MATERNIDADE E SUBMISSÃO, CARACTERÍSITCAS NATURAIS DA MULHER OITOCENTISTA: UMA ANÁLISE DAS PERSONAGENS FEMININAS DO ROMANCE ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS

June 13, 2017 | Autor: Melissa Mendes | Categoria: História e Literatura, Historia de género
Share Embed


Descrição do Produto

MATERNIDADE E SUBMISSÃO, CARACTERÍSITCAS NATURAIS DA MULHER OITOCENTISTA:

UMA

ANÁLISE

DAS

PERSONAGENS

FEMININAS

DO

ROMANCE ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS Melissa Rosa Teixeira Mendes (UFMA) – [email protected]

1. Maria Firmina dos Reis: escritora oitocentista.

Maria Firmina nasceu em onze de outubro de 1825 na cidade de São Luís, capital do Maranhão. Seus pais João Pedro Esteves e Leonor Felipa dos Reis, segundo consta da biografia organizada por Nascimento de Moraes Filho, não chegaram a casarem-se. Muda-se, junto com sua família, para a Vila de São José de Guimarães, município maranhense de Viamão, cinco anos depois de seu nascimento. Vive em Guimarães até o dia de sua morte, a onze de novembro de 1917, contando então com 92 anos. Antes de iniciar suas atividades como escritora, Maria Firmina “disputa com duas concorrentes a vaga da cadeira de primeiras letras a cidade de Guimarães, e é a única aprovada” (MORAES FILHO, 1975, s.p.). Torna-se, então, professora de primeiras letras no ensino público oficial na cidade de Guimarães. Já em 1880, funda, na mesma cidade, uma aula mista e gratuita, ou seja, uma escola para alunos dos dois sexos. Para diversos críticos, a escritora maranhense é considerada a primeira romancista brasileira. Seu romance de 1859 é de autoria própria, ao contrário do romance de Nísia Floresta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), considerado uma livre tradução do livro Vindications of the rights of woman (Reivindicações dos direitos da mulher, 1792) da escritora inglesa Mary Wollstonecraft.1 Já Teresa Margarida da Silva e Orta, que publicou o romance Aventuras de Diófanes (1752), também não poderia ser considerada a primeira brasileira a publicar um romance, pois segundo alguns críticos2 a autora apenas nasceu no Brasil, sua formação foi completamente europeia e seu romance não exerceu influência na literatura brasileira, não dizendo respeito ao Brasil.

1

Segundo Constância Lima Duarte, principal estudiosa de Nísia Floresta, o que a autora teria feito foi uma livre adaptação do texto de Mary Wollstonecraf para a realidade brasileira. 2 Como Heron de Alencar.

Em 1859 Maria Firmina dos Reis publica seu primeiro romance, Úrsula, que é recebido com elogios pela imprensa local: Jornal do comércio – Noticiário OBRA NOVA – Com o título de Úrsula publicou a Sra. Maria Firmina dos Reis um romance nitidamente impresso que se acha à venda na tipografia do Progresso. Convidamos aos nossos leitores a apreciarem essa obra original maranhense, que, conquanto não seja perfeita, revela muito talento na autora, e mostra que se não lhe faltar animação poderá produzir trabalhos de maior mérito. O estilo fácil e agradável, a sustentação do enredo e o desfecho natural e impressionador põem patentes neste belo ensaio dotes que devem ser cuidadosamente cultivados. É pena que o acanhamento mui desculpável da novela escrita não desse todo o desenvolvimento a algumas cenas tocantes, como as da escravidão, que tanto pecam pelo modo abreviado com que são escritas. A não desanimar a autora na carreira que tão brilhantemente ensaiou, poderá para o futuro, dar-nos belos volumes – 4 de agosto de 1860. (apud MORAES FILHO, 1975, s.p.).

