Marxismo Ocidental, Teologia da Libertação e Sociologia da Religião

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Marxismo Ocidental, Teologia da Libertação e Sociologia da Religião1

É possível entrar no mundo de Karl Marx por diversas ângulos, mas é fácil perderse em seus labirintos. Neste texto, optei por vias laterais que podem ser úteis para entender suas ideias, tanto quanto a leitura de seus clássicos livros. Leitor apaixonado de Charles Dickens, o filósofo alemão exilado em Londres afirmou que o autor do romance Grandes Esperanças expressou mais claramente as verdades sociopolíticas do que todos os discursos de agitadores, revolucionários e moralistas juntos. O fundador do materialismo histórico-dialético estava atento ao cenário de sua época, o que é atestado pelo envio de uma interessante carta de felicitações a Abraham Lincoln, por ocasião de sua reeleição à presidência dos Estados Unidos: “Desde o começo da titânica contenda americana, os operários da Europa sentiram instintivamente que a bandeira das estrelas carregava o destino da sua classe”. 2 Por outro lado, Marx elogiou as descobertas de Charles Darwin publicadas em 1859, no livro A Origem das Espécies. As teorias socioeconômicas marxistas foram comparadas aos êxitos da biologia evolutiva, no sentido da descoberta de supostas leis deterministas. Em relação à dimensão religiosa, sua posição permaneceu ambígua e secundária, pois considerava que a crítica da religião, a matriz de toda crítica social e ideológica, já fora feita por Ludwig Feuerbach. Num breve trecho do texto Para uma crítica da filosofia do Direito de Hegel, encontra-se: “A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da angústia real e o protesto contra essa angústia real.”. (MARX apud LÖWY, 1991, p. 11). A partir de 1890, os determinismos “teologizaram” as ideias marxistas: a história, a consciência e a subjetividade tornaram-se reflexos de uma escatologia profana, determinados por leis férreas dos modos de produção. Algumas vertentes do marxismo transformaram-se em ideologias estatais, sendo mobilizadas para censurar, matar e acusar

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Emerson José Sena da Silveira. Antropólogo. Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, UFJF. Realizou dois estágios pós-doutorais em 2008 e 2016, com bolsa do CNPq e CAPES, nas áreas de antropologia e ciências da religião, respectivamente. E-mail: [email protected]. Texto preparado para o evento intitulado: Atualidades Marxistas: pelos 100 anos da Revolução Bolchevique e pelos 151 anos da primeira publicação d’O Capital, organizado pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), a se realizar nos dias 27 e 28 de março de 2017 no campus central, em Belém do Pará. 2 Conferir: http://www.marxists.org/portugues/marx/1864/11/29.htm. Acesso em: 01/03/2017. A Mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores ao presidente Abraham Lincoln dos Estados Unidos, por ocasião da sua reeleição, foi redigida por Marx por decisão do Conselho Geral. Escrita entre 22 e 29 de Novembro de 1864, publicada em The Bee-Hive Newspaper, n.º 169, de 7 de janeiro de 1865.

dissidentes e dissidências.3 Embora parte dos conceitos de Marx estivesse comprometida pelo hegelianismo autorreferente, suas reflexões libertárias sintonizavam-se com movimentos e indivíduos por ele admirados (Revolução Francesa e Imannuel Kant). Em que consistiram algumas interpretações posteriores da vasta obra marxiana e como elas afetaram a teologia e a sociologia da religião foram afetadas? Perguntas que dão ensejo a muitas respostas.

