Marxismo e as Relações Internacionais: a noção de totalidade

September 9, 2017 | Autor: Luis Costa | Categoria: Marxismo, Relações Internacionais, Interdisciplinaridade, Totalidade
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS

LUÍS ANTÔNIO DE ARAÚJO COSTA

MARXISMO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A NOÇÃO DE TOTALIDADE

SALVADOR 2009

LUÍS ANTÔNIO DE ARAÚJO COSTA

MARXISMO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A NOÇÃO DE TOTALIDADE

Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Relações Internacionais do Núcleo de PósGraduação em Administração da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Relações Internacionais.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Sanchez Milani.

SALVADOR 2009

AGRADECIMENTOS

Agradecemos em primeiro lugar todos os Professores que nos favoreceram com parcela de seus conhecimentos durante o período do curso. Em especial aos Professores Muniz Ferreira e Carlos Milani, essenciais para o desenvolvimento das reflexões aqui apresentadas. Agradecemos também toda equipe do Laboratório de Política Mundial (LABMUNDO) pela inestimável oportunidade com qual nos brindou, de realizar este curso de especialização em Relações Internacionais, tão bem estruturado e diversificado teoricamente. Esperamos que novas iniciativas em Relações Internacionais continuem a ser desenvolvidas. Por ultimo, mas não menos importante, agradecemos a toda a turma pelo companheirismo, solidariedade e dedicação do início ao fim desta jornada.

RESUMO

Reconhecendo as dificuldades, mas principalmente, as potencialidades do método marxista - o materialismo histórico-dialético - pretendemos neste texto contribuir com o debate epistemológico entre o marxismo e as Relações Internacionais, enfocando a categoria de ‘totalidade’ como elemento central no funcionamento do seu método e diferencial positivo em relação a outras tradições de pensamento nas Relações Internacionais. A fim de nos situar histórica e teoricamente no interior desta tradição de pensamento, o texto percorre uma trajetória crítica de afastamento dos esquematismos economicistas e anti-dialéticos do período stalinista, de modo a requalificar algumas de suas categorias fundamentais. Nosso objetivo será identificar o funcionamento desta categoria teórica no interior do método marxista e das obras de alguns de seus autores clássicos e contemporâneos desta disciplina, procurando apontar a sua viabilidade metodológica em um campo de conhecimento que se destaca pela interdisciplinaridade.

Palavras-chave: Marxismo e Relações Internacionais, Totalidade, Interdisciplinaridade

ABSTRACT

Recognizing the difficulties, but especially the potentialities of the marxist method (the historical and dialectical materialism), in this essay we intend to contribute to the epistemological debate between Marxism and Foreign Affairs, focusing the category of ‘totality’ as a fundamental element of its method and a positive contrast when compared to other traditions of thought in Foreign Affairs. In order to place ourselves historically and theoretically within this tradition of thought, the essay critically distance itself from the anti-dialectical and overly economical simplifications of the stalinist period, thus requalifying some of its fundamental categories. Our objective is to identify the functioning of this theoretical category within the marxist method and also within the works of some of its classical and contemporary authors of this discipline, trying to show its methodological feasability in a field of knowledge that stands out for its interdisciplinarity.

Key-words: Marxism and Foreign Affairs, Totality, Interdisciplinarity

Introdução Como bem relatado por diversos autores neo-marxistas na área das Relações Internacionais (RI), principalmente Fred Halliday em um de seus mais expoentes trabalhos denominado “Repensando as Relações Internacionais”, a posição ocupada pelas formulações vinculadas à tradição de pensamento marxista no interior do debate teórico das RI não é cômoda. Mesmo sem avançarmos muito nessa caracterização é possível perceber sua validade durante o debate entre ‘realistas’ e ‘utópicos’1, uma vez que as formulações marxistas foram criticadas - e até hoje o são - pelos defensores da tradição realista, ainda predominantes no mainstrean das RI, por reconhecerem a exclusividade do Estado enquanto ator fundamental, dado ser o portador da característica essencial ao Sistema Internacional que seria a capacidade de fazer a guerra e celebrar a paz. Do mesmo ponto de vista, critica-se também o marxismo por ser ‘utópico’ ao postular uma forma alternativa de ordenar a política e ao introduzir preocupações éticas no conjunto da análise, independentemente das experiências concretas historicamente situadas no campo do socialismo. Entretanto, para os ‘utópicos’ o marxismo seria ‘realista’, dada sua ênfase sobre o concreto: os interesses materiais como os motores da ação humana, a hipocrisia dos belos discursos universalizantes e o cinismo da vida política. De modo complementar é afirmada a dificuldade posicional do marxismo no debate clássico das RI pela sua condição de pensamento: ... simultaneamente ‘utópico’ (ao formular um projeto de emancipação social) e ‘realista’ (ao enfatizar os interesses materiais que comandam a ação humana e o papel desempenhado pela força na história); ‘científico’ (ao pretender descobrir leis do desenvolvimento social) e ‘normativo’ (ao destacar explicitamente a vocação transformadora de sua filosofia) (Fernandes, apud RAMOS, 2006).

Por outro lado, contemporaneamente, algumas visões pós-estruturalistas compreendem, no entanto, que o marxismo junto com as abordagens clássicas estaria em vista de perder sua validade teórica dado o fim do contexto da bipolaridade, graças a sua vinculação com visões dicotômicas da relação sujeito-objeto, determinações monocausais e visão de totalidade sistêmica e homogênea (MILANI e LANIADO, 2006). 1

Faremos referência às escolas de pensamento nas RI nos seus termos habituais, muito embora algumas destas definições em termos marxistas possam ser polêmicas.

