Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a espacialidade corporal do ator

July 19, 2017 | Autor: Ipojucan Pereira | Categoria: Estudos Em Corporalidade, Espacialidades, Atuação Cênica, Mascaramento
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Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a espacialidade corporal do ator. Artigo originalmente publicado na seção “Trabalho do Ator e o Espaço” dos anais da VII Jornada Latino-Americana de Estudos Teatrais http://www.atuarproducoes.com.br/jornada2014/pt/anais.php Ipojucan Pereira.

A pesquisa de doutorado “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a espacialidade corporal do ator”1 representa a evolução de uma longa jornada artística de investigação, exploração e ampliação do princípio do mascaramento como ferramenta de criação para o intérprete. Ela tem as suas raízes na fundação, em 1997, do Grupo Teatral Isla Madrasta – em atividade até os dias atuais, e do qual sou ator, diretor e pesquisador –, e iniciou-se como uma proposição artística abrangendo duas vertentes: o cruzamento de linguagens que fazem uso de uma maior plasticidade física e vocal do intérprete, tais como Clown, Commedia dell‟Arte, Mímica e Teatro de Animação, e o uso de “objetos inanimados” (máscaras, figurinos, bonecos etc) para mediar a composição de personas e dinamizar a presença cênica do ator diante do espectador. Naquela época, o grupo tinha dois eixos de pesquisa: o ator em sua própria fisicalidade e o ator com o “objeto inanimado” (outra fisicalidade). Era uma busca de um estado de relaxamento e concentração no qual o intérprete se colocava como observador, cedendo aos impulsos, e permitindo que o “objeto inanimado” atuasse como o seu mestre e encontrasse livre expressão por meio do seu corpo. Investigávamos uma espécie de estado “energético inicial”, que poderia ser chamado de ponto zero, ou neutro, ou ponto de concentração, que geraria uma presença dilatada responsável pelas ações e pelos movimentos. Foi nesse processo que surgiu o germe inicial de um pensamento que viria a extrapolar o trabalho desenvolvido até então com um tipo de máscara mais tradicional – de cunho antropomórfico e restrita ao rosto – para a ideia do “mascaramento”, relativo às trocas e fluxos com o ambiente, a partir dos elementos de cena tais como cenários, iluminação e sonoplastia. Quando optei por retomar os meus estudos acadêmicos, na pós-graduação em 2005, estava decidido a dar continuidade à essa exploração da linguagem da forma e do movimento por meio de máscaras e objetos, objetivando instrumentalizar melhor os atores no uso de seu potencial técnico. O ponto de partida para pesquisa seria verificar se interpretar é modificar o estado de energia através do movimento, ao se considerar que o ator é o manipulador das energias latentes da cena (dos bonecos, das máscaras, dos objetos, do espaço, das formas). Contudo, antes mesmo de inscrever um projeto no programa de pós-graduação, esta abordagem, que eu poderia chamar de “pré-historica”2, evoluiu do interesse pelos processos de atuação causados pela modificação do estado de energia do ator por meio da máscara e do movimento, para os processos de atuação do performer, por meio de construção de personas3 responsáveis pela mediação e dinamização de sua presença cênica. Deste amplo universo foi feito um recorte para o trabalho da performer brasileira Denise Stoklos,

consecutindo assim no projeto definitivo e tema da minha dissertação de mestrado: “O Teatro Essencial de Denise Stoklos: caminhos para um sistema pessoal de atuação”, concluída em 2008. No ano de 2011, com o meu ingresso no doutorado, se fez a possibilidade de agregar as investigações acerca da atuação performática, desenvolvida no mestrado, aos questionamentos iniciais sobre o mascaramento, presentes já no começo da minha trajetória artística. A tese, intitulada “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a espacialidade corporal do ator”, propõe um trabalho de pesquisa que aborda a ambientação da cena não como cenografia, mas como um dispositivo para os processos de criação do ator. A idéia é que as projeções do espaço cênico sobre o corpo do atuante instaurem uma outra idéia acerca do “mascaramento”, como uma ferramenta de trabalho que amplia o seu repertório estético e metodológico. Mas, como o intérprete pode se valer desse pensamento sobre o espaço e sobre a atuação num processo criativo? E como esse ator desenvolve rotinas de trabalho para alcançar essa competência? O conceito que Francisco Javier (1998) tem sobre a espacialidade da cena, como a primeira realidade sensível a partir da qual se constroem todos os signos do espetáculo, nos auxilia nessa reflexão da ambientação cênica como um princípio norteador do processo de criação a partir do espaço, tornando-o a matéria prima na qual o artista esculpe as suas idéias e emoções, e imbricando dessa maneira a relação corpo/movimento/ambiente no ato criativo.

