Maternação e individuação em Paisagem com dromedário, de Carola Saavedra

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MATERNAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO EM PAISAGEM COM DROMEDÁRIO, DE CAROLA SAAVEDRA

Camila Canali Doval
Doutoranda em Teoria da Literatura na PUCRS, 3º ano, bolsista CNPq

Analisar as representações femininas na literatura, com foco na autoria feminina, é uma questão importante para a crítica feminista atual. A pesquisa que desenvolvo durante a minha tese de doutorado discute alguns temas culturalmente ligados ao feminino, identificados em doze romances brasileiros contemporâneos escritos por mulheres, e pretende colaborar com a criação de um panorama do que tem sido feito nos últimos anos no Brasil.
A relevância de se trabalhar com um corpus brasileiro e contemporâneo pode ser explicada pela professora Regina Dalcastagnè, que realiza ampla pesquisa na área, na Universidade de Brasília. Embora o seu foco de estudos não se detenha à questão da autoria feminina, seu objetivo de traçar um panorama da literatura brasileira contemporânea inclui o levantamento e a análise da representação das mulheres como autoras e como personagens. Para Dalcastagnè,

Ao mesmo tempo em que se vão fazendo escritoras, as mulheres continuam sendo, também, objetos da representação literária, tanto de autores homens quanto de outras mulheres. Essas representações apontam diferentes modos de encarar a situação da mulher na sociedade, incorporando pretensões de realismo e fantasias, desejos e temores, ativismo e preconceito. Na medida em que, nas últimas décadas, transformou-se aceleradamente a posição feminina nos diversos espaços do mundo social, a narrativa contemporânea é um campo especialmente fértil para se analisar o problema da representação (como um todo) das mulheres no Brasil de hoje (DALCASTAGNÈ, 2010, p. 40, grifo meu).

Especificamente sobre a literatura escrita por mulheres, o texto da professora Rita Terezinha Schmidt (1995, grifo meu) argumenta pela importância de se traçar uma amostra do que vem sendo feito no Brasil, pois, de acordo com ela, os sentidos do feminino hoje são outros, e a ficção é capaz de registrá-los:

Ultrapassados os preconceitos e tabus com relação ao potencial criativo feminino, vencidos os condicionamentos de uma ideologia que a manteve nas margens da cultura, superadas as necessidades de apresentar-se sob o anonimato, de usar pseudônimo masculino e de utilizar-se de estratégias para mascarar seu desejo, a literatura feita por mulheres hoje, se engaja num processo de reconstrução da categoria "mulher", enquanto questão de sentido e lugar potencialmente privilegiado para a reconceitualização do feminino, para a recuperação de experiências emudecidas pela tradição cultural dominante.

Em meio a essas experiências femininas muito silenciadas pelo sistema patriarcal que sempre regeu nossa sociedade e, portanto, pouco exploradas na e pela literatura escrita tanto por homens quanto por mulheres, me interessa o modo com as escritoras representam atualmente, em suas obras, as relações entre mães e filhas e outras possibilidades de exercício das funções materno-filiais.
Em Paisagem com dromedário (Companhia das Letras, 2010), de Carola Saavedra, um dos romances que faz parte da minha pesquisa, há o encontro de Érika, a protagonista, artista plástica, com Pilar, a empregada doméstica que trabalha na casa onde Erika se hospeda por um determinado período. Érika até a sua viagem, vivia uma relação com Alex, também artista plástico. Juntos eles desenvolviam experiências estéticas e existenciais, entre elas, um intenso triângulo amoroso com Karen, uma jovem ex-aluna dele. A relação dos três era baseada num jogo de dominação em que Alex era sempre o lado mais forte. Em determinado momento, Karen anuncia que está com um câncer terminal, e Érika não consegue vê-la nem encarar a situação. A protagonista se isola na casa de um casal de amigos, numa ilha distante, sem responder a nenhum telefonema de Alex, não comparece ao funeral de Karen e se dedica à gravação de 22 fitas de áudio com mensagens endereçadas a Alex, na busca de reconstituir e compreender a sua vida, questionando a influência e a opressão exercidas por ele na constituição da sua identidade tanto de artista quanto de mulher.
Érika chega à casa dos amigos num estado de profundo desamparo, confusão e carência. Em seu autoexílio, ao mesmo tempo em que constrói um processo de reconstrução da memória e de projeção do futuro através das gravações — ou seja, através da fala —, passa por experiências inéditas na sua vida, entre elas, adotar uma cadela e namorar o veterinário da cidade. Porém uma das mais fundamentais relações estabelecidas por ela nesse período e que vai determinar o seu processo de cura e empoderamento é com Pilar, a empregada da casa.

