«Materiais em transe e estilo tardio em Luiza Neto Jorge», in Ida Alves, ed., Um corpo inenarrável e outras vozes. Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2010, pp. 115-126.

July 25, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Contemporary Poetry, Edward Said, Late Style, Literatura Portuguesa, Poesia
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MATERIAIS EM TRANSE E ESTILO TARDIO EM LUIZA NETO JORGE PEDRO SERRA* Proponho, neste ensaio, algumas cláusulas provisórias para uma entrada na língua máxima de Luiza Neto Jorge colocando em epígrafe duas intuições de leitura, uma de Luís Miguel Nava e outra de Gastão Cruz. Foi o autor de Vulcão quem pela primeira vez, tanto quanto posso saber, chamou a atenção para o que poderíamos chamar uma pulsão extática da escrita de Luiza Neto Jorge. Cito Nava, num daqueles momentos de esplendor da sua obra crítica, o lugar em que, depois de uma breve referência ao percurso bioliterário da autora dos Sítios Sitiados, nos propõe generosamente todo um pórtico de introdução ao seu intenso universo imagético: “Se me pedissem dois verbos através dos quais fosse possível aceder a esta escrita, eu começaria por citar ‘boiar’ (ou ‘flutuar’) e ‘pairar’ (ou ‘voar’)” (1996, p. 227). Corpo flutuante ou voador; mundo flutuante, como se pairasse; escrita flutuante, como matéria que bóia. Genial intuição, não é difícil respigar da obra de Luiza Neto Jorge uma bateria significativa de fulgurantes imagens em que – agora já usando palavras que importarão para a coerência da minha leitura – temos aquilo a que podemos chamar uma materialidade em transe. Não apenas um corpo em transe; não apenas o mundo dos objectos em transe; mas também, e sobretudo, uma escrita em transe. Escolhi a fórmula em transe como cifra para significar o estado das materialidades na obra de Luiza Neto Jorge, mas poderia ter também optado pela vocábulo ‘extático’: corpo extático, mundo extático, escrita extática. Também nesta opção reverberaria a lição de Luis Miguel Nava, que um pouco mais adiante no conhecido ensaio que cito – “Acme a Ser Arte: Alguns Aspectos da Poesia de Luiza Neto Jorge” – insinua um                                                                                                                        

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Professor Titular da Faculdade de Filologia da Universidade de Salamanca.

“certo tipo de experiência” presente nesta poesia a que chama “êxtase” (cf. ibidem, p. 236). Vejamos, agora, a via de leitura encetada pelo autor de A Poesia Portuguesa Hoje. Gastão Cruz propôs, há já umas décadas, a tese de que se A Noite Vertebrada e Quarta Dimensão propendem para o antidiscursivismo, a partir de Terra Imóvel a poética de Luiza Neto Jorge recupera o discurso, tendência que continua na via da prosa do conjunto O Seu a Seu Tempo, num processo que tem como corolário o equilíbrio de ambas as pulsões: “E isto, que, à primeira vista, pode fazer supor que a evolução se deu no sentido de uma subordinação progressiva da palavra à situação, foi, justamente, a técnica adequada à construção de um discurso em que a matéria vocabular e a elaboração frásica invulgarmente se equilibram” (1993, p. 155). Esta fórmula de “equilíbrio do discurso” não deixará, certamente, de reactivar o modo do clássico. Dir-se-ia que a produção do Novo, por Luiza Neto Jorge – lembremos que um poeta e crítico como António Ramos Rosa, ao ler pela primeira vez Dezanove Recantos fê-lo dizendo da “quase impossibilidade de comentar este livro”, típica formulação da eficácia e astúcia do Novo, que visa precisamente a falência da hermenêutica – significa um paradoxal regresso do clássico, ou se se quiser, de um regresso aos dispositivos “tradicionais” da prosódia. É assim que no-lo formula Gastão Cruz no ensaio “Luiza Neto Jorge – Uma Poesia Dramática”: “Desde o começo [sublinho isto: desde o começo], Luiza Neto Jorge convoca todos os processos poéticos tradicionais – o virtuosismo rítmico, a rima, a aliteração, a paronímia, a anáfora [...] – para os conjugar com o seu objectivo, totalmente transgressor das abordagens convencionais da realidade” (ibidem: p. 162). Por outras palavras, recorrer ao antigo para renovar o discurso poético; não apenas o seu discurso poético, mas para levar a cabo essa revolução num determinado contexto, o da segunda metade da década de 60, tensado por diferentes opções de estilo, diferentes opções prosódicas. Ora bem, esta formulação do autor d’ A Morte Percutiva tem também uma tradução no meu ensaio. Isto porque esta amálgama do clássico e do Novo, ou melhor, do antigo a

