Masculino e feminino no Libellus de Principiis Ordine Praedicatorum: Considerações sobre gênero e a Ordem dos Pregadores no século XIII

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FORTES, Carolina. Masculino e feminino no Libellus de Principiis Ordine Praedicatorum: Considerações sobre gênero e a Ordem dos Pregadores no século XIII. Trabalho apresentado no XXVIII Simpósio Nacional de História da Anpuh. 2015.

Masculino e feminino no Libellus de Principiis Ordine Praedicatorum: Considerações sobre gênero e a Ordem dos Pregadores no século XIII Carolina Coelho Fortes – UFF

Resumo: O Libellus de Principiis Ordinis Praedicatorium tem um papel central nos escritos posteriores da Ordem dos Pregadores, em especial no que tange à construção do modelo de santidade de Domingos. Pretendemos, neste trabalho, analisar as construções de gênero presentes neste documento. Nossa intenção é iniciar, com esta análise, uma pesquisa mais ampla que visa verificar os papéis de gênero dentro da ótica dominicana, que contribuiriam para sua relação com as casas femininas que pretendiam se atrelar à Ordem. O Libellus de Principiis Ordinis Praedicatorium tem um papel central nos escritos posteriores da Ordem dos Pregadores, em especial no que tange à construção do modelo de santidade de Domingos. Pretendemos, neste trabalho, analisar as construções de gênero presentes neste documento. Nossa intenção é iniciar, com esta análise, uma pesquisa mais ampla que visa verificar os papéis de gênero dentro da ótica dominicana, que contribuiriam para sua relação com as casas femininas que pretendiam se atrelar à Ordem. Partimos de uma idéia, no mínimo, problemática: as articulações entre modelos e realidades concretas. O que nos leva à pergunta: que relação há entre a construção de ideais de comportamento, tangíveis nos textos a que temos acesso, e as atitudes concernentes aos grupos de carne e osso que esses ideais pretendem regular? Ou seja, os modelos de masculino e feminino estabelecidos pelos dominicanos estariam vinculados diretamente ao seu contumaz repúdio à afiliação de casas de mulheres

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ao longo do século XIII? Não chegaremos à resposta para esta questão ainda aqui, mas insistiremos na pergunta para podermos refletir sobre ela. Há outro problema que nos move: é possível trabalhar com a categoria gênero quando no texto que escolhemos para análise não há nenhuma referência explícita a masculinidade ou feminilidade? Para essa pergunta temos uma resposta de pronto, e ela é afirmativa. Como a categoria gênero prioriza o caráter relacional entre mulheres e homens, podendo ser entendido como a organização social da relação entre os sexos,1 e esta relação está presente no relato que estudaremos, é lícito afirmar que o conceito é aplicável neste caso. Desta forma, a compreensão dos sexos não se dá pelo estudo dos dois separadamente, ou seja, mulheres e homens são definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão destes seria possível se fossem estudados em separado. Para Joan Scott, gênero como categoria de análise, se baseia na relação entre duas proposições: “gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de poder”.2 Enquanto a primeira proposição se refere ao “processo de construção das relações de gênero” e sublinha a importância “dos procedimentos de diferenciação pelos quais, em cada contexto histórico, são formuladas e reformuladas, em termos dicotômicos, os conteúdos aparentemente fixos e coerentes do masculino e do feminino”,3 a segunda proposição se refere à pertinência do gênero como categoria de compreensão e explicação histórica de outras relações de poder. O aspecto essencial do gênero formulado por Scott é expor as estratégias de dominação que sustentam a construção binária da diferença entre os dois sexos.

SCOTT, Joan W. “El Género: una categoria util para el analisis histórico”. In: AMELANG, James et NASH, Mary (eds.) História y Género. La Mujeres en la Europa Moderna y Contemporanea. Valencia: Edicions Alfons el Magnanim, 1990. 2 Cf. VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott. Cadernos Pagu, 3, 1994, p. 67, e SCOTT, Joan W. Op.cit. 3 VARIKAS, Eleni. Op.cit. 1