Mascaramento Espacial I: processos de abstração da ação física e da espacialidade. Matteo Bonfitto (2002), no livro “O Ator Compositor”, estabelece nas suas proposições que o corpo é o material primário por excelência a ser trabalhado pelo atuante para que se possam desenvolver as ações físicas – elemento básico de todo o fenômeno teatral –, e que essas são empregadas na composição de partituras que auxiliam o intérprete no desenvolvimento e organização do seu discurso cênico. Devido à necessidade do emprego de elementos concretos que possam ser manipulados e reproduzíveis na confecção dessas partituras, a ação física deve ser também um material tão palpável e operacional quanto o corpo. Consequentemente isso requer, segundo Bonfitto, que já na construção dessas ações sejam empregadas matrizes efetivas – capazes de sensibilizar do corpo do ator –, assim como procedimentos, tanto para a criação quanto para a organização dessas ações físicas em partituras executáveis pelo intérprete. Sendo assim, ao ser proposta a utilização do espaço como uma dessas matrizes, automaticamente passamos a lidar com a problemática de operacionalizar conceitos espaciais abstratos em oposição à materialidade corporal do ator. Para promover o trânsito entre tais materiais de naturezas tão diversas, e propiciar o surgimento de um princípio criativo a partir do diálogo entre o orgânico e o não-orgânico, passaremos a pensar não em opostos, mas sim no hibridismo expresso na ideia de levar o ator a “ver” o espaço como consequência da sua própria espacialidade corporal. Com esse horizonte em mente – de que “ao realizar as suas ações, o [...] [intérprete] gera uma energia espacial que vai moldando o espaço cênico4” (IRAZÁBAL, 2004, p. 5, tradução nossa) –, tanto o impacto do movimento sobre o espaço quanto o seu revés, isto é, a forma como o ambiente provoca deslocamentos e reorganizações na dinâmica daquele que se move no seu interior, passa a ter como

epicentro a corporeidade e suas interações com os objetos de cena, com os diferentes planos que o corpo ocupa, com as dinâmicas rítmicas, com as imagens físicas em constante fluxo e transformação. Ao se pensar na referencialidade dessa abordagem, é possível perceber o seu comprometimento com uma extensa linhagem de homens de teatro que fizeram da relação entre a plasticidade do corpo e do espaço um eixo de investigação para evolução do ofício do ator. Como exemplo disso, observemos as palavras de Edward Gordon Craig, no alvorecer do século passado: Há uma coisa de que o homem não aprendeu ainda a tornar-se senhor; uma coisa de que não se suspeita mesmo, que está pronta para ser absorvida com amor, invisível e no entanto sempre presente, magnífica de sedução e pronta a escaparse; uma coisa que espera a vinda de homens aptos, pronta a elevar-se com eles acima do mundo terrestre: e não é senão o Movimento (CRAIG, 1911, p. 78).

Ao se pautar pelo movimento para pensar a arte do teatro, Craig passou a refletir sobre as maneiras de responder à demanda de tornar o espaço um dos eixos conformadores da arte da encenação, gerando uma proposta estética que colocava em xeque os excessos historicistas e o decorativismo ilusionista da cenografia de cunho Realista/Naturalista, realizando uma transição do estatismo para o dinamismo cênico. Suas considerações sobre o movimento o levaram a criar uma espacialidade em constante mutação por meio do jogo conjugado entre a iluminação e os volumes móveis. Contemporaneamente a Craig, Adolphe Appia também dirá que o movimento é algo essencial para o teatro, levando-o a pensar a cena em função do deslocamento do corpo do ator, e substituir a bidimensionalidade cenográfica do telão pintado por um cenário que dialogasse com a tridimensionalidade do corpo humano e com a sua rítmica. Observando as palavras do pesquisador estadunidense E. T. Kirby para esse processo, podemos perceber como esses questionamentos estavam atrelados às discussões da época, no campo das artes plásticas, acerca abstração como reação a arte figurativa: [D]e Gordon Craig (e do Neo-Romantismo) passando pelos Futuristas, Dada, o trabalho dos Formalistas Russos, os Expressionistas, os Surrealistas, a Bauhaus, e assim por diante, [...] [p]ercebemos muito claramente [...] uma intenção subjacente: a criação de um teatro abstrato. Seu símbolo, e o que explicitamente representa a sua função e estética, é a máscara - ou o ator mascarado a quem Craig denominou como a Super-Marionete5 (KIRBY, 1972, p. 06, grifo do autor, tradução nossa).

