MATERNIDADE CONTEMPORÂNEA: um estudo exploratório sobre vulnerabilidade e consumo

May 27, 2017 | Autor: R. Periódico dos ... | Categoria: Marketing, Consumo, Gestante, Vulnerabilidade do Consumidor, Maternidade Conteporânea
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Revista FOCO. ISSN: 1981-223X

 

MATERNIDADE CONTEMPORÂNEA: um estudo exploratório sobre vulnerabilidade e consumo Priscila De Nadai1 Natani Carolina Silveira2 Resumo Na pesquisa sobre o comportamento do consumidor, estudos sobre vulnerabilidade do consumidor apresentam uma proposta de unificação para diversos estudos que focam as consequências sociais do consumo. Ao se analisar a maternidade contemporânea, percebe-se aumento na oferta de produtos e serviços. No Brasil, um dos serviços que chama a atenção é a assistência médica privada para gestantes, pelo elevado número de cesarianas realizadas. O objetivo do artigo consiste em explorar potenciais situações de vulnerabilidade que gestantes possam encontrar, especialmente vindas do serviço de assistência médica, com foco no parto. A metodologia focou na análise de conteúdo em blogs direcionados à gestantes e mães em busca de depoimentos. Os principais resultados mostram que as gestantes brasileiras, no papel de consumidoras de serviços médicos para o parto, se encontram em papel de vulnerabilidade devido a um conjunto de fatores. Palavras-chave: vulnerabilidade do consumidor. Gestante. maternidade contemporânea. Abstract In consumer behavior research, studies about consumer vulnerability present a framework that aims to unify various studies that focus on the social consequences of consumption. Analysis of contemporary motherhood shows an increase in the offer of products and services. In Brazil, one of the services that stands out is private medical service for pregnant, due to its high occurrence of cesarean delivery. The objective of this paper is to explore potential situations of vulnerability that pregnant women may find, especially coming from the medical service, with a focus on delivery. The methodology focused on the analysis of content in blogs directed to pregnant women and mothers in search of evidence. The main results show that Brazilian pregnant women, in the role of medical services consumers for delivery, are in a vulnerable role due to a number of factors. Key words: Consumer Vulnerability. Pregnant Women. Contemporary Motherhood.

                                                                                                                1

Doutora em Administração pela FEA/USP. Professora da Faculdade Novo Milênio e pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Administração/NEPA. 2 Doutora em Administração pela FEA/USP. Professora da Universidade Nove de Julho/Uninove e da Faculdade SENAC - SP.

 

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INTRODUÇÃO O dinamismo das relações de consumo no Brasil e no mundo moldam mercados e provocam transformações em todos os aspectos ligados aos processos de decisão de compra. Dificilmente, algum setor da economia se mantém alheio a essas transformações. No caso da maternidade, uma infinidade de produtos e serviços aparece a cada dia, desde o enxoval do bebê comprado em Miami (atividade que constitui quase uma praxe entre os consumidores da classe média brasileira) até o promissor segmento de festas infantis, um dos serviços que chama a atenção de consumidores mais críticos e até dos responsáveis pela saúde pública no Brasil é a assistência médica privada para gestantes. O que vem chamando a atenção nesses serviços é a quantidade de procedimentos cirúrgicos (cesarianas) para proceder ao nascimento do bebê. Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 15% e 20% do total de partos realizados em um país deveriam ser por meio da cesariana. Ao se ultrapassar esses limites, aumenta-se muito os riscos para a saúde da mãe e do bebê. No Brasil, a taxa de partos realizados por meio de cesarianas corresponde à 46% e mantêm-se em ascensão desde a década de 1970, sendo o país o segundo no ranking da OMS, atrás apenas do Chipre. Entretanto, ao se olhar de forma isolada as assistências pública e privada, dados do Ministério da Saúde revelam que em 2012, quase 80% das cesarianas realizadas no país ocorreram na rede privada de saúde. Diante da 'marketização' da maternidade contemporânea que é fortemente permeada pelo consumo, abre-se espaço para investigar a situação das gestantes atualmente em meio a um emaranhado de práticas, hábitos e noções do que condiz a uma 'boa mãe'. O objetivo deste artigo consiste em explorar potenciais situações de vulnerabilidade que gestantes possam encontrar, ao lidarem com experiências de consumo desconhecidas e que se tornaram amplamente 'marketizadas'. Especificamente, foram exploradas as situações de consumo de serviços médicos para gestantes, com especial atenção para o parto. Para isso, foram analisados blogs de gestantes e mães em busca de diários, depoimentos, desabafos e demais comentários que representem a gestação e a maternidade, atualmente. Nas linhas que se seguem, o leitor encontrará a seguinte divisão do artigo: além de breve introdução, a revisão teórica aborda as temáticas de vulnerabilidade do consumidor e a construção do consumo na maternidade contemporânea, a descrição da proposta metodológica adotada com a apresentação dos principais resultados e por fim as considerações finais.