Tornam-se evidentes os imensos desafios teóricos colocados para os/as autores/as que pretendam dar continuidade à tradição marxista no campo das RI, considerando a multiplicidade dos pontos de vista que lhe são críticos, inclusive existindo reflexões que lhe recusam a devida legitimidade intelectual. Reconhecendo esta realidade, mas também as potencialidades do método marxista - o materialismo histórico-dialético - e espelhado nas recentes obras de neo-marxistas e neo-gramscianos, tais como Cox, Sinclair, Halliday, Ruppert, dentre outros, pretendemos neste texto contribuir com o debate epistemológico entre o marxismo e as RI. Para isto, enfocaremos a categoria de ‘totalidade’, procurando situá-la no interior do método marxista e das obras de alguns de seus autores clássicos e contemporâneos. Para viabilizar este objetivo, acreditamos que seja necessário situarmo-nos histórica e teoricamente no interior desta tradição de pensamento, de modo a requalificar algumas de suas categorias fundamentais e nos afastarmos de alguns posicionamentos que ao longo do século XX enfraqueceram suas potencialidades criadoras, favorecendo os ataques de seus críticos. Dito de outro modo, faz-se mister afastar-se dos esquematismos economicistas do período stalinista. O panorama das RI atualmente encontra-se em franco dinamismo prático e teórico, no qual se destaca: o debate sobre a redefinição de sua agenda em função do esvaziamento dos pressupostos ‘wetsfallianos’ do Sistema Internacional; em relação às preocupações com a pauta da segurança, além da diversificação temática, ocorre o reconhecimento da legitimidade de vários outros temas, tais como gênero, meio ambiente, direitos humanos, dentre outros; e, conseqüentemente, o surgimento e fortalecimento de diversos atores no cenário das RI. Acreditamos que este contexto prático

e

teórico

oferece

condições

favoráveis

para

aqueles/as

autores/as

referenciados/as na tradição marxista de pensamento na área das RI, que se postulam críticos daquilo que Gramsci denominava de economicismo materialista. Este texto, primeiramente, procura revalorizar a dialética como essência do materialismo histórico, situando-a como método presente nas leituras de neo-marxistas proeminentes na contemporaneidade. Em segundo lugar, afirmar uma posição alternativa para o diálogo e a ponderação frente a algumas das críticas que costumeiramente são feitas ao marxismo, tanto por autores das Ciências Sociais, quanto por intelectuais das RI. Deste modo, acreditamos que o resultado será contribuir, para aa construção de um patamar mínimo de clareza teórica e conceitual entre o marxismo e seus críticos no campo das RI.

Método dialético e a idéia de totalidade A questão da dialética como discurso de método do materialismo histórico começou a suscitar diferenças e polêmicas desde o final do século XIX, gerando repercussões importantes ao longo do tempo e que devem ser apontadas brevemente aqui dadas as suas influências tanto entre os marxistas quanto entre seus críticos. Sinteticamente, Musse nos relata a iniciativa de Engels, em sua obra “O AntiDuhring”, em enfrentar uma das lacunas da obra marxiana: uma exposição nítida de seu método filosófico. Independentemente de ter conseguido ou não, ou de ter acertado ou errado, o fato é que essa obra foi tomada pela posteridade durante muito tempo como resumo autorizado do método de Marx e mesmo após a sua crítica ter ganhado certa generalização, continuou sendo utilizada pela militância de esquerda e pelos detratores explícitos da tradição de pensamento marxista. Engels, assim como boa parte da intelectualidade do período final do século XIX, compartilhava de certa admiração e fascínio pelo avassalador movimento de descobertas nos campos das ciências naturais e exatas, geradoras de avanços tecnológicos com impactos sociais concretos. Entre eles podemos citar: vacinas, telégrafo, telefone, produção de energia elétrica, combate a uma série de doenças e a redução da mortalidade infantil, tendo como resultado o aumento das taxas de crescimento demográfico, entre outras alterações verificáveis na vida cotidiana da época. Para ele, o caminho do avanço tecnológico destas ciências, dado sua intensidade e velocidade, aproximariam esses campos do saber da dialética materialista, em contraposição com um método metafísico especulativo que, por ser: Unilateral e abstrato (...) enreda-se em contradições insolúveis: atento a objetos determinados, não concebe a gênese e a caducidade; concentrado na estabilidade das condições, não percebe a dinâmica, ‘obcecado pelas árvores, não consegue enxergar o bosque (MUSSE, 2005, p. 373).

A dialética, por sua vez, como seu oposto simétrico da metafísica: Investiga os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas e as insere em ‘uma trama infinita de concatenações e de mútuas influências, em que nada permanece como era nem como existia’. Nela, os pólos da antítese, apesar de todo antagonismo, ‘se completam e se articulam reciprocamente’. A causa e o efeito, vigentes em um caso concreto, particular, se diluem na idéia de uma trama universal de ações recíprocas, na qual as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que antes era causa toma, logo depois, o papel de efeito e vice-versa (MUSSE, 2005, p. 373).

Na formulação de Engels, a dialética marxista, além de passar a considerar a natureza física e biológica terreno próprio ao seu campo de análise, passa a se configurar como um método experimental dotado de saber científico. O novo materialismo, na medida em que se qualifica a si próprio como ciência, não se propõe a ultrapassar apenas o pensamento de Hegel. É a própria filosofia, em sua totalidade, que se encontra sujeita à condenação, explicitada na famosa frase: “tudo o mais se dissolve na ciência positiva da natureza e da história” (MUSSE, 2005, p. 376).