Revolução, Religião e Secularização: entre aberturas e determinismos Qualquer fenômeno possui múltiplas origens e, por isso, destaco algumas linhas conceituais mínimas para os que nomino no título do texto. Em toda escolha escriturístico-metodológica, algumas questões ficarão no centro e outras serão deixadas ao largo, embora não sejam menos importantes. Por isso, faço considerações parciais, pois uma reflexão mais profunda demandaria muito tempo e espaço. Começo com algumas definições. Compreendo o Marxismo Ocidental como um conjunto de “teorias e perspectivas filosóficas, históricas, sociais e políticas, que pensou a contemporaneidade e fez a crítica ao capitalismo [...] dialogando com o estruturalismo e com a fenomenologia, incorporando elementos positivistas, da psicanálise, anarquistas e [...] teológicos” (VAZ, 2002, p. 428; ANDERSON, 1989). Entendo a Teologia da Libertação como um grande movimento sócioeclesial – e uma interpretação teológica católico-protestante “secularizada” e não-mágica –, quer surgiu em áreas rurais e urbanas na América Latina, liderado por sacerdotes e leigos católicos, presbiterianos, metodistas e outros, e que contribuiu para o revigoramento de inspirações judaico-cristãs, como a ideia dos pobres de Javé. Em relação à Sociologia da Religião, defino-a como uma importante vertente acadêmico-investigativa dos fenômenos religiosos, instituída em universidades europeias, norte e latino-americanas, constituída de importantes pesquisadores autores e conceitos clássicos, como o de secularização, e entendida como a derrocada do monopólio da religião sobre grupos sociais, consciências individuais, subjetividades, leis, sexualidade, política, ciência e outros setores da vida humana.

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Lembre-se Joseph Stalin e sua ordem para assassinar Léon Trotsky na cidade do México, os expurgos que mataram milhões de camponeses e a prisão de muitos intelectuais discordantes nos anos que se seguiram à morte de Vladimir Lênin (1924).

Esses fenômenos podem ser organizados em torno de três momentos: formação (1850-1920), desenvolvimento (1920-1989) e impasses (1989-2017). Entre a metade do século XIX e início do XX, a paisagem social, econômica e intelectual do mundo foi alterada. O modo de produção capitalista foi desenvolvido e surgiram novos meios de transporte, tecnologias produtivas e mercados. A urbanização e a industrialização caminharam juntas com movimentos de massa (migrações, revoltas, guerras, greves). As ciências humanas constituíram seu método e sua epistemologia, chocando-se com o sucesso das ciências da natureza. Entre os muitos fatos desse período de formação, destaco: 1) as obras de Karl Marx, como O Capital, A Ideologia Alemã e o Manifesto Comunista (as duas últimas com Friedrich Engels), lançavam as bases conceituais de ideias como materialismo histórico e dialético, classes sociais e luta de classes, capital, fetichismo da mercadoria, ideologia, acumulação do capital, modo de produção, meios e relações de produção, mais-valia (absoluta e relativa), alienação e consciência de classe, infraestrutura e superestrutura, comunismo etc. – algumas ideias foram apenas esboçadas (Marx faleceu em 1883) e continuadas por admiradores como seu amigo Friedrich Engels –; 2) a consolidação da doutrina social da Igreja com a encíclica Rerum Novarum (1893), do Papa Leão XIII, que apoiava o direito de organização dos trabalhadores católicos; 3) a emergência de novas correntes e práticas teológicas, como o liberalismo evangélico (afinado com a ciência moderna), o evangelho social (Inglaterra/EUA), o pentecostalismo e o fundamentalismo evangélico (EUA); 4) a atuação dos padres operários franceses junto ao operariado de Paris; 5) os primeiros passos da práxis revolucionária com as futuras Internacionais Socialistas, embora importantes correntes críticas, como os anarquistas de Mikhail Bakunin, tenham sido marginalizadas; 6) o recrudescimento da exploração, do colonialismo e do imperialismo, da violência contra operários, mulheres, camponeses, pobres e migrantes; 7) a Revolução Bolchevique de 19174; 8) a publicação dos primeiros clássicos da sociologia da religião, como As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), de Emile Durkheim e A Ética Protestante e o ‘Espírito’ do Capitalismo de Max Weber (1904/1920)5; 9) o lançamento das ideias fundamentais dos estudos de religião, tais como as origens sociais do sagrado, da religião e do conhecimento, as relações entre

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Uma grande revolução, complexa nas causas e feitos, feita em reação aos graves problemas enfrentados pela Rússia: pobreza, miséria, autoritarismo da dinastia Romanov e outros aspectos. 5 Na verdade, são dois textos, um inicial e outro corrigido. Weber também realizou estudos tão importantes quanto o livro sobre a ética protestante, mal interpretado por muitos leitores. Cito os estudos sobre as éticas econômicas e sociedades, tais como as religiões da China, o judaísmo, o hinduísmo, o budismo etc. É preciso observar que há outros estudos e autores importantes, mas, por questões de espaço, não poderei abordar aqui.