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REFERENCIAL TEÓRICO 1.1 Vulnerabilidade do Consumidor No campo de pesquisa sobre o comportamento do consumidor, os estudos sobre

vulnerabilidade do consumidor apresentam uma proposta de unificação para diversos estudos que focam as consequências sociais do consumo, em diferentes populações e contextos de mercado. Entretanto, o conceito de vulnerabilidade do consumidor, quando associado aos processos de consumo, tem sido erroneamente compreendido como situações de desvantagens,

discriminação

ou

proteção

ao

consumidor

(BAKER,

GENTRY

e

RITTENBURG, 2005). A clareza em relação ao que realmente constitui o conceito de vulnerabilidade do consumidor e como ele se desenvolve nas relações de mercado ainda encontra-se em fase de discussão. Algumas conceituações de vulnerabilidade do consumidor focam em determinadas características ou limitações do indivíduo, outras em condições do ambiente externo e/ou a interação entre fatores intrínsecos e extrínsecos do indivíduo (BAKER; GENTRY; RITTENBURG, 2005; MOSCHIS, 1992). Para se entender o conceito de vulnerabilidade do consumidor é importante entender o que constitui o próprio conceito de vulnerabilidade. No dicionário Houaiss da língua portuguesa, Houaiss e Villar (2001, p. 2884) apontam a vulnerabilidade como a "qualidade ou estado do que é ou se encontra vulnerável"; sendo vulnerável algo ou alguém "que pode ser fisicamente ferido; sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido [...]" (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2884). Nesse sentido, o termo vulnerabilidade foca em quem vivência a vulnerabilidade. Ao tomar esses conceitos como base para se entender a vulnerabilidade do consumidor, focar somente em quem vivencia a vulnerabilidade traz falta de clareza para compreensão do conceito de vulnerabilidade do consumidor de maneira ampla; uma vez que devido às dificuldades enfrentadas nas interações de consumo, algumas pessoas são denominadas como consumidores vulneráveis permanentemente. Essas pessoas normalmente pertencem a determinados grupos sociais marginalizados que, em muitas ocasiões, não veem a si próprios como vulneráveis, em contextos de consumo. Entre esses grupos encontram-se adolescentes (CHIA, 2010; PECHMANN et al., 2005), imigrantes (PEÑALOZA, 1995), analfabetos, obesos, grávidas (DAVIES et al., 2010), idosos (MOSCHIS, 1992), pobres, deficientes físicos, entre outros. (BAKER, 2009; GARRET; TOUMANOFF, 2010; MANSFIELD; PINTO, 2008).  

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Há ainda autores que ao focarem em quem é vulnerável, denominam como consumidores vulneráveis aqueles desprovidos de condições sociais e econômicas suficientes para interagir de forma positiva no mercado, como por exemplo pessoas que vivem em locais de extrema pobreza e desigualdades sociais, grupos segregados e estigmatizados ou que passaram por algum tipo de desastre natural (BAKER, 2009; HILL, 2001; PEÑALOZA, 1995). Para Baker, Gentry e Rittenburg (2005) a vulnerabilidade do consumidor não deve ser abordada com foco em quem é vulnerável e sim em quais contextos a vulnerabilidade ocorre, uma vez que qualquer pessoa pode experienciar a vulnerabilidade nas relações de consumo, pois todos os indivíduos se deparam com situações de dificuldade ao longo da vida. A partir de ampla revisão da literatura sobre marketing e comportamento do consumidor que utilizaram-se de múltiplos métodos de pesquisa Baker, Gentry e Rittenburg (2005) desenvolveram um modelo para compreensão da vulnerabilidade do consumidor pautado no fator situacional, mas numa perspectiva multidimensional. Para isso, identificaram três eixos recorrentes na literatura sobre vulnerabilidade: 1) fatores que aumentam a possibilidade de ocorrência da vulnerabilidade, 2) experiências de vulnerabilidade do consumidor e 3) respostas do consumidor à vulnerabilidade. Estes três eixos formam a base do modelo conceitual que define a vulnerabilidade do consumidor. Entre os fatores que contribuem para a ocorrência da vulnerabilidade estão os fatores internos e os externos. Os fatores internos são constituídos pelas características e pelos estados do indivíduo. As características individuais são formadas por aspectos biofísicos (adicção, idade cronológica, deficiências físicas e/ou cognitivas, gênero, saúde, raça/etnia) e aspectos psicossociais (aqueles que abrangem as razões para comportamentos como autoconceito, percepção social da aparência, status socioeconômico, habilidades percebidas, recursos do consumidor, aculturação, medo de vitimização, percepção de saúde e isolamento social). Essas características podem afetar o entendimento e as percepções do consumidor nas interações de consumo, influenciando assim sua habilidade e discernimento em relação às mensagens de marketing e decisões de compra. Os estados do indivíduo como o luto, a motivação, as transições, o humor, entre outros geram instabilidade e estresse e também contribuem para a forma como o contexto de consumo é vivenciado. Entre os fatores externos encontram-se aqueles além do controle do indivíduo e que afetam o cotidiano dos consumidores como discriminação, repressão e estigmatização, distribuição de recursos, elementos físicos, logísticos entre outros (BAKER, GENTRY e RITTENBURG, 2005). As experiências de vulnerabilidade do consumidor dizem respeito a inabilidade do V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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  consumidor em controlar sua atenção, comportamento e emoção e, portanto, suas ações estão além do seu controle. Esse possível descontrole ocorre quando o indivíduo possui ou vivencia os fatores internos e externos que contribuem para a ocorrência da vulnerabilidade. Essas experiências podem ser vivenciadas em distintos contextos de consumo por meio de diferentes estímulos de marketing como propaganda, canais de distribuição, Internet, preços, produtos, ambiente de serviços etc. (BAKER, GENTRY e RITTENBURG, 2005). Quando a vulnerabilidade é vivenciada no contexto de consumo, dois tipos de resposta do consumidor podem ser esperadas: 1) o consumidor responde à essa experiência desenvolvendo comportamentos e emoções positivas para o enfrentamento e adaptação à situação; ou experimenta um sentimento de desamparo e desumanização, e relaciona a experiência ao processo de aprendizagem; 2) o mercado, por meio de reações de contraconsumo e o governo, por meio de políticas públicas, desenvolvem respostas para facilitar ou impedir o controle individual em contextos de consumo futuros (BAKER, GENTRY e RITTENBURG, 2005). O modelo conceitual que define vulnerabilidade do consumidor é apresentado na figura 1. Com base nesses três pilares, Baker, Gentry e Rittenburg (2005, p. 134) definem a vulnerabilidade do consumidor como:

Um estado de impotência que surge de um desequilíbrio nas interações de compra ou do consumo de produtos e mensagens de marketing. Isso ocorre quando o controle não está nas mãos do indivíduo, criando uma dependência de fatores externos (por exemplo dos profissionais de marketing) para criar equidade no mercado. A vulnerabilidade real surge da interação entre estados individuais, características individuais e condições externas num contexto onde os objetivos de consumo possam ser prejudicados e a experiência afeta as percepções pessoais e sociais do indivíduo.

Ao focar nas situações de potencial vulnerabilidade do consumidor os autores se omitem em apontar quem é vulnerável. Ao contrário, afirmam que qualquer um tem o potencial para estar vulnerável, de acordo com uma gama de estados, características e situações que se entrelaçam e nas quais, fundamentalmente, o consumidor não possui o controle. Em tais situações de vulnerabilidade existem barreiras que impedem o controle por parte dos consumidores ou previnem que eles tenham liberdade para escolher. Diante do exposto, uma das potenciais situações de vulnerabilidade que o consumidor vivencia é aquela experimentada por mulheres grávidas, ao se depararem com situações de consumo nunca antes ocorridas. Somente pelo fato da mulher estar grávida não significa que  

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ela vivencia situações de vulnerabilidade a todo momento, mas ela reúne características, estados e condições que a habilitam a experienciar potenciais situações de vulnerabilidade, pois existem fatores internos e/ou externos que estão além do seu controle. Uma destas potenciais situações diz respeito ao consumo de serviços de saúde, como por exemplo as decisões que envolvem o parto do bebê. Figura 1 - Modelo Conceitual para Definir Vulnerabilidade do Consumidor.

Fonte: Adaptado de Baker, Gentry e Rittenburg (2005, p.135).

Para elaborar esta discussão é importante levantar algumas questões acerca do consumo e da maternidade contemporânea, que será explorado na próxima seção. 1.2 Consumo e Maternidade Contemporânea A maternidade representa um período de transição na vida da mulher e está diretamente atrelada à alterações fisiológicas, psicológicas e comportamentais. Neste período, além das diversas mudanças inerentes ao processo gestacional, a mulher, principalmente as primigestas, se deparam com um fenômeno relativamente novo e desconhecido, fazendo com que esta experiência seja permeada por sentimentos de dúvidas e insegurança. O período da gravidez e a chegada do bebê no contexto familiar promovem diversas modificações nos hábitos e nas decisões de consumo. As mudanças no ciclo de vida da família fazem com que produtos e serviços sejam escolhidos e consumidos para que a mãe e a família sintam-se seguros em relação aos cuidados e à saúde do novo membro. (CARRIGAN; V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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  SZMIGIN, 2006, TAYLOR; LAYNE; WOZNIAK, 2004). Carrigan e Szmigin (2006) afirmam que centenas de produtos, serviços e estímulos de marketing são oferecidos com o intuito de satisfazer necessidades da gestante e do bebê e ao mesmo tempo ensinar hábitos e comportamentos de consumo de uma 'boa mãe'. Serviços especializados, utilizados principalmente no período da gestação e do parto, brinquedos, acessórios, roupas, suplementos e livros são comercializados especificamente para o amplo mercado da maternidade (DOUGLAS; MICHAELS, 2004). Além disso, o consumo de produtos e serviços com o foco na maternidade é influenciado por vários grupos além das preferências e emoções da gestante. A validação de amigos, familiares e especialistas sobre o tema exerce grande influência nos processos decisórios de compra (CARRIGAN; SZMIGIN, 2006). Isso demonstra que há uma idealização da maternidade, refletida e construída pela aquisição de bens e serviços e que o relacionamento entre a mãe e o bebê é iniciado e fortalecido na contemporaneidade por meio do consumo. A relação entre o novo membro, a mudança no ciclo de vida da família e o consumo se faz cada vez mais aparente por meio da proliferação de estímulos de comunicação de marketing (CLARKE, 2000). Neste contexto, as ações de marketing podem intensificar a experiência da vulnerabilidade da gestante, uma vez que constroem crenças sobre a idealização da maternidade, principalmente quando relacionadas ao consumo de serviços específicos e que demandam extrema confiança, como é o caso dos serviços médicos (DAVIES et al., 2010). Portanto, diante destes fatos e das construções sociais criadas sobre a maternidade, muitas mulheres tornam-se consumidoras vulneráveis em determinados contextos e interações de consumo (DAVIES et al, 2010), uma vez que as crenças da maternidade e do ato de ser mãe estão permeadas e são idealizadas a partir da lógica do consumo. Frequentemente, mulheres grávidas deparam-se com comunicações de marketing que podem influenciar seu comportamento, direcionando suas crenças sobre o que significa ser uma 'boa mãe'. O excesso de informações e a pressão imposta pela conduta de como ser uma 'boa mãe' causam estresse e angústia (ROTHMAN, 2000). Ao analisar os esforços de marketing voltados para este segmento de mercado, o fator primordial é entender se essas consumidoras possuem discernimento suficiente para compreender este processo como algo construído e com o qual elas estão habituadas a lidar ou se de alguma forma, em decorrência do seu estado emocional transitório, elas sentem certa imposição ou até mesmo vulnerabilidade em relação às exigências do mercado (DAVIES et al., 2010)?  