Após a publicação do romance, Firmina contribuiu assiduamente com a imprensa local. Publicou poesias em prosa e verso, charadas/enigmas, além de um conto – A escrava – e outro romance, Gupeva. Esse último “não foi enfeixado em livro, mas teve 3 (três) edições em folhetim num muito curto espaço de tempo – o que atesta eloquentemente o grande êxito popular desta original criação literária” (MORAES FILHO, 1975, s.p.). Escreveu também alguns hinos e cantos. Segundo Mendes (2006, p. 19), Maria Firmina foi “autodidata, sua instrução fez-se através de muitas leituras – lia e escrevia francês fluentemente”. Maria Firmina dos Reis, como filha de seu tempo histórico, recebeu e incorporou as representações sociais de Gênero de sua época, sendo assim, muitas das visões de mundo sobre os papéis sociais de homens e mulheres podem ser vistos e analisados a partir de seu principal romance. Segundo Burke (1992, p. 25), “em toda literatura, a sociedade contempla sua própria imagem”. Nesse sentido, para cada fase das sociedades, há um tipo específico de literatura que se sobressai e que está de acordo com as representações que essa sociedade faz de si mesma e do momento em que vive. Para Sevcenko (2009, p. 29), “todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam”.

Passamos agora para análise das personagens Mãe de Tancredo e Luísa B..., cujas características feminis que as ligam são a submissão e a maternidade, pricipalmente. A partir da análise dessas três mães da trama firminiana, será possível compreender alguns aspectos das representações sociais ideiais sobre as mulheres brasileiras do século XIX.

2. Submissão e maternidade a partir das personagens maternas do romance Úrsula

A personagem Mãe de Tancredo não possui um nome próprio, assim ela nos é apresentada como a personificação da mãe, incorporando em si mesma todas as representações da maternidade, característica entendida, durante o século XIX, como natural de toda a mulher. Ela não é uma mulher individualizada, ela é a mãe, símbolo de docilidade e desprendimento, de abnegação e amor sem limites à prole. Essa personagem nos é mostrada pelo próprio filho, que a narra a partir de suas lembranças, contando à Úrsula sobre seu passado (quando o jovem conhece a protagonista, a mãe dele já era falecida). A primeira referência à mãe, dita por Tancredo, fala que o jovem contará a respeito “daquela que foi casta e pura como vós, daquela que foi minha mãe” (REIS, 2004, p. 56). Por essa visão: A mulher tinha de ser naturalmente frágil, agradável, boa mãe, submissa e doce etc. As que revelassem atributos opostos seriam consideradas seres antinaturais. Partia-se do princípio de que, graças à natureza feminina, o instinto materno anulava o instinto sexual e, consequentemente, aquela que sentisse desejo ou prazer sexual seria inevitavelmente, anormal (PRIORE, 2006, p. 220).

A mãe é representada a partir da imagem de uma santa, tal como Maria, mãe de Jesus. E é dessa forma que a mãe de Tancredo é descrita pelo filho. O rapaz afirma, por exemplo, que “ao passo que o [choro] dela era o de uma santa” (REIS, 2004, p. 67). A própria personagem se descreve, através das recordações do filho, dizendo que “amo as humilhações, meu filho – disse com brandura, que me tocou as últimas fibras da alma – o mártir do Calvário sofreu mais por amor de nós” (REIS, 2004, p. 67-68). E diante de tão elevados sentimentos, de caráter moral tão virtuoso, Tancredo venera sua mãe, como um fiel adora a uma santa e assim, o rapaz afirma que seus “joelhos vergaram instintivamente ante essa mulher de tão sublimes virtudes” (REIS, 2004, p. 68). Percebe-se aqui a representação sobre a mulher-mãe

que permeava a primeira metade do século XIX no Maranhão e no Brasil, que entendia, dentre outros aspectos que: [...] o sexo existe em função da reprodução. A mulher deveria ser destituída de todo e qualquer desejo sexual para que sua pureza fosse preservada através da maternidade. Ser mãe, significava cumprir o papel de progenitora, garantindo assim as novas gerações. Nesse aspecto a mulher [...] assemelhava-se ao arquétipo de Maria, a Virgem Mãe católica, pois reuniam a pureza e a ternura, atributos que as divinizavam (ISMÉRIO, 1995, p. 29).

Esse estado de pureza, santificado, a exemplo da Virgem Maria, deveria ser mantido a partir do pressuposto do sacrifício, assim “quando o marido tivesse suas crises, quando bebesse e agredisse, a esposa deveria sofrer em silêncio, sem nunca reclamar” (ISMÉRIO, 1995, p. 29). E a mãe de Tancredo sofre com o comportamento despótico de seu marido: É que entre ele [o pai de Tancredo] e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio e resignava-se com sublime brandura. Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher (REIS, 2004, p. 60).