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Sendo uma forma primária de significar relações de poder, o que antevemos do documento que temos em mãos em relação ao gênero é uma supremacia do masculino. Os personagens citados são praticamente todos homens, não sendo as mulheres, quando aparecem, sequer nomeadas. Já disso concluímos que a Ordem dos Pregadores é fundada por homens e para homens. As mulheres, no longo século XIII, ocupam quando muito um lugar marginal entre os dominicanos. No Libellus, portanto, vemos uma Ordem com raízes profundas no masculino. Mas que masculino seria esse? Antes de nos determos na análise que possibilitará a resposta para esta questão, é necessário que digamos algumas palavras a respeito do documento sobre o qual esta repousa. O Libellus de Principiis Ordinis Praedicatorium, um relato sobre a vida de Domingos e dos primeiros frades composto pelo segundo mestre geral, Jordão da Saxônia, é o primeiro documento escrito sobre Domingos, entre 1231 e 1234, esta última a data de canonização do fundador. Embora possa ser classificada como uma hagiografia, esta obra se assemelha muito mais, em seu conteúdo e estilo, a uma crônica, já que Jordão aponta com precisão todas as datas e eventos marcantes para Domingos e a Ordem. Podemos encontrar seu objetivo ainda no prólogo: Jordão estaria atendendo aos apelos dos frades “desejosos de saber como teve origem a ordem dos pregadores”.4 Passados dez anos da morte de seu pretenso fundador,5 os novos frades buscavam as raízes para melhor compreender sua missão. Jordão já vê Domingos como santo, sendo suas qualidades suficientes para tal. Há toda uma discussão sobre a possível pretensão da obra, tendo alguns estudiosos visto o Libellus como um preâmbulo para a abertura do processo de canonização do fundador.6 Idem, p. 31. Embora dê relativo relevo a figura de Domingos, o Libellus também se estende a respeito de Diego de Osma, superior de Domingos naquela diocese ibérica, e motivador da missão de pregação no Languedoc, onde chegou a fundar o que seria considerada a primeira casa da Ordem, Santa Maria de Prouille. 6 Essa discussão é resumida em GELABERT, M.; MILAGRO, J. & GARGANTA, J. (eds.) Santo Domingo de Guzmán visto por sus contemporâneos. Madri: BAC. 1947, p. 153, embora a ela tenham 4 5

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Concordamos com estes estudiosos, o que nos leva a defender que, apesar de ser prioritariamente uma crônica, ali Jordão se esforça em estabelecer quais são os papéis e atributos adequados aos grandes homens que deram origem a Ordem que ele governa. Lancemo-nos a uma análise mais geral da obra, para só posteriormente nos determos em algumas passagens. Dos 94 capítulos analisados, 7 em apenas 12 são mencionadas mulheres. Como apontamos antes, nenhuma delas é nomeada, com exceção da Virgem Maria. Em apenas dois casos, essas mulheres falam e, em ambos, desempenham atitudes caracterizadas como pecaminosas. Já os homens são nomeados, descritos e estão invariavelmente vinculados a comportamentos virtuosos. Os papéis e funções que lhes são mais freqüentemente conferidos são a inteligência, a fala eloqüente, a pureza/virgindade, a prudência e o renome. Há ainda, duas passagens em que se dá a inversão de gênero, ou seja, os homens são feminilizados. Não poderemos aqui nos deter em uma análise minuciosa do texto, por isso foram escolhidas quatro passagens consideradas mais representativas para a construção dos modelos de feminino e masculino: os dois relatos que envolvem feminilização, a descrição do frade Henrique de Colônia e a morte de Domingos. No primeiro relato de inversão de gênero os anos de estudo de Domingos são o contexto. Jordão afirma que o fundador aprendia com muita facilidade por conta de sua inteligência: O Deus do saber, vendo com que fervoroso afeto Domingos aceitava os mandamentos e com que devoção e boa vontade acolhia a doce voz do Esposo, concedeu-lhe o dom de estar apto não só a beber o leite, mas a penetrar com a inteligência de um coração humilde o arcano das mais difíceis questões e de digerir com suficiente facilidade a aspereza de um alimento mais sólido. (Cap. VII) adicionado argumentos, por exemplo, CANETTI, Luigi. L´Invenzione della memória: il culto e l´imagine di Domenico nella storia dei primi frati Predicatori. Spoleto: Centro italiano di Studi Sull´Alto Medioevo, 1996, p. 215. 7 Ao todo, a obra é composta de 120 capítulos, mas não analisamos os relatos de milagres.

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Assim, nesse trecho temos que Domingos é a noiva de Cristo, pois acolhia com devoção e boa vontade a "voz do Esposo". Ainda que estejamos diante do uso simbólico de uma imagem bíblica, prática largamente difundida nos escritos eclesiásticos medievais, essa referência não é inocente, não está livre de significados de gênero. Entendemos que a feminilização de Domingos só é possível dentro de circunstâncias absolutamente masculinizadas, como ocorre nessa passagem que trata de forma bastante objetiva dos seus estudos liberais e posteriormente teológicos, nos quais sua inteligência permitiu que avançasse. Veremos que o segundo caso de inversão de gênero segue uma linha semelhante. Desta vez Jordão descreve a trajetória de Reginaldo de Saint-Aignant, "homem muito conhecido, douto e ilustre pelos postos ocupados; entre outros havia ocupado por cinco anos a cátedra de Direito Canônico em Paris."(cap. LVI). Sua narrativa dá atenção especial a Reginaldo, sua entrada na Ordem é descrita em algum detalhe e, em dado momento, Reginaldo é dito ser um novo Elias, pelo fervor e eficácia de sua pregação. Relatando a transferencia de Reginaldo de Bolonha para Paris, Jordão escreve: A ida de Reginaldo para Paris não se dá sem grande desolação daqueles filhos que ele recentemente havia gerado para Cristo mediante a palavra do Evangelho; que choravam por terem sido separados tão cedo do seio da piedosa mãe. (Cap. LXI).