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Ao se pensar em uma gestante a partir do modelo de vulnerabilidade do consumidor de Baker, Gentry e Rittenburg (2005), percebe-se que ela pode reunir características psicossociais como a aculturação e a percepção sobre sua saúde, além de se encontrar em um estado individual de transição, que em conjunto, afetam a maneira pela qual esta grávida vivencia, responde e interpreta os discursos sobre maternidade oriundos dos estímulos de marketing. Dentre os fatores externos, a distribuição de recursos, especificamente, os da área de saúde são fundamentais para mulheres grávidas e podem proporcionar situações de vulnerabilidade ao se depararem com falta ou dificuldade de acesso a rede de pública de saúde (ALWITT, 1996). Baker, Gentry e Rittenburg (2005) destacam que o ponto fundamental da vulnerabilidade do consumidor é a falta de controle para lidar com as interações de consumo presentes no contexto de compras, quer seja por características e estados do consumidor ou por fatores externos. Diante do exposto, quando uma gestante consome serviços médicos, é alta a chance dela se encontrar em uma situação de vulnerabilidade, mesmo que não se perceba como vulnerável. Neste artigo, o interesse de pesquisa recai sobre a potencial situação de vulnerabilidade da gestante quando da escolha do tipo de parto, uma vez que esta mulher se encontre em condições propicias de saúde para escolher. No Brasil, a taxa de partos realizados por meio de cesarianas corresponde à 46% e mantêm-se em ascensão desde a década de 1970. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que entre 15% e 20% dos partos sejam realizados por meio de cesariana e ao se ultrapassar estes limites, há maior incidência de riscos de mortalidade materna e/ou complicações e morte neonatal (VILLAR et al. 2006, HOPKINS, 2000). Porém, percebe-se uma grande variação nessas taxas quando são analisadas as assistências pública e privada de forma isolada. Dados do Ministério da Saúde para o ano de 2012, revelam que os números de cesarianas realizadas no setor privado de saúde chegou a cerca de 80% e nas instituições públicas esse número foi em torno de 30% (BITTENCOURT; VIEIRA; ALMEIDA, 2013, SUS, 2013). Estudos comprovam que a indicação do parto por cesariana deve ser feita em casos específicos, nos quais não é possível a realização do parto normal ou mediante casos de urgência, que podem colocar em risco a vida da mãe e do bebê. A cesariana aumenta os riscos tanto para a gestante quanto para o feto no momento do parto, pois trata-se de um procedimento cirúrgico muito complexo. Além disso, o processo de recuperação após a V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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  cesariana é muito mais difícil e exige maiores cuidados com a puérpera. (HOPKINS, 2000; KASAI et al., 2010). Apesar de todos os riscos conhecidos que envolvem a realização da cesariana, cada vez mais esse tipo de parto eletivo está sendo indicado para gestantes saudáveis e sem riscos na gravidez, especialmente na rede privada de atendimento médico (VILLAR et al. 2006, SUS, 2013). Percebe-se que a indicação da cesariana em detrimento do parto normal ocorre principalmente por fatores relacionados ao medo das dores do parto e pela comodidade tanto para o médico quanto para a gestante; uma vez que o parto pode ser programado e agendado previamente e também por causa dos lucros advindos deste procedimento. Existe ainda uma relação da escolha do parto cesariana com fatores não médicos, como educação e classe social das mulheres e a região do Brasil onde elas vivem (BITTENCOURT; VIEIRA; ALMEIDA, 2013, SUS, 2013, HOPKINS, 2000). Diante do exposto, apesar das informações e das orientações disponíveis sobre saúde da mulher e do bebê, em muitos casos, existem barreiras que impedem que a mulher tenha condições de opinar sobre a via de parto desejada, sendo comum que esta decisão seja conduzida exclusivamente pela opinião e orientação do médico, não cabendo à ela a decisão final. 2

PROPOSTA METODOLÓGICA O objetivo deste artigo consiste em explorar potenciais situações de vulnerabilidade

que gestantes possam encontrar ao consumirem serviços médicos durante o pré-natal, com foco na situação de consumo do serviço de parto. De acordo com as particularidades da temática em questão e da escassez de produção científica nacional sobre as situações de vulnerabilidade encontradas por gestantes, nas relações de consumo no Brasil; optou-se por realizar uma pesquisa exploratória e qualitativa que reflita um esboço inicial acerca do assunto. A exploração está geralmente associada a estágios preliminares de pesquisa e examina tópicos com pouco conhecimento acumulado com a possibilidade de gerar ideias para estudos posteriores. Para isto, se utiliza de métodos de pesquisa amplos e versáteis como levantamentos em fontes secundárias, levantamentos de experiência, estudos de casos selecionados e observação informal (SELLTIZ et al, 1971). Neste artigo, optou-se por utilizar o método de levantamento em fontes secundárias, especificamente, em blogs sobre gestação e maternidade em busca de relatos de experiências  