A máscara é metamorfose, transcendência, simulação. Um objeto que ao se amalgamar ao corpo cumpre a função de uma ponte entre a divindade e as forças sobrenaturais, como nos rituais, ou entre as ideias e personificações, como na arte. Ocorre por seu intermédio um processo de identificação com o que se deseja imitar, que desloca a pessoa que porta a máscara para um contexto diferente do costumeiro, modificando tanto a sua corporeidade quanto o ambiente a sua volta. Dessa maneira, não é por acaso que Gordon Craig propõe o princípio da Super-Marionete como mascaramento para trabalhar a fisicalidade do intérprete, estimulando uma plasticidade corporal mais afinada com as imagens cênicas, e portanto, harmonizada com o espaço (cênico). Quanto menos mimético ao mundo natural, maior a potencialidade desse tipo de mascaramento em representar conceitos espaciais. A abstração pode tanto evocar

características essenciais da natureza quanto falar de uma não-realidade. Para o trabalho do ator, as máscaras teatrais de formatos abstratos têm a capacidade de ajudá-lo na materialização corporal de algo tão impalpável como o espaço. Dentre os reformadores do teatro do início do século XX, citados acima por E. T. Kirby, vamos observar neste momento algumas propostas e procedimentos do diretor da oficina de teatro da Bauhaus – escola alemã de artes, design e arquitetura –, Oskar Schlemmer, que direcionou as suas investigações para que as formas do espaço se projetassem sobre o corpo do intérprete por meio de elementos que tinham a função de máscaras abstratas. Schlemer observa que a arquitetura do palco, na qual o ator está imerso, constitui-se num volume encerrado pelas paredes, colunas, piso, vigas e teto cuja resultante é um equilíbrio de forças que mantém toda a estrutura em suspenso, uma dinâmica momentaneamente paralisada, fixa e imutável. Ele aponta que comumente esse espaço é submetido ao “homem e transformado novamente em natureza ou na imitação da natureza [...] no ilusionismo do teatro realista6” (SCHLEMMER, 1961, p. 22-23, tradução nossa). Contudo, a base do seu pensamento é propor um funcionamento oposto a esse: ao explorar a arquitetura do movimento, a partir das leis do espaço cúbico por meio da planimetria, da “geometria do chão, do acompanhamento das retas, das diagonais, do círculo e da curva, desenvolve-se quase que espontaneamente uma estereometria do espaço através da figura móvel que dança” (WINGLER, 1981 apud GRANERO, 1995, p. 145). Numa composição coreográfica, a planimetria e a estereometria7 estão relacionadas para dar suporte ao fluxo de movimento do dançarino, sendo que a primeira é a representação no plano do chão dos deslocamentos e localizações, e a segunda a transposição dessa geometria para a espacialidade dos corpos. Um dos procedimentos empregados por Schlemmer era a marcação sobre o assoalho do palco das trajetórias e posições dos bailarinos, conectada às projeções estereométricas da sala, que propiciava tanto a visualização de todas as áreas no solo a serem exploradas nos deslocamentos, quanto a percepção das linhas invisíveis que subdividiam o espaço e que orientavam a gestualidade corporal. Partindo da oposição entre a verticalidade da figura humana e o plano horizontal do chão, essa ortogonalidade se desdobrava tridimensionalmente pelo espaço quando o corpo, nas suas torções em torno de seu próprio eixo, se movimentava criando linhas diagonais, ampliando os efeitos dinâmicos e expressivos. Essa conexão entre a forma humana e as extensões da arquitetura tornava o espaço e o corpo os elementos principais das matrizes que organizam as partituras e coreografias das obras de Schlemmer. Além das projeções sobre as superfícies – do solo e do corpo –, a estereometria também podia ser materializada em indumentárias e adereços cênicos, ocasionando a transformação do corpo humano, a sua metamorfose. A figura mecânica e artificial da marionete, ou do boneco articulado, passou a ser para Oskar Schlemmer o centro de um processo que transformava o corpo do intérprete e o reorganizava tecnicamente segundo as suas leis funcionais. Escondido sob máscaras e figurinos que alteravam significativamente o desenho corporal, o intérprete só podia agir e se expressar por meio de um simulacro, uma figura artificial sem voz ou individualidade. Para participar das ações cênicas calcadas em medidas e cálculos geométricos, esta foi a maneira encontrada de inserir no palco o organismo vivo: como uma imagem pictórica, uma escultura animada, um andróide mecanizado ou uma marionete articulada. Na sua busca pela essencialidade do ser humano, o caminho foi abstrair as formas naturais para revelar os elementos plásticos e assim poder criar formas artísticas. A gestualidade

