Media Imperius - a influência da mídia de massa na sociedade de Harry Potter

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

ARTHUR MEDEIROS

MEDIA IMPERIUS A influência da mídia de massa sobre a sociedade de Harry Potter

BELÉM, PA 2016

ARTHUR MEDEIROS

MEDIA IMPERIUS A influência da mídia de massa sobre a sociedade de Harry Potter

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção de bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Pará. Orientado pela Prof.ª Dr.ª Lívia Lopes Barbosa.

BELÉM, PA 2016

NOTA DO AUTOR: O nome completo do autor é Arthur Medeiros de Oliveira, mas, para fins de referência, aqui se assina Arthur Medeiros.

MEDEIROS, Arthur Media Imperius: a influência da mídia de massa na sociedade de Harry Potter / Arthur Medeiros de Oliveira. – Belém, 2016. – 117 f.

Trabalho de conclusão de curso – Universidade Federal do Pará. Curso de Comunicação Social – Jornalismo. Orientadora: Lívia Lopes Barbosa

1. Harry Potter 2. Mídia de massa 3. Fantasia I. Título

AGRADECIMENTOS Os agradecimentos deste trabalho se dividem em sete partes. Primeiramente, a todos os que me convenceram que eu tinha jeito para jornalista durante o Ensino Médio. Aos professores que traduziram minha paixão por ler e escrever em uma profissão, e aos meus colegas de turma que estimularam minha comunicabilidade até não poderem mais. Por culpa de vocês não tive uma carreira “brilhante” na Biologia. Naquela época, eu tinha pouquíssima ideia de que o jornalismo era apenas uma pequena engrenagem dentro de uma máquina muito maior chamada Comunicação. Iniciei a universidade deslumbrado com a abrangência e diversidade do campo em que eu tinha adentrado quase que sem querer. Por isso, em segundo lugar, agradeço aos meus vários professores de graduação, que tanto alargaram o meu mundo e horizontes, que tanto aguçaram o meu olhar e efervesceram a minha mente. Devo muito do jornalista, comunicólogo e pesquisador que sou a vocês. Em especial, à Prof.ª Alda Costa, que tanto remexeu o interior do menino Arthur, com textos e mais textos, autores de nomes difíceis, e suas perguntas estimulantes. Vou para sempre admirar o seu profundo conhecimento e exímia competência que chegam misturados com seu carinho e cuidado com seus alunos, muito obrigado. Também à Prof.ª Rosane Steinbrenner, uma elegância de ser humano, uma imponência de jornalista, e um deslumbre de professora. Obrigado, Nanane, por ter me feito pensar fora da caixa e ter me feito querer provar que podia, a minha admiração por quem a senhora é muito me guiou durante este curso. Quando eu crescer, quero ser que nem a senhora. Em terceiro, a ela que segurou minha mão e guiou meu caminho anos antes de saber que me orientaria. Foi na disciplina optativa de Literatura e Comunicação, ainda em 2013, ministrada pela Prof.ª Lívia Barbosa, que me surgiu a ideia para este TCC. Eu me enxerguei naquela comunicóloga aficionada por literatura, uma das primeiras a me mostrar que podemos trabalhar com o que amamos. Obrigado por ainda continuar me guiando, professora. Em quarto, à minha querida turma de 2012, parceiros de perdas e vitórias, risadas e desespero. Aprendemos e crescemos muito juntos. Mas um agradecimento muito mais especial aos meus amigos Apocalípticos, meus primeiros professores e colegas de trabalho. Um grupo de calouros inconformados com uma greve universitária que se uniu para produzir jornalismo sozinhos, na marra, na base do erro e do acerto, por conta própria. O que criamos juntos naquele início de curso foi essencial para construir o profissional que me tornei, obrigado pela união, pela força de vontade, e pela coragem de arriscar e tentar. Sempre que olhar para trás, terei orgulho de tê-los conhecido e feito parte disso. Em quinto, com grande amor, aos meus eternos F², Lu e Dê, ao meu sense, Jota, a minha sis, Andy, a minha leonina, Ju, e ao Gio, meu astrólogo particular. O apoio de vocês em todos os momentos, bons e ruins, foi de suma importância para a minha forma de viver a vida, enxergar aos outros e a mim mesmo. Obrigado por acreditarem em mim e me estimularem, por me entusiasmarem e me fazerem feliz. Se aqui cheguei, foi porque também pude contar com os vários empurrões que vocês me deram.