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de consumo de serviços médicos, com especial atenção para o parto. A escolha do levantamento em blogs faz parte da crescente pesquisa social online, vista por vários pesquisadores como forma alternativa que aumenta o campo de investigação da pesquisa social (LEE; FIELDING; BLANK, 2008, O'CONNOR; MADGE, 2001, MANN; STEWART, 2000). Neste contexto, o blog surge como rica fonte de dados ainda pouco explorada (WAKEFORD.; COHEN, 2008, HOOKWAY, 2008). O termo blog é derivado de weblog e surgiu com a chamada Web 2.0 na qual os sites de Internet possuem o objetivo de facilitar alguns aspectos da interação na rede como o compartilhamento

de

informações

com

interatividade,

a

interoperabilidade

e

o

desenvolvimento com foco no usuário gerando plataformas amigáveis (SAFKO; BRAKE, 2010). Alguns exemplos são as redes sociais online, comunidades online, wikis, sites de compartilhamento de vídeo, além dos blogs. A facilidade de uso e a interatividade proporcionada pela Web 2.0 aumentou significativamente o conteúdo gerado por usuários (user-generated content), sendo os blogs uma das mais antigas e populares aplicações da Web 2.0. (SAFKO; BRAKE, 2010). O blog consiste em um diário online mantido pelo criador que publica ou posta textos, fotos e/ou vídeos com certa regularidade temporal, sobre questões cotidianas como viagens, moda, tecnologia, saúde etc. As publicações de textos são listadas em ordem cronológica (LEE; FIELDING; BLANK, 2008). Os usuários são denominados bloggers e, por meio dos blogs, podem ampliar sua rede de atuação e influência online ao citarem outros blogs, aderirem a fóruns, comunidades, redes sociais online etc. Uma das principais formas de interação nos blogs se dá por meio dos comentários que os leitores podem fazer a respeito dos textos publicados (CHAU; XU, 2012). Diante de tais características, os blogs constituem uma boa oportunidade para a pesquisa social online, uma vez que proporcionam dados públicos, de baixo custo, coletáveis de maneira imediata, na forma escrita e de indivíduos espalhados geograficamente. Além disso, os blogs não estão contaminados por interesses particulares do pesquisador que poderiam enviesar a pesquisa (HOOKWAY, 2008). Os procedimentos para definição e coleta de dados foram desenvolvidos com base nas abordagens para pesquisa social em blogs propostas por Chau e Xu (2012), Wakeford e Cohen (2008) e Hookway (2008). A codificação e a análise foram desenvolvidas a partir de Gibbs (2009) e Bardin (2001). Abaixo seguem as quatro etapas propostas para este artigo:

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  2.1 Identificação de Blogs sobre um Tópico Específico Em novembro de 2013, foram feitas buscas no buscador Google para as seguintes palavras-chave: blogs de gestantes e blogs sobre maternidade. O Google foi escolhido por ser o principal buscador brasileiro, de acordo com o ranking Alexa, em novembro de 2013. Alexa consiste em um empresa do grupo Amazon.com que oferece serviços de mensuração do tráfego mundial da Internet, entre outros serviços (HOOKWAY, 2008). 2.2 Seleção de Blogs que Atendam a Critérios de Elegibilidade para a Pesquisa Para cada palavra-chave foi obtido mais que 1,5 milhão de resultados. Manualmente, foram analisados os 100 primeiros resultados para cada palavra-chave. Foram excluídos os resultados que não atendiam aos seguintes critérios: ser um blog, em português e criado e administrado por um usuário comum e não por uma empresa ou profissional da área da saúde. Foram selecionados 48 blogs, sendo que 5 deles apareceram nos resultados de ambas as palavras-chave o que fez o total de blogs cair para 43. 2.3 Busca por Informações de Interesse nos Blogs Selecionados Cada um dos 43 blogs selecionados foi avaliado em relação a dois aspectos: deveria ter pelo menos uma publicação nos últimos seis meses e deveria ter um mecanismo de busca no próprio blog. Continuaram os 43 blogs elegíveis. Por fim, em cada um dos 43 blogs restantes foi feita uma busca com a palavra 'parto', por meio do mecanismos de busca dos blogs. Em cada blog analisou-se de uma a duas publicações. 2.4 Análise dos Blogs De acordo com o objetivo a ser atingido, optou-se pela codificação baseada em conceitos (GIBBS, 2009), que foram originados a partir da teoria do modelo de vulnerabilidade do consumidor, proposto por Baker, Gentry e Rittenburg (2005). A interpretação dos dados se baseou na análise de conteúdo, com o procedimento de análise temática (BARDIN, 2001) que consistiu na divisão do texto (trechos ou parágrafos) em temas principais que foram resumidos e classificados de acordo com os seguintes códigos: fatores internos, fatores externos e experiências de vulnerabilidade do consumidor em contextos de consumo. Os procedimentos de síntese e classificação foram executados em distintas fontes de dados (43 blogs) e por todos os pesquisadores envolvidos numa busca pela triangulação, por meio de diferentes fontes e pesquisadores, a fim de garantir a validade dos resultados obtidos (DENZIN; LINCOLN, 2005). Pretende-se ainda proceder a validação comunicativa  

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dos participantes, que consiste em um critério de qualidade da pesquisa que garante validade e confiabilidade, ao se confrontar os resultados obtidos com a concordância das fontes (PAIVA JR; LEÃO; MELLO, 2011). 3