passava a evidenciar uma qualidade de abstratação que podia assumir a coordenação motora de uma marionete, ou os aspectos arquitetônicos do espaço cúbico circundante, como também uma expressão corporal tecnicamente mais limpa e precisa, ou mesmo uma variabilidade de movimentos que praticamente impossibilite a fixação de uma forma específica. A partir dessas propostas envolvendo o uso da planimetria e da estereometria como forma de mascaramento, foram desenvolvidos alguns procedimentos práticos no âmbito da pesquisa de doutorado “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a espacialidade corporal do ator”. A aplicação dessas rotinas de trabalho aconteceu na oficina “A Espacialidade Como Matriz Geradora de Partituras Cênicas”, como parte da programação da Mostra de Artes Cênicas do Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator (CEPECA)8 do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, em maio de 2014. Durante dois dias seguidos, e com uma média de vinte pessoas por encontro, foram experimentados princípios de construção, organização e execução de pequenas partituras cênicas, tendo como eixo referencial para a construção de ações físicas algumas propostas de diferentes tipos de espacialidades. Por conta da síntese necessária exigida pelos limites óbvios do formato desse artigo, nos ateremos apenas a dois procedimentos a título de exemplo. Inicialmente, definiu-se uma área de jogo para os participantes da oficina, com a preocupação de que esse fosse desvinculado de modelos prévios de construção cenográfica, e com vocação suficiente para ser percebido e operacionalizado como um local abstrato e flexível para receber qualquer narrativa cênica. Para a configuração desse espaço, foi traçado um retângulo com fita crepe no centro da sala de ensaio, deixando o seu contorno, ao redor das suas arestas, livre para a circulação dos jogadores (essa área funcionava como uma espécie de coxia). Dos cantos internos do interior retangular, foram traçadas duas diagonais que se cruzavam no centro. Paralelamente aos lados do retângulo foram dispostas três linhas horizontais eqüidistantes e três verticais, que conservavam o mesmo distanciamento entre si. Obtivemos dessa maneira uma planimetria esquemática, pois não havia nenhum compromisso com a projeção das medidas ortogonais da sala de ensaio sobre o desenho traçado no chão. Como aquecimento prévio, os alunos foram orientados a se deslocarem sobre essa “grade”, procurando observar as relações de equilíbrio, tensão, proporção e composição entre as posições ocupadas pelos seus corpos. O foco principal era a percepção aos estímulos que as condições desse formato de enquadramento incitava às dinâmicas corporais. Após essa sensibilização, foram disponibilizadas fotografias de esculturas, sendo pedido como procedimento a cada um dos participantes que criasse uma seqüência de ações simples, com começo, meio e fim, a partir da escolha de uma delas. Todas as imagens escultóricas representavam posturas físicas, que deveriam ser encaradas como o ponto médio de uma provável trajetória do corpo pelo espaço, durante o desenvolvimento de uma ação qualquer. Com a falta de referencialidade a um contexto específico, o grau de abstração se tornou elevado, por conta do leque de possibilidades em se definir uma combinação que resultasse numa possível narrativa. Essa micro-partitura de ações passou a funcionar como um tipo de mascaramento, um foco que obrigava o intérprete a manter a sua concentração na sustentação e na manipulação de algo com o qual a sua totalidade psicofísica poderia ficar completamente envolvida. No procedimento seguinte, a turma foi dividida em dois grupos que se revezaram nas funções de atuadores e espectadores, isto é, enquanto um grupo executava uma tarefa o

