MATRIX: Percepção e Velocidade

May 26, 2017 | Autor: M. dos Santos Rocha | Categoria: Digital Humanities
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28 de Novembro, 2003 / Filosofia e Cinema (Palestra na Liv.Cultura)

Percepção e Velocidade Com toda a velocidade que pegou, com todas as viradas que deu e em todas as esquinas que dobrou na Cidade Noturna, ainda assim ele via, no sonho, a matriz: treliças brilhantes de lógica a se desdobrarem pelo vazio descorado [William Gibson/ Neuromancer, 1984]. Ao lado da velocidade da luz – que todos conhecem pois ela organiza agora a perspectiva do mundo – há a luz da velocidade […] A velocidade da luz também é uma luz da velocidade. Toda velocidade ilumina [P.V, Entrevista Ver para crer]. O ‘bom’ é que voce acaba de acordar na Vida Eterna. Vai viver para sempre. A imortalidade existe. Milagre da medicina? Não’é bem assim. O ‘ruim’ é que você é um fragmento de código eletrônico. O mundo que você vê ao redor, o você que o vê, foi digitalizado, escaneado e baixado num programa de realidade virtual. Você é uma Cópia que sabe que é cópia. O ‘bom’ é que existe uma saída. Por lei, toda Cópia tem a opção de se eliminar e re-acordar numa vida normal, de carne e osso. A ejeção se encontra no menu de utilidades. Voce o abre… O ‘ruim’ é que isso não funciona. Alguém bloqueou o opção de ejeção. E você sabe quem foi. Foi você. O outro você. O você verdadeiro. Aquele que quer mantê-lo aí para sempre. Este último comentário feito em 1995 por Terry Bisson, (vencedor do premio Hugo de Ficção Científica) sobre do romance

Permutation City/1995, de Greg Egan (autor de ficção científica e especialista em Inteligência Artificial), não parece nos confrontar como uma paráfrase de Matrix?…

Vamos partir de um substantivo para ilustrar nossa contribuição à reflexão sobre o filme de hoje: esse substantivo é IMPACTO. Do latim, impactu, particípio passado de impingere, que significa, “pôr à força”/”ir de encontro”. Os filmes, entre outras tantas expressões culturais, têm uma função importante no escopo da nossa percepção: eles nos IMPACTAM. Os graus desses impactos são tão variados e complexos quanto a gama de percepções/sensações que cada um de nós possui para absorvê-los, e isso, tanto nas suas dimensões reais quanto imaginárias. A trilogia Matrix tem causado um importante impacto no público e, as manchetes parecem evidenciar isso, lota as salas de cinema, desencadeia análises especializadas, críticas, livros e dita comportamentos de massa. Em vários escritos sobre Matrix, é dito que ela : 

mostraria a ‘armadilha em que o mundo se transformou’…



testemunharia a arrogância humana ampliada… (p.27/ Red Mercer Schurchardt)/



seria o reviver criativo do gênero cyberpunk…



criaria mais uma baboseira escapista?… (Andrew Gordan) /Mostraria um ótimo filme de ação, embora suas pretensões filosóficas não se justifiquem (idem)/



pertenceria a um Paradigma Pós-Moderno?



inspiraria alguns espectadores a se unirem e a se revoltarem contra o sistema capitalista…(p.108).

Ou ainda, Matrix nos indicaria que a Inteligência Artificial é o nosso destino e não o

nosso declínio… (p.66/Robert Sawyer/A Pílula Vermelha). Iiniciando o processo das minhas “livres associações”(e o Dr. Sigmund que dê um jeito de me legitimar…), não posso deixar de associar a trilogia Matrix,

inicialmente, à forma artística do “tríptico” [dobrado em três] reverenciada sobretudo na pintura. Parece-me que essa metáfora cênica atribuída à Matrix, pode despertar nosso questionamento

