número de fábricas duplicara em Portugal, continuando a crescer nas décadas seguintes. A introdução no país da máquina a vapor para utilização industrial, em 1835, terá dado um impulso adicional para o desenvolvimento de alguns setores, apesar de a sua utilização não se ter difundido para a maioria das fábricas. Independentemente do nível de mecanização destas unidades, o número de operários recenseados em Lisboa aumentou muito na primeira metade do século XIX. Em 1829-1830, existiam 909 operários a laborar em fábricas com mais de dez trabalhadores. Em 1852, este número tinha-se elevado para 501213. Outras revoluções sociais iam tendo o seu espaço, como foi o caso do caminho de ferro em Portugal, inaugurado a 28 de outubro de 1856 ( troço de Lisboa ao Carregado ). “Nas décadas seguintes”, afirma o historiador Rui Ramos, “o Estado promoveu, em associação com empresas privadas, a expansão de uma rede de transportes que, com renovações e acrescentos, seria a base da circulação no país até cerca de 1970”14. Para além de ter criado uma nova vantagem para as indústrias modernas que começavam a instalar-se na zona oriental, o caminho-de-ferro “funcionou como uma cunha de ligação da cidade, entre o todo e as diversas partes, Alcântara com Xabregas, o centro com a periferia, ajudando à circulação dos produtos e da população trabalhadora”15. Aliás, alguns autores consi-

de comerciantes e industriais, de “homens de negócio em ascensão”. Quintas como as do Cosme, do Prestes, do Troca, do Desterro, do Quintim, das Amendoeiras, do Casal Ribeiro, do Lopes, do Magalhães, da Valada ou a da Viúva Pimentel19. A própria delimitação do território oriental de Lisboa sofrerá várias alterações durante o século XIX. E, com elas, muda também a identidade geográfica de Marvila. No século XVIII, a noção de “Lisboa Oriental” aludia sobretudo ao espaço urbanizado entre o Terreiro do Paço ( ou Praça do Comércio ) e Santa Apolónia. O bairro de Alfama, segundo alvará de 1742, incluía uma extensa faixa ribeirinha que ia até ao Convento de São Bento de Xabregas. Já a organização paroquial de 1755 indicava Xabregas como a paróquia mais a oriente das freguesias de Lisboa, abrangendo os conventos dos Grilos e das Grilas e o vale de Chelas. Só com a reorganização administrativa de 1852 ( e a construção da estrada de circunvalação em redor das freguesias mais centrais ) Marvila será objeto de maiores mudanças, ao ser integrada no concelho dos Olivais, embora até ao Poço do Bispo o território continue a pertencer a Alfama. Integrada neste concelho independente da capital, Marvila verá nascer novas indústrias nos seus terrenos. Com a reforma administrativa de 18 de julho de 1885, o concelho dos Olivais é finalmente extinto, sendo as suas freguesias integradas em Lisboa20. De notar que, neste período, Marvila ainda não tem estatuto administrativo de freguesia. Com o caminho de ferro a pautar uma nova dinâmica, a industrialização e o crescimento populacional no território de Marvila explodem. A segunda metade do século XIX trará um dinamismo mais acentuado a todo o polo fabril de Xabregas, vale de Chelas, Beato, Poço do Bispo, Marvila e Braço de Prata e um novo fôlego às suas tanoarias e armazéns de vinhos.

17  SILVEIRA, Luís Espinha da – “A venda dos bens nacionais ( 1834-43 ): uma primeira abordagem”. Análise Social. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Vol. XVI, n.os 61-62 ( 1980 ), pp. 87-110. 18  ABEL, Marília; CONSIGLIERI, Carlos – O formoso sítio de Marvila…, pp. 26-27. 19  CONSIGLIERI, Carlos; RIBEIRO, Filomena; VARGAS, José Manuel; ABEL, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental: São João, Beato, Marvila, Santa Maria dos Olivais. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa – Pelouro da Educação, 1993, p. 106. 20  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 13-14.

deram mesmo a inauguração do caminho de ferro como o acontecimento decisivo para o crescimento exponencial da indústria na Lisboa Oriental, dividindo a história desta zona entre o antes e o depois da rede ferroviária, já que antes “a tonalidade geral da zona mantinha-se essencialmente rural, com um ou outro polo urbano rudimentar – como Santa Apolónia, Xabregas ou Marvila. Eram os conventos e as quintas que pontuavam e davam o tom ao sítio, profundamente ligado, assim, à estrutura social e económica do Antigo Regime. É sobre esse tecido muito específico que a industrialização se vai inserir, por vezes readaptando edifícios anteriores a novos usos, numa ‘promiscuidade’ criativa que para sempre marcou esta parte de Lisboa e lhe concede no todo urbano um lugar à parte”16.