Em sexto, a ela, que sem, de nada eu seria. Não só porque me deu vida, mas porque me deu espaço, vontade e estímulo para crescer e chegar onde eu quisesse ir. Obrigado, mãe, por ter achado tudo bem seu filho preferir gibis e quadrinhos a bonecos e carrinhos. Por ter me dado mais livros que brinquedos nos aniversários. Por ter me deixado passar horas na banca de revista ou na livraria, quando a senhora fazia o supermercado. Se a minha paixão por livros, por aprender e descobrir tomaram as proporções que têm hoje, foi porque a senhora a cultivou junto comigo. Obrigado por ter feito o possível e o impossível para me dar o melhor que pudesse e me conceder as oportunidades para eu construir meu futuro. Eu te amo. E a você, J. K. Rowling, que me roubou para os livros e nunca mais me devolveu. Que me apresentou um mundo que depois virariam outros e mais outros. Que ensinou a esse menino de 7, 8, 9 anos, e de todas as idades seguintes, sobre a magia fantástica e a real, a da varinha e a do amor, a das poções e das capas de invisibilidade, mas também a da amizade e da coragem. Obrigado por ter me feito acompanhar Harry até o fim.

“Claro que está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isso significaria que não é real? ” - Alvo Dumbledore

RESUMO O presente trabalho possui o objetivo central de discutir se os meios de comunicação de massa existentes dentro da série Harry Potter influenciam a sociedade nela retratada e de que modo. É também intenção do trabalho, através desse estudo, apontar a multiformidade da comunicação ao evidenciá-la em uma obra de Fantasia, e demonstrar a correspondência que esse gênero literário possui com a realidade apesar de sua temática imaginária. Para isso, foi realizada a análise de conteúdo dos sete livros da série com base em teorias dos Efeitos da Mídia de Massa como discutidas por Denis McQuail, e na hipótese do agendamento debatida por Mauro Wolf, Maxwell McCombs e Donald Shaw; assim como nos conceitos de Fantasia elaborados por J. R. R. Tolkien, John Clute e John Grant, e as características do gênero como elencadas por Brian Stableford, Eric Rabkin e outros. Ao final, foi compreendido que a mídia de massa influencia consideravelmente a sociedade de Harry Potter, embora o faça de forma limitada, sujeita aos filtros de interpretação particulares de cada receptor, e, além disso, também sujeita a ter seu poder de influência utilizado por grupos de interesses com objetivos próprios.

Palavras-chave: Harry Potter; mídia de massa; efeitos da mídia; agendamento; Fantasia.

ABSTRACT The present work has the central goal of discussing if the mass media present in the Harry Potter series have influence on the society portrayed in it and how. It was also an intention of this study to point out the multiformity of communication by discriminating it in a Fantasy work, and demonstrating the correspondence to reality this literary genre is able to construct, despite its imaginary themes. To achieve that, a content analysis of the seven books was performed based on the Mass Media Effects theories as discussed by Denis McQuail, and on the agenda-setting hypothesis as debated by Mauro Wolf, Maxwell McCombs and Donald Shaw; as well as on the definitions of Fantasy elaborated by J. R. R. Tolkien, John Clute and John Grant, and the characteristics of the genre as pointed out by Bian Stableford, Eric Rabkin and others. At the end, it was understood that mass media considerably influence Harry Potter’s society, although it does it in a limited way, subject to the particular interpretation filters of each receiver, and, besides that, also subject to have its influence power used by groups of interest with their own objectives.

Keywords: Harry Potter; mass media; media effects; agenda-setting; Fantasy.