economia, sociedade e ética religiosa, secularização, laicidade, desencantamento, pensamento mítico, rituais de passagem e outros. Havia, por isso, uma forte impressão: por um lado, mais modernidade corresponderia a menos fé, religião e igrejas nos espaços públicos, por outro, mais capitalismo traria mais burguesia, mais classe operária e, em consequência, a revolução iminente. No segundo momento, o Marxismo Ocidental surgiu como um programa de interpretação das ideias de Karl Marx. Abarcando a Europa, atingiu o auge entre 1930 e 19706. Grandes e diferentes autores o constituíram: Georg Lukács, Ernest Bloch 7, Karl Korsch, Antônio Gramsci, Walter Benjamim, Jean Paul-Sartre em sua obra tardia, Louis Althusser, as primeiras obras de Jürgen Habermas e os membros da Escola de Frankfurt8, entre outros (MERQUIOR, 1987). Cabe reparar que em 1932, são publicados os então inéditos Manuscritos Econômico-Filosóficos do jovem Marx, o que provocou grande impacto sobre o marxismo. O comunismo que emerge dos Manuscritos propunha a transformação da sociedade e a emancipação completa do ser humano. Na interpretação de Marcuse, um dos mais originais leitores marxianos, os Manuscritos anunciavam em termos políticos o que mais tarde Sigmund Freud anunciaria em termos psicanalíticos: a subjetividade, reprimida pelos partidos políticos marxistas, são indomáveis, mas basilares. Entusiasta da rebeldia estudantil e da contracultura, Marcuse publicou Razão e Revolução, em 1941; Eros e Civilização, em 1955 e em 1964, A ideologia da sociedade industrial: o Homem Unidimensional. Durante os anos 1920 e 30, auge do fascismo, do nazismo e de ideologias totalitárias de direita, Antônio Gramsci9 destacou-se como outro grande intérprete da obra marxiana. Enfatizou a interinfluência entre política e estrutura de classe e construiu

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Dois livros publicados em 1923 são considerados marcos iniciais: História e Consciência de Classe, de Lukács, e Marxismo e filosofia, de Korsch. 7 Uma breve nota sobre Bloch, que pretendia recuperar a dimensão da utopia na reflexão marxista. Em 1923, escreve L’esprit de l’utopie. Para Bloch, a utopia tem uma função de abertura e reestruturação da sociedade. Entre 1937 e 1948, escreveu o conjunto de reflexões denominado Princípio da Esperança. A esperança encontra-se no limiar da insatisfação do homem perante a sua condição histórico-social, devendo ser entendida como categoria política de emancipação. Admite, por fim, a necessidade de repensar o marxismo em seus pontos centrais, enrijecidos pela ortodoxia doutrinária. 8 Escola de Frankfurt: Nome dado ao grupo de pensadores alemães do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, fundado na década de 1920, cujas ideias impactaram profundamente o marxismo, ao se debruçarem sobre a sociedade industrial de massas. 9 Nascido na Sardenha, região pobre da Itália, militante, secretário-geral e deputado do Partido Comunista. Foi preso a mando de Mussolini, morreu na prisão (1937).