A ênfase exclusiva na anterioridade da condição material em relação às formas de consciência sobre o mundo terminou por levar ao erro mecanicista da ‘impossibilidade’ da ação das consciências dos sujeitos históricos sobre a realidade concreta. As formas de consciência seriam determinadas, sem nenhuma mediação, pelas suas condições dadas ao nível da infra-estrutura da sociedade. Equívoco comum entre as interpretações do marxismo enquanto uma ciência específica e mecanicista (LUKÁCS, 1974). É neste processo que surge o socialismo enquanto discurso científico, com as suas leis da dialética e as suas certezas para o desenvolvimento histórico. Lukács efetua a crítica ao experimentalismo de Engels, reconhecendo o impacto decisivo destas formulações para as posteriores confusões geradas no debate metodológico marxista. Os mal-entendidos que a maneira engelsiana de expor a dialética suscitou vêm essencialmente de que Engels - seguindo o mau exemplo de Hegel - estendeu o método dialético ao conhecimento da natureza, ao passo que as determinações decisivas da dialética; ação recíproca do sujeito e do objeto, unidade da teoria e da praxis, modificação histórica do substrato das categorias como fundamento de sua modificação no pensamento, etc., não se encontram no conhecimento da natureza (LUKÁCS, 1974, p. 19).

Faltaria ao parceiro de Marx a referência que diferencia o método da perspectiva puramente contemplativa que é seu caráter prático, tendo a transformação da realidade como seu problema central. (...) ao aspecto mais essencial desta ação recíproca, a relação dialética do sujeito e do objeto no processo da história, não chega a ser mencionado, e muito menos colocado (como deveria) no âmago das considerações metodológicas. Ora, privado desta determinação, o método dialético (apesar, é certo, de manter, de forma puramente aparente, a ‘fluidez’ dos conceitos) deixa de ser método revolucionário (LUKÁCS, 1974, p. 17) (grifos do autor).

Esta ausência torna-se possível na reflexão engelsiana, segundo a crítica de Lukács, pelo foco privilegiado na mudança contínua em detrimento de sua objetividade historicamente determinada, o que termina por favorecer uma idéia de progressão linear de eventos e o esvaziamento da totalidade histórica como perspectiva para a compreensão das suas inter-relações. A dialética engelsiana: (...) se apresenta como insuficiente, uma vez que não vai além da simples constatação de mutabilidade dos fatos (que pode inclusive se dar dentro de uma mesma ordem social, desde que considerada temporalmente), ou de sua inclusão em um processo contínuo e ininterrupto (LUKÁCS, 1974, 383).

Desta forma, o último Engels foi reapropriado por Bernstein e outros teóricos da segunda internacional, em defesa de interpretações nas quais a contradição entre capital e trabalho poderá ser abandonada, em prol da evolução pacífica do capitalismo para o socialismo 2. Estas leituras basicamente lineares do processo histórico serão consolidadas através dos programas políticos de reformas, defendidos pelas agremiações da social-democracia nos países centrais do capitalismo após o estouro da primeira guerra mundial. Essas interpretações tornaram-se possíveis, muito embora a característica central do materialismo dialético em Marx não seja, isoladamente, o foco no movimento, mas sim o ponto de vista da totalidade histórica em movimento. Ao ser excluída a totalidade, o movimento dialético pode ser facilmente traduzido como o desenrolar dos acontecimentos, como o avanço progressivo das conquistas da classe ou no caso dos países periféricos, na busca pelo desenvolvimento. Marx operou a transmutação da dialética hegeliana em ‘álgebra da revolução’ não como uma simples inversão epistemológica do lugar de causa e efeito, do tipo ‘sai o espírito, entra a matéria’, mas sim pela contextualização do método como momento do mundo concreto e da relação histórico-dialética entre sujeito e objeto. Por isso a reivindicação de que (...) a compreensão do caráter histórico de um dado factual qualquer esteja vinculada à apreensão dos condicionamentos que o configura como momento determinado de uma totalidade sócio-histórica (LUKÁCS, 1974, 383).

2

Como pode ser visto com mais aprofundamento na exemplar crítica filosófica de Mészáros ao pensamento de Bernstein e a sua posição explicitamente antidialética (MÉSZÁROS, 2004, p. 376).

Lukács demonstra que ao recusar o abandono da perspectiva da totalidade, nos recusamos também a pensar a sociedade a partir do ponto de vista do indivíduo, tal como este é constituído através do desenvolvimento das relações sociais próprias do sistema de produção capitalista de mercadorias3. Isto porque (...) o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a ‘fatos desconexos ou leis parciais abstratas. (LUKÁCS apud MUSSE, 1974).

Pensamos e problematizamos, portanto, a totalidade como uma estrutura significativa que permite compreender o desenvolvimento das sociedades em seu processo de vir-a-ser histórico (ROCHA, 1979). Desta forma, a manutenção de uma perspectiva de totalidade no materialismo histórico contrapõe-se à construção imaginária de um sistema homogêneo e integrado, regido pela lógica aristotélica e seu princípio da não-contradição. Contemporaneamente prevalece no campo das Ciências Sociais e das RI, a crítica às construções abstratas mecanicistas deste tipo: A sociedade, ela mesma, não é mais apreendida como uma totalidade dotada de equilíbrio e homogeneidade, com padrões históricos de reprodução de experiências de desenvolvimento baseados em explicações e justificativas deterministas e mono causais (como visto pelo funcionalismo ou pelo marxismo) (MILANI e LANIADO, 2006, p. 484).

