Materialismo histórico e a crítica do Estado e do Direito

June 22, 2017 | Autor: Felipe Vieira Soares | Categoria: Filosofia do Direito, Materialismo Histórico, Teoria do Estado
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Materialismo histórico e a crítica do Estado e do Direito Felipe Vieira Soares Introdução O olhar sobre o Direito esteve polarizado durante muito tempo entre duas posições. A primeira posição, assumida principalmente por operadores do campo, defende que o desenvolvimento do campo ciência jurídica se dá de forma independente das pressões mundo social1. Segundo esta ideologia, defendidas por juristas, como o austro-americano Hans Kelsen, o Direito deve ser considerado um sistema fechado e autônomo que está acima do mundo social e tem sua dinâmica ditada por uma lógica interna. Já a outra posição afirma que o sistema jurídico nada mais é que do que o espelho das relações de classes existentes, sendo as leis somente mais um instrumento explícito de dominação 2. Introduzida no pensamento social europeu no contexto da guerra fria, esta leitura crítica do Direito se inspirou nas obras de Karl Marx e suas releituras como as feitas por Antônio Gramsci e Louis Althusser. Crítico do idealismo filósofico reforçado pela leitura jurídica burguesa, o materialismo histórico concebe o sistema jurídico como uma estrutura histórica determinada socialmente pela produção material da vida humana ao longo da história. Entretanto, como indica Hespanha, a leitura marxista acabou enveredando muita das vezes para dois caminhos inócuos:“ As concepções materialistas do direito têm frequentemente caído na impasse do mecanicismo ou do instrumentalismo; o primeiro vendo no direito um reflexo directo da base económica, o segundo um puro instrumento de domínio das classes dominantes. 3”

Frutos das reflexões sobre minha pesquisa da dissertação a respeito do sindicalismo rural em Campos de Goytacazes e suas relações com o judiciário trabalhista, pretendo com o presente artigo acompanhar brevemente a crítica do Direito e do Estado na dinâmica do capitalista realizada pela tradição do materialismo histórico. Pretendo com tal proposta demonstrar como a leitura marxista do sistema jurídico na vigência do Capital pode colaborar para o desenvolvimento da história social do Direito. 2- Marx,Estado e Direito O campo do Direito nunca gozou de muito prestígio na tradição marxista sendo visto com grande hostilidade pela esquerda acadêmica, em especial os intelectuais socialistas e anarquistas. De acordo com essas correntes de pensamento o Direito deve ser visto como uma estrutura ideológica 1BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 209 2Idem, p.210 3HESPANHA, Antônio M. A história do Direito na história social. Lisboa: Livros Horizonte, 1977, p.36

profundamente burguesa comprometida com a defesa da propriedade e com a desigualdade social e fadada a ser extinta numa sociedade comunista de produtores livres e iguais4 A gênese dessa aversão pode ser encontrada nos escritos de Karl Marx, fundador do materialismo histórico, que apesar de não ter produzido uma teoria geral sobre o Direito em nenhuma das suas obras, faz menções ao campo jurídico em diversos textos de sua autoria. Em seu livro “Ideologia Alemã” podemos encontrar a seguinte inferência sobre as relações jurídicas no sistema capitalista: “(...)essa ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, conduz necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de propriedade, ao resultado de que uma pessoa possa ter um título jurídico em relação a alguma coisa sem realmente ter a coisa(...) 5”

Marx critica na passagem acima o individualismo jurídico instigado pelo direito burguês que feitichiza as relações sociais existentes entre as camadas proprietárias e não-proprietárias no regime do capital, criando uma ilusão de igualdade no acesso à propriedade privada. Contudo, a concepção de Direito na trajetória intelectual de Karl Marx não foi sempre a mesma, tendo este mudado sua percepção sobre as relações jurídicas ao longo de sua vida. Em sua juventude enquanto militava ao lado dos jovens hegelianos, Marx acreditava que era papel do Estado Moderno através das leis recuperar as liberdades naturais dos indivíduos em contraposição ao Estado Feudal que as negava em prol de uma expressão não-racional de liberdade sustentada sobre os benefícios de certos estratos sociais, como os obtidos pela nobreza e o clero. De acordo com Custódio essa postura fica evidente no texto “Debates sobre o roubo de lenha”: “Esse autor ao se referir aos atos dos camponeses de recolher lenha caída no chão (aos quais a legislação vigente tipificava como atos criminosos) não os classificou como criminosos, porque, sob o seu ponto de vista, não era necessário levar em conta a qualificação jurídica para classificar um ato criminoso, mas sim a sua essência. A lei, positiva e formal, era analisada tendo por base a lei natural que era a expressão da liberdade humana e portanto, deveria prevalecer sobre qualquer preceito legal positivado. Por conseqüência, o Estado deveria expressar a racionalidade e possibilitar ao homem a realização de sua essência, que é a liberdade. Esta realização só se aperfeiçoaria e concretizar-se-ia se a liberdade fosse estendida a todas as pessoas 6.” A concepção de Direito na trajetória de Marx sempre esteve associado a forma como este via o Estado. Nesse sentido sua noção de Estado na juventude de Marx estava vinculado a : “(...)encarnação dos direitos naturais, ou seja, as leis positivas deveriam refletir e formalizar as leis naturais(buscar a essência das coisas), e deveriam estar em consonância com a natureza das coisas e se porventura, não estivessem em conformidade aos preceitos do direito natural, Marx entendia que poderiam ser julgadas ilegítimas, pois a liberdade humana continuaria sendo um direito natural fundamental, mesmo que isso não fosse reconhecido pelo Estado a partir de suas leis positivadas. 7”