1835 28/10/1856 Introdução da máquina a vapor para utilização industrial em Portugal

Inauguração do caminho de ferro em Portugal ( troço de Lisboa-Carregado )

Aspeto da Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca em pleno funcionamento, na doca do Poço do Bispo, em meados do século XX. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

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DO TERRITÓRIO

tuíra o labor especializado dos tecelões manuais, mantendo centenas de trabalhadores em condições bastante precárias24. A título de exemplo, as operárias femininas da Fábrica de Xabregas, empresa onde os salários eram dos mais elevados relativamente a outras localidades, recebiam entre 160 e 300 réis por dia em 1881, mal chegando, ao fim de quatro semanas, para pagar a renda mensal de uma habitação25. As fábricas ligadas à indústria militar, de armamento e munições, também povoaram o horizonte fabril oriental. O Estado autorizara a ocupação das dependências do Convento de Chelas pelo Ministério da Guerra, onde edificou a Fábrica de Pólvora sem Fumo ( 1898 ). Esta aplicou, com sucesso, o inovador processo de fabrico criado pelo capitão do exército português António Xavier de Correia Barreto26. A passagem para o século XX trará uma certa “corrida” aos armamentos, atitude fortemente influenciada pelos acontecimentos nas colónias portuguesas em África, ameaçadas por outras potências. Deve ser tido em conta o peso do ultimatum britânico de 1890 nesta intensificação da produção militar. Neste contexto, ergue-se ainda a moderna Manutenção Militar de Lisboa, no final do século XIX, num edifício da Rua Direita do Grilo onde já funcionavam, desde 1861-62, as padarias que forneciam pão aos militares portugueses. A mais importante unidade fabril neste setor, no entanto, talvez tenha sido a Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata ( ver caixa ), que funcionou desde 1908-09 até à década de noventa do século XX e se afirmava como uma das mais inovadoras no que se referia a maquinaria e métodos de fabrico27.

Saída dos trabalhadores da Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata, em meados do século XX. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

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21  CUSTÓDIO, Jorge – “Xabregas ( Indústria )”. In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo ( dir. ) – Dicionário de História de Lisboa. Mem Martins: Gráfica Europam, 1994, pp. 967-971, p. 968. 22  Idem, ibidem. 23  Idem, pp. 968-969. 24  MÓNICA, Maria Filomena – Artesãos e Operários: Indústria, Capitalismo e Classe Operária em Portugal ( 1870-1934 ). Lisboa: Edições do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1986, p. 187. 25  Idem, p. 193. 26  CONSIGLIERI, Carlos; RIBEIRO, Filomena; VARGAS, José Manuel; ABEL, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental: São João, Beato, Marvila, Santa Maria dos Olivais. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa – Pelouro da Educação, 1993, pp. 106-107. 27  CUSTÓDIO, Jorge – “Xabregas ( Indústria )”. In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo ( dir. ) – Dicionário de História de Lisboa…, pp. 967-971. Ver também FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, pp. 167-176.

O vale de Chelas, pela confluência de estradas, ferrovias e fábricas que apresenta desde o século XVIII, é considerado “a origem da industrialização da zona oriental da capital”21. A sua primeira concentração fabril será no setor têxtil, em especial nos lanifícios, no fabrico de algodões e nas estamparias. A estamparia de António Ignácio de Almeida, que funcionou de 1783 a 1834 na Quinta dos Toucinheiros e, num segundo momento, na Quinta do Teixeira, parece ser um dos primeiros exemplos. Há documentos relativos a estamparias na Calçada de Chelas desde 1791 ( propriedade de António Mercadé ), na Quinta da Misericórdia desde 1786 ( de Bernardo José Pacheco ), num palácio junto à Estrada de Chelas em 1785 ( da empresa Rocha & Loureiro ), entre muitas outras. Apesar de a maioria destas fábricas não durar muitas décadas, é relevante esta especialização na estamparia – de braço dado com a tinturaria – que durará até ao último quartel do século XX22. O setor têxtil terá ainda outro grande ponto de atração de mão-de-obra operária, durante o século XIX, com a Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense, que se instalara no Convento de São Francisco de Xabregas logo após a extinção da ordem religiosa que o detinha, em 1834 ( em 1844, após um incêndio nas instalações, sairá do local para dar lugar à Fábrica da Companhia de Tabacos de Xabregas ). A Companhia dos Algodões de Xabregas, ou “Fábrica da Samaritana”, fundada em 1857-58, também funcionou e deu emprego a muitos trabalhadores da zona ( chegou a ter 513 operários no último quartel do século XIX ) até 1948, data de um grande incêndio que obrigou a empresa a fechar portas. De referir ainda a Companhia Oriental de Fiação e Tecidos ( ou “Fábrica das Varandas”), criada em 1888, a fábrica de lanifícios de Ignacio de Magalhães Basto & C.ª, a fábrica João Lourenço Medely & Filhos, no mesmo setor, ou a Fábrica de Estamparia e Tinturaria de William Graham Jr. no Braço de Prata ( aí sediada em 1876 )23. Em 1896, apesar de o setor dos tabacos ser aquele que mais pessoas tinha a laborar por unidade industrial em Portugal ( uma média de 1194 em cada uma ), eram as fábricas de algodões e de lanifícios que empregavam mais operários no país. Apesar de a indústria têxtil dar emprego a muitas pessoas em Lisboa, estas auferiam, regra geral, um salário muito modesto desde a introdução das máquinas, que substi-

Fachada da Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata, na Rua Fernando Palha, em meados do século XX. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