outro o observava. Ao ouvir uma instrução de comando específica, o grupo a ser primeiramente observado deveria entrar no espaço retangular de jogo em uníssono, procurar um local para realizar a sua micro-partitura de ações e dar início à execução das mesmas. Ao findar de toda a movimentação em cena, o grupo se retirava conjuntamente para a área externa ao retângulo, que representava as coxias. Para cada um dos participantes, as restrições impostas a sua livre expressividade eram compensadas pelas possibilidades de investigação e entendimento das leis matemáticas que construíam a arquitetura na qual se encontrava imerso. A necessidade de submeter a corporeidade aos eixos vertical, horizontal e diagonal propiciou o alcance de uma expressão abstrata. Nesse segundo exercício também foi conduzida uma reflexão com o auxílio dos colegas colocados como platéia, direcionada tanto para as escolhas compositivas de cada membro do grupo em relação à totalidade do conjunto, quanto para as conexões que surgiram entre as seqüências de ações de cada um. Concluiu-se, por exemplo, que os sentidos do espectador não só se determinam por meio dos diferentes recursos da encenação, como também a partir da consideração da unidade do espaço teatral, a partir do tipo de relação que a arquitetura promove entre a sala e a cena. Mesmo sendo um desenho planimétrico de solo esquemático, o estímulo serviu a um pensamento tridimensional de que o corpo cênico constrói algo a ser visto pelo público. Esses procedimentos instauraram uma outra dinâmica de exploração do espaço teatral, desdobrando-o como uma proposta em que podem ser lidas uma poética e uma estética fomentadora de um processo criativo. Os seus indicativos apontam para a importância do tipo de espacialização sofrida pelos signos cênicos, pois o ambiente cênico não tem só a função de ser continente de linguagens heterogêneas, mas também cria uma identidade quando imprime a sua ação unificadora, resultando num corpus artístico homogêneo e coerente a ser comunicado à platéia. É o princípio da ideia de uma dramaturgia que se faz na articulação das linhas, nas texturas das superfícies, nas variações de dinâmicas, ou seja, na “relação de todos os sistemas significantes usados na representação e cujo arranjo e interação formam a encenação” (PAVIS, 2001, p. 409).

Mascaramento Espacial II: máscaras dinâmicas e espacialidade corporal. O que discutimos até o momento pelos exemplos e procedimentos apresentados foram propostas em que a síntese por meio do exercício da abstração tem como consequência a restrição do espaço cênico a um caráter essencialista, que tanto se torna um trampolim para uma expressividade baseada na plasticidade do corpo e da voz, como também proporciona um enquadramento máximo da atenção sobre o ator, já que o esvaziamento da cena serve de pano de fundo para os gestos, dá relevância à linguagem e estabelece um foco definido sobre os signos que se deseja veicular. Esse tipo de espacialidade serve de molduragem aos elementos, mas não na qualidade de janela perspéctica do drama burguês (cujo significado é dar enfoque a uma mímesis puramente ficcional), e sim como procedimento estético que “traz à tona elementos simples e sem significado [...] [, que] intensifica e concentra a propensão perceptiva de tal maneira que também o que é cotidiano se torna interessante” (LEHMANN, 2007, p. 268). Essa abordagem de abstrair a realidade que nos cerca como matriz para alcançar uma essencialidade expressiva está presente também na metodologia de um outro exemplo