Como lembra Pierre Villar8, Karl Marx, até o ano de 1842, acreditava nos princípios difundidos pelas Revolução Francesa, como a tese dos direitos naturais garantidos a todos 4BOTTMORE, Tom. O dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p.109 5MARX, Karl, ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.p.17 6CUSTÓDIO, S. S. D. . Estado e Direito em Marx. Seara Jurídica, v. 2, p. 1, 2009. p.2 7Idem, p.3 8VILLAR, P. Histório do direito, História Total.Paris, Gallimard/Le Seuil, 1982, p.21

indivíduos e que o universalismo trazido pelo Direito sob os auspícios do Estado poderia ser um passo para emancipação do homem. Não obstante, Marx irá compreender ainda na sua juventude que o Direito moderno que substituirá a justiça conseutudinária não garantirá a liberdade e igualdade do ideal iluminista. Para tanto, Marx acompanhara os debates em torno da dieta renana, sexta assembléia que se sucedeu em uma província da Prussia no ano de 1846 que teve como uma das suas principais discussões o uso das florestas comunais, costume esse tradicional e que na visão dos legisladores reunidos tornava-se crime. De acordo com Villar essa constatação ocorrerá em três momentos. Primeiramente quando é criminalizado o catar da lenha já que a lei, ao invés de perpetuar um direito que era garantido naturalmente a todos indivíduos, os tranforma em ladrões discrimando as suas ações e impondo limites, que não são os colocados pela razão ou pela liberdade. O direito moderno erguido na transição para o sistema capitalista “nomeia, qualifica e hierarquiza todo divórcio entre a ação do indivíduo e o principal fundamental dessa sociedade.9” Marx percebe então que o que está em questão na dieta renana é a definição de uma nova concepção ao direito de propriedade, direito esse que se não se basea nos princípios da razão ou do bem-estar da coletividade. A recusa na distinção entre o ato de catar e roubar e a cobrança de sanções pesadas sobre aqueles que ousavam retirar a lenha são fortes indícios de que esse novo princípio de propriedade garantido institucional pela lei viria somente atender aos anseios das classes proprietárias. De maneira perpicaz, Marx percebe que as determinações legais sobre a madeira são estendidas para as frutas silvestres , que na época passam a ser comercializadas com a Holanda, legitimando o fim do domíno coletivo sobre um bem natural ao passo que tornava esta uma mercadoria sobre o domínio privado de uma classe social: "O bem natural tornou-se mercadoria. Se se pode monopolizá-lo é preciso justificar esse monopólio legalmente. " A natureza do objeto", descobre Marx, reclama o monópolio, por que o interesse da propriedade privada acaba de inventá-lo.10"

Por fim, Marx compreende que o direito moderno realizou a manutenção de uma série de privilégios presente no Feudalismo das classes dominantes e suprimiu uma série de garantias costumeiras dadas aos pobres: O caráter exclusivo dessas legislações era necessário. Com efeito, os direitos costumeiros dos pobres tinham por base essa idéia comum de que era natureza imprecisa; não se sabia claramente se uma propriedade era pública ou privada, tal como encontramos em todas as instituições da Idade Média. A razão suprimiu, portanto, as formas incertas e bastardas da propriedade, empregando as categorias do direito privado abstrato cujo esquema se encontrava no direito romano. E a razão legisladora acreditava tanto mais no direito de suprimir as obrigações que incumbiam a essa propriedade vacilante para com a classe pobre suprimia também ,dessa propriedade, os privilégios políticos. Mas ela esquecia um ponto: mesmo do ponto de vista estritamente do direito privado havia um duplo direito: o do proprietário e um direito privado do 9Ibidem,p.22 10Idem, p.23

não-proprietário, sem mesmo levar em conta o fato que nenhuma legislação suprimiu os privilégios política, mas somente os despojos do seu caráter aventureiro para lhe dar um caráter burguês11

Acompanha-se a partir dessa passagem que a transição do conceito de legal de propriedade da fase feudal para o modo de produção capitalista em nenhum momento a atendeu racionalidade que Karl Marx esperava com o sistema jurídico moderno voltando-se para o resgate do direitos naturais do indivíduo que levaria a um estágio de equidade social. Importante ressaltar também, como o faz Pierre Villar 12, que esta fase da produção intelectual de Marx é marcada por um tanto de “ utopismo e passadismo” presente por exemplo na sua defesa universal dos direitos costumeiros para os pobres: “ Nós reclamamos para os pobres o direito costumeiro, não um direito costumeiro local, mas um direito costumeiro universal, que seria o dos pobres de todos os países.13”.

Marx, ainda influenciado pela lógica hegeliana, não conseguia perceber a sociedade civil e

o Estado como categoriais separadas compreendendo que o aparelho estatal, a partir de sua natureza ontológica, pudesse controlar os interesses particulares em prol de um interesse universal. Neste sentido, a transformação do direito costumeiro de proteção aos pobres em direito positivo seria suficiente para solucionar o problema da pobreza, vista como uma questão política e não social14. A mudança da postura intelectual de Marx inicia quando este rompe com pensamento dos jovens hegelianos, tornando-se evidente na “ Crítica à filosofia do direito em Hegel”: Minha investigação chegou ao resultado de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser compreendidas por si mesma, nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas sim assentam, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, seguindo o precedente dos ingleses e franceses do séc. XVIII, sob o nome de ‘sociedade civil’ e e que a anatomia da sociedade civil deve ser buscada na Economia Política 15

Para romper com o idealismo introduzido por Hegel e o materialismo passivo

de

Feuerbach16, Karl Marx inaugurou um novo metódo de investigação: o materialismo histórico. A partir do materialismo histórico, Marx visava criar um método que se afastasse

da visão

materialista da independência das coisas em relação ao pensamento bem como a visão do pensamento como atividade fundante e alheio a realidade social. Para tanto era preciso se fazer ver as condições materiais que atravessaram a consciência, as sociedades e a trajetória humana ao longo da história. De acordo com Marx: Esta concepção de história consiste, pois em expor o processo real de produção, partindo da produção material da vida material(...) Não se trata, como na concepção idealista de procurar uma categoria mas sim de permanecer sembre o solo da história real; não de explicar a práxis com base 11Idem,p.24 12Ibidem, p.24 13Idem, p.25 14MARLX, Karl. Crítica a filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010, p.16 15Idem, p.16 16 Leda Paulani aponta que na visão de Marx, o materialismo de Feuerbach, apesar da sua crítica ao idealismo de Hegel, assumiu uma postura passiva mediante a realidade social bastando aos pensadores dessa corrente a comtemplação do mundo sem uma efetiva práxis social sobre a realidade. PAULANI, Leda. A (anti) Filosofia de Karl Marx. In: Mário Vítor Santos. (Org.). Os Pensadores: um curso. São Paulo: Relume Dumará, 2006

na idéia, mas de explicar as formações ideológicas com base na práxis material17(...)

