Max Wertheimer - Leis de organização das formas perceptuais

July 21, 2017 | Autor: C. Pablo Do Nasci... | Categoria: Philosophy, Visual perception, Gestalt Psychology, Philosophy of perception, Philosophy of Images
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Tradução

Leis de organização das formas perceptuais1 Max Wertheimer

Tradução de Charliston Pablo do Nascimento2 Originalmente publicado em: Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt, H. Psychol. Forsch, 1923, 4, p. 301-350. 2 Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA – UEFS. E-mail: [email protected] 1

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Posto-me à janela e vejo uma casa, árvores e o céu. Teoricamente, poderia me referir a 327 luminosidades e nuances de cor. Digo, tenho “327”? Não. Eu tenho o céu, uma casa e árvores. É impossível obter “327” como tal. E, ainda que semelhante cálculo fosse possível, e implicasse, digamos, 120 para a casa, 90 para as árvores, e 117 para o céu – diria que, pelo menos, tenho esse arranjo e divisão do todo, e não, digamos, 127 e 100 e 100; ou 150 e 177. A divisão concreta que vejo não é determinada por algum modo arbitrário de organização dependente inteiramente de meu bel-prazer; em vez disso, vejo o arranjo e a divisão que me são dados de antemão. E que processo notável quando algum outro modo de apreensão realmente passa a ocorrer! Contemplo longamente de minha janela e adoto, depois de algum esforço, a atitude mais irreal possível. E descubro que parte de uma basculante da janela e parte de um ramo descascado compõem, juntos, um N. Ou, então, olho uma figura. Duas faces frente a frente. Observo uma (e com ela, se você quiser, “57” tons) e a outra (“49” tons). Não posso ver um arranjo de 66 mais 40, nem de 6 mais 100. Houve teorias que requereriam que eu visse “106”. E, na verdade, eu vejo duas faces! Ou então, ouço uma melodia (17 tons) com seu acompanhamento (32 tons). Ouço a melodia e o acompanhamento, e não simplesmente “49” – e, certamente, não 20 mais 29. E o mesmo se dá nos casos em que não exista nenhum continuum estimulador. Ouço a melodia e seu acompanhamento até mesmo quando são tocados por um relógio antiquado, onde cada tom é separado dos outros. Ou, vê-se uma série de pontos descontínuos sobre um fundo homogêneo, não como uma soma de pontos, mas como figuras. Mesmo que aqui possa haver uma maior latitude de arranjos possíveis, os pontos normalmente se combinam em alguma articulação “espontânea” ou “natural” – e qualquer outro arranjo, mesmo que possa ser obtido, é artificial e difícil de se manter. Inquietude, Goiânia, vol. 2, n° 1, jan/jul - 2011

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Quando nos apresentam um certo número de estímulos, via de regra não percebemos “um número” de coisas individuais; esse, este e aquele. Ao invés disso, grandes totalidades separadas e inter-relacionadas umas às outras são dadas na experiência. Seu arranjo e divisão são concretos e definidos. Será que tais arranjos e divisões seguem princípios definidos? Quando os estímulos abcde aparecem juntos, quais são os princípios de acordo com os quais abc/de, e não ab/cde, são experienciados? O objetivo deste artigo é examinar esse problema, e começaremos, portanto, por casos de constelações descontínuas de estímulos. I. Uma fila de pontos é apresentada sobre um fundo homogêneo. Os intervalos alternados são 3mm e 12mm.

Normalmente esta fileira será vista como ab/cd, e não como a/bc/de. De fato, para a maior parte das pessoas é impossível ver as séries inteiras simultaneamente nesse último agrupamento. Estamos interessados aqui naquilo que é realmente visto. O que se segue deixará isso mais claro. Um indivíduo vê uma fila de grupos inclinados da esquerda, mais baixa, para a direita, mais alta (ab/cd/ef). O arranjo a/bc/de é extremamente difícil de se obter. Ainda que ele possa ser visto, tal arranjo é muito menos estável do que o outro, e poderá facilmente ser perturbado por movimentos de olho e oscilações de atenção.

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Isso fica ainda mais claro em (iii).

E em (vii) para horizontais.

Obviamente o arranjo abc/def/ghi, é muito superior a ceg/fhj/ikm. Um outro exemplo ainda mais claro de arranjo espontâneo é dado em (iv). O agrupamento natural é, obviamente, a/bcd/efghi etc.