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Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata As armas dão lugar à cultura Antes de a Fábrica de Material de Guerra se alojar no Poço do Bispo, com frente para a Rua Fernando Palha, no início do século xx, a zona designada de Braço de Prata já tinha uma grande ligação à indústria militar, sofrendo várias adaptações face às novas orientações estatais quanto à produção de material bélico. Os terrenos aí próximos pertenciam ao Arsenal do Exército desde finais do século xviii, tendo a rainha D. Maria I adquirido as propriedades em 1798 – por 997 950 réis –, para que lá se instalasse a Real Nitreira de Braço de Prata, que complementava o fabrico de pólvora de Alcântara e Barcarena. No mesmo espaço desta unidade fabril, mas já em 1876, a indústria militar subsistiu. Já não sob a orientação e nome da Real Nitreira, mas como Oficina de Pirotecnia a Vapor. Só em 1896 o espaço exato da Fábrica de Material de Guerra passou para as mãos da coroa e do Arsenal do Exército. É neste espaço que aparece, em 1904-08, a Fábrica de Projécteis de Artilharia de Braço de Prata, inicialmente servindo como uma extensão do Arsenal. Mas só a 12 de outubro de 1907 se formaliza o nascimento de uma fábrica de grande porte para produção intensiva de material para o exército, permitindo a transferência da Fundição de Canhões e da Fábrica de Armas do Campo de Santa Clara para as novas instalações da Quinta do Braço de Prata ( efetuada entre 1909 e 1911 ). Na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, em 1922, já era possível testemunhar o crescimento da fábrica que, em cerca de 14 anos, passara a ter

seis secções de destaque: projéteis de artilharia; fundições; espoletas; caixas de cartuchos; material de artilharia e viaturas; armas portáteis. A fábrica era composta por uma grande variedade de unidades fabris e laboratórios, que garantiam uma resposta ( cada vez mais eficaz ) às necessidades do Estado mas também de algumas entidades privadas. Com a extinção do Arsenal do Exército em 1927, e de várias outras oficinas em Santa Clara, a Fábrica de Material de Guerra assume-se como o principal polo industrial do exército. Este papel é sublinhado em 1955, quando se passa a dar primazia ao fabrico de munições de artilharia de componentes metálicas e, próximo do início da guerra colonial, com a especialização na produção em série da famosa espingarda automática G3 – destinada aos soldados portugueses que partiam para o ultramar. Ao longo das várias décadas de atividade, a fábrica fez da sua produção uma marca, que muitos soldados e operários conheceram de perto: a fbp. Por decreto de 31 de outubro de 1980, a Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata passa a estar integrada a partir de 1981 numa empresa pública: a Indústrias de Defesa de Portugal ( ou indep ), que evoluiu posteriormente para sociedade anónima. Com a gradual passagem das unidades fabris de Braço de Prata para a Fábrica Militar de Moscavide, este espaço entrou em recessão industrial. No entanto, no espaço da antiga secção administrativa daquela fábrica foi ganhando forma uma nova

Fontes: O que é a Fábrica Braço de Prata, na página da Fábrica Braço de Prata, disponível em www.bracodeprata.com. Acedido a 10 de fevereiro de 2014. folgado, Deolinda; custódio, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 167-175.

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interpretação do espaço, que resultou no projeto da Fábrica Braço de Prata ( f bp ). Reduzido ao terreno próximo da Rua da Fábrica de Material de Guerra, o antigo espaço industrial foi inaugurado como livraria em 14 de junho de 2007. Em setembro seguinte passou a adoptar a designação oficial de “Fábrica Braço de Prata”. Os gestores do projeto da fbp identificam-se como uma “empresa legal instalada ilegalmente num edifício que virá a ser da Câmara e do qual ainda não foi despejada pela sua actual proprietária devido à intervenção protectora da própria Câmara”. No entanto, ao converter o espaço num polo dinamizador de iniciativas artísticas e culturais, organizando exposições, recebendo concertos e, sobretudo, concebendo uma livraria icónica na antiga zona industrial de Lisboa Oriental, a nova Fábrica Braço de Prata soube revitalizar espaços e património degradados – um conceito que, desde então, se alargou a Alcântara, com o projeto LxFactory.

I N D Ú S T R I A S A O R I E N T E : H I S T Ó R I A S D E A S C E N S Ã O E Q U E DA

A posição privilegiada desta zona face ao Tejo também fazia dela um importante ponto de entrada e saída de produtos comerciais e matérias-primas em Lisboa. Consequentemente, “toda a vasta área de Xabregas a Braço de Prata, servida igualmente pela circulação fluvial de cabotagem, com os seus antigos cais, foi aproveitada para a instalação de armazéns de vinhos ( José Barral & C.ª, Empresa Vinícola de Salvaterra de Magos, a Empresa Val do Rio de Abel Pereira da Fonseca ), de azeites e de cereais, para o funcionamento de importantes oficinas de tanoaria e para a localização de algumas importantes indústrias de alimentação”28. O largo do Poço do Bispo, ou Praça David Leandro da Silva, albergava duas das empresas mais emblemáticas do Oriente lisboeta. Os armazéns da José Domingos Barreiro & C.ª, Lda. – que se estendem ao longo das ruas Zófimo Pedroso e Fernando Palha e se identificam pela fachada neobarroca virada para o largo – foram construídos em 1887 e laboraram no negócio de exportação de vinhos, vinagres e aguardentes, tendo sido uma das empresas mais ativas na utilização dos caminhos de ferro locais. Ao seu lado, também na Praça David Leandro da Silva, finalizou-se em 1917 a construção de outro armazém icónico: o edifício da Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca. Esta sociedade, cujos armazéns se estendiam a partir da Rua Amorim desde o início do século XX, terá tido a sua fachada principal virada para o Tejo, antes de optar por voltar a entrada para o largo. Se já havia, nos arredores, instalações panificadoras com capacidade para alimentar alguns milhares de pessoas – exemplo do edifício onde veio a instalar-se a Manutenção Militar – não será difícil encontrar algumas fábricas de moagem ou produção de bolachas em Xabregas, como a Fábrica Aliança de João Luiz de Sousa & Filho, que funcionava desde 1870. Mas foi outra moagem que perdurou na memória do século XX. No antigo Convento do Beato António, a extinção das ordens religiosas abriu espaço para a instalação do Real Hospital Militar. No entanto, um grande incêndio veio inutilizar a estrutura, deixando-o disponível. Foi aí que, em 1843, o industrial João