PRINCIPAIS RESULTADOS Dos 43 blogs pesquisados, todos abordam assuntos como gestação, maternidade, dicas

sobre alimentação, produtos, serviços, experiências com produtos e serviços, listas de enxoval e da maternidade, viagens, festas variadas (chá de bebê, batizado, aniversários). Tratam também de assuntos como maternidade x trabalho, equilíbrio das funções de mãe, mulher e profissional, sexualidade feminina após a chegada do bebê, etc. Na maioria dos blogs, as blogueiras iniciaram suas atividades a partir de 2010 e em 9 casos a partir de 2006. Com relação a indicação de outros blogs, somente 10 deles não fazem recomendações e também somente 10 deles não comercializam espaços para propaganda. Somente 4 blogs não possuem redes sociais online atreladas à eles. Em relação a distribuição geográfica, a maioria dos blogs pesquisados pertence a blogueiras localizadas nas regiões sudeste e sul, do país. Muitas trabalham como profissionais liberais e outras não trabalham. Em muitos casos, o blog, juntamente com as redes sociais online atreladas ao blog e uma loja online tornaram-se fonte de trabalho e renda para estas mães. A seguir, os principais resultados são apresentados conforme o aspecto teórico ou código correspondente. 3.1 Fatores Internos O conceito de vulnerabilidade do consumidor adotado nesta pesquisa é multidimensional, sendo os fatores internos (características individuais - biofísicas e psicossociais, e os estados individuais), juntamente com os fatores externos, parte deste modelo. Ao se tratar dos fatores internos que contribuem para a experiência de vulnerabilidade das gestantes, percebe-se que as características psicossociais estão fortemente presentes nos relatos dos blogs. Um exemplo se dá por meio da aculturação, onde discursos sobre o parto normal e o parto cesariana são construídos, inclusive e principalmente, por parte dos médicos e profissionais da saúde.

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  Quando eu engravidei do Vitor, eu nunca cogitei fazer parto normal. Parto normal dói, você sofre! Pra quê se eu posso fazer uma cesárea? E pensando nisso eu me fechei para receber informação. Não fui pesquisar nem sobre a cesárea, nem sobre o parto normal. Simplesmente decidi sem ter informação (Blog no. 19). Eu não fazia nem ideia da importância de se entrar em trabalho de parto para o bebê, mesmo se for para fazer uma cesárea. Da importância do bebê 'avisar' que está pronto. E nunca ninguém me falou sobre isso! Nem o médico! E hoje eu acho que ele nunca falou porque estava pensando nele, na agenda dele e não em mim (Blog no. 19). Com um sistema obstétrico falho, fui por inúmeros médicos tentada a crer que não seria capaz de parir naturalmente minha bebê. Que não tinha saúde para tal, que não teria dilatação ou força de vontade e que eles precisariam me abrir de uma maneira ou de outra para arrancar minha bebê de mim. Nada disso me fez desistir! Eu sabia em meu coração, desde o segundo tracinho rosa naquele teste de farmácia, que eu tentaria até o fim apresentar o mundo para a minha filha na forma que eu julgasse a mais bela possível (Blog no. 8). Parir é feio, envolve vagina, mulher de quatro, rebolando, gemendo, gritando. Dizem até que é nojento e aconselham: 'Você quer parto normal? Não deixa seu marido acompanhar não, viu, porque depois ele não vai querer sexo com você' (Blog no. 8).

Um relato interessante foi o descrito no blog no. 3. A blogueira teve seu primeiro filho por meio do parto cesariana e acreditava não ter uma opinião formada sobre o assunto. Todo mundo me pergunta do parto...chegam ate me perguntar se eu já agendei a cesárea (oi? cuma?)..ainda tenho uns 20 dias de Manuela na barriga e sinceramente, não tenho pensado muito sobre isso, só um pouco (Blog no. 3). Naaaoooo, não tenho vocação para ter neném em casa, com muito incenso, musica ambiente e, dentro de uma banheira ou piscina inflável... não, meu lance eh totalmente o oposto, parto num hospital equipado, com toda equipe mais que preparada, anos de experiência e de preferencia com muita anestesia (Blog no. 3).

Após o parto da primeira filha, a blogueira mudou de ideia e, caso haja uma segunda gestação, gostaria de optar pelo parto normal. Aqui, é possível perceber que o tema parto deixou de ser 'pouco pensado' pela blogueira, que passou inclusive a um estado de questionamento em relação ao senso comum sobre a prática do parto cesariana versus o parto normal. Ela demonstra também preocupação com os seus recursos enquanto consumidora desejosa de ter a opção do parto normal.

Essa semana mesmo comentei com meu marido que vou fazer uma poupança pro segundo parto (se houver), pq terei q de alguma forma arranjar um medico adepto a PN pós cesárea e duvido q tenha algum de convênio q faca, o meu já disse q não faz, então terei q ir pra algum particular...alias vou ter q ler muito sobre o assunto, pq sempre q comento isso com alguém, tds me respondem, ah, mas como vc teve cesárea, agora o próximo tem q ser cesárea tb. Será? (Blog no. 3).

