Matar, Deixar Morrer e o Valor da Vida (James Rachels - TRADUÇÃO)

July 3, 2017 | Autor: Luiz Abrahão | Categoria: James Rachels, Bioética, Ética Aplicada, Eutanasia
Share Embed


Descrição do Produto

Matar, Deixar Morrer e o Valor da Vida* James Rachels [Tradução de Luiz Henrique de Lacerda Abrahão – CEFET-MG]

Em 1992, jornais americanos noticiaram o caso de Thereza Ann Campo Pearson, uma criança da Florida que passou a ser chamada de “Bebê Thereza”. Bebê Thereza era um dos milhares de crianças anencefálicas – bebês sem cérebros – que nascem a cada ano nos Estados Unidos. Como a anencefalia envolve uma condição conhecida, não havia nesse episódio qualquer fato extraordinário que chamasse a atenção dos jornalistas, não fosse um pedido incomum dos pais. Cientes de que sua filha não conseguiria viver mais do que poucos dias e que, mesmo se conseguisse viver um pouco mais, ela nunca chegaria a desenvolver uma vida consciente, os pais de Thereza autorizaram doar os órgãos dela para transplante. Consideraram que os rins, fígado, coração, pulmões e olhos deveriam ser destinados a outras crianças que se beneficiaram deles. “Se minha filha pode ajudar outro bebê a viver, então é isso que vamos fazer”, afirmou o pai. Os médicos concordaram, entretanto, a legislação da Florida impediu a doação. Assim, os órgãos não foram retirados e Thereza morreu nove dias depois. Já era tarde demais para ajudar as outras crianças. Como os médicos previram, os órgãos tinham se deteriorado demais para serem usados em transplantes. Os relatos jornalísticos sobre Bebê Thereza suscitaram um enorme debate público. Seria certo remover os órgãos da criança, causando, pois, a morte imediata dela, com o objetivo de salvar outras crianças? Alguns “eticistas” – pessoas contratadas por universidades, hospitais e escolas de direito cujo trabalho consiste em pensar questões desse tipo – foram intimados pela imprensa para se pronunciar quanto ao caso. Surpreendentemente, poucos deles concordaram com os pais e os médicos. Pelo contrário, apelaram para princípios filosóficos tradicionais visando justificar deixar todas as crianças morrerem. “Parece absurdamente horrível usar pessoas como meios para os fins de outras”, asseverou um especialista. Outro explicou: “É antiético matar uma pessoa A para salvar uma pessoa B”. E um terceiro complementou: “O que os pais realmente estão

*

Tradução do capítulo 5 do livro Can Ethics Provide Answers? And others Essays in Moral Philosophy, de James Rachels (Rowman & Littlefield, 1997).

buscando é: matar esse bebê que está morrendo de modo que os órgãos dela possam ser usados por terceiros. Ora, isso é uma noção apavorante”. Por que o desejo dos familiares seria “apavorante”? Os princípios citados pelos eticistas parecem insuficientes para justificar tal conclusão. A ideia de que “não podemos matar para salvar” soa bastante plausível quando imaginamos matar um ser humano normal e saudável para salvar outro – em especial, estaríamos privando a vítima da vida (que é tão valiosa para quem vai ser morto quanto para quem vai ser salvo). Porém, se pensarmos na “vida” de alguém que jamais poderá ter um pensamento consciente ou sensação, já não é tão nítido porquê preservar tal vida seria moralmente tão importante. Os eticistas aparentemente discordariam. A premissa subjacente às opiniões deles é de que vida de Bebê Thereza, desconsiderando de sua condição trágica, tinha uma importância moral tal que não poderia ser “sacrificada” nem mesmo se fosse para salvar outras vidas. Não importa se ela não tinha cérebro e que iria morrer em poucos dias. Não importa se ela sequer fosse “ela” em qualquer sentido relevante, dado que não tinha – e jamais teria – uma vida significativa com uma personalidade humana independente. Tudo o que aparentemente importava era que era biologicamente humana e que estava viva. A mera existência dela como um membro de nossa espécie foi tomada como tendo tamanha relevância que outras crianças poderiam morrer por aquele motivo. O que poderia justificar uma afirmação tão extrema? A justificativa não poderia estar baseada em qualquer interesse relativo ao valor que a vida dela tinha para ela. A vida dela, naquelas condições, não tinha qualquer valor para ela; ela inclusive jamais saberia que existiu. Nem poderia estar baseada em qualquer coisa ligada ao valor que a vida dela teria tido para os outros. (Na verdade, o único valor que a vida dela poderia ter tido para outros seria se os órgãos dela tivessem sido transplantados.) Quando excluímos todas essas opções, o que resta é a concepção de que a vida humana – toda a vida humana, independentemente de sua condição – é valiosa como tal, que é valiosa, digamos, “para o universo”. A crença de que a vida humana tem uma importância cósmica singular é, em certas ocasiões, uma noção admirável. Ampara doutrinas morais humanas que, de outro modo, poderiam soar arbitrárias. Entretanto, também pode ser um obstáculo para o pensamento humano – paradoxalmente, pode conduzir a decisões que contradizem interesses humanos. A recusa de transplantar os órgãos de Bebê Thereza é um exemplo disso,