Ao acompanhar “as condições materiais da vida”, Marx observa que ao longo da história humana a introdução social da propriedade privada propiciou o surgimento de diferentes divisões sociais do trabalho nas quais a principal contradição encontrava-se na distribuição desigual do trabalho e dos seus produtos. Surge então a figura do Estado visando amenizar este enfrentamento entre classes proprietárias e não-proprietárias já que o ente estatal se define como independente frente aos interesses particulares. Naturaliza-se assim as disparidades sociais alimentadas pela divisão do trabalho em prol de uma classe social. Como afirma Marx: toda a classe que aspira ao domínio, mesmo que o seu domínio determine a abolição de todas as antigas formas sociais da dominação em geral, como acontece com o proletariado, deve antes de tudo conquistar o poder político para conseguir apresentar o seu interesse próprio como sendo o interesse universal, atuação a que é constrangida nos primeiros tempos18.(Ideologia Alemã p.18)

Porém na transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, a propriedade privada chega a seu apogeu se distanciando completamente de qualquer caráter comunitário e intervenção do Estado para sua reprodução. No período feudal, assim como nos demais modos de produção pré-capitalistas: “ (…) os indivíduos eram partes de muitas sociedades diferentes , como guildas ou os estado, cada uma das quais tinham um papel político, de modo que não havia um domínio civil a parte.19”

Portanto, mesmo havendo uma diversidades de interesses particulares, os laços familiares,

tribais, de línguas, de divisão de trabalho entre outros, criavam uma falsa sensação de comunidade, que se materializava no Estado, em prol do “interesse geral”. Com a dissolução da comunidade feudal, a burguesia inicia seu processo de consolidação como classe dominante instituindo o direito a propriedade não em privilégios e sim em critérios individualistas que expunham a separação dos indivíduos dos outros e da comunidade. Como aponta Marx para que a burguesia se estabelecesse como classe social dominante era necessário que ela ampliasse sua atuação tornando seus interesses médio em interesses gerais O Estado Moderno apresenta-se então como superestrura política que tem como principal objetivo tornar universais os interesses da burguesia, classe social dominante no modo de produção capitalista: “(...)Estado não é mais do que a forma de organização que os burgueses constituem pela necessidade de garantirem mutuamente a sua propriedade e os seus interesses, tanto no exterior como no interior 20”. Nesse sentido,

o

Direito capitalista assume importante função já que assume importante função na mediação da conquista e da legitimidade dos interesses burgueses: Daí a ilusão de que a lei repousa sobre a vontade e, melhor ainda, sobre uma vontade livre, desligada da sua base concreta.21”

A análise de Marx sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento 17Idem, p.15 18MARX, Karl, ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, 1993, p.18 19BOTTMORE, op.cit, p.351 20Idem, p.75 21Idem, p.80

legal considerado base civil do direito moderno, nos permitem visualizar a relação entre o sistema jurídico e o Estado Capitalista: O direito humano da propriedade privada é, portanto, o direito de fruir da própria fortuna e de dela dispor como se quiser, sem atenção aos outros homens, independentemente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação formam a base da sociedade civil. Leva cada homem a ver nos outros homens, não a realização, mas a limitação da sua própria liberdade. Afirma acima de tudo o direito de desfrutar e dispor como se quiser dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência22.

Como indica Barbosa23, Marx demonstra que a jurisprudência civil burguesa, presente inclusive na defesa dos direitos humanos, está associada a defesa da propriedade privada moderna. Defende-se a liberdade do indivíduo de “fruir da própria forturna” ignorando as desigualdades sociais impostas pelo Capital. Propõe-se a igualdade no direito a esta liberdade a todos indivíduos no sentido de camuflar e amenizar as contradições vigentes na produção capitalista. Por fim exigese o direito a segurança do direito a propriedade privada, seja dos indivíduos ou do Estado, ignorando “ atenção aos outros homens, independente da sociedade” Importante ressaltar que as análise de Marx denunciam o formalismo legal burguês explicitando as relações escusas entre o interesses do Capital e o Direito Moderno. Entretanto concomitante a este posicionamento, olhar marxiano sinaliza a potencialidade da construção de um corpo jurídico que indique os caminhos para emancipação humana: Em verdade, a análise e a interpretação de obras como A Questão Judaica contribuem para repensar não só as deformações formalistas do direito em geral de tradição liberal individualista e da inautenticidade da chamada doutrina burguesa dos direitos humanos, abstratos e universais, mas, sobretudo, para propor uma filosofia da práxis impulsionadora do direito como instrumental da justiça humanizada e da emancipação social concreta24(p.68)

Porém antes de nos determos na análise de alguns intelectuais vinculados ao materialismo histórico que propuseram essa nova visão na relação na relação Estado e Direito precisamos acompanhar brevemente um desafio teórico que a leitura marxista de história até hoje não superou completamente. 2- Base e Superestrura A relação entre Estado Capitalista e o Direito está intimamente relacionada a uma das mais polêmicas metáforas presentes no materialismo histórico: base(infraestrutura) e superestrutura. De acordo com essa teorização, a infraestrutura de qualquer modo de produção na história era determinada pelas bases materiais da mesma que por sua vez determina a forma de Estado vigente nesta historicidade assim como as estruturas ideológicas, jurídicas, políticas ou qualquer outra representação de consciência social(superestruturas). Tal postulado marxista pode ser encontrado 22MARX, Karl.A questão judaica. Tradução: Silvio Donizete Chagas, São Paulo: Editora: Centauro, 2005, p.24 23BARBOZA, Paulo Cesar Neves. Estado, Direito e hegemonia: contribuições de Grasmci para a crítica jurídica. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2007, p.67 24Idem, p.68

no“ Para uma crítica da Economia Política”: “Não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida [...]. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem forma sociais determinadas de consciência25.