Parecido com (i), mas ainda mais convincente, é a fileira de três pontos agrupados dados em (v). Vê-se abc/def, e não algum outro arranjo (teoricamente possível).

Um outro exemplo está contido em (vi), para se ver que arranjo objetivo é ditado, para agrupamentos verticais. Inquietude, Goiânia, vol. 2, n° 1, jan/jul - 2011

Em todos os casos precedentes, temos usado um número relativamente grande de pontos para cada figura. Usando um número menor, percebemos que o arranjo não se mostra tão imperativo quanto antes, e a reversão para o outro grupo mais óbvio é comparativamente mais fácil. Exemplos (viii) – (x). www.inquietude.org

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Ou, novamente:

Seria falso supor que (viii) – (x) são mais suscetíveis a reversões porque um número menor de pontos está envolvido. Tal raciocínio estaria baseado na proposição: “Quanto mais pontos, maior a dificuldade em uni-los em grupos”. De fato, é apenas o arranjo menos natural, artificial, que se torna mais difícil de ser dado um número maior de pontos. Os agrupamentos naturais (p.ex. (i), (ii) etc.), absolutamente não são atrapalhados pelo maior número de pontos. Em uma longa fila de pontos semelhantes nunca ocorre, por exemplo, que o processo de “união” seja abandonado e pontos individuais sejam vistos isoladamente. Não é verdade que menos pontos estimuladores “obviamente” produzam resultados mais simples, seguros, resultados mais elementares. Em cada um dos casos acima, as formas de agrupamentos mais naturais são aquelas que envolvem intervalos menores. Quer dizer, eles todos demonstram a influência preponderante do que nós podemos chamar de O fator de proximidade. Aqui está o primeiro dos princípios que nos propusemos a descobrir. Que aquele princípio também valha para a audição pode ser facilmente constatado substituindo-se tap-tap, pausa, tap-tap, pausa etc. em (i), e assim por diante nos outros agrupamentos.

Ou, para repetir (v), mas com uma proximidade uniforme:

II. A proximidade não é, contudo, o único fator envolvido em agrupamentos naturais. Isso aparece claramente nos exemplos seguintes. Manteremos uma proximidade idêntica o tempo todo, mas variaremos a cor dos pontos: Inquietude, Goiânia, vol. 2, n° 1, jan/jul - 2011

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Somos assim levados à descoberta de um segundo princípio – qual seja: a tendência de partes semelhantes se agruparem – o qual podemos chamar de O Fator de Similaridade. E, novamente, deve ser observado que este princípio se aplica também para experiências auditivas. Mantendo-se um intervalo constante, as batidas podem ser leves e fortes (análogo a (xi)), e então: ..!!..!! etc. E, mesmo quando a tentativa de se ouvir algum outro arranjo é bem sucedida, ela não pode ser mantida por muito tempo. O agrupamento natural logo retorna como uma “perturbação” esmagadora sobre o arranjo artificial. Em (xi) – (xiv) há, contudo, a possibilidade de um outro arranjo que não deve ser deixado de lado. Temos tratado essas seqüências em termos de uma direção constante da esquerda para a direita. Mas também é verdade que uma contínua mudança de direção ocorre nos próprios grupos: qual seja, a transição do grupo um para o grupo dois (leve-para-forte), a transição do grupo dois para o grupo três (forte-para-fraco), e assim por diante. Isso envolve, naturalmente, um fator especial. Para se manter uma direção constante seria necessário tornar cada par mais forte do que o anterior. Esquematicamente, isso poderia ser representado como:

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Essa retenção de uma mesma direção pode também ser demonstrada com cores acromáticas (fundo verde) assim: branco, cinza claro, cinza médio, cinza escuro, preto. Uma reprodução musical de (xv) seria C, C, E, E, F#, F#, A, A, C, C,...; e, de forma similar, para (xvi): C, C, C, E, E, E, F#, F#, F#, A, A, A, C, C, C,... Até aqui temos tratado apenas de um caso especial da lei geral. Não apenas semelhança e dessemelhança, mas maior ou menor dessemelhança, operam para determinar um arranjo experimentado. Com notas musicais, por exemplo, C, C#, E, F, G#, A, C, C#... serão ouvidos no agrupamento abc/def.... Ou, novamente usando cores acromáticas, podemos apresentar esse mesmo arranjo na maneira sugerida (esquematicamente) por (xvii) e (xviii).