porém, existem ainda outros. A eutanásia é ilegal na maioria dos países ocidentais. (A Holanda é uma saliente exceção). É proibido matar – mesmo com uma solicitação expressa – pacientes terminais que estão morrendo lentamente mortes miseráveis e a “santidade da vida” é citada como uma razão pela qual seria errado matar. Todavia, quem exatamente se beneficia com a aplicação desse princípio? Certamente não os indivíduos que fazem o pedido por sofrerem, tampouco suas famílias, nem mesmo os profissionais da saúde que cuidam deles. Eis outro exemplo de princípio moral agindo não a favor, mas contra, o bem-estar de seres humanos. Essa ironia não foi ignorada por profissionais da medicina nos Estados Unidos, muitos dos quais tinham adotado um conjunto de ideias morais que significativamente qualificava a tese de que sempre é errado matar. Uma delas é a de que, mesmo que seja errado matar um paciente, pode ser permitido ajudá-lo a cometer suicídio. Em 1989, uma equipe de médicos liderada pelo Dr. Daniel D. Federman da escola de Medicina de Harvard compôs um relatório no qual concluiu que o suicídio assistido é “moralmente correto” em algumas circunstâncias. Um bom exemplo do que eles tinham em mente aconteceu dois anos depois, quando o Dr. Timothy Quill, de Rochester, Nova York, publicou um artigo no New England Journal of Medicine relatando como ele havia auxiliado uma de suas pacientes a colocar fim na própria vida. Dr. Quill tinha informado a uma mulher com leucemia, que nomeou de “Diana”, que ela teria 25 por cento chances de prolongar a vida se aceitasse se submeter a um árduo programa de quimioterapia e transplante de medula óssea. Diana rejeitou essa possibilidade afirmando que desejava levar uma vida normal tanto quanto possível, e então se mataria quando as condições se tornassem intoleráveis. Ela realizou pesquisas, descobriu quais remédios precisaria e solicitou ao médico uma receita. Dr. Quill os prescreveu e, afinal, Diana os ingeriu e morreu. A profunda narrativa desse episódio elaborada pelo do Dr. Quill ganhou uma enorme simpatia. Nenhuma atitude foi tomada contra ele. Os médicos também acolheram a ideia de que mesmo que seja errado matar, é permissível deixar o paciente morrer mediante suspensão do tratamento. A American Medical Association assentiu a isso em uma norma de procedimento firmada em 1973 e 1982, e atualmente ela é empregada mesmo pelos médicos mais conservadores. Inicialmente, pensou-se que o não-tratamento seria permitido apenas no caso de pacientes terminais que estavam sofrendo ou para pacientes em coma irreversível; porém, a ideia tem sido ampliada visando incluir também crianças anencéfalas. Quando indagado sobre

anencéfalos, um cirurgião geral dos Estados Unidos, que havia liderado uma campanha para exigir tratamento agressivo a todas as crianças com deficiências, comentou que o governo “tentaria não interferir” junto aos médicos cuja política fosse a de não-tratamento para tais crianças. As referidas doutrinas morais suscitaram uma série de questões filosófica. A seguir, discutirei duas delas. Primeiro, argumentarei que a doutrina da santidade da vida, se for interpretada de maneira racional, não apresentaria qualquer objeção à eutanásia voluntária ou à remoção dos órgãos de Bebê Theresa. Segundo, mostrarei que a distinção entre matar e deixar morrer não comporta a relevância moral que é atribuída a ela. Se estiver correto, segue-se que, se em algumas circunstancias é permissível deixar pacientes morrer, também pode ser moralmente permitido matar ativamente pacientes que se encontram nas mesmas circunstâncias.