Karl Marx e Friderich Engels tinham certa consciência das distorções que o conceito de infraestrutura poderia sofrer levando-o uma redução economicista. Como destaca Bottmore, para Marx a determinação propiciada pela infraestrutura era “histórica, desigual e compatível com a eficácia própria da superestrura.26”. Nesse sentindo, Marx compreende que diferentes tipos de produção espiritual podem conviver num determinado modo de produção e que não há necessariamente uma lei geral que garanta um desenvolvimento igual entre a produção material e as superestruras, como as relações jurídicas e as artes. Já Engels, que vivenciou as críticas a um suposto determinismo econômico presentes na produção intelectual que compartilhou com Marx, em correspondências enviadas a Joseph Bloch rebate a leitura mecanicista que alguns detratores faziam do materialismo histórico: De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia. As condições econômicas são a infra-estrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma. Há uma interação entre todos estes vetores entre os quais há um sem número de acidentes (isto é, coisas e eventos de conexão tão remota, ou mesmo impossível, de provar que podemos tomá-los como nãoexistentes ou negligenciá-los em nossa análise), mas que o movimento econômico se assenta finalmente como necessário. Do contrário, a aplicação da teoria a qualquer período da história que seja selecionado seria mais fácil do que uma simples equação de primeiro grau 27.

Várias inferências podem ser feitas a partir da citação acima. A primeira delas diz respeito a produção e reprodução da vida real nos diferentes modos de produção que marcaram a história na leitura materialista já que Engels apesar de sublinhar a importância da infra-estrutura e das suas relações econômicas, considera que estas podem ser influênciadas e alteradas pelos vetores da superestrura. Importante perceber também o reconhecimento da luta de classes e da agência do indivíduos já que estes “ a partir do reflexos destas lutas nas cabeças” podem agir sobre os rumo da história. Vale destacar a menção que Engels faz as formas jurídicas permitindo inferir que estas são atravessadas também pela luta de classes apesar da fração burguesa tentar estabelecer seu 25MARX, Karl;ENGELS, Friedrich .Para a crítica da Economia Política. In: Os Pensadores. São Paulo: NovaCultural,1982.p.25 26BOTTMORE, op.cit, p.27 27ENGELS, F. Letters on Historical Materialism. To Joseph Bloch[1890]. pp. 760-765. in TUCKER, Robert C. (org.) The Marx-Engels reader. 2. ed. New York: W. W. Norton & Company, 1978.

monópolio sobre esta. Exemplo deste movimento dialético entre infra-estrutura e superestrura proposta por Engels pode ser encontrado na alusão que este faz entre divisão do trabalho e as leis: Assim que a nova divisão do trabalho surge, na qual se tornam necessários advogados profissionais, uma nova e independente esfera é criada e ainda especialmente capaz de reatar as esferas de produção e comércio. No Estado moderno, a lei não deve apenas corresponder à condição econômica geral e ser sua expressão direta, mas ser expressão internamente coerente o que não se reduz ao nada, devido suas contradições internas. E com o objetivo de atingir isto, o fidedigno reflexo das condições econômicas sofre cada vez mais. Assim, cada vez mais raramente que um código legal é a direta, não-suavizada e não-adulterada expressão da dominação de uma classe — isto por si iria ofender a “concepção de direito”. Mesmo no Código Napoleônico, a pura e consistente concepção de direito que a burguesia revolucionaria de 1792-1796 se dizia titular, é em muitas formas adulterada e, da forma como foi constituído, foi sujeita às atenuações decorrentes do nascente poder do proletariado. Isto não impede o Código Napoleônico de ser o estatuto que serve de base para novos códigos em todos os cantos do mundo. Portanto, em grande parte, o curso do “desenvolvimento dos direitos” apenas consiste (i) em uma tentativa de desfazer as contradições emergentes, sendo destarte, tradução direta dos antagonismos de relações econômicas em princípios jurídicos e (ii) nas reiteradas brechas feitas neste sistema pela influência e pressão do desenvolvimento econômico seqüente, envolvendo contradições posteriores para estabelecer um sistema jurídico harmonioso28.

Engels enfatiza a determinação econômica proporcionada pela divisão do trabalho sobre as relações jurídicas já que estas tem o papel de assegurá-las. Entretanto a conquista da legitimidade não é fácil já que as contradições internas do modo de produção colocam em risco a hegemônia jurídica da classe dominante não podendo ser a lei apenas um reflexo das condições econômicas. Usando como exemplo o Código Napoleônico, “expressão da “concepção de direito que burguesia revolucionária de 1792-1796 se dizia titular”, Engels enfatiza que essa codificação legal sofrera modificações devido a atuação ainda incipiente da força do proletariado francês, mesmo apresentando em seu corpo princípios legais que estavam comprometidos com a manutenção com as disparidades entres as classes sociais da época. Como destaca Engels, o caráter de disputa presente no Código Napoleônico não impediu que este fosse importado para várias partes do mundo demonstrando como o Direito a partir de sua natureza arbitrária pode amenizar contradições classistas emergentes. Bottmore ao fazer um breve levantamento a respeito da produção marxista e não marxista, a em torno da leitura de Marx e Engels sobre o Direito no materialismo histórico, apontou que são três as principais problemáticas abordadas: “(...) se a relação do direito, e da superestrura em geral, com a base econômica, deve ser entendida como uma relação de causalidade ou funcionalmente; se uma relação causalidade pode permitir, como acreditava Engels, uma reação, embora limitada, da superestrura sobre a base(determinação em duas direções); se existem, na sociedade, estruturas relativamente independentes; e finalmente, se o direito é uma delas.”

Pretendo no próximo item resgatar o pensamento do teórico grego Niko Poulantzas presente 28ENGELS, F. Letters on Historical Materialism. To Joseph Bloch[1890]. pp. 760-765. in TUCKER, Robert C. (org.) The Marx-Engels reader. 2. ed. New York: W. W. Norton & Company, 1978.