conceitos como hegemonia, intelectual orgânico, lutas culturais, organizações políticas, com ideias inspiradas em sua análise da Igreja Católica italiana. Nesse período, procurou-se renovar a filosofia marxiana e marxista, mantendo diálogos com outras filosofias e pensadores, tais como Georg Simmel, Wilhelm Dilthey, Max Weber, Benedetto Croce, Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche e outros (ANDERSON, 1989). Por isso, após a Segunda Grande Guerra Mundial, popularizou-se uma ferrenha crítica ao mercado de consumo, à subjetividade vazia oriunda das configurações econômicas pós-industriais e à razão técnica como instrumento repressivo. O livro Dialética do Esclarecimento (1947), de Theodor Adorno10 e Max Horkheimer, expressa pessimismo crítico, abandonando a noção de moralismo messiânico do proletariado (ANDERSON, 1989; MERQUIOR, 1987)11. As insurreições armadas surgiam como reação ao recrudescimento das misérias e violências inscritas nas dominações capitalistas. As guerrilhas espocavam pelas Américas, Ásia e África, algumas das quais levaram ao poder os comunistas e os socialistas. Intelectuais, artistas e pensadores foram expulsos dos partidos comunistas, como o importante cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1949). Por essa época, o comunismo enquanto ideologia e governo expandiu suas fronteiras: a revolução vermelha na China (1949) e em Cuba (1959), tornaram-se símbolos vibrantes. Pouco depois, em 1951, o argelino Albert Camus, militante comunista entre 193638 na Argélia (África), publicou O Homem Revoltado, um livro que abalou as esquerdas europeias e mundiais por conter fortes críticas ao modus operandi da práxis política revolucionária com uma pergunta simples: por que antes de tomarem o poder, por armas e insurreições populares, os líderes revolucionários vistos como “profetas”, “visionários” e “heréticos” se tornavam “policiais”, “ditadores”, “narcisistas”, “guardiões da ortodoxia” e promotores do culto à sua própria personalidade? Por que, em nome da liberdade e da revolução, praticavam-se e justificavam-se crimes, prendendo, censurando, corrompendo, comprando e matando em nome do amor pela humanidade, com a convicção de que

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Em 1966, Adorno publicou Dialética Negativa (1998, p. 17), na qual concorda com os pós-estruturalistas quanto ao questionamento da subjetividade de matriz cartesiana, mas recusa-se a cair no que chama de niilismo pós-moderno. Aprofunda o diálogo com a tradição alemã (Kant, Hegel e Heidegger) e propõe a recuperação da dialética como crítica à metafísica da identidade instrumentalizada pela lógica de dominação da natureza, inscrita na sociedade capitalista de massas. 11 Um dos mais talentosos nomes do Marxismo Ocidental foi Walter Benjamim. Procurou compreender uma das partes mais enigmáticas da “capital do capital” – as galerias parisienses. Ao se debruçar sobre outros temas da cultura, como no livro Origem do drama barroco alemão, pesquisou o caráter fetichista da mercadoria como chave da consciência na estrutura do capital (BENJAMIN, 2006).

dissidentes e opositores eram “ervas daninhas” que precisavam ser arrancadas? Para Albert Camus, por conta da paixão cega pela ideologia, muito do socialismo e do comunismo governista rendeu-se a uma lógica mítica, milenarista e messiânica, presentes em antigas e novas religiões. Uma frase resume os dilemas dos movimentos reformistas e revolucionários do socialismo, ainda atual: era possível ser rebelde contra tudo, menos contra Moscou, Pequim e Havana. Nos anos 1960, Jean Paul Sartre, ressaltou a questão da liberdade e da subjetividade no livro Crítica da Razão Dialética: a filosofia marxista ortodoxa não compreendeu a subjetividade humana concreta que se realiza na História. Ao fazerem a História, os homens são por ela condicionados, mas essa determinação não cancela a liberdade, pois o universal é sempre vivido como particular pelo homem. O “acaso não existe ou, pelo menos, não da maneira como se imagina: a criança torna-se essa ou aquela porque vive o universal como particular” (SARTRE, 2002, p. 56). Por fim, dos muitos pensadores, Jürgen Habermas continua produzindo reflexões importantes. Em suas obras iniciais atualizou o pensamento marxiano, quando publicou, na década de 1960, os livros Mudança estrutural da Esfera Pública e Para Reconstrução do Materialismo Histórico. Todavia, caminhou para a teoria da ação comunicativa, o pós-secular e o pós-metafísico. No contexto da Teologia da Libertação, o período entre os anos 1950 e 1960 foi de diálogo entre a teologia católica e protestante e as tradições marxistas presentes nas universidades europeias e norte-americanas. Pouco depois, o Concílio Vaticano II (19621965) desenrijou a reflexão teológica e a prática pastoral, contribuindo para novas possibilidades: ecumenismo, diálogo inter-religioso, protagonismo laico e ações pastorais. O Papa João XXIII, durante o primeiro concílio ecumênico do século XX, lançou importantes encíclicas sociais, como a Pacem in Terris (abril de 1963), colocando em questão os conflitos agrários e da função social da terra. Por outro lado, houve uma forte reação teológica às críticas da religião12, oriundas de intelectuais e líderes marxistas ateus, hostis aos outros sentidos do religioso na sociedade moderna, mas, ao mesmo tempo, ocorreu uma releitura das ideias de Marx. De fato, segundo Löwy (1991), as relações entre Marxismo e Teologia da Libertação são marcadas por oposições e aproximações.13