Ou, da mesma maneira:

(Fica claro pelo exposto que comparações quantitativas podem ser feitas a respeito da aplicação das mesmas leis em regiões – forma, cor, som – daqui por diante tratados como psicologicamente distintas e Inquietude, Goiânia, vol. 2, n° 1, jan/jul - 2011

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heterogêneas).

VII. Que a proximidade espacial não seja suficiente para explicar a organização, pode ser demonstrado por um outro exemplo, como a Fig. 1. Tomados individualmente, os pontos em B estão mais próximos dos pontos individuais de A (ou C) do que os pontos de A ou C estão entre si. Todavia, o agrupamento percebido não é AB/C ou BC/A, mas, claramente, “uma linha horizontal e uma linha vertical” – isto é, AC/B. Na Fig. 2, a proximidade entre B e C é ainda maior, no entanto, o resultado ainda é AC/B – isto é, horizontal oblíquo. O mesmo é verdade a respeito do arranjo AB/C na Fig. 3.

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Como as figuras 4 a 7 também mostram, estamos lidando com um novo princípio, o qual podemos chamar de O Fator da direção. Que direções possam ser inequivocamente dadas mesmo quando linhas curvas são usadas é óbvio (Figs. 8-12). A dominância desse fator, em certos casos, será especialmente nítida se tentarmos ver a Fig. 13 como (abefil...) (cdghkm...), ao invés de (acegik...) (bdfhlm...).

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As figuras 14-19 representam algumas variações desse tipo.

Suponha que, na Fig. 8, tivéssemos somente a parte designada como A, e suponha que quaisquer duas outras linhas tivessem sido adicionadas. Quais das linhas adicionadas se juntariam a A como continuação e quais apareceriam como apêndices? Da maneira como lá está desenhado, AC é contínuo, e B, o apêndice.

Assim, por exemplo, vemos que AC/B ainda é a organização dominante mesmo na Fig. 15 (onde C é tangente ao círculo indicado por A). Mas, na Fig. 16, quando B é tangente de A, ainda temos AC/B. Naturalmente, entretanto, a extensão de B e C é uma consideração importante. Em todos os casos desse tipo, surgem as mesmas questões que aquelas sugeridas acima, em nossa discussão de Pregnância. Certos arranjos são mais fortes do que outros, e parecem “triunfar”; ao passo que arranjos intermediários são menos definidos, mais ambíguos. De maneira geral, o leitor não encontrará dificuldade para ver o que queremos dizer. Ao desenharmos uma figura, por exemplo, temos o sentimento de como as partes sucessivas devem se seguir umas às outras; sabemos o que é uma “boa” continuação, como podemos atingir uma “coerência interna” etc. Reconhecemos uma “boa forma” resultante, simplesmente, por nossa própria “necessidade íntima”. Um estudo

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mais detalhado nesse ponto demandaria considerações como as que se segue: adições a um objeto incompleto (p.ex. um segmento de curva) podem ocorrer em uma direção oposta àquela do original, ou podem dar continuidade ao princípio “logicamente exigido” por esse original. Deste último caso, aquela “unidade” será resultante. Isso não significa, no entanto, que “simplicidade” resulte de uma adição que seja (quando considerada isoladamente) “simples”. De fato, mesmo uma adição muito “complicada” pode acabar por promover a unidade do todo resultante. “Simplicidade” não se refere a propriedades das partes individuais; simplicidade é uma propriedade dos todos. Finalmente, a adição deve ser vista, também, em termos dessas “propriedades das totalidades” características, tais como fechamento, equilíbrio e simetria3.

Uma inspeção das Figs. 20-22 nos leva à descoberta de um outro princípio ainda: O Fator de Fechamento. Se A, B, C, D, são dados, e AB/CD formam duas unidades fechadas-em-si, então este arranjo, AC/ BD, será apreendido. Não é verdade, no entanto, que o fechamento seja necessariamente o fator dominante em todos os casos que satisfazem essas condições. Na Fig. 23, por exemplo, não são as três áreas fechadas, mas o Fator da Boa forma que é predominante.