no livro “Estado, Poder e Socialismo”. Acredito que a teoria de Estado apresentada por Poulantzas pode ajudar na superação do obstáculo teórico que a crítica da política e do Direito vem enfrentando na leitura marxista. 3- Poulantzas e a teoria de Estado Para que se possa compreender a visão que Poulantzas empreende sobre o Direito em sua obra é preciso recuperar alguns conceito básicos da sua leitura a respeito materialismo histórico, em especial o Estado. De acordo com Poulantzas, a teoria política marxista mais tradicional afirmara durante décadas que o Estado não passava de uma instituição criada e controlada por uma classe dominante. Logo “Todo Estado não passaria, nesse sentido de uma ditadura de classe 29.”.Seguindo essa lógica na vigência do Estado Capitalista a burguesia seria a classe politica dominante a ter sobre o controle o ente estatal. Nessa leitura o Estado não possuí nenhuma autonomia frente a classe burguesa, tida como sendo homogêna, que exerce seu domínio político de maneira incontestável frente as classes dominadas. Poulantzas discorda abertamente dessa leitura e a associa a um certo posicionamento economicista-formalista que esteve presente nas leitura marxistas, perpetuando a visão de que em todos os modos de produção que existiram ao longo da história as estruturas econômicas, de maneira auto-regulável, criavam e determinavam as formas de Estado e consciência social. Visando superar este impasse intelectual, Poulantzas descarta o pressuposto que a economia seja uma estrutura social auto-reproduzível e herméticamente isolada a outras instâncias sociais e políticas. Segundo Poulantzas: “O político-estado, embora sob formas diferentes, sempre esteve constituitivamente presente nas relações de produção, e assim em sua reprodução, inclusive no estágio pré-monopolista.30” Nesse sentido, o Estado, mesmo aquele Liberal e que se autointitulava como não-interventor: “(...) ora interviria nas relações de produção penetrando no campo econômico, ora manter-se-ia fora agindo apenas em sua periferia31” Qual seria então a relação entre Estado e economia? Poulantzas afirma que a resposta para esse aparente enigma está nas relações de produção e na divisão social do trabalho da historicidade analisada. Em modos de produção pré-capitalistas havia uma certa “mixagem” do Estado e da economia já que as classes produtoras, apesar de não serem proprietários dos objetos do trabalho e dos dos meios de produção, tinham ainda algum controle sobre o processo de produção. O Estado então atuava nas relações de produção de maneira a garantir a exploração do trabalho desses

29 POULANTZAS, Niko. Estado, o poder e o socialismo. São Paulo: Paz e Terra. p.10 30 Idem, p.16 31Idem, p.16

produtores que detinham a posse de objetos e dos meios dos trabalho32 Já no modo de produção capitalista, as classes produtoras ao sofrerem o processo de proletarização integral, perdendo qualquer tipo de controle sobre a propriedade econômica assim como a posse sobre ela, sujeitam-se completamente aos interesses das classes proprietárias que a partir da mercantilização da força de trabalho extraem a sua mais-valia. Com essa mudança nas relações de produção altera-se também a relação entre Estado e Economia já que o primeiro conquista uma certa autonomia relativa frente aos processos de acumulação de capital e produção de mais-valia. Na leitura de Saes sobre o autonomia relativa do Estado Capitalista a partir das ideias de Poulantzas: (...)o aparelho estatal capitalista,ao manter recorrentemente o quadro ideológico e político que induz o produtor direto a prestar por sua livre e espontânea vontade sobretrabalho ao proprietário dos meios de produção, não está a rigor intervindo “ ”no aparelho econômico produtivo. Registre-se entretanto que, no plano do processo histórico concreto, a criação desse quadro ideológico e 33 político exige do aparelho estatal capitalista a prática do intervencionismo “ ”

Vale lembrar que esta certa autonomia relativa não nos deve leve a acreditar numa relação de exterioridade entre Estado e economia no regime do capital. As relações ideólogicas e políticas empreendidas pelo Estado Capitalista oferecerem as condições necessárias para que as relações de produção possam se originar e se reproduzir. Poulantzas concluí então que o Estado Capitalista não pode ser visto apenas como superestrura de domínio política da burguesia, pois possui uma ossatura material própria que é atravessada pelas classes sociais e pela lutas de classes presentes nas relações de produção 4-Estado Capitalista e o Direito no olhar de Poulantzas Podemos perceber que Poulantzas defende o Estado como sendo uma relação social a qual luta de classes permeia e se enraíza na luta e dominação política presente na ossatura desta instituição. O teórico grego compreende o espaço estatal como a materialização de uma condensação de forças, na qual classes e frações das classes dominantes disputam a hegemonia 34 ao mesmo tempo que se relacionam com as classes dominadas visando garantir sua perpetuação. Nesse sentido o Estado e todos os seus aparelhos que o materializam reproduzem a posição que classes 32“(...) o nível de renda feudal era determinado ,abstraído fatores básicos, como a fertilidade do solo e a eficiência do cultivo camponês, pela capacidade que tinha a classe feudal de exercer sobre os camponeses formas-não econômicas para a extração da renda.” BOTTMORE, op.cit, p.353 33SAES, Décio. A questão da autonomia relativa do Estado em Poulantzas. Crítica Marxista, Campinas, n. 7, 1997, p.58 34“Poulantzas opera, no Estado, o que Gramsci fez em relação à sociedade civil, ou seja, articula o conceito de hegemonia dentro da estrutura estatal, que se torna espaço estratégico para disputa política. Ainda que originadas fora do Estado, as lutas políticas devem se inserir dentro do Estado, considerando a relevância para a compreensão das funções do Estado de sua função de mediador inserido no contraponto entre dominantes e dominados, dedicado especialmente na desarticulação destes, ainda que atenda algumas demandas sociais” BARBOZA, op.cit, p 95

dominadas se encontram na divisão social do trabalho assim como as lutas que estas impõem as classes dominantes. Como destaca Poulantzas: “ A configuração precisa do conjunto de aparelhos do Estado, a organização deste ou daquele aparelho ou ramo de um Estado concreto( exército, justiça, administração, escola, igreja etc.) dependem não apenas das relação de forças interna no bloco do poder, mas igualmente a relação entre este e as massas populares, logo da função que eles devem exercer diante das classes dominadas35

O sistema jurídico não escapa dessa prerrogativas já que nenhuma forma de Estado, mesmo as mais autoritárias36, que existiram ao longo da história abdicaram de construir uma organização legal. De acordo com Poulantzas: “ A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida por todo Estado. O Estado edita regra, pronuncia a lei, e por aí instatura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censuras, assim criando o terreno para aplicação e o objeto da violência. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento da repressão física, designa e gradua as modalidades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é, neste sentido, código de violência pública organizada.”(p.75)

Ao se referir ao Estado Capitalista, Poulantzas o distingue das formas anteriores de Estado no que tange a sua relação com a lei já que este possui em seu controle o monopólio da violência pública legítima37. Entretanto o exercício do monopólio da violência pelo Estado Capitalista só se torna legítimo frente ao consentimento criado pela lei. O direito capitalista transfigurado na lei moderna cria então mecanismos para legitimar o uso da violência legítima pelo Estado que garante a reprodução das relações de produção capitalista. Como lembra Poulantzas: “O Estado detém sempre uma autonomia relativa em relação a essa ou àquela fração do bloco no poder(...) a fim de assegurar a organização do interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma das suas frações 38.”