Pilar é o nome dela, já te falei da Pilar? Conversamos muito. Ela vai limpando a casa, e eu vou atrás dela. No meio da manhã tomamos café. Ela faz cada dia um bolo. Vanessa e Bruno não comem doces, você sabe, só eu. Um bolo inteiro para mim, Pilar costuma dizer que estou magra demais, comenta com Vanessa, a senhorita está muito magra, ela não come nada. Veja só, a senhorita sou eu. (Érika ri) Gosto de ficar na cozinha com ela, é como se eu voltasse a ser criança. Ela faz o café, o bolo, põe tudo na mesa. Ela acha estranhíssimo que eu tome café sem açúcar, todo dia comenta, vai beber assim, nem uma colherzinha de açúcar? Por isso é que você está fraquinha assim. Eu não consigo deixar de sorrir (SAAVEDRA, 2010, p. 88).

Esta é a primeira aparição de Pilar, numa descrição que já anuncia a função maternal que assumirá na trajetória de Érika através do uso de clichês como: "ela faz cada dia um bolo"; "costuma dizer que estou magra demais"; "por isso é que você está fraquinha assim"; "gosto de ficar na cozinha com ela, é como se eu voltasse a ser criança". No decorrer da narrativa, Érika e também nós, leitores, vamos nos ambientando com esse jeito "mãezona" de Pilar:

Depois Pilar se aproximou e me abraçou. Ela cheirava a sabonete. Me senti bem, acolhida. Fiquei um longo tempo ali com ela, depois deitada com a cabeça no seu colo. Ela me disse, o seu problema, senhorita, é que você não sabe nada da vida. Eu sorri (SAAVEDRA, 2010, p. 98-9).

Em contraposição ao mundo de relações emocionalmente caóticas e violentas vividas por Érika até então, as duas vão atando seus laços através de conversas na cozinha, em torno do calor do forno, das confidências, da cumplicidade e do afeto personificado pelo colo, pelo bolo, pelo chá, pelo cheiro de sabonete, pelo ato de "botar na cama", típico das mais doces e tradicionais representações maternas:

Pilar me trouxe pra casa, fez um chá de camomila para mim e me pôs na cama. Ela sentou na beira da minha cama, e ficamos conversando um pouco. Ela me perguntou, você perdeu um grande amor, foi isso? Eu ri. Respondi que não, que não tinha nada a ver com um grande amor. Mas você perdeu alguém muito importante, um filho? Ela me olhou, tentando encontrar em meu olhar uma resposta. Você engravidou e perdeu a criança, foi isso? Eu achei curioso que Pilar pensasse que eu havia perdido um filho. Expliquei a ela que não, que não havia perdido filho nenhum. Eu perdi, uma vez, ela disse (SAAVEDRA, 2010, p. 100-1).

Há, nesse cenário, a construção de uma relação entre mãe e filha que se escolhem com base no afeto e no conforto; mas há, acima disso, a construção de uma relação de duas mulheres em torno de sentimentos que só poderiam ser compartilhados por duas mulheres. Aos poucos, no colo de Pilar, Érika consegue finalmente chorar a morte de Karen e realizar o seu luto, começando a superar a dor que a tinha levado ao isolamento. Após esse primeiro grande desabafo, ela dá também um primeiro passo para fora de si e do seu drama existencial, começando a namorar o veterinário da ilha. Ele atende a cachorrinha que Érika adotou (ou o contrário, pois foi Lola quem escolheu Érika, se aproximando dela na rua e a seguindo até a casa) e é o extremo oposto de Alex. Enquanto o artista plástico é um homem egoísta e inconstante, com facilidade para dispor dos sentimentos alheios, principalmente das mulheres, o veterinário é um homem discreto, terno e trabalhador, com planos de se casar e de construir uma família tradicional. Interessante é que assim que começa a namorá-lo, Érika passa a ter pesadelos a respeito da hipótese de ser mãe:

Ontem à noite, sonhei que eu paria um filho. Um filho-monstro. Eu paria um filho já crescido, uma criança de quatro ou cinco anos. Eu me angustiava, me sentia obrigada a amá-lo mas não conseguia. Ao contrário, sentia um ódio muito profundo por ele (SAAVEDRA, 2010, p. 121).