retornar como Novo, é uma das descrições possíveis de uma pregnante noção com a qual tenho vindo a trabalhar nos últimos tempos: a noção, cunhada primeiro por Adorno e depois por Edward Saïd, de “estilo tardio”. É uma noção complexa, do meu ponto de vista pejada de potencialidades e virtualidades heurísticas, quase que diria fractal pela multiplicidade de ângulos que ostenta. Como mostrarei mais adiante, “estilo tardio” é um sintagma que nomeia aquele retorno do clássico como renovo. Que podem dizer os poetas cujas obras são encetadas e continuadas nos anos 60 e 70, poetas que, como cidadãos empenhados na construção de uma sociedade civil livre e justa, viveram o advento da Democracia? Que podem imaginar e pensar os poetas nos mundos teóricos, poéticos e políticos do Portugal contemporâneo, o Portugal que, adaptando e valendo-me de Ortega y Gasset par coeur, se terá sentido ‘do século XX’ mas não propriamente ‘moderno’? Desde os anos 60 e 70 a ‘raça’ fundadora de mundos, fundadora de império, gere com dificuldade o respectivo ‘corpo místico’ ou, se se quiser, fá-lo com o luto devido a um corpo presente. É detonado um presente que, mais do que um ponto transicional de abertura, é um “espaço de simultaneidade”, a indiferenciação do tempo presente como reserva germinal de possíveis futuros: abertura, em suma, de um espaço e um tempo pós-modernos (cf. GUMBRECHT, 1998). Tempo de uma arte urgente e instalada na dificuldade da urgência, tempo de uma tensão criativa predicada pela mutilação, pela experiência da perda/perda da experiência, tempo de “vidas danificadas”. Os discursos artísticos foram propondo alegorias da possível retrospecção do acontecimento progressivamente anacrónico, mas animado por um contumaz eterno retorno, que é o advento da Democracia. Nos restos do planeta ibérico, do Planeta Católico como chegou a ser conhecido nos séculos áureos, nos restos dos discursos da laus portugaliae, os cidadãos que são poetas foram ‘testemunhas’ – isto é, ‘sujeitos em trânsito’– desses lutos, sujeitos políticos a quem faltava polis e a quem também ia faltando a poesia. Revolução e trânsito chegaram demasiado tarde ou