  Simetria significa muito mais do que mera similaridade entre as partes; ela se refere à conexão lógica da parte relativamente ao todo da qual ela faz parte.

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Em conexão com isso, é instrutivo determinar as condições sob as quais duas figuras aparecerão como duas figuras independentes, e aquelas sob as quais elas se combinarão produzindo uma figura (única) totalmente diferente (Exemplos: Figs. 24-27). E isso também se aplica a superfícies4. O leitor pode testar a influência da coesão de uma superfície tentando ver a Fig. 24 como três figuras separadas e fechadas. Com áreas coloridas, a unidade das partes naturalmente coesas, pode ser ainda mais realçada.

A Fig. 28 é mais sensível como um deltóide oblíquo (bc) com um retângulo (ad). Tenta agora ver, no lado esquerdo, um hexágono cujo canto direito inferior tenha sido sombreado e, no lado direito, um outro hexágono, cujo canto superior esquerdo tenha sido sombreado (Figs. 28a e 28b).

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Compare nas Seleções 6 o uso que Fuchs faz disso.

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Uma vez mais observamos (como no caso das curvas das Figs. 9-12), a influência à tendência à “boa forma”, e, no presente caso, provavelmente é ainda mais fácil do que antes compreender o significado dessa expressão. Aqui é evidente que uma única cor tende a determinar uniformidade de colorido dentro de uma dada superfície5. Tomando-se qualquer figura (p.ex. Fig. 29), é instrutivo levantar certas questões como as seguintes: por meio de quais adições se poderia alterar a figura de tal maneira que uma apreensão espontânea da figura original se tornaria impossível? (as Figs. 30-32 são exemplos). Um método excelente de atingir esse resultado é, certamente, completar-se “boas formas subsidiárias” de uma maneira que seja “contra-estrutural” em relação à figura original (mas note que nem todas as adições ao original terão esse mesmo efeito. As Figs. 33-34, por exemplo, representam adições que poderíamos chamar de “indiferentes”, já que não são nem “pró-estruturais” nem “contra-estruturais”).

  O Fator de Similaridade pode assim ser visto como um caso particular do Fator de Boa Forma.

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Vamos chamar a forma original (Fig. 29) O, e qualquer adição contra-estrutural C, enquanto que chamaremos de P a qualquer adição pró-estrutural. Em nosso caso, assim, O deve ser tomada como subsidiária de algum todo inclusivo maior. Bem, O, tomado isoladamente ou como parte de OP é diferente do que ela seria em OC. É de extrema www.inquietude.org

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importância para O em que constelação ela aparece6. (Dessa forma, uma pessoa completamente familiarizada com O pode ficar bastante cega para sua ocorrência. Isso se aplica não somente para reconhecimento, mas para percepção em geral). VIII. Um outro Fator é aquele da experiência passada ou hábito. O princípio reza que, se AB e C, mas não BC, estão habitualmente juntos (ou “associados”), há então uma tendência para ABC aparecer como AB/C. Diferentemente dos outros princípios com os quais temos nos ocupado, é característico desse princípio que os conteúdos A, B, C, sejam tomados como sendo independentes da constelação em que aparecem. Sem arranjo é determinado, em princípio, apenas pelas circunstâncias extrínsecas (p.ex. o treinamento). Não pode haver dúvida de que algumas de nossas percepções são determinadas dessa maneira7. Geralmente, materiais arbitrários podem ser arranjados de maneiras arbitrárias e, depois de treinamento suficiente, tornam-se habituais. A dificuldade ocorre, no entanto, porque algumas pessoas estão inclinadas a atribuir a esse princípio a estrutura fundamental de toda percepção. A situação no § VII, diriam, envolve simplesmente a preponderância de complexos habituais. Linhas fortes, ângulos retos, arcos de círculo, quadrados – são todos familiares à experiência do diaa-dia. E a mesma coisa acontece com os intervalos entre partes (p.ex. os espaços entre as palavras escritas) e com a uniformidade das superfícies coloridas. A experiência propicia um treino constante para tais coisas. Ainda assim, apesar de plausível, a doutrina da experiência passada descarta os reais problemas em torno da percepção rápido demais. Seu desafio deveria ser demonstrar, em cada um dos casos acima: (1) que a apreensão dominante se devia à experiência anterior (e a mais nada); (2) que as apreensões não dominantes em cada caso não tenham sido Compare Seleções ga e gb.   Exemplo: 314 cm é percebido como abc/de, não como ab/cde – i.e., como 314/cm e não como 31/4cm, e nem como 314c/m.