Frente ao marxismo sistematizado, na década de 1920 por Bukharin e Zinoviev, foram levantadas diversas críticas no interior da tradição marxista, entre outros, por Lukács e Gramsci. O esvaziamento político e a falência histórica das experiências de socialismo burocrático no séc. XX, assim como a recuperação e valorização dos autores marxistas clássicos que vivemos atualmente, permitem a ponderação de que a validade de críticas como a acima mencionadas são corretas se dirigidas à vertente estruturalista do marxismo. Procuraremos demonstrar daqui em diante como a noção de totalidade, fundamental à construção metodológica dos clássicos, diferencia-se na forma e no conteúdo da vertente mecanicista e, consequentemente, mantém sua centralidade para a reflexão sobre o contexto internacional, no interior da tradição de pensamento marxista.

3

Para Lukács esse é o elemento mais decisivo no processo de transição de Hegel para Marx.

A totalidade como diferencial do marxismo no interior das RI Ao contrário do que se tornou corriqueiro afirmar, Marx e Engels produziram extensa coletânea de textos voltados à interpretação da política internacional do século XIX4. Em sua maioria são textos direcionados à compreensão e à crítica dos objetivos e interesses rivais entre as potências neo-colonialistas, numa época de expansão de suas projeções de poder pela Ásia, África e Oceania. Igualmente neles também são focados temas candentes da luta de classes no interior destes países, tais como: a unificação alemã; a luta entre o movimento cartista inglês e Lorde Palmerston; e o papel da monarquia czarista na repressão das nacionalidades sem Estado dos Bálcãs, baseada na eternização das condições semi-feudais da servidão. Em suas análises, reside um processo metodológico de interpretação que vincula de modo indissociável a conjuntura interna e o cenário da política internacional. Podemos dizer que para Marx, está sempre em operação no processo de construção das políticas das potências, uma particular combinação entre a dimensão necessariamente classista no seu interior e a projeção dos interesses nacionais estatais no exterior. De acordo com seus pontos de vista, a finalidade da política externa das potências euro-ocidentais consistia em enfraquecer a Rússia como rival na disputa pela supremacia nas regiões do Oriente Próximo e dos Balcãs, ao mesmo tempo em que procuravam preservar o poderio russo para que o país continuasse a desempenhar seu papel de gendarme dos movimentos democrático-revolucionários nessas mesmas regiões. Segundo a percepção de Marx e Engels, portanto, a atuação do Ocidente frente à “questão oriental” caracterizava-se por desígnios ao mesmo tempo anti-revolucionários e hegemonistas. Interessava aos planos estratégicos anglo-franceses a existência de uma política de contenção recíproca entre o czar e o Sultão capaz de tensionar e paralisar os dois Estados rivais, sem lhes subtrair a capacidade de esmagar pela força os movimentos revolucionários que porventura se insinuassem no âmbito das áreas sob sua possessão (FERREIRA, 2005, p. 115).

Por sua vez, esta combinação também não é simples e automática, pois ele compreende que no interior das elites dirigentes dos aparatos diplomáticos há uma disputa acirrada entre percepções e interesses diversos que podem prevalecer em um momento e decair em outro. Em outras palavras, o espaço de construção da política exterior não é um espaço monolítico do ponto de vista nacional e em alguns casos, como na Inglaterra, sequer do ponto de vista das suas classes dominantes. 4

Ver a tese de doutoramento de Muniz Ferreira: “Mercados, Diplomacia e Conflitos: uma abordagem histórica das relações internacionais, a partir dos artigos publicados por Karl Marx e Friedrich Engels no New York Daily Tribune no período de 1851/1862”.

A fim de ilustrar esta linha de raciocínio, podemos utilizar o exemplo da leitura de Marx sobre a importância da aristocracia rural economicamente decadente, porém de grande influência na definição da política exterior britânica. Muito embora a predominância econômica e social da burguesia na sociedade britânica já estivesse consolidada, a política externa da Inglaterra possuía um horizonte proritariamente compatível com os círculos aristocráticos, o que se dava em função de dois fatores centrais: de um lado, a firme presença aristocrática na coalizão política que dirigia o Estado e lhe dava sustentação; por outro lado, o monopólio da representação política situado entre a burguesia e a aristocracia, excluindo o proletariado e o campesinato. As duas classes sociais dominantes acabavam por ter seus interesses, em termos de política externa, representados na arena institucional pelas perspectivas Tory (protecionista e conservadora) e Whig (burguesa defensora do livre-comércio). Em várias ocasiões ao longo do séc. XIX, principalmente sob a direção de Lord Palmerston, a perspectiva aristocrática predominou, levando Marx à: ... uma caracterização da política externa britânica como contrarevolucionária, pró-aristocrática e, inclusive, lesiva aos interesses econômicos do capitalismo inglês (FERREIRA, 2005, p. 120) (grifo do autor).