SUMÁRIO Lumos!...........................................................................................9 1 Revelio! O Encantamento da Fantasia..................................12 1.1 O sonho e o disfarce....................................................................12 1.2 A subcriação do homem..............................................................14 1.4 Do Egito às Américas..................................................................28 1.5 De dentro da vitrine....................................................................39

2 Accio! O Feitiço da Comunicação..........................................45 2.1 Ensinando a caçar.......................................................................45 2.2 Um por todos.............................................................................53 2.2.1 Como a mídia de massa influencia?....................................................58 2.2.2 A quem a mídia de massa influencia?..................................................60 2.2.3 Quais as consequências da influência da mídia de massa?..........................63

3 Expelliarmus! A Magia de Harry Potter…...........................67 3.1 O-menino-que-sobreviveu e vendeu..............................................67 3.2 Magia nas veias..........................................................................72 3.3 Pague a coruja............................................................................76 3.4 Profecia nossa de cada dia............................................................80 3.4.1 Pedra Filosofal, Câmara Secreta e Prisioneiro de Azkaban.........................80 3.4.2 Cálice de Fogo.............................................................................83 3.4.3 Ordem da Fênix............................................................................90 3.4.4 Enigma do Príncipe.......................................................................99 3.4.5 Relíquias da Morte......................................................................104 3.4.6 Considerações Finais...................................................................108

Nox!...........................................................................................111 REFERÊNCIAS.......................................................................113

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Lumos!1

Desde que o ser humano aprendeu a falar, a comunicação se tornou ferramenta essencial para a organização social da espécie. Desde a invenção da prensa de Gutenberg, os meios de comunicação de massa se consolidaram como instrumentos cotidianos indispensáveis para o desenvolvimento da sociedade. Hoje, no século 21, a comunicação de massa nos alcança a partir das mais diversas fontes, por meio de diferentes mídias, em variados formatos, a todo momento e em alta velocidade. Vivemos uma época intensamente midiatizada, tão consumidora e usuária desses meios de comunicação que seria difícil se falar ou representar o mundo que nos cerca sem tratar deles. As várias áreas do conhecimento falam e analisam a comunicação e a área da Comunicação o faz de volta. Ela cerca a todos e se alastra pelos terrenos mais improváveis e inusitados, se soubermos parar para observá-la. Porém, observar a comunicação se manifestando em nossa realidade empírica é, digamos, mais simples; se não simples, mais aparente, mais próxima dos olhos. Isso porque este é o exemplo mais concreto e imediato desse fenômeno social. Paremos para pensar, no entanto, nas representações humanas, isto é, nas artes e obras que nos retratam sem nos ser de fato. Claro, construídas por mãos e mentes humanas, elas não vão estar isentas do contexto social de seus criadores e, estando eles inseridos em uma sociedade comunicacional e midiática, a comunicação se fará presente, em maior ou menor grau. A literatura de ficção (que, por definição, não conta histórias reais, mas aquelas inventadas e criadas por seus autores) é um exemplo. Toda ficção é localizada em um espaçotempo e, portanto, em uma determinada conjectura social característica daquele lugar e época. Esta não surge do nada, mas do conhecimento empírico do próprio autor. Seus personagens não são (necessariamente) reais, nem suas vidas e dilemas, pois ficção não é biografia nem História. No entanto, eles vivem em uma representação da sociedade construída a partir daquela em que vivemos e que a ela se assemelha. Se conosco eles se assemelham, e nós somos cercados pela comunicação de massa, com eles não seria diferente. Por isso, objetos como televisão, celulares, computadores, jornais e etc. estão presentes em muitos dos livros que lemos, se não para contribuir com a trama, ao menos para compor o cenário e dar-lhe veracidade. Mas isso, dessa forma, ocorre com um determinado tipo de ficção, aquela conhecida como ficção mimética, isto é, a que imita. Obras literárias de ficção que possuem o

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Feitiço do universo de Harry Potter utilizado para produzir luz.