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previamente experimentadas; e, em geral, (3) que no processamento da experiência nada, salvo fatores adventícios, precisem jamais ser evocados. Deve estar claro a partir de nossas discussões e exemplos anteriores que esse programa não poderia ter sucesso. Um único exemplo bastaria para demonstrar isso. Ângulos retos estão a nossa volta desde crianças (mesa, armário, janela, cantos de salas, casas). À primeira vista, isso parece bem evidente. Mas o meio ambiente das crianças consiste apenas de objetos feitos pelo homem? Não há na natureza (por exemplo, os galhos das árvores), tanto ângulos obtusos quanto ângulos agudos também? Porém, muito mais importante do que isso é a seguinte consideração. Realmente pode-se afirmar que armários, mesas etc., se apresentam como ângulos retos para os olhos das crianças? Se considerarmos a própria recepção dos estímulos na retina, quão frequentemente realmente encontraríamos aí ângulos retos? Certamente muito menos vezes do que a percepção desses ângulos como retos. De fato, as condições necessárias para uma estimulação realmente de “ângulo reto” se dão raramente na vida ordinária (a saber, somente quando a mesa ou outro objeto aparece em um plano frontal paralelo). Assim, o argumento da experiência se refere não à repetição literal dos estímulos, mas à repetição da experiência fenomenal – e o problema, portanto, apenas se repete. IX. Quando um objeto aparece sobre um campo homogêneo, tem de haver diferenciação de estímulos (não-homogeneidade) para que o objeto possa ser percebido. Um campo perfeitamente homogêneo aparece como um campo total (Ganzeld) opondo-se à subdivisão, desintegração etc. Para obtermos uma segregação dentro desse campo é preciso uma diferenciação relativamente forte entre o objeto e seu fundo. E isso não é verdade somente para campos idealmente homogêneos, mas também para campos em que, por exemplo, distribuições simétricas de luz se dão, ou então nos quais a “homogeneidade” consiste em algum efeito padrão regular. O melhor caso para uma figura resultante em um campo assim se dá quando, no campo inteiro, uma superfície fechada de uma forma simples difere da cor do campo restante. Uma tal figura superficial não é um membro de uma dupla (da qual o campo total, ou “fundo”, seria o www.inquietude.org

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outro membro); seu contorno serve como linha limítrofe somente para essa figura. O fundo não é limitado pela figura; mas parece normalmente continuar sem interrupções por detrás daquela figura. Dentro dessa figura podem haver subdivisões ulteriores resultando em totalidades subsidiárias. O procedimento, tanto aqui como antes, ocorre “de cima para baixo”, e se notará que os Fatores discutidos no § VII são cruciais para essas subdivisões8. Quanto à atenção, fixação etc., essas são secundariamente determinadas relativamente às relações naturais já anteriormente dadas pelas constelações totais. Considere, por exemplo, a diferença entre uma concentração de atenção artificialmente determinada e aquela resultante de uma ênfase pró-estrutural dada pela própria figura. Para uma abordagem “de cima para baixo”, isto é, de propriedades do todo descendo em direção aos todos subsidiários e às partes, partes individuais não são primárias, não são elementos a serem combinados aditivamente, mas são, isso sim, partes de totalidades.

Epistemologicamente, esta distinção entre “acima” e “abaixo” é da maior importância. A mente e a recepção psicológica do estímulo não respondem à maneira de um espelho, ou de uma máquina fotográfica recebendo “estímulos” individuais como unidades individuais sendo trabalhadas “de baixo para cima” até chegar aos objetos da experiência. Ao invés disso, a resposta se dá a partir da articulação de um todo – e isso segundo a maneira sugerida pelos fatores do § VII. Segue-se que o aparelho da recepção não pode ser descrito como um tipo de mecanismo aditivo de partes. Ele tem de funcionar de tal maneira a ser capaz de compreender a necessidade interna das totalidades articuladas. Quando consideramos o problema sob essa luz, torna-se aparente que os elementos sequer são percebidos como tais, mas a apreensão é, ela própria, caracteristicamente “de cima para baixo”.

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