demasiado cedo, na ressaca da longa agonia daquele ‘corpo místico’. Seja como for, uma nova entrada na História a meado dos 70, num momento em que a história era também nova: como formulou James Clifford, as topografias dos ‘testemunhos’ – interessam-me as suas declinações artística e cívica – já não respondem àquele ‘lar’ que fosse “lugar estável para contar as nossas histórias” (CLIFFORD, 1989). Tempo de “vidas danificadas”, tempo fora dos gonzos, tempo de sujeitos tardios e dos seus estilos tardios de que fala Edward W. Saïd na sequência de Theodor W. Adorno (Cf. SAID, 2007 e ADORNO, 2002). Tempo e espaço portugueses em trânsito, a poesia foi refractando todas as aspirações e bloqueios de décadas, a de 60 e primeiros anos de 70, em que sobreveio a consciência infeliz de que a floração de uma primavera marcelista acabava por ser uma florescência envenenada. Tempo e espaço fora dos gonzos, em que certamente a escrita e a poesia levadas ao extremo e ao excesso era uma das poucas formas de “sair fora do tempo” de modo decente. Pela mão dos poetas, a língua portuguesa na década de 60 é levada a um grau de tensão quase invivível. Um amplo e variado conjunto de dispositivos de intensidade que iluminavam obscuramente uma realidade intratável. A leitura de Luiza Neto Jorge que proponho decorre de a poesia da autora de Quarta Dimensão vir ao encontro de duas noções que tenho ensaiado nos últimos tempos como modo de entrada na poesia portuguesa contemporânea: os “materiais em transe” e o “estilo tardio” que, enfim, consigno no título. Sublinho, ainda, que amplifico intuições hermenêuticas de leituras históricas e de referência da obra de Luiza Neto Jorge, antecipando muito embora que se inscrevem de modo diverso na coerência do meu ensaio. Isto porque tentarei, não apenas, objectivar aquele modo da “materialidade em transe” na poesia de Luiza Neto Jorge; tentarei, não somente, objectivar a valia heurística da noção de “estilo tardio” para ler a obra de Luiza Neto Jorge; tentarei, em última instância, mostrar que há um vínculo íntimo entre a “materialidade em transe” e o “estilo tardio”.

É já um lugar comum dizer ser Luiza Neto Jorge uma poeta do corpo sexuado. Aceito isto se entendermos o espasmo erótico generalizado como uma radical imersão na materialidade do corpo, da escrita e do mundo. Uma materialidade anterior e resistente a subjectivações e identificações. Uma materialidade em que se indiferenciam corpo, escrita e mundo, e em que os seus limites externos e internos são limites esborratados. Todos recordamos a impressionante imagem de num dos mais conhecidos e citados poemas de Luiza Neto Jorge, “Metamorfose”, de Terra Imóvel: “A mulher se transformou cabra” (ibidem, p. 65). Assunção da condição animal do “corpo insurrecto”, sublevado, rebelde. Mas mais impressionante ainda, pelo menos para mim, é a imagem final do poema, entre parênteses curvos: “Quando a cabra / voltar mulher / – ressurreição” (ibidem). O que me chama a atenção neste término do poema é o facto de o princípio metamórfico não proceder por anamorfose – que supõe evolução contínua e, também, reversibilidade. Assim, a redenção do insurrecto corpo é determinada pela conjunção temporal “Quando” e pelo infinitivo não conjugado “voltar”, que – seja-me permitido uso de um termo algo abstruso, mas pleno de consequências neste contexto – truncam a sua apocatástase. Por outro lado, a sintaxe dos versos entre parênteses curvos torna indecidível o valor dessa incerta “ressurreição” da mulher. Será outra ou a mesma a mulher que “ressuscite”? Na minha leitura, o que proponho é lermos o poema como crítica à racionalidade, social e culturalmente marcada, do modelo “ressurreccional”. Ora, o ponto onde quero chegar é o da leitura do corpo inssurecto como corpo não ressurrecto. Ou não fosse, precisamente, um corpo material. O corpo sublevado é um corpo não ressurrecto, pois a sua ressurreição suporia a perda de intensidade. Isto significa também que a imersão na materialidade do corpo, da escrita e do mundo é via que só tem um sentido: o de uma intensificação da materialização indiferenciadora. É este, como sabemos, o sentido de um poema que ensine a cair, como formulou Silvina Rodrigues Lopes: “Só o peso do corpo na escrita nela materializa o viver/sentir. Por isso, ‘O poema