Tais pesadelos sinalizam o dilema em que a personagem está aos poucos se embrenhando. Da vida atribulada e cosmopolita, que incluía um relacionamento a três, ao novo (e ao mesmo tempo tão velho) paradigma que Erika se impõe há um abismo não facilmente superável, e é nos sonhos que ela consegue ressignificar suas angústias parindo — e odiando — um filho-monstro. Para Elisabeth Badinter em Um amor conquistado: o mito do amor materno (1980, p. 22-3, grifo meu),

O amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento, é incerto, frágil e imperfeito. Contrariamente aos preconceitos, ele talvez não esteja profundamente inscrito na natureza feminina. Observando-se a evolução das atitudes maternas, constata-se que o interesse e a dedicação à criança se manifestam ou não se manifestam. A ternura existe ou não existe. As diferentes maneiras de expressar o amor materno vão do mais ao menos, passando pelo nada, ou o quase nada.

Erika, pelo que temos de sua trajetória, ainda não tinha se deparado com a questão da maternidade, e durante toda a narrativa ela cita a sua mãe verdadeira apenas uma vez (sua atenção é muito mais voltada para a transtornada mãe de Karen). No entanto, naquele momento de fragilidade, ela se depara com uma situação em que ser acolhida por Pilar e ao mesmo tempo acolher Lola traz-lhe uma completude que soa como a resposta certa para as suas inquietações e para o sentimento de não conformidade que está vivendo.
De certa forma, Erika entende que aceitar a sua condição feminina, a qual culturalmente implica a maternidade, pode significar o restabelecimento da sua saúde mental e emocional, inclusive libertando-a da relação nociva que mantinha com Alex. Porém essa transmutação não se dá de forma tranquila na personagem; o inconsciente de Erika demonstra esse conflito através dos pesadelos com o filho-monstro. Para Nancy Chodorow, em Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher (2001, p. 50, grifo meu),

Além dos possíveis componentes hormonais do cuidado materno logo após o parto do seu filho (e mesmo esses não atuam independentemente), nada há na fisiologia das mulheres parturientes que as tornem especialmente adaptadas para o cuidado infantil posterior, nem há qualquer razão instintual pela qual elas devam ser capazes de executá-lo. Nem há qualquer coisa biológica ou hormonal para diferençar uma "mãe substituta" masculina de uma feminina. O argumento biológico em favor da maternalidade das mulheres baseia-se em fatos que decorrem não do nosso conhecimento biológico, mas de nossa definição da situação natural tal qual ela surge de nossa participação em certos arranjos sociais. O fato de que as mulheres tenham um intenso e quase exclusivo papel materno deve-se a uma transposição social e cultural de suas capacidades de dar à luz e amamentar. Não é assegurado ou causado por essas próprias capacidades.

Assim, Erika parece aceitar que a acomodação em um estereótipo de mulher poderia solucionar a sua crise (ou histeria, alguns poderiam diagnosticar), tal e qual a cultura ocidental vem pregando há séculos. À medida que ela se entrega à força e ao conforto do colo de Pilar, à segurança da ilha como um lar e à estabilidade dos sentimentos do novo namorado, e até ao seu papel de única responsável por Lola, ela vai deixando para trás a Erika capaz abandonar a melhor amiga à beira da morte e assumindo uma outra perspectiva de vida:

Eu nunca mais sonhei com o filho-monstro. Ao contrário, pela primeira vez, tenho vontade de ter filhos. Estranho, não? Eu sei, eu sei que para você é difícil de acreditar. Mas por algum motivo o doutor fez com que esse desejo surgisse em mim (SAAVEDRA, 2010, p. 130).