O valor da Vida Muitas pessoas pensam que é questionável comparar os valores de vidas diferentes. A própria ideia parece uma afronta à dignidade humana. Se dissermos “tal vida é mais valiosa do que aquela”, parece que abrem as portas para ignorarmos ou negligenciarmos aqueles cujas vidas são consideradas menos importantes. A vida do Bill Clinton é “mais valiosa” do que a de um morador de rua? A vida de um deficiente físico vale menos, de um ponto de vista moral, do que a de uma pessoa plenamente saudável? Parece evidentemente equivocado afirmar coisas do tipo. Todavia, pessoas decentes podem se sentir tentadas a fazer comparações genéricas e recorrer ao velho clichê “todas as vidas humanas são igualmente valiosas”. Não obstante, é evidente que ninguém de fato crê nisso. Constantemente qualificamos vidas como melhores ou piores. Um homem que é feliz, cujos dias são repletos de atividades satisfatórias, que tem uma família amorosa e amigos fiéis possui uma vida melhor do que alguém que é privado de tudo isso. Realizamos escolhas baseados em avaliações similares – buscamos ter um tipo de vida em vez do outro. Ademais, todos preferiríamos viver a vida de uma pessoa saudável do que a de um deficiente – afinal, pensamos que tal vida é melhor. Na mesma direção, desejaríamos que nossos filhos fossem inteligentes ao invés de idiotas; possuir casas a ser morador de rua; em geral, que

as pessoas sejam felizes ao invés de miseráveis. Com efeito, é indiscutível que nem todas as vidas humanas são igualmente valiosas. Caso afirmemos que todas as vidas humanas são igualmente valiosas, nada disso faria qualquer sentido. Não obstante, o clichê pretende abordar um importante tópico moral. Mas, precisamente, qual tópico? Penso que este: independentemente do tipo de vida, os interesses de todos os seres humanos deveriam ser considerados como igualmente importantes. Toda pessoa, seja rica ou pobre, inteligente ou idiota, saudável ou doente possui interesses que podem ser protegidos ou lesados por nossas ações. O que deveríamos fazer, em termos morais, é atribuir a tais interesses igual respeito. Isso explica a razão pela qual seria errado “sacrificar” as vidas de algumas pessoas (pobres ou deficientes, por exemplo) para beneficiar outras. O motivo não é que a vida dos menos afortunados é tão boa quanto à dos demais – com frequência, infelizmente, esse não é o caso. Independentemente disso, o motivo é que deveríamos respeitar igualmente os interesses deles. Também precisamos distinguir a ideia de que nem toda vida é igualmente boa da ideia de que nem todas as pessoas são igualmente boas. As duas noções são bastante diferentes. Como disse, a primeira é obviamente verdadeira. A outra é mais problemática. Em face dela, não parece que todas as pessoas são igualmente boas. Algumas são gentis e compassivas, outras cruéis e mesquinhas. Algumas se dedicam a promover paz e o entendimento, outras mandam judeus, ciganos e homossexuais para campos de concentração. A despeito disso, é uma ideia corrente entre alguns pensadores que todos os seres humanos possuem uma “dignidade inerente” ou um “valor intrínseco” que torna todas iguais em um sentido moral. Não discutirei essa dificuldade nesta ocasião, uma vez que meu tema é o valor da vida, e não o valor das pessoas. Ainda assim, pretendo sugerir o seguinte: independentemente da opinião que se tenha acerca do valor de uma pessoa, o princípio que já delimitei – a saber: os interesses de cada pessoa deveriam ser considerados com igual respeito – deveria bastar para exprimir as implicações morais adequadas. O que, exatamente, é o valor de uma vida? Como deveríamos entender essa noção? A questão é ambígua porque a palavra “vida” tem diferentes significados e é essencial mantê-los separados. De um lado, “vida” pode se referir a coisas vivas, a coisas que estão vivas. Seres humanos são coisas vivas, mas peixes, caracóis e mesmo árvores e arbustos

também o são. “Vida” nesse sentido é um termo oriundo da biologia – para ser vivo é preciso ser um organismo biológico em funcionamento. Quando perguntamos “Há vida em outro planeta?” estamos empregando o termo nesse sentido. Uma pequena folha de capim nascendo em Marte justificaria uma resposta afirmativa. Por outro lado, a palavra pode ter um significado muito diferente, associando-se mais à biografia do que à biologia. A estória de vida de uma pessoa não é apenas uma descrição do estatuto dessa pessoa enquanto organismo biológico. É a estória da história e do caráter dela, suas aspirações e desapontamentos, atividades, projetos e relações pessoais. A vida de uma pessoa, nesse sentido, envolve tudo que ela diz, faz e pensa. A diferença entre vida biológica e vida biográfica é a diferença entre estar vivo e ter uma vida. Por que essa distinção é importante? Porque, se o conceito de vida é ambíguo, então o conceito de santidade da vida também é. A doutrina da santidade da vida pode ser interpretada de duas formas. Primeiramente, pode ser compreendida como uma doutrina moral que atribui valor ao mero fato de estar vivo. Se interpretada dessa maneira, então ela protege a vida humana, porém, também estende a mesma proteção às vidas de peixes, caracóis, árvores e gramas – afinal, eles também são vivos assim como nós somos. Os adeptos de algumas religiões ocidentais abraçam essa perspectiva. Todavia, há outra interpretação da santidade da vida que corresponde ao outro significado de “vida”. Pode ser compreendida como uma doutrina moral que atribui valor às vidas (em sentido biográfico) e aos interesses que algumas criaturas, incluindo nós, possuem em virtude do fato de que são sujeitos vivos. Isso levará a um tipo de posição moral bastante diferente. Qual visão é melhor? Podemos abordar a questão considerando os diferentes tipos de valor que atribuímos para ser vivo e ter uma vida. Suponha o seguinte experimento de pensamento: são-nos dadas as opções (i) morrer agora ou (ii) entrar em coma profundo, do qual jamais acordaremos, e morrer dez anos depois. Qual escolhemos? A maioria preferiria a primeira, afinal, não consideraríamos muito digno o prospecto de uma existência vegetativa, tampouco gostaríamos de submeter àqueles que amamos ao infindável sofrimento de cuidar de nossos corpos inconscientes. Porém, em um sentido óbvio, a escolha é indiferente: quando entramos em coma, nossa vida biográfica termina. É como se tivéssemos morrido. Lógico que em coma ainda permanecemos vivos; e, se estar vivo é o que importa, logo deveríamos preferir tal opção. A razão pela qual não a