ensina a cair’, a ajustar o peso do corpo, a adaptá-lo aos diferentes tipos de quedas, aos vários tipos de sensações” (2003, p. 41). Quer dizer, o poema ensina-se a si mesmo como queda, ou, novamente em palavras de Silvina Rodrigues Lopes: “O poema é o lugar do morrer sem morrer” (ibidem). Lugar orgásmico, da muerte chica como se diz na cultura espanhola. “Morrer sem morrer”: reverbera aqui o inexaurível arquivo da poesia dos séculos áureos. É topos que temos em Camões, concretamente num conhecido passo da Canção IX, cujo incipit é “[Junto de um seco, fero e estéril monte]” (CAMÕES, 2005, p. 220), objecto de um ensaio de referência de Aguiar e Silva (cf. 1999), que interpreta estes versos no contexto da sua voga peninsular ibérica naquela idade de ouro em que se glosou em regime quer profano quer sacro a tópica stilnuovista e petrarquista da “morte de amor”. Assim, há que distinguir a fórmula de Camões ‘não morro porque morro’, da versão cunhada pela grande poesia mística espanhola representada por Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz: “muero porque no muero” (apud AGUIAR E SILVA, op. cit.:p. 220). Queda no poema como “morte de amor” em Luiza Neto Jorge? Sim, queda no poema como descarga orgásmica, fricção do corpo do poeta com o corpo físico da língua que trabalha, numa relação em que entra na liça a consabida dialéctica do amado e da amada. Amante da amada poesia, o poeta morre e vive nela. A poesia é a sua continuação em modo deste “não morr[er]”: a poesia é esta sobrevida. Corpo insurrecto e não ressurrecto ou, por outras palavras, corpo em transe. É dele que se faz teoria na série “As revoluções da matéria” do livro O Seu a Seu Tempo, uma secção, salvo erro, que inicialmente teve por título “As Propriedades e os Estados da Matéria”. Sintomática e significativa correcção: como pode um mesmo núcleo de poemas ser replicado, num primeiro momento, pelo vocábulo “estado” e, depois, pelo vocábulo “revolução”? Estase e movimento, em simetria com a não ressurreição e a insurreição, no fundo, são modos de dizer a experiência oximorónica no cerne da experiência extática. Não poderei, pelas justas e necessárias limitações de espaço, percorrer todo o amplíssimo espectro

imagológico que responde, na poesia de Luiza Neto Jorge, por uma escrita em transe, um corpo em transe, um mundo em transe. Seja-me permitida, pois, uma drástica redução fenomenológica, e mencionar apenas um poema que, muito embora, selecciono como paradeigma da ampla casuística textual a que faço referência na versão escrita do ensaio. Trata-se, aliás, de um poema bem conhecido, “A Sublimação: a Sublime Acção”: Sem passares pelos líquidos sais do teu sólido e corres directamente, saindo de cima do solo. Não desces àquela cave onde estão os oceanos e os juramentos líquidos. Irrompes pela atmosfera volátil e etilizado como um espelho a aproximar-se do sol Sem a secura dos líquidos que secam pela viveza como que entram e com que saem e conferem um outro estado gasoso, mas não sublime, tu passas, vivo, rápido, embora sobre, vidente, com um fio de droga apurado no teu sangue voador. (JORGE, 2001, p. 119)

Com “um fio de droga apurado / no teu sangue voador”: eis aqui uma versão possível do corpo em transe, corpo que flutua, corpo que bóia. Corpo lisérgico que também temos em Herberto Helder, em Carlos de Oliveira, em Ruy Belo. Corpo vidente, como no êxtase, como na

ivresse poética rimbaldiana. Corpo farmacológico, para conjurar aqui a noção derridiana, também pregnante para o estudo de Luiza Neto Jorge, de phármakon. A tropologia do pharmakon tem no ‘líquido’ o seu elemento electivo: O esperma, a água, a tinta-da-china, a pintura, a tinta perfumada: o fármacon penetra sempre como um líquido, bebe-se, é absorvido, introduz-se no interior, ao que marca primeiro com a dureza do tipo, invadindo-o depois e inundando-o com o seu remédio, com a sua beberagem, com a sua bebida, sua poção, o seu veneno (DERRIDA, 1997, p. 230-231).

