Mas amanhã é Primavera

May 29, 2017 | Autor: Fernando Chiavassa | Categoria: Literatura brasileira, Literatura Portuguesa, Carta
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Mas amanhã é Primavera Fernando Chiavassa

Não há nada neste agora em que te escrevo: nem mesmo tempo ou espaço, mas amanhã é primavera. Tudo é irreal. Real, apenas a constatação do nada. Nada além do tédio diante da pequena quantidade de serviço e muito frio; a primavera que demora. Nada além da percepção de que desperdiçamos tempo e matéria e de que, assim, novas histórias jamais serão escritas. As cidades tem roupagens atraentes, mas vestem sistemas sociais obsoletos. Não existe nenhum trabalho diferente, não há homens novos e as mulheres também não conseguem se libertar. O sol não esquenta há seis meses (amanhã é primavera) e há cinquenta anos, desde menino ouço dizer que nosso país não tem mais jeito. Não tem mais jeito esse mundo, essa vida. Há meio século, a mesma história: não tem jeito. Falta tudo e ninguém - pobre ou rico – ninguém muda: ou não sabe, ou se sabe não tem tempo e assim, não tem mesmo jeito. Tudo segue igual, não se volta atrás e não se vai adiante. Nada neste mundo, senão a velha narrativa tecida pelos mesmos discursos do mando, da fome, do frio e a desconcertante certeza de que do jeito que vai este mundo não melhora. Mas amanhã é primavera. Se eu tivesse o tempo todo pra mim, poderia ler muito. Assim poderiam ler também todos aqueles jogados nos desvãos da cidade, sem posse de nada, sem lenço, sem documento, sem nada como eu que tenho mais, que leio. Com tanto tempo, escreveria tão e pintaria tanto mais que nem me daria conta de que um dia não tive nada, sem me atormentar com a ideia de que milhões não tem tempo como eu, por isso feliz, escreveria outros dois ou três livros de contos e terminaria três ou quatro romances; isso só pra começar. Disporia do nosso melhor tempo em torno de lençóis amarelos sem precisar correr, não tendo hora nem para o café, nem para as compras e muito menos então para a sua missa das onze horas. Haveria tempo e lugar para as missas de todos. Livre, pintaria aquele retrato seu – registrando uma mulher parada no deleite de seu tempo sem se incomodar com nada e por isso prestando atenção naquele nada que faz – pintaria desse jeito aquele retrato seu que não mostraríamos pra ninguém, rindo escondidos satisfeitos de nossos segredos que ninguém jamais imagina e nunca vai saber, pois quem é que já esteve no céu, senão nós que sabemos muito, mesmo que somente de nós. E mal sabemos de nosso povo: um dia perdi a fome vendo na calçada três caixas de papelão se ajustando ao frio, resmungando baixinho, suplicando; sonhando. Mas amanhã é primavera. E desta vida de sonho sei tanto do que quero e queremos que, mesmo que não tivesse o tempo todo – não iria querer o tempo todo só pra mim, imagine – teria muito mais tempo do que tenho agora, apenas menos tempo do que teríamos. Juntos – imagine um mundo unido –, realidade lavada de nossas mentes; fantasia. E se nós tivéssemos esse tempo mágico (todo pra nós e para todos nós que não temos tempo), viajaríamos somente com tempos de ida, para chegar sempre em casa sem ter que partir de novo para

canto nenhum, próximos de nós e dos vizinhos de nossos sonhos. Nos destinos, sem fazer nada e mesmo sem sono, assistiríamos tantos filmes que tanto seria uma palavra à toa. Tomaríamos cafés ao redor do mundo e se você quisesse, da lua ou de vênus – mesmo no vizinho –, achando cafés no céu de todo tipo, para continuar preferindo o nosso – mesmo – café de todo dia, que é o melhor café que tem. Imagine então que, se tivéssemos o tempo todo - insisto nisso -, não precisaríamos transar tanto quanto imaginamos que gostaríamos de transar no meio da semana, a qualquer hora. Com todo esse tempo, pela manhã reveríamos os filmes perdidos à noite (largados na fome do amor), sentindo o sol bater em nossos corpos até tarde. Longe do calor, afundaríamos nas cobertas felizes em driblar o frio, sem dar conta que nada seria mais prazeroso do que tamanho tempo, juntos, mesmo sozinhos. Que pena não largar esse trabalho idiota que torra mais que um terço de nossas vidas, o mesmo tempo que passamos dormindo. O que fazer com o terço restante diluído no trânsito e nas refeições, ou consumido em casa antes da hora de dormir, mesmo perdido nas doenças e em projetos de vida? Sei que se dormisse melhor teria mais ânimo. Mas penso que, mesmo com sono, envelhecido e com tão pouco tempo de vida, vale a pena subverter: as inúmeras negras estreladas são minhas. Enluarado, meto no avesso o contrato social e quem sabe um dia um anarquista nos salve, para que nunca mais precisemos ter que seguir nada e largar tudo que não queremos. Pintado de luz projeto um mundo diferente para que nossos filhos não tenham que contar as mesmas histórias, estúpidas de tão iguais, idênticas sagas de todos aqueles que, como nós, não tiveram tempo de nada, não viveram nada novo e morreram pobres – mesmo o maior milionário – como assim também fizeram todos os nossos antepassados. Mas amanhã é primavera.

Fernando Chiavassa escreve poemas, crônicas, ensaios e contos. Seus heterônimos, Mário Aviscaio e Altair Marino tratam apenas da ficção. O que não pode escrever, Fernando expressa através da pintura e da ilustração. Fernando fez oficinas literárias com os escritores Gilson Rampazzo, Marcelino Freire, Luiz Brás e Rodrigo Petrônio. Frequentou cursos como ouvinte na Usp (Letras), na Casa das Rosas (Curso Livre de Preparação do Escritor - Clipe) e atualmente é aluno do curso de Escrita Criativa no Instituto Vera Cruz. Textos de ficção e não ficção podem ser encontrados nas páginas do Facebook (nos álbuns de fotos também há pinturas e ilustrações). E nas páginas dos sites Scribd e Academia.edu. Contato: [email protected] https://unisantos.academia.edu/fernandochiavassa http://pt.scribd.com/fernando_chiavassa.

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