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Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi, talvez, uma das maiores fontes de inspiração da crítica à religião, destacando-se sua ideia de redução da teologia à antropologia e a demolição do sentido transcendental no cristianismo. 13 Engels admirava a força revolucionária do cristianismo primitivo e das revoluções camponesas anabatistas da Germânia no século XVI, lideradas pelo teólogo reformado Thomaz Müntzer. Outros pesquisadores marxistas tinham grande sensibilidade ao tema da religião: Karl Kautsky e seus estudos sobre cristianismo primitivo e as heresias medievais (LÖWY, 1991).

Durante a época das ditaduras militares latino-americanas, entre 1970 e 1980, a Teologia da Libertação alimentou movimentos sociais e religiosos que lutavam contra a censura, a perseguição e a restrição dos direitos humanos e sociais. As Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais sociais, como a do Índio e da Terra, consolidaram um novo fazer teológico, que contribuiu para o nascimento de estruturas políticas como o Partido dos Trabalhadores, cuja proposta era superar os determinismos da velha guarda comunista, implantar a agenda da igualdade e justiça social dentro do modus operandi das democracias representativas, modernizar as relações do Estado com a economia a partir da ética e buscar a soberania nacional. A Teologia da Libertação mudou radicalmente a interpretação de passagens bíblicas paradigmáticas, como o Êxodo do Egito e os atos de Jesus narrados nos Evangelhos (Mateus, Marcos, João e Lucas), criando ideias, como a da opção preferencial pelos pobres em analogia às ideias marxistas de classe operária e revolução. A caridade foi relida como justiça social, a pobreza tornou-se um “pecado estrutural” do capitalismo e o advento do reino dos céus, o fruto da luta coletiva e sócio-política pela igualdade. Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, Henrique Dussel e Richard Shaull são alguns dos autores mais destacados da nova corrente teológica liberacionista. Dentre muitos livros, alguns são fundamentais por sua metodologia e hermenêutica ligadas ao pensamento marxiano14: El cristianismo y la revolución social (1955), de Richard Shaull, publicado na Argentina; Jesus Cristo Libertador (1971), de Boff; Teología de la Liberación (1972), de Gutierrez e Teología de la liberación y ética. Caminos de liberación Latinoamericana (1972), de Dussel. No caso da Sociologia da Religião, depois de um largo período inicial, com muitos estudos sobre povos primitivos e tribais, rituais e mitologias, sobre ética religiosa e economia, entre outros, as pesquisas acadêmicas volveram-se sobre novos fenômenos: a desfiliação religiosa, a queda dos católicos, a diversificação da oferta de religiões e espiritualidades, em especial os orientalismos, pentecostalismos, as religiões africanas e suas herdeiras nas Américas, o renascimento islâmico e hinduísta etc.15 Por volta de 1969-1970, são lançados dois livros emblemáticos: L'eclissi del sacro nella civiltà industriale (1961), de Sabino Acquaviva, sociólogo italiano e O dossel sagrado, elementos para uma sociologia da religião (1967), de Peter Berger, sociólogo

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Usa-se a expressão marxiano ou, marxiana, no contexto das ideias de Karl Marx, para diferenciar interpretações determinista-positivistas das acadêmicas. 15 No Brasil, por volta dos anos 1950-60, os estudos sobre o declínio do catolicismo, a ascensão do pentecostalismo e das religiões afro-brasileiras nas cidades brasileiras davam seus primeiros passos com Cândido Procópio Camargo e outros.