Ainda, diria que este poema, na tensão que o insufla de indecibilidade do ente apostrofado, é um potente símil do mundo em transe. Quando o mundo persiste diante dos olhos, indiferente às palavras e aos pensamentos, resistindo na sua aberrância a conhecimentos e crenças, esse mundo em transe adquire uma consistência entre o fluído e o extático e move a visão alucinada. O mundo fulgura em imagens que bóiam num estado de levitação, suspensas de um silêncio, suspensas de uma espécie de veneno aquoso, com forma e informe, cristalino e duro. Na obra poética de Luiza Neto Jorge, de A Noite Vertebrada até ao póstumo A Lume vamos encontrando visões dadas por uma tropologia ébria que, tanto quanto sei, ainda não foi suficientemente relevada. Há todo um trabalho em torno de imagens narco-líquidas – “são sebastião alvo / de agulhas hipodérmicas, por exemplo, num poema de A Lume – imagens em que se apontam estados de consciência alterados, muito próximos quer do êxtase quer da alucinação. Corpo, mundo e escrita “fora de si”. É conspícua a tradução política destes termos que, do meu ponto de vista, se encontram no âmago do projecto estético de Luiza Neto Jorge, furibunda poesia escrita com sangue – lição, certamente, de Nietzsche – num tempo e num espaço portugueses em trânsito. Um projecto que refracta todas as aspirações e bloqueios de uma década, a de 60 e primeiros anos de 70, momento em que a língua portuguesa é levada a um grau de tensão quase

invivível, plena de elipses, encavalgamentos violentos, perversões sintácticas sob controle. Um dispositivo de intensidade que, como formulou Luis Miguel Nava, “fizesse ir pelos ares” a realidade. Também, algum Nietszche: Luiza Neto Jorge não era uma mulher, era dinamite. Ou melhor, Dinamite/Dinamene como genialmente propôs o Jorge Fernandes da Silveira (cf. 2008), atracção vocabular que nos levaria por bons caminhos de leitura. Materialidade extática, a escrita em transe de Luiza Neto Jorge – símil da inventio, metáfora da invenção poética – implica também a noção do “estilo tardio”. Efectivamente, o “estilo tardio” é um nome possível para a experiência anacronizante proporcionada pela escrita enquanto pharmakon: “Late style is in, and oddly apart from the present”, propôs Saïd (2007, p. 24). A escrita em transe, o texto sous influence, nomeia justamente esta “separação extática”. A expressão, novamente, é de Saïd, que a utiliza ao descrever o seu Adorno, um “disillusioned romantic who exists almost ecstatically detached from, yet in a kind of complicity with, new and monstruous modern forms”. (ibidem, p. 23). O vocábulo retorna no ensaio dedicado a Glenn Gould, onde se refere um interesse, por parte do pianista, de produzir “a state of ecstatic freedom by and in his performance”. (ibidem, p. 124). Enfim, ainda uma terceira fórmula pela qual se diz essa experiência, uma fórmula agora que insinua uma consciência alterada: “Lateness is being at the end, fully conscious, full of memory, and also very (even preternaturally) aware of the present” (ibidem, p. 14). Quando os dispositivos de representação claudicam – esta poderia ser uma boa descrição dos vários projectos de escrita do novo paradigma poético dos prodigiosos anos sessenta –, a dominante epistemológica da relação com o mundo é impelida a ser também mediada pela ontologia. O mundo está aí mesmo que a máquina do mundo tenha parado ou apenas continue a funcionar no inebriamento do olhar. O mundo que está aí, na sua opacidade e resistência à representação – também ela opaca –, adquire um contorno extático. Está-se sensivelmente no mundo, como em êxtase. Lembremos Herberto Helder e a sua “helicopteriana” viagem