Tancredo nos apresenta sua mãe como uma mulher submissa ao esposo. Mas, essa submissão não deve ser aqui percebida como algo negativo, ao contrário, a submissão feminina ao homem é percebida, nesse período, como adequada, como natural. Assim, apesar de ser casada com um homem tirânico, a mãe de Tancredo continuava mantendo sua áurea santificada, pois esse era o comportamento apropriado esperado para a mulher de boa índole. A mulher tinha que ser submissa, pois existia todo um condicionamento moral e simbólico que determinava suas ações. Ela não possuía alternativa, se não fosse a mãe dedicada e a esposa obediente, cairia em profunda desgraça e o seu erro não seria perdoado (ISMÉRIO, 1995, p. 30).

O jovem conta ainda que “foram as suas carícias, os seus meigos conselhos, que soaram a meus ouvidos, que me entretiveram nos primeiros anos” (REIS, 2004, p. 60). Percebe-se aqui a questão da mãe como primeira educadora dos filhos. A partir do carinho, da devoção, dos bons conselhos, Tancredo pôde tornar-se um homem de bem, pois “cabia à mãe a educação dos filhos [...] que preparava as meninas para

serem futuras mães e os meninos para se tornarem grandes homens e futuros gênios” (ISMÉRIO, 1995, p. 31). Assim, a mãe de Tancredo é uma mulher obediente e temerosa do comportamento, das vontades do esposo. Quando o rapaz confessa seu amor por Adelaide, é a mãe do jovem quem tenta interceder, junto ao marido, em favor do filho. Tancredo afirma nesse momento que “ela temia seu esposo, respeitava-lhe a vontade férrea; mas com uma abnegação sublime quis sacrificar-se por seu filho” (REIS, 2004, p. 63). A mãe sacrifica-se em favor do filho, por amor materno, pois essa é entendida como uma característica natural própria do sexo feminino. O amor maternal incondicional, capaz de tudo para proteger sua prole. Porém, ao lado desse amor materno, convive a obrigação de esposa obediente. Exemplo dessa obediência plena é que quando Tancredo foi cursar Direito em São Paulo, durante seu período de estudos, foi obrigado pelo pai a não visitar a casa paterna, assim sua mãe teve que conviver com a saudade do filho; segundo o rapaz, sua mãe “sofria a minha ausência, porque era da vontade de seu esposo!” (REIS, 2004, p. 60, grifo nosso). O sofrimento dela era resignado, pois era a vontade de seu marido, e esta não podia ser contrariada. Mesmo quando o rapaz tenta reclamar do comportamento duro do pai, a mãe do jovem pede que “meu filho, não levantes a voz para acusar aquele que te deu a vida” (REIS, 2004, p. 68), pois independentemente do caráter, o homem, marido e pai, merece ser respeitado. Já o pai de Tancredo afirma, a respeito do momento em que sua esposa verte lágrimas durante a despedida do filho, que “é necessário que nem sempre se atenda às lágrimas das mulheres; porque é o seu choro tão tocante, que a pesar nosso comove-nos, e a honra, e o dever condenam a nossa comoção, e chamam-lhe – fraqueza” (REIS, 2004, p. 80). O choro de uma mulher é sinal de fragilidade, de sentimentalismo, mas um homem comovido pelas lágrimas feminis é um fraco. “Frágil, sentimental, obediente e pura, estes eram os atributos da rainha do lar e do anjo tutelar” (ISMÉRIO, 1995, p. 30, grifos da autora). Assim, a visão patriarcal que permeava a sociedade desse período representava a esposa como “uma escrava doméstica exemplarmente obediente e submissa. Sua existência justificava-se por cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa e servir ao chefe da família com seu sexo” (PRIORE, 2006, p. 19).