O namoro entre Erika e o veterinário evolui rapidamente. Enquanto ela se dirige o tempo todo a Alex, em suas gravações, o novo namorado não tem nome, é apenas "doutor". Para ele, Erika cria uma ficção de si mesma, uma personagem que atende muito melhor aos anseios dos seus companheiros de ilha do que a Erika original. Em certo momento da narrativa, o namorado faz confidências de sua infância para ela, e Erika, diante da fragilidade dele, encarna finalmente o estereótipo feminino que tanto ele quanto Pilar vinham construindo nela. Ela declara, numa das gravações: "Eu tive vontade de cuidar dele. De ser realmente aquilo que ele via em mim, uma mulher doce, cuidadosa com quem ama" (SAAVEDRA, 2010, p. 132). Essa mulher "doce" e "cuidadosa" na qual Erika se vê impingida a se transformar nada mais é do que um reflexo do conceito de feminilidade impresso a uma suposta natureza feminina e reproduzido com a intenção de submeter as mulheres a uma posição delimitada na sociedade. Para Maria Rita Kehl, em Deslocamentos do feminino (2008, p. 47-8, grifo meu),

A cultura europeia dos séculos XVIII e XIX produziu uma quantidade inédita de discursos cujo sentido geral foi o de promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado feminilidade. A ideia de que as mulheres formariam um conjunto de sujeitos definidos a partir de sua natureza, ou seja, da anatomia e suas vicissitudes, aparece nesses discursos em aparente contradição com outra ideia, bastante corrente, de que a "natureza feminina" precisaria ser domada pela sociedade e pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao qual estariam naturalmente designadas. A feminilidade aparece aqui como o conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos e de sua capacidade procriadora; a partir daí, atribui-se às mulheres um pendor definido para ocupar um único lugar social — a família e o espaço doméstico —, a partir do qual se traça um único destino para todas: a maternidade.
Vê-se, neste ponto, o olhar do outro imprimindo sua marca em Erika; e não se trata apenas de Pilar e do veterinário, é o olhar de toda uma construção social que vai vencendo a resistência da protagonista. Pilar desde o começo afirmava que o problema de Erika era não ter alguém que tomasse conta dela, pôs na vida independente e sem amarras da artista a culpa do sofrimento. Para Pilar, era preciso que Erika se voltasse ao feminino, ao lar, ao amor, à maternidade, para enfim ser uma mulher feliz — ou, ao menos, realizada, dentro da sua condição. O ápice da imposição do estereótipo se dá quando o doutor pede Erika em casamento e Pilar, ao receber a notícia, a reconhece — e batiza como filha: "No dia seguinte, Pilar viu o anel. Ela começou a chorar, imagina. Me abraçou, disse, minha filha, estou tão feliz por você. O curioso é que a partir daquele momento ela deixou de me chamar de senhorita para me chamar de minha filha" (SAAVEDRA, 2010, p. 141).
Aqui poderia ser o final da história, a vitória dos contos de fadas, quando Erika se casa com o veterinário, vai morar numa casinha com jardim e com cachorro e se prepara para ser mãe, o desfecho lógico para uma mulher. Tal aprisionamento da felicidade feminina na condição materna é uma discussão presente desde Simone de Beauvoir, em o Segundo sexo (1970, p. 10, grifo meu):

A mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade; diz-se de bom grado que ela pensa com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos. Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão.

Décadas depois de Beauvoir, também Heleieth Saffioti, em O poder do macho (1997, p. 9, grifo meu), debate essa prisão culturalmente instituída para o sexo feminino:

A sociedade investe muito na naturalização desse processo. Isto é, tenta fazer crer que a atribuição do espaço doméstico à mulher decorre de sua capacidade de ser mãe. De acordo com esse pensamento, é natural que a mulher se dedique aos afazeres domésticos, aí compreendida a socialização dos filhos, como é natural a sua capacidade de conceber e dar à luz.