Edifício sede dos armazéns José Domingos Barreiro, virado para a Praça David Leandro da Silva. Incluía os escritórios da firma e habitações para os operários, situadas na Rua Fernando Palha, que é possível ver no lado direito da fotografia. [Pedro Freitas, 2014]

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Vista aérea da zona de Braço de Prata, na qual a Fábrica de Material de Guerra ocupa mais de um quarteirão. Hoje, de todos os edifícios da antiga fábrica, resta apenas um, utilizado para fins culturais. [Arquivo Municipal de Lisboa – Fotógrafo desconhecido, 1950, PT/AMLSB/PEL/005/S00573]

de Brito alojou várias atividades: um armazém de vinhos; uma oficina de carpintaria e tanoaria; e uma fábrica a vapor de moagem, panificação e malte. Estava criada a grande fábrica que, poucos anos mais tarde, granjeou o favor real de D. Maria II e passou a poder utilizar a marca “Nacional”, que ficaria famosa em todo o país. Em 1917, a fábrica da “Nacional” foi integrada no bloco da Nova Companhia Nacional de Moagem, que se transformou, em 1919, na Companhia Industrial de Portugal e das Colónias. A partir de 1986, retomaria o seu nome, mais familiar, de Nacional – Indústria de Transformação de Cereais, SA, mantendo-se até hoje a funcionar29.

Os armazéns da Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca, em meados do século XX. Esta fachada, defronte da doca do Poço do Bispo, chegou a ser a principal dos armazéns, até se optar por mudar a entrada para a Praça David Leandro da Silva. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

28  CUSTÓDIO, Jorge – “Xabregas ( Indústria )”. In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo ( dir. ) – Dicionário de História de Lisboa…, p. 969. 29  GOMES, Ana – Acácio, Maria Beatriz e Maria Antónia Domingos Barreiro. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2012, pp. 154-155.

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Em finais do século xıx, era na fábrica de tabacos em Xabregas que trabalhavam alguns dos mais arrojados membros da classe operária.

30  MÓNICA, Maria Filomena – “Capitalistas e industriais ( 1870-1914 )”. Análise Social. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Vol. XXIII, n.º 99 ( 1987 ), pp. 819-863, p. 823. 31  SANTOS, Fernando Piteira – “A fundação de A Voz do Operário – do «abstencionismo político» à participação no «congresso possibilista» de 1889”. Análise Social. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Vol. XVII, n.os 67-68 ( 1981 ), pp. 681-693, p. 686. 32  CUSTÓDIO, Jorge – “Xabregas ( Indústria )”. In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo ( dir. ) – Dicionário de História de Lisboa…, p. 970. 33  ABEL, Marília; CONSIGLIERI, Carlos – Marvila. Lisboa: Dinalivro, 2006, p. 20. 34  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, pp. 137-141.

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O polo fabril de Xabregas estava entre os lugares cimeiros quanUma delas foi a imponente Companhia Portuguesa de Fósforos to à localização das maiores fábricas do país, o que se traduzia tam- ( ver caixa ), que nasceu de um acordo de exclusividade com o Estado bém na existência de influentes polos operários. Entre as fábricas português. Com um percurso de ascensão e queda que terminou em incontornáveis, estava a Fábrica de Tabacos Lisbonense ( mais tarde 1985, data do encerramento, foi uma das mais proeminentes indúsCompanhia Portuguesa de Tabacos ), cujo monopólio sobre o setor trias locais. História similar de crescimento e decadência ao longo a elevaria a dimensões com as quais era difícil competir. Lembra do século XX teve a Fábrica de Borracha Luso-Belga, construída Maria Filomena Mónica: “Se, em 1881, perguntássemos a um portu- paredes-meias com a Companhia Portuguesa de Fósforos. Esta fáguês qual a maior fábrica do País, a resposta seria provavelmente a brica, com entrada pela Rua do Açúcar, fora inicialmente construída de que a honra cabia à Fábrica de Tabacos, a Xabregas”30. Era aqui pela Companhia de Borracha Monopólio de Portugal, que aí começou que trabalhavam alguns dos mais arrojados membros da classe ope- a funcionar em 1899, na área da transformação do cauchu ( género de rária, que levaram a cabo, em janeiro de 1873, a primeira greve no borracha elástica e resistente, retirado de plantas tropicais ). Contígua setor dos tabacos31. à fábrica, encontrava-se a habitação do proprietário, o empresário Mas não era apenas este setor a estimular o espírito reivindica- belga Jules David. tivo dos seus trabalhadores em Lisboa. Segundo Jorge Custódio, “os A partir de 1926, a fábrica muda de mãos e passa a trabalhar sob corticeiros foram depois dos operários têxteis e dos manipuladores orientações e capitais de Victor C. Cordier, outro empresário belga. de tabaco os trabalhadores mais aguerridos do Bairro [de Xabre- A entrada de capitais portugueses dar-lhe-á, no entanto, o nome gas]”32. Na verdade, estes trabalhadores tinham a sua associação de Fábrica de Borracha Luso-Belga. Através da maquinofatura e de classe no Alto de Marvila, bem como o jornal O Corticeiro, de da crucial intervenção humana ( que se manteve sempre ) em fases 1906, aí sediado. Entre várias corticeiras existentes nos arredores, manuais e de acabamento do processo de fabrico, a fábrica laborou a que mais peso tinha era a da antiga Quinta da Mitra, na qual, em até à década de 1980, produzindo acessórios para bicicletas, motos, 1898, se instala a fábrica de cortiça Fuertes Y Comandita, virada automóveis, mangueiras, entre outros objetos34. para a Rua do Açúcar. Ainda viria a chamar-se Fábrica Seixas – sinalizando a propriedade de Ernesto Henriques Seixas – e a trabalhar enquanto metalurgia, fundição, caixotaria, tanoaria, entre outras, até fechar portas em 1925. Só a partir de 4 de maio de 1933 volta a ser efetivamente utilizada a antiga fábrica, desta vez enquanto asilo para os mendigos e desvalidos da cidade: o Albergue de Mendicidade da Mitra. Muito próximo da vulgarmente designada “Mitra”, no seguimento da Rua do Açúcar, várias fábricas nasciam, bem como habitações operárias. A própria rua, aliás, encontrou o seu nome em atividades industriais e comerciais ali existentes. Em meados do século XVIII, a via ainda se chamava Estrada para o Beato, tendo mudado de nome com a instalação de uma fábrica para açúcar refinado nas redondezas, crê-se que por volta de 1763, pela mão do industrial inglês Christian Smith33. Nesta rua instalar-se-iam alguns dos maiores empregaA Fábrica de Borracha Luso-Belga, dores dos habitantes de Marvila, Xabregas, Beato na Rua do Açúcar, em meados do século XX, junto à Sociedade Nae arredores, atraindo ainda operários de outras cional de Fósforos. [FCG – Bibliofreguesias mais distantes de Lisboa, tal como de teca de Arte – Estúdio Mário concelhos da Beira e do Norte do país. Novais, s. d.]