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compromisso de se parecer com a realidade, de obedecer suas leis e composição. Histórias que poderiam, muito facilmente, acontecer no mundo real, com pessoas reais, caso não fossem apenas histórias. Existe, entretanto, um outro tipo de ficção. Um que não possui tal compromisso com a realidade, um que pode quebrar quantas regras dela desejar e construir um mundo inteiro só para si. A este, chamam de Fantasia. E assim surge uma pergunta: e aí, como que fica? E aí, com que fica a conjectura social dessa obra humana localizada em um espaçotempo que nós não conhecemos, que não faz ou jamais fez parte da nossa realidade empírica? E aí, como que ficam as questões sociais provenientes da experiência do autor em uma história sobre uma sociedade tão divergente daquela em que vivemos? Seria a Fantasia, em meio a toda sua composição mágica, capaz de falar da nossa própria realidade, dos nossos problemas e fenômenos sociais? Especialmente, dos nossos processos comunicacionais? Da mídia de massa, quem sabe? Levantar essa discussão e procurar por essas respostas é um dos objetivos do nosso trabalho. Queremos delongar nosso olhar sobre esse gênero literário comumente confundido com sonho e escape, frequentemente delegado com exclusividade às crianças, e descobrir nele seu verdadeiro potencial em corresponder com a realidade e suas questões. Mas não apenas. Queremos também discutir comunicação, precisamente encontrá-la em uma de suas manifestações não óbvias. Buscá-la nas terras longínquas e inusitadas em que, com frequência, ela se esconde. Pois compreendemos que a comunicação está sim, próxima, no dia a dia, na TV e nos jornais que assistimos e lemos, mas está também onde não a percebemos, onde não a procuramos, onde não a esperamos. É com esse intuito que nos propomos a buscar a comunicação dentro dos reinos encantados e perigosos da Fantasia e, quando a encontrarmos, assisti-la, com as lentes das Teorias da Comunicação, e compreendê-la. Para chegar lá, escolhemos um objeto, uma das sagas literárias de Fantasia mais influentes da atualidade, em todo seu fervor literário, cultural e comercial. Iremos nos debruçar sobre os sete livros da série Harry Potter, infiltrando-nos em sua sociedade bruxa e espionando como esses seres mágicos se comunicam. Durante toda a série, é perceptível uma multiplicidade e complexidade de temas comunicacionais, por isso precisaremos levantar a lupa e escolher um foco. É difícil não notar o alto interesse da população bruxa pelo jornal impresso de nome Profeta Diário, muito popular e influente naquele mundo. Exatamente por isso ele será o nosso

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foco, e, com ele, será a comunicação de massa o processo comunicacional que iremos observar, mais especificamente, neste trabalho, sob a ótica da Teorias dos Efeitos da Mídia. Os três campos de discussão que circundam o nosso trabalho, portanto, são a Fantasia, a Comunicação e Harry Potter, a quem, a cada um, dedicamos um capítulo particular. No primeiro, tentaremos compreender o gênero literário da Fantasia, sua definição, seus limites e categorias; seu histórico, origens, percurso e configuração atual; e sua relação com o mundo real. Nossos grandes guias, nativos dessas terras estrangeiras, serão J. R. R. Tolkien, John Clute e John Grant, Farah Mendlesohn, Brian Stableford etc. No segundo, nossa jornada retornará para o mundo real e comunicará a própria comunicação. A palavra, o fenômeno e o campo científico; o caso particular da comunicação de massa e seus efeitos; a hipótese do agendamento como discutida por Mauro Wolf, Maxwell McCombs e Donald Shaw, e as teorias dos Efeitos da Mídia de Massa como concebidas por Denis McQuail. No terceiro e último, seremos apresentados ao jovem bruxo Harry Potter e a seus amigos, ao mundo em que vive, à sociedade em que se insere. Ao final, entrelaçaremos os três temas discutidos em nosso estudo principal, de modo que se complementem e nos auxiliem a responder à nossa pergunta norteadora: como a mídia de massa influencia a sociedade de Harry Potter?