Desta forma, podemos ver que a análise da política internacional realizada por Marx deixa claro que não há relação mecanicamente necessária e unívoca - tal como vai ser formulado pelos esquemas teóricos do stalinismo - entre os interesses do desenvolvimento capitalista de um país e a sua política exterior. Os interesses concretos são mediados pela conformação específica de suas forças sociais no âmbito nacional e estatal em particular, mas não exclusivamente. Esta configuração específica de forças por sua vez, deve ser equacionada a ponto de se tornar eficaz e operacional na dimensão da política interna nacional e da correlação de forças entre os setores das classes dominantes e seus representantes, traduzindo-se enquanto uma política externa que reflita os acordos internamente necessários para a manutenção de determinada ordem. Na obra de Marx, o cenário da política internacional, também era alvo das preocupações e movimentações políticas do proletariado, muito embora este não estivesse contemplado na construção das políticas de ‘seu’ Estado nacional, inclusive nas democracias liberais. Consequentemente a agenda da política internacional incluía

temas de relevância geral para a luta de classes no interior de cada país, podendo contribuir tanto com o seu avanço, na perspectiva marxista, quanto com seu recuo. Neste sentido se davam as contribuições de Marx ao debate e à organização da Associação Internacional dos Trabalhadores, na qual ganhava centralidade política a defesa e agitação das bandeiras democráticas das revoluções de 1848, assim como o combate às forças sociais ainda vinculadas ao Congresso de Viena; principalmente à monarquia Russa e os círculos dirigentes prussianos que caminhavam para dirigir o processo de unificação alemã. Da mesma forma estará conformada posteriormente a posição de Marx em relação à defesa da Comuna de Paris e a sua denúncia da unidade de classe da burguesia para além das fronteiras nacionais quando da união entre as tropas legalistas francesas e prussianas na sangrenta repressão que se seguiu a primeira experiência de governo dos trabalhadores na Europa. Mesmo a partir de uma leitura sintética, podemos afirmar que o elemento subjacente às análises e críticas conjunturais de Marx apresentadas aqui, guardam sintonia com o método histórico e dialético por ele utilizado no conjunto de sua obra e pressupõe a noção de totalidade histórica em movimento constante. É a materialização do que Gramsci e outros intelectuais marxistas viriam a afirmar ao longo do século XX, de que a determinação do modo de produção em última instância não significa uma relação de causa e efeito nas quais todas as razões e motivações para a existência dos fenômenos presentes no universo das idéias (os símbolos, a cultura e a política) estariam situadas no âmbito das relações econômicas. Dito de outra forma, o método utilizado por Marx para a crítica da política internacional de sua época carrega algumas particularidades específicas para além do mecanicismo materialista e seus críticos superficiais, tais como: 1. A interrelação dialética entre os fatores e processos da política internacional com fatores e processos particulares à configuração social propriamente nacional; 2. A indissociabilidade entre a economia e a política, ou seja, que a compreensão do funcionamento do modo de produção capitalista é necessária para compreensão dos cenários e interesses em jogo na arena da política internacional; 3. A autonomia relativa das instâncias sociais superestruturais e das formas de consciência sobre as condições dadas do concreto, tal qual este se configura na prática. O que se materializa na prática da política externa britânica,

principal potência capitalista do período pós-Congresso de Viena, através da sua orientação predominantemente conservadora e aristocrática, sob orientação de Lord Palmerston. A noção de totalidade, a política internacional e a revolução socialista A derrota da Comuna de Paris e a sangrenta reação a qual se seguiu, não inviabilizaram o desenvolvimento e ampliação das lutas do proletariado dos países industrializados,

principalmente

europeus,

mas

também

do

norte-americano,

incorporando temas e conquistando vitórias econômicas, sociais e políticas, como a ampliação do direito de voto, a redução da jornada de trabalho e aumentos de salário. Este processo fomentou o crescimento dos grandes partidos da social-democracia européia, principalmente na Alemanha, Inglaterra e França, principais sustentáculos da Segunda Internacional Socialista. Os quase cinqüenta anos que separam a Comuna de Paris da Revolução Bolchevique caracterizaram-se pela expansão econômica da chamada segunda revolução industrial, marcada pela eletricidade, a química, a máquina a vapor e a expansão transcontinental da rede de ferrovias. Um ciclo de crescimento econômico que impulsionou o neo-colonialismo europeu e norte-americano sobre África, Ásia e Oceania, transformando a vida de milhares de pessoas no mundo através do redesenhar de fronteiras impostas pela força, unindo sociedades rivais e separando artificialmente laços de tradição e consangüinidade. Tão logo as principais potências asseguraram o controle sobre novos espaços econômicos, menos espaço restava para o controle das novas potências de crescimento econômico tardio, como Alemanha, Itália e Japão. Não tardou para que as rivalidades nacionais criticadas por Marx e Engels em seus comentários sobre a política externa da segunda metade do séc. XIX, se expandissem envolvendo países de todos os continentes interligados pelo modo de produção capitalista. A experiência do século das revoluções burguesas que a pouco se encerrara, já havia prenunciado, desde a Comuna de Paris de 1871 que agora mais do que nunca entrara na ordem do dia as revoluções proletárias. La Gran Revolucion Francesa inauguro una nueva época en la historia de la humanidad. Desde entonces hasta la Comuna de Paris, es decir, desde 1789 a 1871, las guerras de liberación nacional, de carácter progresista burgués, constituían uno de los tipos de guerra. Dicho en otros términos: el contenido principal y la significación histórica de estas guerras eran el derrocamiento del absolutismo y del régimen

feudal, su quebrantamiento y la supresión del yugo nacional extranjero. (LENIN, 1976, p. 6).