Para Chodorow, essa naturalização é um movimento que parte das instituições sociais em direção ao indivíduo mulher, garantindo a reprodução da ideia de maternidade como obrigação, missão, dever. É quase um fato dado que à mulher cabe o cuidado dos filhos; mais do que isso, à mulher cabe o instinto materno, a naturalidade desse cuidar:

As próprias ideologias legitimadoras, assim como instituições tipo escolas, comunicações de massa, e famílias que perpetuam ideologias, contribuem para a reprodução social. Elas criam expectativas nas pessoas sobre o que é normal e apropriado, e como devem agir. A perpetuação da sociedade exige que alguém crie filhos, mas nossa linguagem, ciência e cultura popular tornam muito difícil separar a necessidade de cuidado da questão de quem deve cuidar. É difícil separar as tarefas relacionadas ao cuidar de filhos, em geral executadas por mulheres e em especial por mães biológicas, das próprias mulheres (CHODOROW, (2001, p. 57, grifo meu).

Por que, então, Erika, a imagem da mulher contemporânea, distante das crenças populares a respeito das obrigações das mulheres, avessa às normas estabelecidas culturalmente que obrigam a mulher ao casamento, à monogamia e à maternidade, uma mulher artística, sexualmente livre, independente, se deixaria seduzir tão passivamente pelo ambiente confortável e correto que se criara ao seu redor? Há um paradoxo latente na narrativa, pois Erika não suporta transmutar-se para um estereótipo tão distante de si mesma e, de casamento marcado, cai em si e decide partir imediatamente da ilha; mas, ao mesmo tempo, é dessa construção que ela retira as forças para a sua reestruturação interna e retomada de vida. Ela se despede da "mãe postiça" que participou do seu processo gestacional de reabilitação como num segundo nascimento, um segundo desligamento, um segundo processo de passagem para a idade adulta, e parte. Para onde?

Mas como eu te dizia, Pilar então me abraçou. Eu encostei a cabeça no seu colo e fiquei ali, chorando. Ela cheirava a sabonete. Pilar sempre cheirava a sabonete, como se tivesse acabado de sair do banho. Ela disse, talvez para me consolar, minha filha, não se preocupe, Lola ficará bem. E eu vou passar para vê-la de vez em quando, e o doutor, ele a ama e vai esperar por você. (Érika ri, triste) Porque eu sei, minha filha, eu sei que você vai perceber que isso tudo é um erro e vai voltar. Nós estaremos aqui. Eu tive que sorrir. (Érika diz em tom choroso) Pilar acha que eu vou voltar. (pequena pausa) Mas não, Alex, eu não vou voltar. (o tom muda repentinamente, agora está decidido) Eu não vou voltar para lugar nenhum (SAAVEDRA, 2010, p. 164-5).

Ao fim da narrativa, Érika não precisa mais de uma mãe e é capaz de retornar à sua vida um pouco mais fortalecida e consciente de quem ela realmente é. Talvez ela tenha se despedido para voltar ao seu relacionamento inconstante, inconsistente e nada convencional, mas que de alguma forma a satisfazia. Certamente ela se despediu para enfrentar sozinha as fraquezas e neuroses que constituem a sua personalidade, as quais certamente não se resolveriam ao aderir a um estereótipo de mulher ideal, apenas se acumulariam dentro dela e explodiriam sobre o marido, o filho, sobre si mesma. Em Paisagem com dromedário não há uma ode ao amor romântico, ao casamento, ao clássico final feliz. Érika parece compreender que não existe um lugar ideal para ela, que ela está longe de ser uma mulher ideal assim como não existe uma fórmula ideal de vida. Ela chegou a pensar que a sua inconformidade era causada pelo seu não enquadramento e, ao tentar finalmente ser o que a sociedade espera de uma mulher, encontrou-se desesperada para voltar. Para onde?, repito. Ao afirmar que não voltará a "lugar nenhum", Érika pode estar se empoderando e definindo que o não-lugar em que se encontrava até a morte de Karen, a grande ruptura da sua história, é ele mesmo o seu espaço de liberdade — mesmo que ser livre não necessariamente signifique ser feliz.
Mas, afinal, o que significa a felicidade senão o máximo de liberdade possível dentro de um sistema organizado para oprimir?


REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo I: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. São Paulo; Rosa dos Tempos, 2001.

DALCASTAGNÈ, Regina. Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos (orgs.), Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte, 2010.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.

SAAVEDRA, Carola. Paisagem com dromedário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1997.

SCHMIDT, Rita Terezinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina. In: NAVARRO, Márcia Hoppe (org). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995. 191 p. Coleção Ensaios CPG-Letras; 3.


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