ébria, rimbaldiano modo de viajar: viagem rumo à visão, ou talvez melhor, o transe visionário como viagem imóvel (cf. 2006, p. 24-25). Mas também Carlos de Oliveira, poeta sob a égide de Malcolm Lowry – referente maior da tradição de uma escrita sous influence –, e cujo poema IV do conjunto “Debaixo do Vulcão” é um texto que tematiza precisamente a “mescaligrafia” como duplo da poesia e da música, enfim, da poiesis: “Tépido mescal / para inventar / a mescaligrafia / gémea do som / ou da sombria / pauta musical” (1998, p. 270). O poema, uma espécie de auto-hetero-retrato, parece cumprir o ‘método’ escritural de Lowry, tensado entre “fazer música” e proscrever o “ruído”, numa deriva igualmente de reescrita. Enfim, Under the Volcano como “sinfonia” ou “ópera”, a escrita como música. Seja como for, anoto uma especificação fundamental levada a cabo pelo poema de Carlos de Oliveira: o líquido ébrio transfigurado em mescaligrafia mantém uma relação gemelar com o “som” e a “pauta musical” (a ‘escrita’). Artes gémeas, idênticas não-idênticas. Artes imiscuídas, promiscuidade de ‘ebriedade’ e ‘lucidez’: “Este álcool decantado / gota a gota / bebe-se / e embriaga / um pouco / mas / por outro lado / apura, / aguça / a lucidez / do texto” (1998, p. 292). Em Ruy Belo, pelos mesmos idos, e tendo em conta apenas um dos modos como esta questão se inscreve na sua trajectória poética, reverbera o cinema como máquina alucinatória, paradigma intelectual que valeria para outros nomes da década prodigiosa e pelo qual o autor de Homem de Palavra[s] se aproximou dos termos de uma escrita em transe. Num conhecido soneto, “Esplendor na Relva”, diz-se: “Eu sei que deanie loomis não existe”, mas vejo “que entre as mais essa mulher caminha”. Versos que não apenas expõem a apropriação de um lugar bíblico – dentro da consabida pulsão de “incorrigíveis alusões culturais” por parte do poeta –, como modulam uma visão extática do movimento. Nesta aporia se instala também a obra de Armando Silva Carvalho, conquanto obra que, escorada para o prosaico, nos é proposta como romance ébrio: É quando suspeitamos da nossa identidade

que a escrita fecha a vida em túmulos minúsculos no templo duma refeição de pé, num ofício reles, inacabado. Muitas vezes não passa de um romance ébrio que a nós próprios narramos nas noites inquietas e nas crises de angústia mais precipitadas (1998, p. 631)

como lemos no tardio Canis Dei, mas cuja genealogia é rastreável na obra anterior: “Alguém te mata e te impõe: flutua. / Aonde estás agora? Que ciência austera / te prende aqui e daqui te afasta?” (ibidem, p. 275), exemplo que respigo de Armas Brancas. Com soluções estéticas muito diferentes, nas poéticas mencionadas, como na de Luiza Neto Jorge, o mundo é encarnação de singularidades, de acontecimentos que, ao serem irredutíveis a leis – têm uma dimensão estética, sem regras apriorísticas –, são mediados por analogia. Sobrelevo, pois, que a noção de “estilo tardio” tem imbricada uma retórica da temporalidade. Enquanto complexa relação com o tempo, como o próprio Saïd formula no primeiro capítulo “Timelessness and lateness”, tem também uma linha de fuga que não é totalmente desenvolvida pelo autor de Orientalismo, e que justamente obras como a de Luiza Neto Jorge permitem expandir. Para situar o aspecto a que me refiro, começo por recordar uma das fórmulas sintéticas, quase aforísticas, com que Saïd define o “estilo tardio”: “Late style is in, but oddly apart from the present”. (2007, p. 24) Parafraseando a fórmula, temos então o “estilo tardio” como um estilo dentro e fora do seu tempo, um estilo dentro e simultaneamente fora do presente. É neste ponto que a noção de “estilo tardio” exibe o seu conspícuo perfil Moderno. Ser moderno é, também no-lo diz Saïd, ser tardio: por outras palavras, o estilo tardio, enquanto forma, agoniza e sustenta a tensão moderna entre a determinação político-social das formas e a sua simultânea irredutibilidade. Agoniza, ainda, a tensão entre a recursividade das formas e a sua singularidade. As formas participam simultaneamente do Mito – ao serem repetição do tempo –, e são