O edifício da antiga Sociedade Nacional de Fósforos, na Rua do Açúcar, hoje. No passado, esta fábrica empregou milhares de trabalhadores, tendo sido o berço de uma importante coletividade local. [Alexandre Costa – Memoriar, 2014]

Companhia Portuguesa de Fósforos De monopólio nacional a memória Para além dos “Sabões” e, provavelmente, da Fábrica de Material de Guerra, houve uma fábrica que se destacou das demais na zona de Marvila: a Companhia Portuguesa de Fósforos, mais tarde chamada de Sociedade Nacional de Fósforos. Raro será o habitante atual de Marvila que não tenha na família quem tenha lá trabalhado, tal era o seu peso na economia local e a alta empregabilidade que chegou a ter. Para além disso, o tamanho das suas instalações, viradas para a Rua do Açúcar, vincam essa presença duradoura na memória dos marvilenses. A Companhia Portuguesa de Fósforos nasceu de um plano de criação de um monopólio no setor do fabrico de fósforos. O apoio do Estado à criação de monopólios era, então, bastante comum. A estratégia passava pela centralização dos capitais e pelo fortalecimento de indústrias específicas no espaço nacional. Na década de 1890, em Portugal, após passagem para os privados do monopólio dos tabacos ( durante largas décadas exclusivo da coroa ),

também a indústria dos fósforos mereceu a mesma atenção. Para inverter a tendência de dispersão das unidades produtivas, o Estado lança, em 1891, um concurso para exploração monopolista dos fósforos, mas sem sucesso. Após o frustrado concurso, em 1895 o político regenerador Ernesto Hintze Ribeiro, à data presidente do Conselho de Ministros da monarquia constitucional, propõe a criação de uma companhia com a exploração exclusiva durante trinta anos. São assim encerradas todas as unidades dispersas pelo país, passando a existir apenas uma fábrica em Lisboa ( na Rua do Açúcar ) e outra no Porto ( no Lordelo ). Para além do fabrico, tinham ainda a exclusividade na venda dos fósforos, benefícios pelos quais pagavam ao Estado, em contrapartida, uma renda anual. Importa referir o apoio social aos operários desta empresa. Apesar de não ter construído habitações – ao contrário de outras fábricas da zona –, a Socie-

dade Nacional de Fósforos criou serviços médicos, um posto de socorros, balneários, um refeitório, uma creche, uma cooperativa e um grupo desportivo dentro da fábrica, para além de manter uma política de subsídios para doenças e invalidez. O Grupo Desportivo “Os Fósforos”, fundado a 1 de setembro, ganhou uma importância acrescida na identificação da zona, já que a equipa de futebol era composta pelos trabalhadores da fábrica, que conseguiram filiar-se na Associação de Futebol de Lisboa em fevereiro de 1921. Em 1946, foi um dos três clubes que se fundiram para dar origem ao Clube Oriental de Lisboa, que ainda hoje existe e joga no Campo Eng.º Carlos Salema, em honra do engenheiro homónimo que trabalhou na fábrica de fósforos e foi presidente de Os Fósforos. Com um pico de produção durante a Grande Guerra, o início da Companhia Portuguesa de Fósforos foi marcado “pela fase da exclusividade de mercado, em virtude da acção protectora do Estado”. Em 1922, abrem uma filial em Luanda, com o nome de Sociedade Colonial de Fósforos, Lda. Três anos depois, em 1925, termina a concessão estatal, e a empresa “Match and Tobacco Timber Supply Co. adquire todo o passivo e o activo que passam para a Sociedade Nacional de Fósforos” ( a bel & consiglieri, 2004: 104 ). Sob este nome mantiveram ainda uma intensa atividade, até a sua produção decrescer após a Segunda Guerra Mundial. Como afirmam Deolinda Folgado e Jorge Custódio, “num período de actividade de cerca de 110 anos, a Fábrica do Beato, que inicialmente empregava mil operários, tinha em 1978 setenta e nove empregados […]. Os indicadores numéricos revelam o crescimento e a sua decadência”, apesar de se dever ter em conta a redução de pessoal perante o aumento do número de máquinas ( f olgado & custódio, 1999: 145 ). Em 1985, já em franca decadência, a Sociedade Nacional de Fósforos encerrou portas.