 

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Uma variedade de estados individuais da gestante também contribui para a forma que o contexto de consumo é vivenciado. O fato da mulher estar grávida constitui-se num estado transitório para a mulher em múltiplas perspectivas (mudanças de humor, no ciclo de vida da família, no fato de deixar de ser somente filha e se tornar mãe também), o que contribui ainda mais para um possível estado de vulnerabilidade e, por conseguinte, dificuldade e/ou falta de autonomia nas decisões de consumo. Como não vamos pirar, me diga? Com tanta gente querendo saber de quanto tempo você está, se você é casada ou se já se formou, se é menino ou menina, qual o nome, se você está se alimentando direitinho, se está escutando músicas para o bebê, se está lendo Lamarque, se sabe como socorrer seu filho se ele se afogar, se vai fazer parto normal ou cesárea? Não que as pessoas perguntem por mal, mas é que são muitos questionamentos em um momento em que você mesma mal sabe o que esta fazendo (Blog no. 2). Usar o fato do meu marido não estar na mesma cidade que eu para insistir na cesariana me afetou ainda mais psicologicamente (Blog no. 19).

3.2 Fatores Externos Da mesma forma que os fatores internos, os fatores externos também contribuem para que a mulher vivencie experiências de vulnerabilidade, na medida em que é incapaz ou impossibilitada de assumir o controle e/ou a decisão sobre o tipo de parto que gostaria de ter, caso tenha plenas condições de saúde para que tal escolha possa ser exercida. Um exemplo é a dificuldade em encontrar, na rede privada de atendimento de saúde, profissionais que realizem parto normal.

A primeira obstetra que eu fui, logo na primeira consulta, me falou que não fazia parto normal. (Blog no. 19)

Eu não costumo ver mulheres 'cesareadas' como nós, sendo acusadas de sermos mães de pior qualidade. A cesariana no Brasil já é uma realidade, eu e você fazemos parte da maioria esmagadora! Ela, a sua amiga que quis e/ou teve um parto bacana, ela é pequena minoria e apenas está feliz por ter conseguido atingir seu sonho. Todos esses movimentos que a mulherada está fazendo pelo direito ao parto natural, direito ao parto em casa, não dizem respeito a você e às suas escolhas. Elas dizem respeito a elas! Em nenhum cartaz ou fala você verá escrito "Proíbam as cesarianas, proíbam as escolhas pelas cesarianas, proíbam as mulheres de optarem pelas cesarianas, não queremos mais cesáreas que salvem vidas". Essas mulheres querem que todas as mulheres tenham a chance de experimentar o que elas viveram, caso elas assim o desejem." (Blog no. 8)

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  3.3 Experiências de Vulnerabilidade em Contextos de Consumo

O modelo de vulnerabilidade do consumidor em contextos de consumo proposto por Baker, Gentry e Rittenburg (2005), conforme já mencionado, tem foco nas situações de vulnerabilidade, privilegiando as situações em detrimento de quem é vulnerável, uma vez que por meio da situações, qualquer um tem o potencial para estar vulnerável. A gestante, pelo fato de estar gestante, não necessariamente está vulnerável em todas as ocasiões de consumo. Contudo, no momento do parto, especialmente para aquelas que gostariam de ter a oportunidade de tentar o parto normal, fica claro por meio dos diversos relatos acessados que, o parto normal na rede privada de assistência médica do país, especialmente nas regiões sul e sudeste, é quase que uma raridade. Quem acompanha o blog sabe, por alguns posts que já fiz, que eu queria muito ter o Léo de parto normal e que, com sete meses de gestação, mudei de obstetra porque senti que ele estava me encaminhando para uma cesárea (Depois, vim a descobrir que eu não estava errada. Esse obstetra é bastante conhecido por só fazer partos agendados. Sorte que meu feeling falou mais alto). Não tenho nada contra cesárea assim como não tenho contra parto natural ou parto humanizado. Sou é a favor de todas as mães terem seus filhos da forma que desejam, da forma que se sentem bem e sem nenhuma forma de coação (Blog no. 41). E você me cumprimentou. E nem me examinou, em momento nenhum. Apenas me mediu com o olhar. E jogou, na minha cara, o primeiro balde de água fria. Comentou que a minha barriga estava alta, que o parto demoraria. Eu disse que esperaria, sem problemas. Estava tão feliz. Então, você me falou que eu tinha apenas um centímetro de dilatação. Eu disse que, quando o bebê quisesse sair (mesmo), a dilatação aumentaria, que aguardaria. Eu estava tão feliz. Você me disse que a minha bolsa não tinha rompido. E eu disse que ela poderia romper em breve. Afinal, estava apenas no começo do trabalho de parto. Eu estava tão feliz. Você falou, então que era melhor desistir, pois demoraria muito e no final teria que fazer cesárea, pois pela sua experiência, mães com pouca dilatação e com a barriga tão alta não conseguiam parir. Eu titubeei. E você, então deu o golpe de misericórdia: "Vai demorar, o seu nenê pode fazer cocô e morrer. Ele pode ficar em sofrimento fetal. Tem nenês que morrem por conta disso. Você quer correr o risco?" E o meu mundo desabou (Blog no. 40). Mas a senhora sabe muito bem a vulnerabilidade de uma mulher no momento de parir. É o momento mais frágil e vulnerável da vida de uma mulher. O desejo de que o filho fique bem, a qualquer custo. Os hormônios trabalhando a mil. O quanto é difícil raciocinar com tranquilidade (coisa que eu não consegui, claro, por motivos óbvios). E a senhora deveria saber que a mulher deve ser encorajada, acreditar que é capaz; que ela deve se sentir acolhida e protegida; que não deve ser apavorada e ameaçada com a morte do filho se não houver um perigo muito real. O que, claro, fui saber depois, não era o meu caso (Blog no. 40).