Ao contrário da mulher, o homem detém o poder dentro e fora de casa, pois a ele cabe o exercício de um ofício que sustenta a família. Ele é aquele que possui o poder econômico, pois apenas a ele é permitido trabalhar, principalmente nas classes econômicas superiores. Nota-se que nas classes menos favorecidas, as mulheres trabalham em diversos ofícios para ajudar a completar a renda familiar. No caso da mãe de Tancredo, ela pertence a uma classe social elevada, por isso não trabalha, depende do marido. A mulher deve ser sustentada por um homem, seu pai, marido ou filho, portanto, “como ainda permaneciam excluídas, em grande parte, do mercado de trabalho, as esposas tornaram-se vulneráveis aos maridos, seus tutores de fato e de direito. Sem dúvida, surgiram claros desequilíbrios de poder dentro da relação matrimonial” (MARQUES, 2001, p. 180). Embora muito do universo de representação sobre as mulheres na primeira metade do século XIX no Maranhão – no Brasil –, esteja reproduzido no romance Úrsula, principalmente no que tange aos arquétipos de bom e mau comportamento feminino, Maria Firmina dos Reis critica a violência como os homens tratavam suas esposas. Tanto a mãe de Tancredo como Luísa B...3, mãe de Úrsula, são mostradas como mulheres que sofreram com os comportamentos tirânicos ou levianos, respectivamente, de seus esposos. E esse sofrimento fica visível na forma física como as duas mulheres são representadas no enredo. Tancredo, por exemplo, ao comparar o retrato de seu pai ao de sua mãe, nota o quanto ela era bela e jovial antes do casamento e que a mesma mulher envelhecera com o passar dos anos, enquanto seu pai, mesmo sendo mais velho, manteve-se com as feições inalteradas: Com mágoa comparei então o semblante pálido e emagrecido dessa mulher de alma tão heroica e santa, com o seu retrato, pendente de uma das paredes do salão, e gelei de pasmo e de angustia. O pintor havia aí traçado uma beleza de dezoito primaveras. [...] E agora, demudada, macilenta e abatida pelos sofrimentos de tantos anos, era a duvidosa sombra da formosa donzela de outros tempos. [...] E ao lado desse retrato estava outro – era o de meu pai. Sessenta anos de existência não lhe haviam alterado as feições secas e austeras, só o tempo começava a alvejar-lhe os cabelos, outrora negros como a noite (REIS, 2004, p. 79).

A vida de sofrimento havia tornado abatida a outrora jovial mãe do rapaz, ao contrário do que acontecera com seu pai. Algo semelhante se dá com Luísa B... Essa personagem é uma mulher paralítica, que vive acamada, sendo cuidada por sua filha, 3

No romance Úrsula os sobrenomes das personagens não são mencionados.

Úrsula. Porém “Luísa B... fora bela na sua mocidade, e ainda no fundo da sua enfermidade podia descobrir-se leves traços de uma passada formosura” (REIS, 2004, p. 96). Sua vida difícil, após o casamento, trouxe terríveis desgostos, causando sua doença, inclusive. A mãe de Úrsula é uma mulher de boa índole, contudo, uma sofredora. E esse sofrimento foi causado por dois homens: seu irmão, Fernando P..., e seu marido, Paulo B... É ela quem conta como sua vida era feliz em casa paterna, com seu irmão, que a amava incondicionalmente, todavia “mais tarde, um amor irresistível levou-me a desposar um homem que meu irmão no seu orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo B...” (REIS, 2004, p. 102). Fernando, representante do patriarcalismo e de uma sociedade que via no casamento um negócio entre famílias, não aceita a escolha de sua irmã, pois Paulo B... era um “pobre lavrador sem nome, sem fortuna” (REIS, 2004, p. 108). A partir do momento em que se casa com Paulo B..., a vida de Luísa se transforma, pois:

[...] este desgraçado consórcio, que atraiu tão vivamente sobre os dois esposos a cólera de um irmão ofendido, fez toda a desgraça da minha vida. Paulo B... não soube compreender a grandeza do meu amor, cumulou-me de desgostos e de aflições domésticas, desrespeitou seus deveres conjugais, e sacrificou minha fortuna em favor de suas loucas paixões. Não tivera eu uma filha, que jamais de meus lábios cairia sobre ele uma só queixa! Mas ele me perdoará no fundo do seu sepulcro; porque sua filha mais tarde foi objeto de toda a sua ternura, e a dor de fracamente poder reabilitar sua casa em favor dela lhe consumia, e ocupava o tempo. E ele teria sido bom; sua regeneração tornar-se-ia completa, se o ferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio a existência (REIS, 2004, p. 102).