Fontes: abel, Marília; consiglieri, Carlos – O formoso sítio de Marvila. Lisboa: Junta de Freguesia de Marvila, 2004; folgado, Deolinda; custódio, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 143-147; Grupo Desportivo “Os Fósforos”, na página do Clube Oriental de Lisboa, disponível em www.oriental.pt. Acedido a 31 de janeiro de 2014.

Não menos marcante na vida dos marvilenses foi a Sociedade Nacional de Sabões ( ver caixa ), com o mesmo percurso de ascensão e queda ao longo do século XX, incapaz de resistir ao processo de desindustrialização de Lisboa Oriental. Caminhando mais para oriente, mas sempre junto à frente ribeirinha, encontrava-se ainda o edifício da Tabaqueira, em laboração até 1963, data em que as instalações passaram para a posse da Fábrica de Material de Guerra, que aí instalou os seus serviços sociais e desportivos, até ao momento do encerramento, na década de noventa. Criada em 1927, a Tabaqueira do Poço do Bispo surgira no seguimento do fim do monopólio dos tabacos, decretado nesse mesmo ano, que abrira espaço à exploração livre do fabrico, importação e venda deste produto. Foi fundada por Alfredo da Silva, um dos mais destacados industriais portugueses e responsável pelo crescimento da Companhia União Fabril (  C UF ), entre outras empresas. Perante a continuação da atividade da outrora monopolista Companhia dos Tabacos de Portugal, sob o novo nome de Companhia Portuguesa dos Tabacos e com uma fábrica na Avenida Marechal Gomes da Costa, Alfredo da Silva situou a sua Tabaqueira no famoso Largo do Tabaco

( ou Praceta Tabaqueira ), onde se produziram, durante anos, marcas quotidianas dos fumadores portugueses e estrangeiros: Definitivos; Severas; Três Vintes; Paris; High-Life; Português Suave; SG Gigante; entre outras35. Como afirmam Carlos Consiglieri e Marília Abel, ali e nas anteriores fábricas de tabaco trabalhou “tão elevado número de mulheres que estas ficaram conhecidas pelas ‘cigarreiras’”36. Impossíveis de esquecer – até porque a imponência das suas chaminés e torres não deixava ninguém indiferente – foram ainda os enormes complexos do Gás da Matinha, da Petroquímica e da torre da SACOR. De forma não muito diferente do anterior processo de industrialização, o ano de 1942 trouxe grandes alterações para a frente ribeirinha de Poço do Bispo, com a criação da zona industrial do porto de Lisboa, na faixa litoral aí próxima. Um decreto de 19 de outubro desse ano declarava: “Deverão o aeroporto marítimo e a zona industrial adjacente ficar situados entre o Poço de Bispo e ribeira de Sacavém, e para o seu conveniente aproveitamento estão já realizados trabalhos marítimos importantes entre o Poço do Bispo e Matinha e prevista a regularização da margem do rio, para montante, até à ribeira de Sacavém.”37

35  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, pp. 177-181. 36  ABEL, Marília; CONSIGLIERI, Carlos – O formoso sítio de Marvila…, p. 110. 37  Decreto-Lei n.º 32 331, de 19 de outubro de 1942. Diário do Governo, n.º 242 – I Série. Ministério das Obras Públicas e Comunicações. Lisboa.

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Uma greve dos trabalhadores da Companhia Portuguesa de Tabacos em 1918, no Terreiro do Paço. Os tabaqueiros estavam entre os elementos mais ativos do movimento operário, muito devido ao grande número de trabalhadores do setor. [Arquivo Municipal de Lisboa – Fotógrafo desconhecido, PT/AMLSB/EFC/001916]

Sociedade Nacional de Sabões Uma pequena aldeia industrial Desde o século xix, o setor dos sabões recebia a maior atenção do Estado português, sendo um dos mais privilegiados pelo poder político, que levara a cabo várias medidas protecionistas para a criação destes e de outros produtos derivados no espaço nacional. Nas zonas de Xabregas, Beato e Marvila, a tradição desta indústria foi muito forte ao longo de cerca de duzentos anos. No início do século xx, existiam ali várias fábricas de sabão: a de Costa & Costa, no Grilo; a da Viúva Macieira & Filhos, no Beato; a de Sousa & C.ª, também no Beato; e a de Miguel P. da Costa Soares, em Marvila. Foi uma destas empresas, a de Sousa & C.ª, que esteve na origem da criação da Sociedade Nacional de Sabões, fundada em 1919, em resultado da fusão com João da Rocha, empresário do setor das saboarias. No espaço onde esta viria a instalar-se, na Quinta de Marvila – adjacente ao campo do não menos histórico Clube Ferroviário de Portugal –, já funcionava uma outra unidade industrial conhecida dos consumidores portugueses: a Saboaria Nacional do Beato, Lda., pertencente à empresa Cruz & Ferreira. Aproveitando o espaço e algumas das instalações, a Sociedade Nacional de Sabões Lda. começa por trabalhar num espaço entre a Rua de Marvila e a Azinhaga das Veigas, com endereço postal oficial na Rua de Marvila, n.os 182-190. Até aos anos noventa do século xx, período em que fechou portas, foi um dos maiores empre-