E quando o parto normal pode ser realidade na rede privada de atendimento médico, não são raros os diversos desrespeitos infligidos à parturiente.

 

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[...] mesmo assim acredito que dá, sim, pra ter um lindo parto em ambiente hospitalar, com base em inúmeras histórias que já ouvi. mas é como nadar contra a correnteza de um rio: o tempo inteiro você precisa se impor, lutar. lutar pra não ser cortada, lutar pra não tomar anestesia, lutar pra conseguir um médico decente e que você tenha condições de pagar, lutar pra pagar o médico, lutar pra não tirarem seu filho de você assim que nascer, lutar dentro do hospital para não darem complemento caso o bebê não venha a mamar de imediato, lutar, lutar, lutar. (Blog no. 33)

CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste artigo consistiu em explorar potenciais situações de vulnerabilidade que gestantes pudessem encontrar ao consumirem serviços médicos durante o pré-natal, com foco na situação de consumo do serviço de parto. Para isto, foi feita a revisão teórica com base na teoria de vulnerabilidade do consumidor, especificamente no modelo de vulnerabilidade em contextos de consumo proposto por Baker, Gentry e Rittenburg (2005). Contextualizou-se também a maternidade contemporânea permeada pelas relações de consumo e as particularidades do serviço de assistência médica à gestantes, com atenção especial para o serviço de parto, no contexto nacional. A coleta de dados por meio de blogs de gestantes e mães propiciou rico e atual material para análise. Observou-se que tanto os fatores internos, quanto os fatores externos do modelo de vulnerabilidade adotado se fizeram presentes nos relatos dos blogs por meio da aculturação, percepções sobre a própria saúde, preocupações com recursos do consumidor, estados transitórios da mulher, mudanças de humor e a questão da distribuição logística, que afeta a disponibilidade de médicos da rede privada que executem o parto normal e/ou a cesariana. As experiências de vulnerabilidade durante a realização do serviço de parto se confirmam e mostram que grande parte das mulheres têm o desejo de tentar o parto normal e, caso não seja possível, partir para a cesariana. Contudo, não é isso que se verificou. Os relatos sobre partos citam médicos que imediatamente dizem não realizar o procedimento de parto normal; médicos que 'enrolam' as pacientes ao se dizerem executores do parto normal, quando na realidade, tentam construir um discurso no qual relatam somente os perigos do parto normal; médicos que realizam o parto normal, mas se utilizam de uma série de procedimentos e técnicas denominadas violência obstétrica. Enfim, para as mulheres, um momento que deveria ser único e especial, que envolve seus corpos e a expectativa em torno de uma nova vida, revelam-se, em muitos casos, situações chocantes e humilhantes, onde a situação da V.9, nº1. Jan./jul. 2016.

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  mulher é total vulnerabilidade, uma vez que não possuem o controle diante de tais situações. Muitas destas situações poderiam ser evitadas, com a busca de mais informações sobre o parto por parte das gestantes e também, por meio de um olhar mais crítico enquanto consumidoras. As situações de vulnerabilidade no consumo sugerem dois tipos de resposta por parte dos consumidores: na primeira, eles se adaptam à situação e apreendem a viver com ela. Na segunda, o mercado se organiza e inicia movimentos de contra-consumo e/ou órgãos regulamentadores criam políticas públicas para lidar com tais situações. No Brasil, dois movimentos estão em curso: um guiado pelo contra-consumo e a favor do parto chamado humanizado (parto normal, no qual a mulher é a protagonista) e outro pelo Ministério da Saúde, que pretende implantar centro de parto normal em todo o país REFERÊNCIAS ALWITT, L. F. Marketing and the Poor. In: HILL, R. P. Marketing and Consumer Research in the Public Interest. Thousand Oaks: Sage Publications, 1996. BAKER, S.M. Vulnerability and Resilience in Natural Disasters: a marketing and public policy perspective. Journal of Public Policy and Marketing, v. 28, n. 1, p. 114-123, 2009. BAKER, S. M., GENTRY, J.W.; RITTENBURG, T. L. Building Understanding of the Domain of Consumer Vulnerability. Journal of Macromarketing, vol. 25, n. 2, p. 128-139, 2005. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2001. BITTENCOURT, F.; VIEIRA, J. B.; ALMEIDA, A. C. Concepção de Gestantes sobre o Parto Cesariano. Cogitare Enfermagem, v. 18, n. 3, p. 515-520, 2013. CARRIGAN M., SZMIGIN, I. “Mothers of Invention”: maternal empowerment and convenience consumption. European Journal of Marketing, vol. 40, n. 9/10, p. 1122-1142, 2006. CHAU, M.; XU, J. Business Intelligence in Blogs: understanding consumer interactions and communities. MIS Quarterly, v. 36, n. 4, 2012. CHIA, S.C. How Social Influence Mediates Media Effects on Adolescents’ Materialism. Comunication Research, v. 37, n. 3, 2010. CLARKE, A. J. Maternity and Materiality: decoming a mother in consumer culture. In: ROTHMAN, B. K. Recreating Motherhood. Rutgers University Press, 2000. DAVIES, A.; DOBSCHA, S.; GEIGER, S.; O'DONOHUE, S.; O'MALLEY, L.; PROTHERO, A.; THOMSEN T. U. Motherhood, Marketization, and Consumer  

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