austro-norte-americano. As ideias da sociologia da religião, de modo geral, falavam do avanço da dessacralização, das relações sociais e públicas despidas das experiências místicas e religiosas, da perda da plausibilidade cósmica da religião, da transformação das religiões étnicas em religiões universais, e outros. Os três fenômenos atingiram a maturidade acadêmico-científica e eclésio-social a partir de meados do século XX, mas foram desafiados por muitas questões: a democracia representativa parlamentar como horizonte histórico, as liberdades de expressão, o imperialismo americano e soviético, a emergência das discussões sobre terceira via, o pacifismo e o não-alinhamento, a luta pelos direitos civis de negros nos EUA e na África do Sul, a luta contra o moralismo restritivo de costumes, o recrudescimento dos problemas sociais, a corrida armamentista, a aceleração tecnológica, as mudanças das estruturas capitalistas, os fundamentalismos e os novos movimentos religiosos. Desse segundo momento, ressalto três grandes acontecimentos ocorridos em 1968: as revoltas de maio (França), a Primavera de Praga (antiga Tchecoslováquia) e a Conferência Episcopal de Medellín (Colômbia), todos com grande repercussão, pautando valores, protestos, movimentos e inspirando lutas sociais e religiosas mundo afora. Durante o mês de maio, estudantes das Universidades de Nanterre e Sorbonne, tomaram as ruas de Paris, acompanhados, logo depois, por milhares de cidadãos, trabalhadores e operários. As forças sindicais, governamentais, de direita e esquerda, surpreenderam-se com as massas e mobilizações que apontavam para a falência dos meios clássicos de representação e luta política. A comoção espalhou-se num contexto em que a Guerra Fria, as guerras pela descolonização da África/Ásia e a do Vietnam, as sangrentas ditaduras latino-americanas, as profundas alterações comportamentais, sexuais e culturais estavam no ápice. O recurso às lutas armadas contra ditaduras, e como reação à exploração e à miséria que grassava no continente latino-americano e africano, mostrou-se uma penosa estratégia, com pouco sucesso e muitos problemas. Um pouco antes, em janeiro de 1968, o secretário geral do Partido Comunista Tcheco, Alexander Dubcek, iniciou um programa de reformas (“Por um socialismo mais humano”): igrejas e imprensa foram liberadas da censura, propuseram-se o fim do monopólio político do Partido Comunista e a liberdade aos movimentos pelos direitos civis de minorias étnicas. Alguns meses depois, as tropas do Pacto de Varsóvia, comandadas pela URSS, iniciaram a ocupação de Praga: o Congresso do Partido Comunista foi anulado, o presidente tcheco e os líderes do movimento foram presos e levados a Moscou (CONTRERAS, 2009).

A partir desse e de outros movimentos autoritários (perseguição de dissidências internas), o comunismo chinês, o soviético e o cubano, vistos como uma nova esperança, tornaram-se objeto de desconfiança. Por uma série de fatores externos (imperialismo norte-americano) e internos (patrulha ideológica, autoritarismo), o comunismo fechou-se às reformas orientadas para liberdades individuais e direitos civis, sobretudo de minorias étnicas, sexuais e religiosas. Com o endurecimento dos governos comunistas, as democracias representativo-parlamentares disputaram espaço político do futuro junto com os grupos liberais, conservadores e de direita, que voltaram a marcar presença no espaço público e na estrutura estatal. Em agosto e setembro de 1968, na cidade de Medellín, Colômbia, ocorreu a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, que objetivava viver as mudanças do Concílio Vaticano II (1962-1965) (COMBLIN, 2008). A orientação pastoral e eclesial levou em conta a realidade social vivida na América Latina: intensa desigualdade social, violações dos direitos humanos no campo e nas cidades, pobreza e miséria, forte repressão das ditaduras político-militares etc. Nasceu, assim, um modelo de ação pastoral diferente do modelo assistencial e do sacramental-hierárquico, baseados em questões morais e em doutrinas interpretadas rigidamente (COMBLIN, 2008). A Primavera de Praga e a Teologia da Libertação foram esmagadas por duas ortodoxias, uma da direita conservadora e a outra do comunismo governista. A primeira delas foi liderada pelo Papa João Paulo II16 a partir de 1979, pois estava criado o contexto reacionário: o comunismo fechado para reformas democráticas e libertárias, o auge de governos liberal-conservadores nas principais potências mundiais (EUA, Inglaterra) e de militares conservadores na América Latina, África e Ásia e a perda de fôlego dos movimentos liberais políticos. A segunda ortodoxia esmagou a tentativa de construir um novo comunismo casado com a liberdade. Tanques e tropas sob as ordens de Nikita Kruschev, sucessor de Stalin, morto em 1953, trouxeram o inverno sócio-político para o comunismo real. O alegre e agitado maio de 68 dispersou-se, provocando dissidências nos partidos e movimentos de esquerda pelo mundo todo, mas trazendo novas linhagens de reflexão, como as pós-estruturalistas e pós-modernistas. Uma leva de grandes autores surgiu: Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Júlia Kristeva e outros. Desde