sobre

a

relação

que

ela

procuraria

manter

entre

Forma/Conteúdo aí apresentado, vale dizer, entre o relato fílmico de uma ação e o estatuto de “realidade” que ele quer questionar. Num outro ângulo desse enfoque do ‘impacto’, constatamos que são muitas as pessoas que vêem, discutem, escrevem, compram, vestem, sonham, ao sabor dos “ares/árias” propiciados pela Matrix. Associo aqui a junção entre a etimologia que gerou ares/árias, ao lembrar-me das várias ‘árias’ musicais, espalhadas no som, por assim dizer, pelos “ares do tempo”, e a sua capacidade de trazer à tona e formatar tendências, no panorama cultura de uma época. Arias operísticas, canções [lied] românticas alemãs, canções pop, MPB, jazz,

rap, enfim, elas aparecem como aquelas árias capazes de nos darem os “ares do seu tempo” através desse envolvimento que faz mergulhar as percepções de cada um de nós num mundo de sons/imagens/significações . Talvez ambas associações possam sugerir a vocês, como fizeram comigo que, efetivamente, a Matrix parece constituir-se numa “ária” de IMPACTO nos “ares” do tempo que transcorre nosso século XXI… Outra palavra que acrescento a essa primeira de IMPACTO, seria a de VELOCIDADE. Alguns aqui já devem saber que entre os pensamentos que me parecem cruciais para habitar o espaço-tempo do século XXI, um deles é o do urbanistafilósofo Paul Virilio. Para os que não o conhecem, introduzo então o conceptualizador da

Dromologia ou seja, aquele que trabalha com o espaço militar e com o desenvolvimento dos laços entre poder e território, e que define o projeto epistemológico e existencial de uma dromologia como aquele de um estudo/discurso/lógica

da

corrida

[Drómos,

do

grego,

significando

corrida/velocidade, lógos, do grego tb., significando discurso, palavra, razão…].

A dromologia de Paul Virilio ocupa um espaço de reflexão entre os campos da economia política, da geoestratégia e da geopolítica. Vale lembrar que neste contexto definitório, a economia política seria aquela que se refere à riqueza e à sua acumulação, mas aparece igualmente aqui como aquela que se refere à velocidade e ao poder de quem a detém.Tem poder aquele que detém a velocidade e, sobretudo, na contemporaneidade, a transparência desse poder nos meios de comunicação, seja ela pacífica ou belicosa, parece demonstrar o silogismo de uma maneira impetuosa… Voltando à Matrix, se ainda não formalizamos a estrutura da nossa reflexão, façamo-lo agora com a ajuda dessas duas palavras ao enunciar: o impacto causado por Matrix está intrinsecamente ligado à velocidade da luz e à luz da velocidade. Difícil? De explicitar, inicialmente, talvez, de perceber/experienciar, nem tanto… O interessante nessa abordagem que faz o estudo da necessidade de abarcar, no conceito de

dromologia, é a

velocidade, ou seja, nesta relação

comumente estabelecida entre uma distância que se percorre e o tempo que se necessita para tal, aquela relação de uma grandeza vetorial que, não somente representa “quantitativamente” o movimento (ou seja, como uma medida), mas que é representado pelo movimento dos corpos “qualitativamente”, ou seja, na sua qualidade de projeto, de ação/atuação de uma finalidade axiológica que o homem atribui a essa “duração”. Nesse contexto nosso autor incluirá, pari passu, ao conceito de sujeito e do objeto, aquele de “trajeto” que, entre ambos, explicita a densidade existencial, imaginária desse meio usado, a velocidade. Como falar de “objetividade” esquecendo a significância atributiva da trajetividade que preencheu um caminho entre sujeito e objeto?… É assim que podemos dizer que a velocidade é não somente uma medida do movimento, de uma distância a ser ou já percorrida, mas a velocidade é um AMBIENTE, por meio do qual se efetiva a movimentação dos corpos na trajetividade de sua habitabilidade sobre a Terra.