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1 Revelio!2 O Encantamento da Fantasia

1.1 O sonho e o disfarce Um interessante primeiro passo para se entender um conceito é compreender o que o termo que lhe dá nome significa. Saber o uso geral da palavra e de onde ela vem é capaz de dar grandes pistas de aonde ir quando a tratarmos como conceito. A palavra fantasia, substantivo feminino, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2009) possui oito significados comuns (excluindo-se os termos técnicos na Psicologia e na Música) 1 - faculdade de imaginar, de criar pela imaginação; 2 - obra criada pela imaginação (ex.: as fantasias de Monteiro Lobato); 3 – [derivação: sentido figurado] coisa puramente ideal ou ficcional, sem ligação com a realidade; invenção (ex.: suas justificativas são pura fantasia); 4 – [derivação: sentido figurado] capricho, sonho (ex.: como realizar suas fantasias amorosas?); 5 capricho injustificável ou descontrolado da vontade ou da imaginação; esquisitice, excentricidade (ex.: mergulhou nas fantasias mais desvairadas); 6 – [regionalismo: Brasil] vestimenta alegórica, usada em certos rituais e festividades, especialmente no carnaval (ex.: fantasia de palhaço, de baiana); 7 - [regionalismo: Brasil] joia de imitação; bijuteria; 8 - [regionalismo: Brasil] assombração, fantasma, visão (p. 1).

Fica claro, assim, o caminho que precisamos tomar ao falar de qualquer coisa relacionada à palavra fantasia. Nos oito usos mencionados pelo Dicionário Houaiss, todos estão ligados, em diferentes níveis, à imaginação e a uma ruptura com a realidade. Até mesmo o regionalismo brasileiro de traje alegórico (fato em Portugal e costume em inglês) carrega o sentido de disfarce, vestir-se como algo ou alguém que não somos e, portanto, diferente da realidade. Essa rede de sentidos se mantém nas entradas seguintes de termos derivados, como fantasiador (dito como sinônimo de visionário), fantasiar (imaginar; sonhar; criar obra da imaginação) e fantasioso (algo imaginado; que revela imaginação; que tem pouco ou nenhuma relação com a realidade). No próprio verbete de fantasia, o Dicionário Houaiss indica como sinônimas as palavras conjectura (hipótese, presunção, suposição) e quimera (monstro mitológico grego, também usado de forma figurada para coisas absurdas e imaginárias), e como antônima realidade. A locução regional brasileira rasgar a fantasia também é citada, descrita

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Feitiço do universo de Harry Potter utilizado para revelar ou descobrir coisas escondidas ou desconhecidas.