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A fábrica da Sociedade Nacional de Sabões, por volta da década de 1950. A empresa estendia-se entre o Beato e Marvila, formando uma verdadeira “aldeia industrial”. Aqui é possível observar os silos no exterior ( imagem da esquerda ), a maquinaria no interior ( à direita, em cima ) e a transportadora ( à direita, em baixo ). [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

Autocarro para transporte dos trabalhadores ( em cima ) e garagem com viaturas de serviço ( em baixo ) da Sociedade Nacional de Sabões, no Beato, em meados do século XX. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

gadores nos bairros do Beato e de Marvila. Mais recentemente, foram demolidos todos os edifícios da fábrica, restando do enorme complexo apenas o mirante oitocentista que chegou a estar dentro dos limites das instalações. Mais tarde, aumentará de dimensões, passando a ocupar um espaço que ia até ao Convento do Beato, atravessado pela estrada de Marvila, como se de uma pequena aldeia se tratasse, revelando “uma atitude manifestamente diferente em relação ao entendimento do conceito de fábrica” ( f olgado & custódio, 1999: 130 ). Entre as décadas de 1920 e 1950, a fábrica cresceu produtiva, comercial e espacialmente, como é possível constatar ainda hoje pelo amplo espaço que a sua demolição deixou vago. Assumiu-se como um monumento industrial da zona, sobretudo a partir dos anos quarenta, quando comprou à Câmara Municipal de Lisboa e à Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses o espaço da Quinta do Brito. Deste modo, ampliou a área da fábrica para 90 000 m², passando a ter acesso direto a um apeadeiro. Para além da ampliação do espaço que ocupava, também alargou, na década de quarenta, os ramos de atividade em que laborava. Aproveitando a maquinaria e a matéria-prima usadas para o fabrico de sabão, passou também a produzir outros derivados: detergentes; óleos industriais e alimentares; margarinas; rações; e fertilizantes. No início da década de 1980, a Sociedade Nacio-

nal de Sabões desenvolveu uma estrutura típica de parque industrial, ao aglomerar e associar no mesmo espaço empresas de áreas tão diversas como a comunicação social ( a Sojornal, por exemplo ), testes psicotécnicos ou produtos de higiene e beleza. Apesar das constantes atualizações, com o tempo, esta estrutura perdeu o seu peso perante indústrias mais avançadas. A meio da década de noventa, acabou por encerrar portas, tendo todos os seus edifícios sido demolidos, bem como os muros. Exceção feita ao mirante oitocentista que, mesmo depois de ter feito parte do complexo industrial da fábrica de sabões, lá se mantém de pé, como que desafiando as leis do tempo.

O Sonasol, produto da Sociedade Nacional de Sabões. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

Bibliografia: custódio, Jorge – “Xabregas ( Indústria )”. In santana, Francisco; sucena, Eduardo ( dir. ) – Dicionário de História de Lisboa. Mem Martins: Gráfica Europam, 1994, pp. 967-971; folgado, Deolinda; custódio, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Lisboa: Livros Horizonte, 1999, pp. 129-135.

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C I N T U R A I N D U S T R I A L O R I E N TA L

38  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, p. 194. 39  ABEL, Marília; CONSIGLIERI, Carlos – O formoso sítio de Marvila…, p. 30. 40  FOLGADO, Deolinda; CUSTÓDIO, Jorge – Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial…, pp. 183-191. 41  Idem, p. 190.

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Do outro lado da capital, em Belém, crescia desde os anos trinta a preocupação com a salvaguarda do património existente e a otimização do lado turístico da zona ribeirinha ocidental. Procurava-se, pois, “desafectar os espaços industriais de Lisboa Ocidental, entregando-os a outras funções mais nobres e de lazer”, começando pelas “instalações e depósitos de combustíveis e gasómetros situados em Alcântara, na Junqueira e em Belém” e acabando nas próprias fábricas38. Como resultado, transferiu-se para a nova cintura industrial oriental a aparatosa maquinaria que viria a dar origem à Refinaria de Cabo Ruivo e à famosa “torre da SACOR”, sigla para Sociedade Anónima Concessionária da Refinação de Petróleos em Portugal, inaugurada em 1940 e cujo odor caraterístico se tornara uma anedota local – sendo frequente, em dias de chuva, a exclamação “hoje cheira a SACOR”39. Destruída a torre de destilação de Belém ( que ficava junto ao monumento da Torre de Belém ), passou a torre de Cabo Ruivo a funcionar plenamente. Também as instalações da fábrica de gás ocidental, que desde 1891 enegreciam o Tejo até Cascais, foram incluídas neste esforço de transferência para a zona oriental, fundamentado na atribuição de um “destino industrial” à faixa de Poço do Bispo a Sacavém. Um pensamento que ficou formalizado no Plano de Urbanização de Lisboa de 1938‑48, do urbanista russo Étienne de Gröer. No processo de transferência das estruturas industriais, as Companhias Reunidas de Gás e Electricidade ( existentes desde 1891 ) escolheram a Quinta da Matinha, próxima dos Olivais, para realojar a sua fábrica de gás, que ficou conhecida simplesmente como Fábrica de Gás da Matinha.