A principal forma pela qual o Direito capitalista legitima a violência classista do Estado é por meio da individualização. A lei moderna ao definir todos os indivíduos como livres e iguais não só oculta a totalidade social do qual fazem parte, como naturaliza e legaliza as diferenças, individuais e classistas. De acordo com Poulantzas: “ A lei-regra por meio de sua discursividade e textura, oculta as realidades políticas-econômicas, comporta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas realidades para a cena política por meio de um mecanismo de ocultação-inversão. Traduz assim a representação imaginária da sociedade e do poder e da classe dominante.39”

Importante ressaltar que a natureza axiomática do Direito moderno tem finalidade estratética. A discursividade e textura do sistema jurídico capitalista com suas “(...) normas

35Poulantzas, op.cit, p.144 36“Toda forma estatal, mesmo a mais sanguinária, edificou-se sempre com a organização jurídica, representou-se no direito e funcionou sob forma jurídica, sabe-se muito bem que assim foi que Stálin e sua constituição de 1937, reputada como a mais democrática do mundo.” Ibidem, p,74 37Poulantzas considera como fatores importe a concentração das força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmilitazação dos setores privados para que o Estado capitalista conseguisse o monopólio da violência. Idem, p.80 38Idem, p.130 39Idem, p.81

abstratas, gerais, formais e estritamente regulamentarizadas40” tem como objetivo garantir a estabilidade necessária para a reprodução ampliada do capitalismo. Nesse sentido, as “lacunas e vazios estruturais” do sistema jurídico capitalista não são acidentais e representam brechas criadas intencionalmente para violações das classes dominantes com o aval do Estado41 Contudo, o consentimento das classes dominadas em relação a hegemonia das classes burguesas não se apóia somente no caráter ideológico/repressivo da lei. Avançando na herança althuesseriana a respeito dos aparelhos ideológicos e da sua relação com as classes dominadas, Poulantzas afirma que o Estado Capitalista assume compromissos materiais positivos com as classes dominadas, inclusive os advindos da luta de classes, no sentido de garantir o consenso ao sistema social vigente. Usando como exemplo o Estado Fascista , que a priori podia ser visto como forma estatal que mediaria sua relação com as classes dominadas somente através do binômio repressão-ideologia, Poulantzas indica que políticas sociais, como as de reabsorção de emprego ou que visavam elevar o poder aquisitivo de algumas classes populares, foram tomadas com o objetivo de conseguir consentimento das mesmas42. Vale ressaltar que Poulantzas compreende que a luta de classes, em especial a relação entre as classes dominadas e dominantes, está inscrita na ossatura do Estado e seus aparelhos. Sendo assim considerar que as contradições inerentes ao sistema capitalista, como as que envolvem as massas populares e as frações dominantes são exteriores ao Estado se configura como uma grande falha teórica. Prova de que as lutas populares estão presentes no Estado capitalista está na mediação políticas que o Direito promove em relação as classes dominadas. De acordo com Poulantzas: “(...)ao regulamentar o exercício do poder, a lei moderna reconhece algumas conquistas populares bem como delimita um barreira ao poder das classes dominantes sobre as classes dominadas.43” 5-Conclusão De acordo com Manuel Hespanha, a História do Direito, na primeira metade do séc.XIX, sentiria os reflexo dos estabelecimento burguês e seus valores, assumindo assim uma função jurídica e sociocultural: “No universo ideológico que envolveu o ascenso político da burguesia, à história competira uma dupla tarefa: por um lado, a de relativizar consequentemcnte, desvalorizar a ordem social e jurídica pré-burguesa apresentando-a como fundada na irracionalidade, no preconceito e na injustiça; por outro, a de fazer a apologia da luta da burguesia contra a ordem ilegítma e a favor da construição de um direito e de uma sociedade (naturais,e harmónico), isto é, libertos da arbitrariedade e da historicidade das anteriores.44” 40Idem, p.8 41“ Todo Estado é organizado em sua ossatura institucional de modo a funcionar( e de modo que as classes dominantes funcionem) segundo a lei e contra a lei. Inúmeras leis não teriam existido em sua forma precisa se, com o apoio do conjuntos de dispositivos estatais, uma taxa de violação das classes dominantes não houvesse sido descontada, isto é, inscrito nos dispotivos do Estado.” Idem, p.83 42 Idem, p.29-31 43Idem, p.91 44Hespanha, op.cit, p.9

Cabia a historiografia jurídica legitimar a ordem política-legal burguesa a partir do reconhecimento da superioridade do racionalismo do direito moderno frente aos sistemas jurídicos anteriores.Entretanto, o próprio método historiográfico se apresentava como uma ameaça já que poderia desmistificar a ordem social e jurídica introduzida pelo capitalismo que se colocava como um desenvolvimento natural e final e não como um resultado do processo histórico-social. Sendo assim, a historiografia do Direito deveria se limitar a comtemplar e registrar o progresso da juridicidade burguesa. Efeito desta imposição a ciência histórica, a historiografia positivista elegia a crítica documental como cerne de investigação desprezando assim qualquer síntese histórica que pudesse ser elaborada das fontes históricas. A histórica do Direito divorciavase definitivamente do idealismo filósofico de maneira concomitamente ao seu afastamento de qualquer metanarrativa social. Um dos críticos ao estágio qua a história jurídica se encontrava

foi Packukanis,

considerado o grande teórico do Direito na tradição marxista. Packukanis entendia que o materialismo histórico deveria se aproximar da leitura do Direito recuperando a historicidade do sistemas jurídicos:“(...) a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo concreto dos ordenamentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como forma histórica determinada.”