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com significado de “revelar seu verdadeiro caráter, sua personalidade”, relacionada, evidentemente, ao uso de fantasia como traje. O que podemos concluir de todas essas definições é que fantasiai não é algo que possamos experienciar na realidade imediata que nos cerca, mas apenas pela mente, como produto da imaginação e da idealização. A fantasia vai além do real e nos apresenta o desconhecido, o novo e o diferente e, assim, coisas que não podem ser explicadas por nossas leis naturais como as conhecemos. Outro ponto interessante levantado por essas definições é a proximidade da fantasia com o sonho e o desejo humano, como vemos nos sentidos 4 e 5. Ao ser descrita como capricho da vontade ou da imaginação, percebemos que a fantasia muitas vezes não é pura e simples diferente do real, mas é como nós gostaríamos que o real fosse, o que gostaríamos que existisse. Isso se manifesta no sentimento de encanto que a fantasia como gênero literário tem o potencial de causar no leitor. Além disso, um aspecto citado nas entradas do dicionário se mostra essencial para discussão desse trabalho. Ao tratar da fantasia como um disfarce, admitimos que existe uma verdade por trás dela, que a fantasia possui camadas que quando retiradas (‘rasgar a fantasia’) revelam a realidade, tal como um disfarce. Isso nos leva imediatamente para as origens da fantasia nos mitos (sobre o que falaremos melhor em tópicos futuros) que, por mais absurdos que soem hoje, existiam para explicar os fenômenos da natureza e eram acreditados como reais pelos povos da época. Eles não eram reais em si, em sua forma, mas falavam de coisas reais, eram reais em conteúdo e representação. Se retirássemos o véu fantasioso imediato, enxergaríamos nos mitos o funcionamento do dia e da noite, as estações do ano, a geografia, a organização social dos seus povos, etc., coisas realistas, empíricas e tangíveis. Essa característica de guardar aspectos reais por trás dos elementos fantasiosos não foi perdida com o tempo. Mesmo com toda sua rede sobrenatural, a fantasia ainda consegue falar de questões sociais e culturais reais, criar identificação e empatia com personagens realistas e ter verossimilhança, apesar de todos seus fenômenos mágicos e não-naturais. Este aspecto é o mais importante para a realização desse trabalho que procura analisar a influência dos meios de comunicação de massa (fenômeno real) na sociedade bruxa (elemento fantasioso representativo) de Harry Potter (obra de fantasia). O termo português fantasia vêm do latim phantasia, que significava: ideia, noção; fantasma, aparição; imaginação. Muito do sentido atual da palavra ainda se mantém de sua origem latina. Porém ao retrocedermos um pouco mais, percebemos uma pequena mudança. A forma latina é derivada do grego antigo φαντασία (phantasía): aparência, apresentação;

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percepção; aparência pomposa, pompa; impressão; imagem (WIKITIONARY..., 2016; BLUE..., 2016). Aqui notamos que a conceituação do termo não era ainda da faculdade mental e imaginária, mas visual, da aparência, do que os olhos veem. Esse salto de significado pode ter se dado a partir da ideia de que as aparências enganam, que nem tudo que parece é. Essa concepção de que a imagem vista não necessariamente condizia com a realidade pode ter sido o que amarrou a ideia de irrealidade à fantasia e, mais tarde, de imaginação; mas o fio do sentido de deter uma realidade por trás de si não sumiu, e suas raízes se mostram ainda mais profundas se olharmos o termo grego com mais atenção. Φαντασία se formou a partir do verbo φαντάζω (phantázō), que significa tornar visível. Este veio de φαντός (phantós), adjetivo verbal de φαίνω (phaínō): fazer aparecer, trazer à luz, revelar; cuja raiz é exatamente φως (phos) – luz (WIKITIONARY..., 2016; BLUE..., 2016). As raízes gregas da palavra fantasia trazem ao termo o significado de revelação, o trazer à luz, o tornar visível. Só se torna visível o invisível, e o invisível é o desconhecido, o inexplicável. E é isso que a fantasia faz, ela explica o desconhecido, esclarece o incompreensível. Mas essa revelação não é do próprio verdadeiro, de forma óbvia, mas do irreal; afinal essa aparência revelada é pomposa e impressionante, vem para maravilhar, o que não significa que por trás dela não haja aspectos reais e identificáveis (a serem revelados). O próprio ato de revelar lembra em muito a ideia da expressão ‘rasgar a fantasia’ utilizada no Brasil. Assim seguimos em frente para a definição de fantasia que realmente interessa a este trabalho: como gênero literário. Essa pequena viagem que fizemos por significados, terminologias e etimologias nos serviu de preparo, um vislumbre dos tipos de conceitos que orbitam a fantasia e sua inquietude de se delimitar a apenas uma definição objetiva. Este ser e não ser simultâneos fazem parte da natureza da fantasia e nos acompanhará até o final.