Porém, aquelas revoluções do séc. XIX deixaram como um pressuposto inquestionável para os revolucionários de toda a Europa, a idéia de que obrigatoriamente a próxima revolução proletária seria sucedida por uma onda de tamanha intensidade, que varreria os demais países do continente, mesmo que ela ocorresse no elo mais fraco da corrente. O atraso do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, o peso numérico reduzido da classe operária em face de imensa maioria camponesa e a presença de um aparelho estatal semi-feudal fez com que durante muito tempo predominasse no debate sobre o poder entre os marxistas russos, as posições de G. Plekhanov. Segundo ele, a revolução na Rússia só poderia ser burguesa, dirigida pela burguesia, cabendo aos socialdemocratas esperar situados fora do governo a sua conclusão, para somente então assumir o poder e construir o socialismo. Porém, logo após a Revolução de 1905, Lenin rompia com esta posição ao afirmar que os social-democratas tinham a obrigação de participar de um governo revolucionário que realizasse o programa mínimo, social e democrático. Isto porque apesar da necessidade de um período de desenvolvimento capitalista na Rússia, as forças políticas da burguesia, dadas suas trajetórias não seriam confiáveis por seguidas aproximações e diálogos com o Czar, o que as levaria, muito possivelmente, ao não rompimento com a autocracia. Por sua vez, o proletariado e o campesinato pobre, ao compor um governo revolucionário anti-monarquia, desenvolveriam estas tarefas até o fim, o que possivelmente representaria o prólogo das revoluções socialistas na Europa. A Grande Guerra que estala em 1914, com a anuência da maioria da socialdemocracia européia, faz com que Lenin proceda a uma revisão na sua estratégia de tomada do poder em 1915. Nesta revisão, dois foram seus aspectos centrais: 1. A Guerra aproximara e encadeara a política européia de tal modo, que uma Revolução burguesa na Rússia seria, não somente o anúncio possível da Revolução na Europa, como também parte integrante desta; 2. O voto nos créditos de guerra e ações similares da social-democracia havia diminuído o apelo e a popularidade do socialismo entre as massas. Seria necessária uma postura internacionalista efetiva e visível. O que levava em última instância, a redução da base social da revolução, dentro do

movimento socialista. Era preciso demarcar o campo e diferenciar os revolucionários, daqueles que assumiram posições aliadas às suas burguesias nacionais. A última revolução democrático-burguesa da Europa, a revolução na Rússia, seria o prólogo e ao mesmo tempo parte de uma nova onda revolucionária, agora de caráter socialista. Desta forma, estariam criadas as condições propícias para o desaparecimento futuro não só de um Estado, mas de todo o sistema de Estados então existente; como é reafirmado por Lenin (1986) no texto “Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da Europa” de 23 de Agosto de 1915. Esta leitura é possível, no interior dos marcos da tradição de pensamento marxista, segundo o qual os Estados, enquanto construções sociais e políticas, cumprem um papel histórico determinado na reprodução social da existência nas sociedades de classe. Com a superação política, econômica e social das classes, estaria aberta a possibilidade da superação histórica da necessidade dos Estados. Frente a falência da Segunda Internacional, motivada pelo voto da Social Democracia alemã aos créditos de guerra de seu país em 1914, a eclosão da Revolução de Outubro de 1917 serviu como o pólo aglutinador e logo em seguida organizador, do pensamento socialista. Desta maneira, rapidamente se constitui uma aproximação entre socialismo, marxismo e a própria experiência soviética, que resultou numa simbiose ou equivalência, aparentemente perfeita e inquestionável, muito embora não fosse real. A partir deste momento, o exercício interpretativo da dinâmica da totalidade social e histórica segundo as categorias e conceitos gerais postulados pelos fundadores da tradição de pensamento marxista por um lado e as estratégias norteadoras de uma práxis voltada para a construção de uma sociedade socialista, por outro lado, se tornaram indissoluvelmente ligados com as formulações teóricas e políticas do partido bolchevique. Quando este processo revolucionário dilacerou-se nas suas contradições internas, redundando na estabilização do modelo burocrático stalinista, a noção de totalidade, assim como o próprio método dialético marxista, terminaram por sofrer as conseqüências. A experiência viva e inédita da tentativa de desconstruir o Estado tal qual existia e construir uma nova sociedade, qualitativamente diferenciada daquelas até então existentes nos países de economia capitalista, estava em andamento. Uma experiência

histórica ímpar estava começando e teria cada vez mais uma repercussão em escala mundial, colocando na arena da política interna dos países capitalistas, em um grau mais acentuado do que já ocorria, os temas caros ao pensamento socialista. Pela primeira vez, a corrente marxista de pensamento e ação teria a oportunidade de colocar em prática os seus pressupostos e projetos radicais de organização econômica, social e política dentro de um Estado moderno. Entretanto, a realidade da luta política na Europa, reservava-lhes um conjunto de problemas e dificuldades que se desenvolveram em uma direção inesperada. A Guerra imperialista, segundo a interpretação leninista, aconteceu de tal modo a preparar a cena para a Revolução na Rússia. No entanto, esta não se constituiu na ante-sala da revolução internacional, como era esperado por seus protagonistas. A derrota da revolução na Europa, com destaque para os levantes na Alemanha e Hungria, alterou a pauta com que se defrontaram os revolucionários russos, sob condições tremendamente adversas de guerra civil, armada, financiada e também executada pela intervenção direta de potências estrangeiras, além do decorrente cerco internacional. A questão central em 1921, com a vitória na frente interna e a derrota na frente externa, passara a ser a manutenção do poder de Estado, face às necessidades da reconstrução econômica e social da Rússia esgotada pelas duas guerras, em um contexto de debate e luta política intensas sobre a possibilidade ou não da construção do socialismo em um só país, semi-feudal, com fortes resquícios objetivos e subjetivos da servidão recém superada a pouco mais de 50 anos e com toda a complexidade que lhe é própria, externa e internamente. A partir desta nova circunstância histórica, a elaboração de uma nova sistematização que enfrentasse, conscientemente ou não, as lacunas da estratégia e do pensamento político, se deu concomitantemente a construção concreta de uma política diferente da anterior, defensiva em linhas gerais, pois voltada à manutenção do poder já sobre controle, e positiva dada a necessidade de construir um novo poder. O Imperialismo como teoria das RI Em diálogo com Hobson e Hilferding, proeminentes economistas capitalistas da época, além dos socialistas Kautsky e Plekhanov, que não compartilhavam de suas perspectivas críticas e revolucionárias, diversos dirigentes e pensadores socialistas