A historiografia jurídica que Packukanis desejava superar compreendia a

história como um mero processo evolutivo temporal, no qual o Direito conhecia também sua natural progressão. Discordando dessa visão, o jurista soviético acreditava as relações jurídicas deviam ser analisadas históricamente vinculadas as formações sociais aos quais elas perteciam. Partindo do pressuposto da historicização do Direito acredito que foi possível a partir da breve investigação sobre a história intelectual de Karl Marl perceber como este propiciou através de várias obras, o conhecimento sobre as condições materiais que transpassaram a instauração do Estado e Direito Moderno pela burguesia no modo de produção capitalista. Entretanto o pensamento marxista, que tanto colaborou para o desenvolver não só da história social do direito bem como para pensamento jurídico, acabara também criando entraves teóricos sérios, principalmente os que envolveram a metáfora base-superestrutura. De acordo com uma leitura equivocada que prevaleceu durante algum tempo entre intelectuais que diziam vinculados ao materialismo histórico inagurado por Marx, a produção material das sociedades, vista estritamente como sendo formada somente pelo domínio econômico, passava a condicionar as superstruturas política-jurídicas. Um desses intelectuais foi Louis Althusser, teórico marxista que inovou os círculos acadêmicos nos anos 1960, que debateu a relação entre infra-estrutura e superestrura no livro “Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado”. Seguindo o que considerava uma leitura do próprio Marx, Althusser compreendia que a estrutura de qualquer sociedade era dividida em níveis ou

instâncias que recebiam o condicionamento da base ou infra-estrutura. Os níveis e instâncias que correspondem a divisões da superestrururas estavam divididas de forma dual:(...) aparelhos jurídicos-politicos, (o direito e o Estado) e a ideologias(as diferentes ideologias, religiosas, moral, jurídica, politica, etc.).45”(p.25-26) E qual seria a relação entre a infra-estrutura e as divisões da superestruras? De acordo com, Althusser: “Qualquer pessoa pode compreender facilmente que esta representação da estrutura de toda a sociedade como um edifício que comporta uma base (infraestrutura) sobre a qual se erguem os dois «andares» da superestrutura, é uma metáfora, muito precisamente, uma metáfora espacial: uma tópica . Como todas as metáforas, esta sugere, convida a ver algum acoisa. O quê? Pois bem, precisamos isto: que os andares superiores não poderiam «manter-se» (no ar) sozinhos se não assentassem de facto na sua base46.

A partir da analogia do edifício, Althusser explicita sua leitura de que a estrutura econômica(base ou infra-estrutura), em ultima instância, sustenta e determina os “andares” da superestrura. Althusser sinaliza também que é necessário que se reconheça alguma autonomia da superestrura assim como os possíveis efeitos de sua ação sobre a base. Entretanto ao prosseguirmos na leitura de Althusser percebemos a fragilidade do “econômico em última instância” quando nos deparamos com sua teoria sobre o Estado. Na visão althusseriana, o Estado sempre foi uma superestrura que esteve a serviço da classes dominantes e na vigência do capitalismo, a burguesia o utiliza para assegurar sua dominação sobre a classe operária a partir da extração do sobretrabalho. Logo, o Estado e seus aparelhos ideológico/repressivos, como a justiça e as forças armadas, garantidos pelas juridicidade burguesia responderiam integralmente aos interesses burgueses. Vale ressaltar que Althusser reconhece o pressuposto da luta de classes no regime do Capital, porém a vê girando em torno do Estado e do seus aparelhos e não os atravessando. Usa inclusive as revoluções burguesas do séc.XIX e revolução russa de 1917 como exemplos históricos aonde o Estado manteve sua intacta mesmo em meio ao ápice de enfrentamentos da luta de classes. Partindo dessa análise a respeito do Estado Capitalista, uma questão derivada da teoria althusseriana ficam no ar. Em que medida é possível perceber alguma

autonomia das

superestruturas, como a do Estado e do sistema jurídico, frente a base econômica? Ao assegurar o controle inconteste da burguesia sobre a infra-estrutura e superestruras esvaziando assim a disputa em torno destas advindas da lutas de classes, Althusser dá forma um materialismo economicista contrariando um dos princípios basilares da análise de Marx: a dialética. Mesmo tendo sido inspirado pelo estrutalismo althusseriano no início de sua trajetória intelectual, Niko Poulantzas promove uma grande reformulação no materialismo histórico através da sua teoria marxista de Estado. Um dos pilares dessa reformulação está na concepção de 45 ALTHUSSER, Louis, Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Editora Presença, 1988, p.25-26 46 Idem, p.26-27

Poulantzas do Estado como sendo resultado das relações sociais que atravessam sua ossatura instiucional. A partir de tal afirmativa, Poulantzas superava a concepção do Estado como coisa 47já que a instituição estatal ao ser vista como materialização da condensação de forças sociais resultantes da luta de classes, seja entre as frações dominantes em disputa pela hegemonia ou das relação destas com as classes dominantes, não podia ser mais considerada sob o domínio monolítico de uma classe social sem possuir nenhuma autonomia frente aos seus anseios. Superava-se também a concepção do Estado como sujeito48, pois, como afirma Poulantzas, as relações sociais que dão forma ao Estado e seus aparelhos devem ser procuradas nas relações de produção e na divisão social do trabalho demonstrando assim que as que as condições materiais de qualquer sociedade impedem a existência de qualquer forma de Estado como absoluta ou totalmente autônoma. Outro ponto alto do pensamento de Poulantzas se encontra no resgate que este faz do Político na teoria marxista. Na visão de Poulantzas: “ Estando as relações políticas-ideológicas desde já presentes na formação das relações de produção, desempenham um papel essencial em sua reprodução e desse modo o processo de produção e exploração é ao mesmo tempo processo de reprodução das relações de dominação política-ideológica.49”

Ao considerar as relações política-ideológico como artífices das relações de produção desde a sua formação em cada modo de produção, Poulantzas descarta o papel secundário que as consideradas superestruras assumiram em boa parte da literatura marxista. Como aponta, o historiador E. P. Thompsom em crítica a leitura estruturalista atlhusseriana: (...) a ideia de ser possível descrever um modo de produção em termos “econômicos” pondo de lado, como secundárias(menos reais), as normas, a cultura, os decisivos conceitos sobre os quais se organiza um modo de produção. 50”