que passaremos a tratar a partir de agora: o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM)9 de Jacques Lecoq. Ali, os alunos articulam, durante todo o curso, duas questões fundamentais para as discussões que se seguem: “o trabalho com o movimento, [...] e [...] o trabalho de criação que envolve a construção - e posterior 'animação' - de estruturas que procuram capturar, expressar e dar vida às qualidades dos movimentos explorados10” (MURRAY, 2003, p. 89, tradução nossa). Os estudos das leis do movimento humano e dos espaços do corpo, com a conseqüente construção de estruturas e formas portáteis (máscaras corporais) que dialogam com as dinâmicas exploradas fisicamente, têm como objetivo principal proporcionar ao aluno a compreensão e a percepção de “que não se representa diante de um cenário, mas dentro de um espaço construído para a ação do ator na situação” (LECOQ, 2010, p. 229). A característica fundamental das estruturas portáteis é a representação plástica da observação e análise sensível do movimento nas suas mais variadas manifestações – no ambiente, na corporeidade, na matéria inorgânica, nas variações cromáticas etc. A captação apenas dos traços dinâmicos daquilo que se pretende transpor para uma materialidade plástica é um passo de fundamental importância no trabalho do LEM, para se alcançar uma leitura adequada das características essenciais do ambiente. A escala projetada para essas formas abstratas pode ser facial, corporal ou espacial, sendo que, independente do seu tamanho, a sua função principal é atuar como uma “partitura física”, pois são concebidas para mobilizar o movimento no corpo da mesma forma que “todo o espaço habitável traz „propostas dramáticas‟ e influencia o comportamento dos que ali vivem ou dos personagens que ali atuam” (LECOQ, 2010, p. 227). Confeccionada para ser usada sobre o rosto ela recebe o nome de máscara dinâmica e alcançado as proporções do corpo, passam a serem chamadas de estruturas portáteis, que podem ser manipuladas, habitadas ou usadas em associação ao físico, como próteses, extensões ou figurinos. Essas estruturas Se o aluno (ou intérprete) a explora penetrando em seu interior ou amalgamando-se, a estrutura ou a máscara dinâmica reconfigura a sua cinesfera pessoal, proporcionando ao corpo o estudo direto das qualidades espaciais. O papel desses objetos plásticos é intermediar a pesquisa sobre o espaço, pois essas estruturas quando postas em movimento pelo manipulador afetam a atividade física do mesmo com os seus ritmos. Esse caminho promove as condições necessárias para a organicidade do corpo não só dialogar, mas também agenciar a sua multiplicidade expressiva segundo os princípios físicos e concretos que regem a matéria inorgânica, tais como linhas, planos, ritmos, peso, forças, densidade etc. O ponto de convergência que tentaremos explorar nesse momento entre as propostas do LEM e as nossas investigações está no tipo de tratamento abstracional dado ao espaço por aquele, que tem como resultado uma estilização formal de caráter geométrico, chamada de estrutura (ou arquitetura) portátil. A partir desse campo de exploração, foram realizados alguns experimentos sobre a linguagem das formas no espaço na disciplina “Teatro de Animação I”, em 2011, na qual fui professor conferencista a convite do orientador da pesquisa, ministrando as aulas para o primeiro ano da graduação em Artes Cênicas da ECA-USP. Esse exercício de docência proporcionou um campo de experimentação muito rico na condução de um processo de aprendizagem fundamentado na linguagem da máscara, que procurei direcionar para que fosse perpassado pela exploração constante do diálogo entre a forma e o movimento, ao experimentar o uso de máscaras dinâmicas inspiradas nos processos desenvolvidos pelo LEM.

O percurso escolhido foi iniciar uma investigação primeiramente com a máscara neutra, com o intuito de se estabelecer um estado de abertura e prontidão para os estímulos, bem como uma primeira abordagem das relações que a máscara estabelece entre a sua geometria e o espaço ao redor, seja ele arquitetônico ou humano. A neutra é uma máscara de fisionomia simples e simétrica, sem conflitos, que propõe ao ator ampliar todos os seus sentidos, encontrando a essência das ações e das situações. Por meio dela, “ao [se] subtrair o sistema de expressão do rosto desvela-se o corpo, que se torna a ferramenta da tessitura gestual no espaço” (COSTA, 2005, p. 29). O resultado disso é uma dilatação da presença do ator quando se instala um estado físico de prontidão, “o ponto zero, momento de energização e de escuta que antecede a ação, pausa antes de agir” (AMARAL, 2002, p. 43-44). Tal condição vem a ser um instrumento importante para potencializar a presença, ao se criar uma disponibilidade que pode ser associada a um esvaziamento de qualquer pré-disposição para a ação, tornando assim a motivação bastante reativa aos impulsos. O seu emprego propicia ao ator consciência corporal, presença cênica, disponibilidade física, economia da gestualidade, escuta (percepção) e justeza do tempo das ações. A máscara neutra não é um personagem, é um estado que se apóia na calma e na percepção, fontes de vida para todas as outras máscaras. Dessa maneira, ela representou para os alunos da disciplina “Teatro de Animação I” uma primeira etapa no percurso para se chegar às máscaras dinâmicas. Contudo, antes de se chegar ao fim dessa caminhada, ainda foi proposto um estágio intermediário pautado pelo uso e exploração da máscara expressiva. Esse tipo de máscaras personifica rostos de personagens que podem abranger uma gama extensa de expressões, que vai da plasmação perfeita e realista da face humana até a representação de tipos exagerados e grotescos, nos quais não importa a perfeição dos traços, mas sim o impacto emocional. No caso específico da disciplina, a expressiva serviu para o improviso de personagens a partir da máscara. A medida que os alunos interagiam com elas, procuravam conhecer e reproduzir – por meio de gestos, posturas corporais, entonações na fala e modos de se comportar e agir – as regras, os ritmos, as intenções presentes nos traços da máscara. Essa metodologia de criação a partir da observação e experimentação corporal das características físicas e concretas do objeto vem a ser fundamental para a abordagem criativa de qualquer mascaramento, inclusive aquele propiciado pela máscara dinâmica, que foi apresentada posteriormente aos alunos como parte final do curso. Como procedimento inicial para o trabalho inspirado nas estruturas portáteis do LEM, foram utilizados imagens e vídeos como modelo para a confecção e construção de máscaras de formatos geométricos, sem menção a qualquer tipo de corpo orgânico, seja ele animal ou humano. O sentido aqui não era o da cópia ou da simples imitação das máscaras dinâmicas do LEM, mas sim uma relação de aprendizagem modelar, na qual se desvenda e se conhece o objeto de estudo enquanto se procura reinventá-lo. As estruturas e formas abstratas foram realizadas com materiais comuns e de fácil manuseio (no geral, artigos de papelaria), para que se obtivessem elementos leves e fáceis de serem manipulados. A segunda proposição foi o improviso em grupo com essas estruturas abstratas confeccionadas pelos alunos. A orientação dada para esse trabalho foi em direção à percepção individual das possibilidades de projeção do corpo no espaço a partir das linhas de força da máscara. Assim que cada membro do grupo estabeleceu uma dinâmica para si, o grupo procurou experimentar conjuntamente um jogo de relações com ações improvisadas, sem a preocupação a qualquer menção a uma narrativa previamente