E ao falar de “habitabilidade” precisamos pensar muito sucintamente como se efetivou essa mudança no cerne das revoluções dos transportes. Se o final do século XIX e o início do século XX viram o advento de veículo automóvel – veículo dinâmico, ferroviário, rodoviário e depois aéreo -, o fim do século XX, vê a chegada do veículo audiovisual e passa a confrontar nossa percepção com um

veículo

estático,

substituto

de

nossos

deslocamentos

físicos

e

prolongamento de uma inércia domiciliar que chegará, talvez, ao triunfo de uma sedentariedade tão almejada pela utopia de um projeto societário de “bem estar”… O engenho viria aí para “libertar-me do trabalho escravo”, da submissão… E Isso vai significar que, ao tempo extensivo – o da duração – sucede através desse ultimo engenho tecnológico - o veículo audiovisual-, o tempo intensivo! Temos agora miríades de informações contidas num instante e na imagem de uma luz subexposta/exposta/sobreexposta… Virilio explicita: Ao tempo da

sucessão, à duração considerada como uma sequëncia de instantes sem duração, a exemplo da linha concebida geométricamente com uma sucessão de pontos sem dimensão, será conveniente opor, desde agora, a noção de tempo de exposição. Do tempo que passa da cronologia [desse estudo do tempo] ao tempo que se expõe da cronoscopia [dessa visão do tempo], seríamos levados a conceber um conjunto de procedimentos de ocultação da “tomada” como “tomadas de tempo”…a câmera e seu monitor tornando-se um relógio de precisão”, um modelo de relógio de luz infinitamente superior ao quadrante solar”(“O resto do tempo”). Compreendemos então porque, da mesma forma em que existem gerações

demográficas ou culturais existem gerações do real. E isso se dá porque, sabemos bem, a realidade nunca se apresenta de antemão, mas ela é adquirida pelo desenvolvimento sócio político-econômico das sociedades. Ora, com este engenho – introduzido pela tecnologia ótico-eletrônica -, desponta uma nova “geração do real”: a velocidade supera o tempo/espaço, e

a luz supera a matéria. Ou ainda como nos diz Virilio: Assim como o espaço, o

tempo absoluto desfez-se: em matéria de duração, tudo depende do olhar dirigido e da época, do “ponto de vista”, e não mais das condições supostamente naturais da experiência. Num artigo de Inércia Polar, “O Ultimo Veículo”, Virilio tomando o exemplo prático do “movimento da câmera no cinema” [do travelling] vai introduzir a noção de “cinemática”. Essa noção vem para explicitar esse movimento de deslocamento ótico que empreende o veículo audiovisual e que nos dá um acesso ampliado nessa velocidade que ilumina nosso imaginário, nossa visão de mundo, de forma nunca antes ‘vista’, e onde muito pouca ou quase nenhuma dinâmica é necessária de nossa parte. A cinemática é, então, a parte da física, e mais precisamente, da mecânica que estuda os movimentos dos corpos no tempo e no espaço sem se referir às causas que os produzem ( o estudo das forças ou causas e o movimento que elas produzem é o objeto da dinâmica). Na cinemática define-se, prioritariamente, os elementos do movimento, ou seja, a posição do corpo e suas mudanças em função do tempo. Compreendemos então a que ponto nossa percepção do mundo se modifica através desse engenho: agora a ótica e a cinemática se confundem: a distância de espaço cede subitamente o lugar à distância do tempo – o tempo se expõe na tela catódica instantaneamente! Agora é a velocidade da luz que baliza o

real, é a luz da velocidade que ilumina a realidade. E esse impacto da velocidade nos fascina a tal ponto que nos deixamos envolver na cinemática dessas “máquinas de visão”. A velocidade não serve mais ao deslocamento de

um ponto a outro, serve antes de tudo para ver, para conceber a realidade dos fatos (O resto do tempo). Talvez para além da máscara moral de um diagnóstico sobre a ‘crise de uma geração’ ou aquela que é dada a uma tonalidade de ‘declínio’ ou ‘progresso’ de uma civilização, o estudo da trajetividade do impacto aliado à velocidade da nova tecnologia, a constatação da fusão da ótica e da