Em relação aos aparelhos de Estado, inclusive o sistema jurídico-legal, Poulantzas propõe uma ampliação da leitura binônio repressão-ideologia a partir de uma pesada crítica: “De como foi sistematizada por L. Althusser, apóia-se no pressuposto da existência de um Estado que só agiria, só funcionaria pela repressão e pela doutrinação ideológica. Essa concepção supõe de certa forma que a eficácia do Estado esteja no que proíbe, exclui, impede de fazer, ou então no que engana, mente, oculta ou faz crer: que este funcionamento ideológico baseia-se em práticas materiais e não altera a análise restritiva do papel do Estado. Considera ainda o econômico como instância auto-reprodutível e auto-reguladora, onde o Estado apenas coloca regras negativas do “jogo econômico”. O poder político não está presente na economia, nela não poderia engajar-se devido a uma positividade própria, pois só existe para impedir(pela repressão e pela ideologia) as intervenções pertubadoras. Trata-se de uma antiga visão jurídica do Estado, a da filosofia jurídica-

47“Estado como Coisa: a velha concepção instrumentalista do Estado, instrumento passivo, senão neutro, totalmente manipulado por uma única classe ou fração, caso em que nenhuma autonomia é reconhecida ao Estado.” POULANTZAS, op.cit, p.131 48“Estado como Sujeito: a autonomia do Estado, considerada aqui como absoluta, é submetida a sua vontade como instância racionalizante da sociedade civil. Concepção que remonta a Hegel, retomada por Max Weber e a corrente dominante da sociologia política.” Idem, p.131 49 Idem, p.25 50 THOMPSON, E. P. Algumas observações sobre a classe e a “falsa consciência”. In: NEGRO, A. L. (Org.); SILVA, S. (Org.). As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p.275

política dos primórdios do Estado Burguês e que jamais correspondeu à realidade 51.”

Poulantzas não ignora o caráter ideológico-repressivo do Estado burguês, concluindo inclusive que o monopólio da violência legítimo que Estado Capitalista detém é naturalizado pela lei moderna. Não obstante o sistema jurídico não pode corresponder somente a uma pura negatividade marcada por censuras, restrições, incidindo em risco a hegemonia do poder político das frações dominantes caso isso venha a acontecer. Sendo assim, o caráter abstrativo e normativo da juridicidade burguesa ao garantir liberdade e igualdade a todos indivíduos de maneira desassociada da formação social em que estes estão inserido revelam a natureza posítiva que a lei também conserva, sendo utilizado para a produção de consentimento ao poder repressivo burguês sobre as classes dominadas. Observa também Poulantzas que o direito capitalista não se limita a revelar a disputa entre as força burguesas pelo poder:“ A axiomatidade jurídica permite a previsão politica das classes dominantes, eu afirmara, quando exprime uma relação de classes, ela constitui igualmente de um cálculo estratégico pois inclui nas variáveis do seu sistema, o fator resistência e a da luta das classes dominadas.52”Ao reconhecer que a lei capitalista carrega em si um caráter de disputa entre as classes dominantes e dominantes acredito ser possível uma aproximação com o historiador E. P. Thompson e sua noção de domínio do da lei. Não negando que a lei está intimamente relacionada às relações de produção da sociedade ao qual a mesma vem regulamentar53, Thompson, ao analisar a comunidade inglesa do século XVIII, chama atenção para a necessidade de compreender o aparato jurídico como mediação e reforço ideológico das relações de classes existentes e não simplesmente como reflexo direto e desavergonhado da estrutura social de classes. Thompson justifica a adoção desse pressuposto ao defender que a função ideológica da lei só se faz valer quando a mesma parte de critérios como igualdade e universalidade em seus procedimentos. Dessa forma: “Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa.”

Ainda nos desdobramentos conceituais sobre a questão do Direito, o historiador assinala também que as normas jurídicas, ao mesmo tempo em que são um instrumento de mediação das relações de classe existentes, também limitam a força arbitrária que a classe dominante podia exercer sobre a classe dominada. Segundo Thompson: “(...) não só os dominantes (na verdade, a classe dominante como um todo) estavam restringidos 51 POULANTZAS, op.cit, p.28 52Idem, p.91 53THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra. p. 352.

por suas próprias regras jurídicas contra o exercício de força direta e sem mediações (prisão arbitrária, emprego de tropas contra a multidão, tortura e aqueles outros úteis expedientes com que estamos todos familiarizados), como também acreditavam o bastante nessas regras, e na retórica ideológica que as acompanhava, para permitir, em certas áreas limitadas, que a lei fosse um foro autêntico onde se travavam certos tipos de conflitos de classes. 54”

Tais reflexões sobre o domínio da lei e classes sociais incidem diretamente na pesquisa que desejo realizar sobre a luta na Justiça do Trabalho empreendida pelos trabalhadores rurais. Acredito que a Justiça do Trabalho, como afirma Antônio Luigi Negro 55, não pode ser visto como instrumento criado “para inglês ver”. Compreender que esta instituição era somente um jogo de cartas marcadas contraria umas principais motivações que levaram à construção desse segmento do Judiciário que era a legitimação desse dispositivo como único agente legítimo de mediação dos conflitos na relação capital-trabalho sem que os trabalhadores apelassem para recursos fora da órbita estatal, como as greves. A Justiça do Trabalho deve ser vista como um aparelho do Estado atravessada pela luta entre classes, no qual os trabalhadores, sejam eles urbanos ou rurais, depositavam suas expectativas de justiça na busca por seus direitos. Como destaca Negro: “Logo, longe de vítimas passivas ou fantoches manipulados, há atores que entram em cena alargando as possibilidades da lei e do direito, conseguindo resultados e justiça. O mais das vezes, é verdade, fica claro que é que preciso energia e disposição para travar os embates. Ao mesmo tempo, também fica claro que há direitos pelos quais vale a pena luta, enfrentando a morosidade do judiciário56."

54Ibidem, p.356 55NEGRO, Antonio Luigi. O que a Justiça do Trabalho Não Queimou: Novas Fontes e Questões para a História Social. Politéia (Vitória da Conquista), v. 6 n. 1, 2006. p. 196 56NEGRO, op.cit, p. 201

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