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É necessário dizer que João Paulo II fazia críticas contundentes aos problemas do capitalismo desde um certo ponto de vista, mas não compartilhava dos métodos da teologia da libertação.

então, os problemas entre liberdade, dissidência, subjetividade, política, economia, capitalismo, democracia parlamentar, estado de direito e lutas sociais acentuou-se. Durante a década de 1980, e após a queda do Muro de Berlim (1989), tem início o terceiro momento: a Teologia da Libertação e a Sociologia da Religião foram surpreendidas por potentes mudanças que se intercruzaram, provocando conflito e impasse. As transformações estruturais no capitalismo, apesar das crises recorrentes, o avanço da socialdemocracia, as mudanças nas estruturas do poder político e os novos pactos de poder entre as classes e segmentos sociais mudaram as conjunturas. Entre elas: a) a classe operária deixou de ser o único segmento socioeconômico a representar a luta e consciência revolucionária e outros grupos sociais (negros, gays, mulheres, indígenas, ecologistas etc.) reivindicaram direitos e reconhecimento, por diversos meios e estratégias violentas e/ou pacíficas; b) a reemergência do religioso como força política em todas as grandes religiões (a revolução islâmica de 1979 no Irã, o movimento nacionalista hindu, o cristianismo conservador nas Américas e nos EUA, a explosão pentecostal nas classes pobres, as religiosidades esotéricas e new age nas classes médias); c) os novos modelos de relações familiares começam a despontar; d) o aumento da pluralização de práticas no interior de igrejas e religiões com desdobramentos globais (o carismatismo católico ou RCC e as igrejas cristãs ‘gays’ ou inclusivas – no caso a igreja da comunidade metropolitana ou ICM –, surgiram nos EUA entre 1966 e 1968); e) as novas experiências sexuais, reprodutivas e religiosas subverteram as religiões oficiais e modelos familiares tradicionais, ampliaram a autonomia individual em relação as instituições e originaram novas identidades; f) os meios de comunicação de massa ampliam sua penetração, novos meios surgem (internet); g) as mudanças no modo de produção capitalista (setor de serviços, setor financeiro, aceleração tecnológica etc.). A partir dos anos 2000, os fenômenos de fragmentação dos sujeitos, a pluralidade de lutas e identidades (de gênero, sexuais, étnicas, raciais, ecológicas), o aumento da globalização, correntes religiosas conservadoras cristãs e não-cristãs atuando na política, novas redes sociotécnicas de comunicação (internet, redes sociais), a sociedade do consumo e do espetáculo, o terrorismo e financismo globais – entre outros – exigiram novos conceitos e estruturas de compreensão. As tradicionais repostas da Sociologia da Religião, da Teologia da Libertação e do Marxismo Ocidental não foram suficientes. Assim, novos conceitos e autores emergiram na sociologia da religião, procurando-se entender as permanências e persistências da religião e suas misturas na política, na cultura, na sociedade, na sexualidade, nas mídias, no consumo, na moral, na esfera pública e estatal e nas classes sociais. Ensaiaram-se novas possibilidades e, por