elaboraram sínteses e formulações pertinentes a esta época, tais como Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bukharin e Lenin. Era ampla a constatação de que as transformações em curso levavam o modo de produção capitalista, em sua dinâmica internacional, a um estágio diferenciado do anterior, que passou a ser denominado de Imperialismo. Suas principais características eram: o crescimento das trocas internacionais; a constituição de grandes conglomerados ou trustes; a exportação de capital às antigas e novas colônias; a necessidade estratégica do controle sobre espaços econômicos necessários para a venda de seus produtos industrializados; assim como o predomínio do capital financeiro sobre o conjunto da economia, fruto da fusão entre o capital industrial e o bancário. Estes traços eram em grande medida perceptíveis aos olhos de todos, independentemente das decorrências políticas e estratégicas diferenciadas defendidas pelos diversos autores. Chama a atenção que entre os autores marxistas revolucionários, a noção de totalidade está presente, permitindo a articulação das análises propriamente econômicas, com o desenvolvimento da política internacional, como pode ser verificado principalmente nas obras de Rosa Luxemburgo, Trotsky e Lenin. Dentre as diversas obras que trataram esta fase histórica do modo de produção capitalista como Imperialista, aquela que assumiu maior relevância histórica foi à escrita por Lenin, em 1916, denominada “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”. Tornou-se recorrente entre aqueles que se organizaram ou foram influenciados pelos partidos comunistas em seus diversos matizes, no período posterior à Revolução Bolchevique, a visão de que as teses expressas no “Imperialismo...” de Lenin eram definitivas. Muito possivelmente esta crença se originou do inegável papel político e histórico, de que a referida obra cumpriu no desenvolvimento final da estratégia bolchevique da tomada do poder e para a diferenciação de campos no interior da Segunda Internacional. Consequentemente o “Imperialismo...” reveste-se de uma importância fundamental histórica, teórica e politicamente, para as reflexões que pretendam realizar o enlace teórico entre o tema das Relações Internacionais e a tradição de pensamento marxista. Suposto marco inicial e, durante muitos anos entre os marxistas de corte stalinista, obra canonizada como a síntese da relação entre a tradição de pensamento marxista e a recém nascida disciplina das RI, esta obra encerraria tudo o que se poderia pensar e dizer tanto de um ponto de vista especificamente marxista quanto genericamente socialista acerca deste tema. Essa crença marcou profundamente a relação entre a

tradição de pensamento marxista e o conjunto das teorias e obras que problematizam as RI com o caráter de disciplina científica. Entretanto, deve ser ressaltado mais uma vez que existiam outras formulações dos revolucionários da Segunda Internacional, sobre a política internacional como elemento orgânico de suas estratégias de tomada do poder. Estas não começaram com o “Imperialismo...” e muito menos com o estouro da primeira guerra mundial. De fato, a possível guerra, como conseqüência das rivalidades perceptíveis há décadas, mobilizou a centralidade das reflexões que se tornaram centrais no debate da época; porém, muito havia sido escrito sobe outros aspectos da política internacional, tais como: o combate aos acordos diplomáticos secretos, o tema das nacionalidades e as críticas à repressão social das monarquias. Porém, independentemente da origem teórica e da orientação estratégica, tornou-se generalizada no campo da tradição marxista de pensamento a crença na ‘resolução teórica’ da questão internacional. Após a obra de Lenin, conferindo-lhe um estatuto de resposta científica de modelo teórico que os socialistas poderiam antepor, frente às formulações posteriores sobre as RI. Esta interpretação estava em acordo metodológico e político com o cenário de ascensão da hegemonia stalinista, consolidado após os processos de Moscou. Metodologicamente, pois adequada a uma visão cientificista e anti-dialética do marxismo, iniciada por Engels e seguida por Althusser e outros autores. Politicamente, dado que se fazia interessante a cristalização do debate sobre a política internacional, pois esse era um dos temas centrais da disputa política travada no interior da Rússia Soviética. A transformação do conjunto da obra de Lenin em um corpo sistêmico e inquestionável - e no caso do “Imperialismo...”, em uma teoria das RI não pode ser compreendida em separado do cenário político da Rússia revolucionária. Fazia parte, no campo das idéias, da linha de afirmação e legitimação de Stalin como seu sucessor, estando associada ao culto a sua personalidade, à burocratização dos espaços políticos soviets, partido e sindicatos e à repressão sangrenta aos adversários. A inviabilização do livre debate teórico foi uma necessidade política, inclusive, pelo fato de que Stalin era o menos preparado teoricamente entre os membros do comitê central revolucionário. Ao mesmo tempo em que retirava a legitimidade do debate sobre a necessidade da internacionalização da revolução, marca do pensamento defendido por Trotsky.