preferimos é porque estar vivo não tem valor para nós se não nos permitir ter algum tipo de vida biográfica. Com efeito, o que nos importa é a vida biográfica, e não apenas estar vivo biologicamente. Consoante a conhecida terminologia filosófica, o valor da vida biológica é instrumental, enquanto o valor da vida biográfica é intrínseco. Isso oferece uma forte evidência de que a doutrina da santidade da vida deveria ser interpretada no segundo sentido. Isso tem implicações evidentes tanto para a eutanásia voluntária como para casos similares ao de Bebê Theresa. Na Holanda, a eutanásia voluntária é permitida para pacientes terminais desde que sete condições sejam cumpridas. (1) O paciente deve estar com uma dor insuportável ou em uma condição que, de outro modo, é intolerável. (2) Não deve haver qualquer tratamento disponível que possa melhorar a condição do paciente. (3) O paciente, na medida em que ainda capaz, deve solicitar ser morto. (4) A requisição deve ser livre de dúvidas, bem documentada e repetida. (5) Deve-se determinar que não tenha havido pressão para o paciente fazer o pedido. (6) A eutanásia deve ser efetuada por um médico. (7) Antes de praticar a eutanásia, o médico deve consultar outro médico alheio ao caso. Se tais condições são cumpridas, a conduta do médico não será punida pela lei. Esse tipo de procedimento é moralmente aceitável? Claro que existem muitos argumentos que podem ser apresentados para ambos os lados. Porém, vamos observar especificamente a questão da santidade da vida. Há algo nessa doutrina que se contraponha a tal política? Por definição, um paciente terminal é alguém que está chegando ao fim de da vida. Se o paciente sente uma “dor insuportável” ou algo parecido e nada pode ser feito para melhorar as coisas, então, só o que resta de sua vida é um período de sofrimento. É indubitável que a eutanásia encurta a vida biográfica do paciente. Todavia, isso não tornaria a vida pior. Na verdade, é a própria avaliação do paciente que diz que a eutanásia tornaria sua vida melhor. (É fácil perceber o motivo de alguém pensar assim. Suponha que lhe seja permitido escolher entre duas vidas. Em uma, você vive até a idade de oitenta e cinco anos e morre em paz. Na outra, você vive oitenta e cinco anos mais dois meses, entretanto, os dois meses extras são repletos sofrimentos. Qual você consideraria melhor?) Então, a doutrina da santidade da vida – caso seja interpretada como atribuindo valor moral à vida biográfica e aos interesses que possuímos como sujeitos daquelas vidas – não ofereceria qualquer objeção à eutanásia e a casos

semelhantes. Talvez existam razoes válidas para rejeitar a eutanásia, todavia, se nossa análise é certa, a santidade da vida não está dentre elas. O caso do bebê Thereza é ainda mais simples. Antes de falecer, ela estava inegavelmente viva; no entanto, não tinha vida biográfica (e jamais teria). Ademais, como ela sequer possuía a capacidade de ter consciência, ela não tinha quaisquer interesses que pudessem ser protegidos ou prejudicados por qualquer coisa que alguém pudesse ter feito. Não fez diferença para ela se ela viveu nove ou dois dias. Nesse sentido, nem a doutrina da santidade da vida nem o princípio de igual respeito aos interesses de todas as pessoas poderiam levantar barreiras à transferência dos órgãos dela para crianças que realmente precisavam deles. Muito pelo contrário, o princípio respeito aos interesses de todas as pessoas exige os transplantes, pois, diferentemente do bebê Theresa, as outras crianças tinham interesses – e esses foram tragicamente deixados de lado.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.