isso, não posso deixar de mencionar Antônio Negri e suas reflexões como Multidão e Império, dos anos 2000, ou livros mais antigos, como Marx Além de Marx (1991) e Insurreições (1999), entre outros. A pauta de fenômenos ampliou-se: corporeidades, mulheres e feminismos, gays, transexuais, negritudes, identidades universais e regionais, movimentos sociais, consumismos e mídias, saúde e terapias, conservadorismos, sincretismos e hibridismos culturais e religiosos, teologias da prosperidade, violências múltiplas e transversais, racismos disseminados, etnias reinventadas, novas classes e segmentos socioeconômicos, ativismos antigos, cibernéticos e anarquistas (como a tática black-bloc), juventudes, novas sexualidades, dispersões do sagrado, antigos e novos fundamentalismos, esquerdas e direitas, redes eletrônicas, novos circuitos de consumo, bens e serviços (mercados simbólicos, orgânicos, solidários), biotecnologia, ciborgue e engenharia genética, novas intelectualidades (religiosas e não-religiosas), apropriação tecnológica (software livre, códigos abertos, cultura digital), tensões e conflitos globais e locais, depressões, saudades da metafísica e da ontologia, monopólios, novas identidades de consumo, novas ecologias, populismos de direita e de esquerda, velhos e novos cultos à personalidade de líderes religiosos, políticos e artísticos, comunidades, narcisismos, e outros. Os regimes socialistas deixaram de ser como se apresentavam. Em alguns, apesar das políticas de igualdade sócia na educação e na saúde, estreitou-se a margem de liberdades civis, humanas e democráticas: a China tornou-se um regime misto (capitalismo submetido ao poder estatal, com forte centralização e censura); a Coreia do Norte virou uma dinastia estatal melancólica, sombria e repressora; Cuba perdeu-se entre as alegrias do passado e a incerteza do futuro; a Venezuela atolou-se entre um bolivarianismo obtuso e o sonho de Simon Bolívar. Os partidos e governos de esquerda perderam fôlego, quando, no contexto das democracias parlamentar-representativo-liberais, aliaram-se, simultaneamente, às antigas oligarquias locais, às elites financeiras globais, a novos atores sociais, como os poderosos grupos evangélicos, e às mídias novas e antigas, tentando, com estratégias clientelistas e patrimonialistas, salvar o programa progressista-revolucionário. O Marxismo Ocidental tem lugar de destaque na história das ideias, porém muito de seus conceitos ficou no passado. Entretanto, de seus mais originais autores, podem emergir intuições úteis para a compreensão do atual cenário de interrelações entre o religioso, o social, o econômico e o subjetivo. Por outro lado, a intuição original da teologia da libertação e das comunidades eclesiais de base permanece viva, dialogando com novos conceitos das ciências da

religião e das ciências humanas. O campo está mais plural, às vezes conflitivo: fenômenos e experiências religiosas, em especial a experiência pentecostal dos pobres e negros das periferias (homens e mulheres, operários, pedreiros, porteiros, costureiras e outros) e as sedutoras teologias do espetáculo e da prosperidade se expandiram e se misturaram; novas teologias feministas e pós-coloniais abriram mais frentes de luta: a das mulheres, a dos transgêneros e a ecologia; os antigos e modernos movimentos religiosos conservadores voltaram às ruas de mãos dadas com as novas tecnologias de comunicação e configurações da subjetividade (narcisismos e auto-exposição). O saldo atual é de crise da representação social e política, confusão, indeterminação, atravessamento de pautas e identidades. Todavia, é preciso retornar à Marx, mas não para repetir interpretações. É preciso uma hermenêutica críticocompreensiva que, inspirada pela caudalosa tradição marxiana, retome as origens, combinando-as com a crítica social das profundas injustiças sociais, a compreensão das novas subjetividades e das configurações tecnológicas, sem abrir mão da liberdade de pensamento e expressão. Referências ADORNO, Theodor. Negative Dialektik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989. BENJAMIN, Walter. 2006. Passagens. Belo Horizonte, Editora UFMG; São Paulo, Imprensa Oficial, 2006. _____. Origem do drama barroco alemão. São Paulo, Brasiliense. 1984. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis: Vozes, 1971. COMBLIN, Joseph. Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois. Cadernos de Teologia Pública. São Leopoldo: Instituto Humanitas-UNISINOS, 2008. CONTRERAS, Emilia Martos. La Primavera de Praga en el diario comunista Berliner Zeitung. HAOL, n. 19, Universidad de Almería, España, p.151-161, abril 2009. DUSSEL, Enrique. Teología de la liberación y ética. Caminos de liberación Latinoamericana. Buenos Aires: Latinoamérica Libros, 1972. GUTIÉRREZ, Gustavo. Teología de la Liberación. Perspectivas, Sígueme, 1972. LÖWY, Michael. Marxismo e teologia da libertação. São Paulo: Cortez Editora, 1991

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