Podemos concluir, portanto, que se mantém também entre os revolucionários anticapitalistas a perspectiva totalizante de Marx sobre a indissociabilidade dialética entre a política internacional e a política no espaço nacional. A compreensão da Revolução Russa como último momento do ciclo internacional das revoluções democráticas e primeira experiência do novo ciclo revolucionário anticapitalista, generalizada entre os bolcheviques ilustra como a noção de totalidade histórica em movimento, tal como trabalhamos aqui, é fundamental para os processos de construção teórica das RI desde um ponto de vista marxista. Tragicamente, a indissociabilidade da política internacional e as dinâmicas nacionais específicas, também estiveram presentes nos conflitos internos da experiência revolucionária russa, dado que uma das suas pautas mais sensíveis eram as estratégias para a expansão ou contenção da revolução socialista na Europa. Este foi um elemento constituinte de suas políticas, não sendo adequado imaginá-las como alheias às divergências entre os seus diversos grupos políticos. A história das revoluções socialistas do séc. XX ilustra o oposto; ou seja, exatamente a sua centralidade dado o desafio sistêmico que representaram. Considerações Finais A noção de totalidade é contraditória por excelência, dada a configuração das sociedades divididas em classes sociais antagônicas. É também permanentemente dinâmica, dada a interação constante e imprevisível, entre os elementos concretos situados na realidade econômica do modo de produção capitalista, com os diversificados desenvolvimentos das superestruturas ideológicas, culturais e políticas que lhes são compatíveis historicamente. Como já vimos no início desta reflexão, durante boa parte do séc. XX gerações e gerações de marxistas habituaram-se a trabalhar com a noção de totalidade, seguindo os preceitos metodológicos formulados por Engels em sua tentativa de sistematizar o materialismo dialético. Além do próprio enfraquecimento da noção de totalidade, que já foi devidamente criticado anteriormente, e em conformidade com a diretriz stalinista de ‘construção do socialismo em um só país’, há o fortalecimento de perspectivas teóricas no interior da tradição marxista que procuram compreender a realidade da sociedade nacional como uma totalidade própria, separada organicamente da totalidade histórica internacional na qual está inserida.

Para sermos coerentes com o método histórico e dialético, tal como utilizado pelos clássicos do pensamento socialista, faz-se necessário compreender que no interior da totalidade historicamente constituída, interagem de modo permanente, tanto as dimensões propriamente internas às sociedades nacionais, quanto os fatores mais dinâmicos e potencialmente influentes das RI, quer sejam: atores econômicos como classes sociais; agentes políticos como partidos, sindicatos, ONG’s ou Estados nacionais; as visões de mundo lhes permitem compreender suas motivações e atuar em prol de seus interesses; e as configurações sociais específicas e cenários historicamente constituídos com seus novos temas e dinâmicas próprias, tal como podemos ver com a questão ambiental no séc. XXI. Pensar em termos referenciados na tradição de pensamento marxista, pressupõe a categoria da totalidade histórica como elemento central através do qual podem ser vislumbradas de modo facilitado e destacado, as permanentes relações internas e orgânicas entre os atores, circunstâncias e formas de consciência, dado que perfazem manifestações próprias a uma mesma totalidade histórica entre a realidade internacional e a realidade nacional. Dito de outra forma, pelo menos desde o início da ascenção burguesa no período da revolução comercial e das grandes navegações, quando o modo de produção capitalista começou a se estender globalmente pelo planeta, o universo social, político e econômico construtor de uma determinada configuração histórica da política internacional, não pode ser considerado como elemento externo ao desenvolvimento histórico das sociedades em âmbito nacional. Os múltiplos aspectos e fatores inerentes ao desenvolvimento das sociedades nacionais constituem-se, em maior ou menor grau, em relação direta com o desenvolvimento das suas relações com o universo das relações internacionais. O desenrolar das contradições internas inerentes a uma dada totalidade histórica, principalmente aquelas originadas no processo de produção e reprodução da vida em escala ampliada, que são relações não só econômicas, mas também sociais, políticas e ideológicas, encontram-se tanto no espaço nacional, como também no espaço internacional e transnacional. O ‘esquecimento’ da noção de totalidade, não contribui com o desenvolvimento de uma teoria que se pretenda crítica ao modo de produção atualmente existente e historicamente condicionado, assim como não favorece ao livre debate teórico no interior da tradição marxista de pensamento.

Isto pode ser atestado, além dos exemplos levantados anteriormente, como também quanto à separação compartimentalizada dos campos científicos entre si, e destes em relação ao processo histórico e político, dado que a separação burguesa entre a esfera econômica e a esfera política é um elemento central para a legitimição de seu projeto histórico. No tocante às relações internacionais isto nos remete à necessária crítica aos modelos abstratos do contratualismo, base da compreensão realista do comportamento potencialmente belicoso dos Estados, quanto à metafísica Kantiana e seu programa para uma Paz Perpétua, ponto de origem do idealismo que romanceia e esconde as causas concretas dos conflitos. A recuperação da noção de totalidade pode facilitar, por fim, o desenvolvimento das leituras das Relações Internacionais no interior da tradição marxista, não só pela sua condição de categoria teórica transdiciplinar por excelência, mas também por facilitar a compreensão dos processos em curso na política internacional, como historicamente produzidos e, portanto, politicamente contestáveis, o que lhe favorece enquanto uma perspectiva teórica aberta aos novos atores e agentes da política mundial.

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