Reginaldo é a mãe que gerou filhos com Cristo por intermédio da pregação. Seus filhos lhes são retirados com sua partida e por isso sofrem. É uma cena comovente, porque se identifica explicitamente com a maternidade. Novamente a feminilização se dá em um contexto de intensa masculinidade: além das referências a inteligência de Reginaldo, este ainda é um proficiente pregador, e mais, mestre da universidade de Paris! Sua masculinidade está acima de toda prova. Os exemplos de Domingos e Reginaldo são tão poderosos aos olhos de Jordão que estes podem desempenhar não só papéis masculinos, mas igualmente os femininos.

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Uma parte considerável do Libellus é dedicada à Henrique de Colônia, grande amigo de Jordão. Este não nos deixa dúvida alguma sobre a profunda afeição e imensa admiração que tem pelo companheiro, a ponto de dedicar-lhe 19 capítulos da obra. Podemos afirmar que Jordão vê em Henrique o ideal de homem, pois o descreve com mais detalhes até do que o próprio Domingos: Ele era pronto à obediência, constante na paciência, sempre sereno na sua doçura, amável na sua alegria, generoso na sua caridade. Não lhe faltava a honestidade dos costumes, a sinceridade de coração e a integridade virginal da carne, porque por toda a vida nunca olhou ou tocou mulher com intenções impudicas. Era modesto no falar, tinha língua eloqüente, mente penetrante, agradável continência, bela aparência; tinha habilidade com a escrita, perícia na dicção e um melodiosa voz de anjo. Nunca foi visto triste ou perturbado, mas estava sempre calmo e alegre. A moderação o libertara dos rigores da austeridade e a misericórdia o reivindicou para si. Ele era tão amável com todos e conseguia tão facilmente conquistar os corações que se conversasses com ele por um instante, crerias que não havia alguém que ele gostasse mais do que de ti.(cap. LXXVIII)

A citação é longa, mas nos justificamos: temos aí o modelo mais acabado da masculinidade para Jordão. Senão vejamos: obediência, moderação, amabilidade, serenidade, virgindade, eloqüência, inteligência, carisma. Entre essas características que, se as encontramos dispersas por este ou aquele personagem ao longo da obra, convergem todas na pessoa de Henrique, verificamos que algumas não associamos diretamente à masculinidade. As mais destacadas, em outros homens também, são a amabilidade e a virgindade, que relacionamos comumente ao feminino. A virgindade, no Libellus, aparece como um traço forte da figura de Domingos. Em três momentos Jordão lhe faz menção, inclusive no pitoresco relato sobre a sua morte: Em seu leito de morte mandou chamar 12 frades dos mais prudentes e os exortou a serem fervorosos, a zelarem pela propagação da Ordem e a perseverarem na via da perfeição. Recomendou também que eles evitassem a familiaridade suspeita com mulheres, especialmente as jovens, porque elas são muito atraentes e capazes de prender as almas que ainda não estão enraizadas na pureza.

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'Vejam - ele disse - até hoje a misericórdia de Deus me conservou incorrupta a carne, todavia devo confessar não ter conseguido me libertar dessa imperfeição de encontrar maior atração nas conversas com mulheres jovens do que naquelas que tive com mulheres velhas. (Cap. XCII)

E é esse o ensinamento de Domingos antes de morrer. Para Jordão, ao menos, essas teriam sido as últimas palavras do fundador. Como podemos interpretá-las? De início nos chama a atenção a rapidez com que as questões mais gerais são tratadas, em contraste com o maior detalhamento dos conselhos sobre as mulheres. Vemos que estes chegam a tomar forma na própria voz de Domingos. Ele fala, o que confere à mensagem uma maior autoridade. Outro aspecto que merece destaque é a ênfase na virgindade, no corpo sem mácula do fundador, e sua direta relação com o perigo constante que as mulheres representam. Mal resistimos à tentação de ver nos trechos que destacamos uma feminilização generalizada dos modelos masculinos. Sendo a virgindade um traço marcante dos homens no Libellus, e, tendo ela tanto no discurso eclesiástico quanto no laico, ao longo do período medieval, sido constantemente relacionada à regulamentação do comportamento feminino, acreditamos ser lógica essa conclusão. No entanto, se masculino, como feminino, são atribuições impostas culturalmente aos corpos sexuados, o masculino do Libellus é virginal. Desta maneira podemos aventar uma conclusão parcial para a questão colocada no início da nossa fala: há relação entre modelos e atitudes concretas? Se entendemos como posicionamento mais comum dos frades ao longo do século XIII um repudio à associação de casas femininas, podemos interpreta-lo, à luz do Libellus, como fundamentado na redundância. Explicamos: se os homens retém características femininas, tornando-as masculinas, e fazendo delas virtuosas, perfeitas, sagradas, não havia necessidade premente de inserir também as mulheres em sua Ordem.

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