Paulo B... “desrespeitou seus deveres conjugais”, o que nos sugere que tivera alguma amante, gastou todo o dinheiro que possuíam em “loucas paixões”, que podem ser de diversas naturezas, como bebida, jogos e mulheres. Porém, Luísa B..., tal como a mãe de Tancredo, manteve-se fiel e honesta durante todo o casamento, não desrespeitando seu marido. O nascimento da jovem Úrsula parece ter trazido mudanças ao comportamento leviano de Paulo B..., porém ele foi assassinado e o suspeito principal era Fernando P..., que após a morte do cunhado “comprou as dívidas do casal, e estabeleceu-se na fazenda de Santa Cruz, outrora habitação de meus pais, onde eu passei os anos da minha juventude, onde nascera minha pobre Úrsula” (REIS, 2004, p. 103). Mas, mesmo sofredora, mesmo doente, Luísa B... é mãe

e seu amor maternal ajudou-a a manter-se viva, não deixando sua filha completamente órfã e solitária. Assim após a morte do esposo, Luísa B... conta que: E eu, pobre mulher, chorei a orfandade de minha filha, que apenas saía do berço, sem uma esperança, sem um arrimo, e alguns meses depois, veio a paralisia – essa meia-morte – roubar-me o movimento e tirar-me até o gozo ao menos de seguir os primeiros passos desta menina, que o céu me confiou (REIS, 2004, p. 103). Há doze anos que arrasto a custo esta penosa existência. Só Deus conhece o sacrifício, que hei feito para conservá-la. Parece-vos isto compreensível? [...] Sou mãe, senhor! Vede minha pobre filha! É um anjo de doçura e bondade, e abandoná-la, e deixa-la só sobre este mundo, que ela mal conhece, é a maior dor de quantas dores hei provado na vida. Sim, é a maior dor [...] porque então perderá o único apoio que ainda lhe resta! (REIS, 2004, p. 100).

Luísa B... afirma com veemência a Tancredo: “sou mãe”. Por esse motivo não poderia deixar a filha sozinha, mesmo estando tão doente, infeliz e cansada de uma vida de tribulações. A mãe de Úrsula, ainda que tendo no rosto “estampados os sofrimentos profundos, pungentes, e inexprimíveis da sua alma. E os lábios lívidos e trêmulos, e fronte pálida, e descarnada, e os olhos negros, e alquebrados diziam bem quanta dor, quanto sofrimento lhe retalhava o peito” (REIS, 2004, p. 96), não se deixou levar pela foice fria da morte, ao contrário, tentou manter-se o mais firme possível, pelo amor maternal. Isso, pois o amor materno é entendido nesse período como um sentimento que reside no sacrifício, na abnegação. Abre-se mão da própria felicidade, do próprio descanso, em favor de um bem maior: os filhos. E a maternidade, o amor da mãe, esse laço invisível, era considerado, a partir da primeira metade do século XIX, como algo natural ao sexo feminino, característica de toda mulher. Caso a mulher não apresentasse essa característica, ela não era considerada normal, era vista, entendida, com estranhamento. Outro ponto perceptível na trama é a viuvez. Pouquíssimo tempo depois da morte da mãe de Tancredo, seu pai se casa com a jovem Adelaide, pois “o homem viúvo [...] poderia casar-se novamente, porque precisava de outra rainha do lar para cuidar da casa, dos filhos e dele mesmo” (ISMÉRIO, 1995, p. 33). Já a mãe de Úrsula não se casa novamente, pois a visão de viuvez para as mulheres partia de um pressuposto diferente do que para com o dos homens, pois “o laço matrimonial era um vínculo tão forte que deveria ser mantido até depois da morte do marido [...]: ficar

fiel ao marido, cultuando-o e chorando eternamente a separação. Mantendo-se assim, preservaria a sua pureza e a moral do falecido” (ISMÉRIO, 1995, p. 33). Nota-se o quanto as matriarcas da trama são parecidas em dois aspectos. O primeiro é a questão da maternidade, do amor materno, da preocupação e desprendimento que ambas dedicam aos seus filhos. O segundo ponto é a forma como sofreram por conta dos homens aos quais entregaram suas vidas. A mãe de Tancredo sofria a tirania do marido, já a mãe de Úrsula teve inúmeros desgostos por conta do casamento com Paulo B... e do irmão, Fernando P...