cinemática, do vêr e do movimento da máquina de visão, nos permita melhor entender e detectar a fascinação pela ação impactante quase contínua e frenética apresentada em Matrix. Talvez, como sugere um dos críticos de ficção científica, Vivemos numa era não

simplesmente pós-moderna, mas “pós-humana” na qual devêssemos definir o significado do ser humano. No pós-humano não existem diferenças essenciais ou demarcações precisas entre

a existência corpórea e a simulação por

computador…e essa redifinição implicaria a compreensão do humano dentro de um puro espaço de mecanismo e uma Nova Jerusalém, uma Terra Prometida (David Purush, A Pílula Vermelha, p.98). Essa capacidade

da tecnologia em criar novas maneiras de perceber a

realidade (vide no Matrix o recurso cinematográfico do bullet-time) faz-nos entender porque passamos a viver bem mais num ‘mapa’ e, não tanto, num território. Deixe de ser escravo/ Rebele-se contra a servidão de sua mente, diz Morfeu a Neo! Até que ponto o convite de Morpheus - o deus do sonhos, cujo nome está na raíz linguística de palavras como ‘morfina’, droga que provoca o sono e tira a dor – e de palavras como “morphing”[formatação], operação na qual fazemos uso do computador para passar de uma realidade a outra, sem emenda perceptível – até que ponto, repito, esse convite não faria um eco, extremamente ambíguo, à reflexão sobre o desejo de uma “resistência” humana ao impacto da velocidade sobre essa vida desencarnada na tela que parece inebriar e viciar a percepção humana? Responder positivamente e ingerir a pílula vermelha poderia causar um novo problema. Ele apareceria na medida em que poderíamos querer saber até que ponto esse convite nos daria a certeza – afinal, certeza humana ou maquínica ? - de que essa rebelião não estaria, ela própria, sendo gerada por uma Matrix ainda mais sofisticada na arte da simulação da verdade?! Lembrem-se que o agente Smith, um dos programas sensíveis que policiam a Matrix, disse a Morfeu: A primeira Matrix foi projetada para ser um mundo

humano perfeito, onde ninguém sofreria, onde todos seriam felizes. Foi um

desastre. Ninguém aceitou o programa…Acredito que, como espécie, os seres humanos definem a realidade pelo sofrimento e pela desgraça. O mundo perfeito era um sonho do qual o seu cérebro primitivo ficou tentando acordar… (p.104, Pílula…). Como ter certeza que uma terceira versão do tríptico, não ofereceria um escape ‘fantasioso’ para o real, oferecendo aí simplesmente um “novo software” cuja aparência se configurasse como a “verdadeira” alternativa para o exercício da liberdade humana aliada à escolha do seu sofrimento, no reino da Inteligência Artificial? Assim como nos desenhos de ESCHER, sentimos que a cadeia recursiva do solipsismo parece não mais terminar… A toca do coelho branco talvez possa se estender até onde o sonho a levar. Nesse contexto, as versões/projeções da Matrix nada mais seriam que estágios de diferentes ‘formatações’/morphings, dentro da configuração complexa do modelo humano e do seu desejo… Ou será que, assim como os robôs enlouquecidos do filme de Michael Crichton

Westworld –Onde ninguém tem alma, nós agora podemos estar certos, seguros, que, nessa nova face do Homem tecnológico, “nada pode dar

errado…dar errado…dar err..ado…da r er…????.

*** Bibliografia: Irwin, William (org.) : Matrix: bem-vindo ao deserto do real. São Paulo, Madras Ed., 2003 Virilio, Paul

: O Último veículo, in: A Inércia Polar, 1993, Portugal, Ed.

Dom Quixote Virilio, Paul

: O resto do tempo, in: Para navegar no séc. XXI,

(org.) Fco.Mnezes Martins e Juremir Machado da Silva, Porto Alegre, Sulina, 1999. Yeffeth, Glenn (org) : A Pílula Vermelha: questões de ciência, filosofia e religião

em Matrix São Paulo, Publifolha, 2003 *

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