Inaugurada com grande pompa e circunstância a 8 de janeiro de 1944 ( compreensivelmente, face ao esforço financeiro de 43 500 contos então despendido na transferência ), a nova fábrica funcionará até à década de noventa, tendo sido construídos vários gasómetros para destilação – hoje considerados “património industrial” – entre 1944 e 1955. Em 1957, as Companhias juntam-se à SACOR, fundando a Sociedade Portuguesa de Petroquímica, o que permitiu o aproveitamento da refinaria de Cabo Ruivo para o fabrico de gás de cidade40. Como afirmam Deolinda Folgado e Jorge Custódio, a nova destilação a partir de produtos petrolíferos inutilizou largamente a estrutura fabril da Matinha, passando esta produção para “uma nova unidade em Cabo Ruivo, com caraterísticas técnicas muito diferentes e cuja imagem artificial se organizou como uma autêntica escultura na paisagem, com as suas torres de destilação, com os seus grandes reservatórios e as suas diferentes áreas industriais”41.

“Hoje cheira a

SACOR



É então que se vai redesenhar a organização administrativa da cidade, já com a zona oriental de Lisboa a assumir oficialmente a sua vocação industrial, libertando desse “fardo” outras zonas mais centrais e a ocidente. No início de 1959, terminava Álvaro Salvação Barreto o seu último mandato enquanto presidente da Câmara Municipal de Lisboa quando, a 7 de fevereiro, sai o Decreto-Lei n.º 42 142, que reorganiza as freguesias de Lisboa. O decreto começava por referir o problema do aumento populacional registado desde 18 de julho de 1885, data em que foram redefinidos os limites citadinos. Segundo o mesmo texto, em 1900, viviam 356 311 pessoas em Lisboa. Mas em 1950 a população tinha aumentado para 790 434. A acrescentar a isto, verificavam-se novas realidades demográficas. O centro, antes muito denso, despovoara-se, “fenómeno comum às grandes cidades, cuja explicação se encontra na invasão dessa zona central pelo comércio e nas remodelações urbanísticas impostas pelo novo ritmo de vida das modernas urbes”42. As freguesias iam verificando um crescimento populacional muito para além da sua capacidade, criando grandes desequilíbrios. Por outro lado, a periferia mantinha limites típicos de freguesias rurais num tempo de urbanização operária. Nessas freguesias periféricas, portanto, considerava-se no mesmo decreto que, se “o carácter rural que apresentavam inicialmente justificava tamanhas áreas, a urbanização progressiva nelas verificada impõe o seu desmembramento”, sendo esta observação prova bastante para fundamentar “um ajustamento de áreas e populações paroquiais, criando novas freguesias nas zonas de expansão e extinguindo algumas do centro da cidade”43. Com base neste pressuposto, extinguem-se as freguesias da Conceição Nova e de São Julião, criando-se 12 novas e reajustando os limites de algumas outras44, tendo em conta a divisão paroquial já efetuada. Entre as novas freguesias contam-se a de Marvila, integrada no 4.º bairro administrativo e cujos limites são definidos ao pormenor: “Partindo, perpendicularmente, da margem do rio Tejo, na direcção noroeste, contorna, pelo nordeste e pelo poente, as instalações da Companhia Industrial de Portugal e Colónias, no Beato, passando pela linha divisória entre as referidas instalações e as da Sociedade Nacional de Sabões e rodeando, pelo sul, estas últimas,

Em 1900, viviam 356 311 pessoas em Lisboa, mas em 1950 a população tinha aumentado para 790 434. até atingir a Rua de Marvila; segue para sudoeste, pelo eixo desta rua, até ao ponto em que, na altura da Manutenção Militar, a mesma rua se cruza com o eixo da projetada III circular; inflecte para noroeste, pelo eixo da III circular, até à Avenida do Aeroporto; tomando a direção norte, passa pelas traseiras das casas do lado oriental da referida avenida, até à rotunda do aeroporto; segue para leste, pelo eixo da II circular; desvia-se para sueste, ainda pelo eixo da II circular, e continua, no seu prolongamento, até atingir o rio Tejo; prossegue, finalmente, para sudoeste, pela margem do rio, até ao ponto de partida”45. No decreto de 1959, fábricas e indústrias locais são utilizadas como marcos para a delimitação oficial das fronteiras da recém-criada freguesia. Deste modo, Marvila nasce administrativamente como um território de assumida identidade industrial no seio da capital.

42  Decreto-Lei n.º 42 142, de 7 de fevereiro de 1959. Diário do Governo, n.º 32 – I Série. Ministério do Interior. Lisboa. 43  Idem. 44  Idem. 45  Idem.

A antiga Junta de Freguesia de Marvila, na Rua do Vale Formoso de Cima, em 1961. A freguesia tinha sido criada apenas dois anos antes, em fevereiro de 1959. [Arquivo Municipal de Lisboa –Artur Goulart, 1961, PT/AMLSB/AJG/ /I00976]

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ONTEM · TERRITÓRIO

A Refinaria de Cabo Ruivo, na zona homónima, em meados do século XX. Na fotografia, é inconfundível a “torre da SACOR”, símbolo deste complexo industrial inaugurado em 1940. [FCG – Biblioteca de Arte – Estúdio Mário Novais, s. d.]

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