Considerações Finais

No Brasil, durante o século XIX, a representação de mundo através da qual se construíram as práticas sociais de gênero, se afirmou por meio da visão patriarcalista, fruto da forte influência da Igreja Católica, presente desde os tempos coloniais. Através dessa visão, ao homem caberia o lado da razão, da inteligência, da praticidade, da ciência. Enquanto a mulher ficaria do lado da sensibilidade, da emoção, da fragilidade, da incapacidade em aprender sobre lógica e racionalidade, devido à sua constituição física e mental. A Literatura, como toda forma de expressão artística, capta aspectos das representações sociais do momento em que é elaborada, pois há “de um lado, os aspectos sociais, e de outro, sua ocorrência nas obras” (CANDIDO, 2010, p. 9). Tornando-se possível assim perceber aspectos da sociedade brasileira do Oitocentos, no que diz respeito a forma como as mulheres eram representadas socialmente, por meio de uma fonte literária do momento em questão. No romance Úrsula, da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, publicado em 1859, percebemos aspectos a respeito da visão sobre os arquétipos de Virgem Maria x Eva pecadora, que permeavam a sociedade do período em que a autora viveu e escreveu sua narrativa. As personagens que representam as mães do período são sempre vistas como submissas e desprendidas de quaisquer desejos egoístas, desejando a felicidade de seus filhos, pois a maternidade nesse período é vista como uma característica natural de toda mulher. Nada mais natural, então, que através dessa visão, uma mãe se dedique e lute pela fortuna de sua prole, não importando nunca a sua própria felicidade. Nesse

sentindo, entende-se que a felicidade da mãe é a felicidade de seu filho. Além de mães exemplares, elas são descritas como esposas honestas e obedientes aos desejos e vontades de seus esposos e, mesmo quando humilhadas, não levantam suas vozes, não brigam, não reclamam contra as atitudes levianas ou mesquinhas de seus maridos. Firmina então recebeu e incorporou muito da visão de mundo de sua época, mas por outro lado, recebeu e combateu alguns pontos que não concordava. É dentro dessa perspectiva que a História procura analisar o sujeito histórico: não como um ente passivo, que apenas recebe e reproduz as informações ao seu redor, mas, ao contrário, um ser reflexivo, que recebe, analisa e reproduz, por meio de sua própria interpretação, local social e cultura (entre outros), as representações do mundo social no qual está inserido. Por fim, a escritora-narradora “utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas” (CANDIDO, 2010, p. 35).

BIBLIOGRAFIA ABRANTES, Elizabeth Sousa. A educação feminina em São Luís (século XIX). In: COSTA, Wagner Cabral da (Org.). História do Maranhão: novos estudos. São Luís: EDUFMA, 2004. BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3 ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2010. BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 241 p. D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina e os primórdios da ficção Afro-brasileira. In: Úrsula. Atualização do texto e posfácio de Eduardo de Assis Duarte. Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. GIDDENS, Antony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1992. HUNT, Lynn. Revolução francesa e vida privada. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4. São Paulo: Companhia das letras, 1995, p. 21-51. ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: a moral e o imaginário – 1889-1930. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. 120 p. LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In PRIORI, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010. MARQUES, Teresa. Dote e falência na legislação comercial brasileira: 1850 a 1990. Revista Econômica. V. 3, n 2, 2001. MENDES, Algemira Macêdo. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história da literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. 2006. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Pontifícia Universidade Católica, Porto Alegre, RS. MICHAUD, Stéphane. Idolatrias: representações artísticas e literárias. In.: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. (Orgs.). História das mulheres no ocidente: O século XIX. Vol. 4. Porto: Edições Afrontamento, 1991. p. 145-169. MORAES FILHO, José Nascimento. Maria Firmina, fragmentos de uma vida. São Luís: COCSN, 1975. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2008. _____. Figuras e papéis. In.: ARIES, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4. São Paulo: Companhia das letras, 1995c, p. 121-185. PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. 354 p. PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. 2 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2006. 330 p. REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. 288 p. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 2009. SILVA, Douruézia Fonseca da. “Em briga de marido e mulher não se mete a colher?!”: a violência doméstica contra a mulher no Maranhão oitocentista. In: ABRANTES, Elizabeth de Sousa. Fazendo gênero no Maranhão. São Luís: Editora da UEMA, 2010. SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. TELLES, Norma. Escritoras, escritas e escrituras. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.