estabelecida. Após essa fase de criação, os grupos apresentaram as suas formalizações cênicas uns para os outros. Os resultados apontaram para uma compreensão refinada das relações de tempo e espaço, no qual o corpo, imerso numa dinâmica, desenhava imagens precisas e fazia a geometria espacial das máscaras reviver a serviço da emoção do ator. Ao se privilegiar o espaço como material de criação, obteve-se como resposta um tipo de ação caracterizada pela ausência de significado (que faz menção à um contexto ficcional), consecutindo numa carga de referencialidade que dizia respeito à própria concretude do material, isto é, às características físicas que definem o tipo de espacialidade utilizada como matriz geradora. As ações assim constituídas tinham um alto grau de abstração, e de modo algum intentaram expressar os conteúdos da psicologia de um sujeito em particular, ou mesmo resultar em metáforas e ilusionismos que encaminhavam a construção de significados a partir da interioridade do ator. Como não havia uma interioridade apriorística que modelasse as formas do corpo, foi o espaço físico exterior ao atuante que se tornou signo a ser articulado. Tanto o percurso dos procedimentos como os resultados cênicos experimentados até aqui apontam caminhos para a utilização de processos envolvendo o mascaramento espacial como base de criação para o ator, para que o mesmo lide com o seu aparato físico (aqui compreendido como a somatória mente/corpo/voz) como uma modalidade do espaço. A preocupação em erigir espaço e corpo como eixos de investigação e pilares de uma linguagem psicofísica é apontar um caminho para a compreensão das especificidades dos processos criativos do atuante no âmbito interno e externo das encenações, aumentando dessa forma a sua capacidade criativa-compositiva-autoral. Dessa maneira, pretende-se contribuir, sobretudo, para as demandas de novas competências técnicas que os artistas atualmente enfrentam em sua formação.

Referências: AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus Duplos: máscaras, bonecos e objetos. São Paulo: Ed. SENAC, 2002. BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. COHEN, Renato. Performace como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Edusp / Perspectiva, 1989. COSTA, Felisberto Sabino. A Máscara e a Formação do Ator. Revista Móin-Móin, Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, vol. 1, 2005, p. 25-51. CRAIG, E. Gordon. Da Arte ao Teatro. Lisboa: Arcádia, 1911. GRANERO, Maria Victoria V. Machado. A Aventura do Teatro da Bauhaus. Tese de Doutorado, São Paulo, ECA-USP, 1995. IRAZÁBAL, Federico. Francisco Javier: la renovación de la escena argentina está alojada em las pequeñas salas. Cuadernos de Picadero, año 2, no 4, diciembre 2004, Instituto Nacional del Teatro, Buenos Aires, p. 4-11. JAVIER, Francisco. El Espacio Escénico como Sistema Significante. Buenos Aires: Ed. Leviatán, 1998. KIRBY, E. T. The Mask: abstract theatre, primitive and modern. The Drama Review (TDR), New York, MIT Press, v. 16, no 3, Sep. 1972, p. 5-21. LECOQ, Jacques. O Corpo Poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Ed. Senac São Paulo / Ed. SESC SP, 2010.

LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. MURRAY, Simon. Jacques Lecoq. London / New York: Routledge, 2003. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. SCHLEMMER, Oskar. Man and Art Figure, in: GROPIUS, Walter (ed.). The Theater of the Bauhaus. London: Eyre Methuen Ltd., 1961, p. 17-46. SILVA, Ipojucan Pereira. O Teatro Essencial de Denise Stoklos: caminhos para um sistema pessoal de atuação. Dissertação de Mestrado, São Paulo, ECA-USP, 2008. WINGLER, Hans. The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. Cambridge, Massachusetts and London: MIT Press, 1981.

Notas: 1

Esta pesquisa tem o apoio da agência de fomento CAPES/CNPq.

2

Apesar de não ter sido levada adiante como pesquisa de mestrado, essas questões ganharam um certo aprofundamento no artigo: SILVA, Ipojucan Pereira . Corpo/Objeto: o “mascaramento” na cena contemporânea brasileira. Revista MóinMóin (UDESC), v. 07, p. 14-26, 2010. 3

Para Renato Cohen, em Performace como linguagem: criação de um tempo – espaço de experimentação (São Paulo, Edusp / Perspectiva, 1989, p. 103), a persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico e a personagem diz respeito a algo mais referencial. Segundo ele o trabalho com a persona se dá geralmente pela forma, de fora para dentro, a partir da postura, da energia. 4

[...] al realizar sus acciones, el actor genera una energia espacial que va dando forma al espacio escénico, [...]

5

[...] from Gordon Craig (and Neo-Romanticism) through the futurists, Dada, the work of the Russian formalists, the Expressionists, the Surrealists, the Bauhaus, and so on, [...]We perceive ever more clearly in this work an underlying intention: the creation of an abstract theatre. Its symbol, and that which clearly represents its function and aesthetics, is the mask – or the masked actor whom Craig called the Übermarionette. 6

“[...] man and transformed back into nature or the imitation of nature [...] in the theater of illusionistic realism”.

7

A estereometria, ou geometria do espaço, é um ramo da matemática que estuda o volume dos sólidos geométricos e que nos auxilia na medição do mundo tridimensional que nos rodeia. A planimetria é a representação em um plano de algum espaço tridimensional; os pontos medidos são projetados sobre uma superfície horizontal. 8

Coordenado pelos professores Dr. Armando Sérgio da Silva e Dr. Eduardo Coutinho, o objetivo principal do CEPECA é reunir, em grupo de estudos práticos sobre interpretação, professores, alunos de pós-graduação e interessados na área. Visando resultados perceptíveis em trabalhos práticos e espetáculos, caminham juntos os aspectos acadêmicos e criativos, ou seja, professor e alunos se obrigam e se comprometem com os resultados estéticos, a partir de suas escolhas metodológicas. 9

A partir de cursos ministrados aos alunos de arquitetura da Escola de Belas Artes de Paris (Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts), Jacques Lecoq criou, em 1976, o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM), um departamento de artes plásticas e cenografia experimental da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq. O departamento é consagrado ao estudo dinâmico do espaço e dos ritmos através da representação plástica, com aulas de movimento, de construção e de desenho, envolvendo os domínios da arquitetura, do design e da cenografia. Junto ao arquiteto Krikor Belekhian, Lecoq esteve à frente da direção do LEM até o ano de 2011, quando foi substituído por sua filha, arquiteta e cenógrafa Pascale Lecoq. Apessar da sua autonomia, a proposta pedagógica do LEM não está desvinculada da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, o que resulta em atividades que dialogam e interagem com a pedagogia da escola. 10

“[...] movement work [...] and [...] creative work that entails the building - and subsequent 'animation' - of structures which seek to capture, express and bring to life the qualities of the movements explored hitherto.”

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