História – ao comungarem de uma temporalidade sequencial irrepetível. A pulsão primitivista do(s) Modernismo(s), por exemplo, deixa patente a sua condição tardia: “Literary modernism itself can be seen as a latestyle phenomena insofar as artists such as Joyce and Eliot seem in a way to have been out of their time altogether, returning to ancient myth or antique forms such as the epic or ancient religious ritual for their inspirantion”. (ibidem, p. 135). Entre a senectude e o novum, o Modernismo é “Age masquerading as Juvenility”, fórmula que Saïd recolhe em Thomas Hardy. Predicado nesta espécie de movimento inerte, o Modernismo introduz uma dimensão temporal e espacial diferente no fluxo indómito da temporalidade, ora mítica ora histórica. Predicado, enfim, numa relação com o presente que articula tanto a repetição como a singularidade, ou seja, que articula um tipo de ‘experiência’ em que o novo e o antigo se conjugam num momento de intensidade.1 A que alude Edward W. Saïd quando utiliza o sintagma “consciência preternatural” do presente? Que modo exacerbado de consciência do presente é este? O que proponho, então, é que a obra da autora de O Seu a Seu Tempo seja uma resposta, uma das possíveis respostas, a esta questão. Pareceria mesmo que o conhecido título de 1966 de Luiza Neto Jorge jogasse com a complexa relação da vida com o tempo da escrita, enunciando de modo explícito o problema da atribuição de um tempo próprio do acto criativo ao próprio tempo da existência do poeta.

                                                                                                                        1

Utilizo o sintagma “momento de intensidade” com o sentido que lhe confere Hans Ulrich Gumbrecht. Cf. Gumbrecht, 2004.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W.. Late Style in Beethoven (1937). In: Essays on Music, Richard Leppert, introd., Susan Gillespie, trad., Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 2002, pp. 564-568. AGUIAR E SILVA, Vítor M.. As Canções da Melancolia. In: Camões: Labirintos e Fascínios. 2ª ed. Lisboa: Cotovia, 1999, pp. 209-228. CARVALHO, Armando Silva. Obra Poética (1965-1995). Porto: Afrontamento, 1998. CRUZ, Gastão. Luiza Neto Jorge – O Seu a Seu Tempo; In: A Poesia Portuguesa Hoje. 2. ed. corrigida e aumentada, Lisboa: Relógio D’Água, 1999, pp. 153-157. CRUZ, Gastão. Luiza Neto Jorge – Dezanove Recantos; In: A Poesia Portuguesa Hoje. 2. ed. corrigida e aumentada, Lisboa: Relógio D’Água, 1999, pp. 158-160. CRUZ, Gastão. Luiza Neto Jorge – Uma Poesia Dramática, In: A Poesia Portuguesa Hoje. 2. ed. corrigida e aumentada, Lisboa: Relógio D’Água, 1999, pp. 161-163. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. Trad. Lawrence Flores Pereira, São Paulo, Editora 34, 1998. GUMBRECHT, Hans Ulrich. To Be Quiet for a Moment. In: Production of Presence. What Meaning Cannot Convey. Stanford: Stanford University Press, 2004, pp. 133-152. HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. 4ª ed. [1. ed.: 1979]. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006. JORGE, Luiza Neto. A Lume. Texto anotado e fixado por Manuel João Gomes. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989. ______. Poesia. 1960-1989. Organização de Fernando Cabral Martins. 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. ______. Dezanove Recantos e Outros Poemas. Organização de Jorge Fernandes da Silveira e Maurício Matos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

MARTINS, Fernando Cabral. Prefácio, In: JORGE, Luiza Neto. Poesia. 1960-1989. Organização de Fernando Cabral Martins. 2ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 7-15. LOPES, Silvina Rodrigues. Sítio secreto. In: Exercícios de Aproximação. Lisboa: Vendaval, 2003, pp. 37-47. NAVA, Luis Miguel. Acme a Ser Arte: Alguns Aspectos da Poesia de Luiza Neto Jorge [1989]. In: Ensaios Reunidos. Prefácio de Carlos Mendes de Sousa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 226-242. OLIVEIRA, Carlos de. Obras de Carlos de Oliveira. S.l., Editorial Caminho, 1992. London, Bloomsbury [1. ed.: New York, Pantheon Books, 2006]. SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Implicâncias. Luiza, duas ou três coisas à minha maneira. In: JORGE, Luiza Neto. Dezanove Recantos e Outros Poemas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008, pp. 7-18.

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