1.2 A subcriação do homem Antes de enveredarmos pela turbulência da Fantasia como gênero literário, faz-se necessário esclarecer o que de fato se entende por gênero na literatura. Portanto, podemos iniciar compreendendo que um gênero literário é um conjunto de generalidades que textos diferentes têm em comum, unindo-os em um só grupo. Porém, esse conjunto varia de acordo com a perspectiva escolhida, e o grupo resultado dele deve ser visto como uma entidade dinâmica, e não uma estática com fronteiras intransponíveis. Isso significa que não devemos presumir que exista um número limitado de gêneros ou apenas um sistema deles, nem que, uma vez identificado, o gênero seja endurecido e imutável,

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como um manual de regras que não podem ser desobedecidas. Apesar de o gênero já ter sido, um dia, visto de tal forma, não é assim que a teoria dos gêneros o trata atualmente, de modo que não é assim tampouco como este trabalho o entenderá. O crítico de gêneros Jean-Marie Schaeffer explica que “na era clássica as noções de gênero eram essencialmente concebidas como critérios para se julgar a conformidade de um trabalho a uma norma, ou a um conjunto de regras” (SCHAEFFER apud ANGELSKÅR, 2005, p. 19, tradução nossa3). Svein Angelskår (2005, p. 19) completa que a noção normativa e prescritiva de gênero só começou a se perder com o advento do Romantismo, devido sua ênfase em criar algo novo e único. Com a introdução da ideologia do individual e a ideia do gênio criativo, autores começaram a intencionalmente mudar os gêneros ou a ir além dos limites deles, e autores e críticos semelhantes lentamente passaram a pensar os gêneros como categorias dinâmicas. Na posição de leitores modernos, ainda temos expectativas baseadas no nosso entendimento de gêneros, claro, mas nós também apreciamos a inovação textual, o jogo e a desconsideração de normas genéricas (p. 19, tradução nossa4).

Então vemos que, com o desenvolvimento da produção literária, criou-se a necessidade de quebrar com aqueles parâmetros e ganhar maior liberdade criativa, extinguindo-se a noção de gênero como manual de regras capazes de julgar a validade de cada texto. Essa emancipação, no entanto, não foi suficiente para fazer desaparecer completamente o conceito de gênero. Ainda que a individualidade de cada texto tenha ganhado importância, ele ainda é visto como parte de um todo, e a forma como o texto se relaciona com os demais ainda é interessante como método para compreendê-lo. Nesse ponto, podemos dialogar com as colocações de Mirane Campos Marques (2015, p.12) que diz que o “gênero passa a ser entendido como uma espécie de ‘horizonte de expectativa’, que não lhe nega a individualidade, mas, simultaneamente, indica sua relação com a ‘série histórica’ e com as ‘regras do jogo’”. Entendemos assim que todo texto dialoga com as demais produções literárias, o que não nos permite abandonar a ideia de gênero por completo, e que as particularidades de cada obra nos fazem remodelá-lo, tornando-o um conceito dinâmico e adaptável de modo que contemple tanto a individualidade quanto a generalidade dos trabalhos.

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No original: in the classical era generic notions were essentially conceived as criteria serving to judge the conformity of a work to a norm, or rather a set of rules. 4 No original: With the introduction of the ideology of the individual and the idea of the creative genius, authors began to intentionally change genres or go outside generic boundaries, and authors and critics alike slowly came to think of genres as dynamic categories. As modern readers, we still have expectations based upon our understanding of genres, of course, but we also appreciate textual innovation, playfulness and disregard of generic norms.

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Assim definido, chegamos a uma segunda etapa na discussão de gêneros, sua funcionalidade. Se os gêneros são assim tão adaptáveis e se suas regras podem ser quebradas e inovadas, para que eles servem? Para chegar lá, devemos partir do preceito de Angelskår de que “as novas formas se situam em relação às velhas” (2005, p. 22) e ampliá-lo. O diferente se situa em relação ao comum. O revolucionário se situa em relação ao sistema. A regra quebrada se situa em relação à regra estabelecida. O individual se situa em relação ao geral. Desse modo, o gênero literário deve ser visto não como amarras ou limites de um território, mas como ponto de partida. São noções e elementos que devem ser previamente conhecidos para se compreender a obra tanto em suas semelhanças quanto em suas diferenças com o conjunto, “uma ferramenta para comunicação e interpretação” (ANGELSKÅR, 2015, p. 22). Não a usamos para definir ou classificar a obra, mas para compreendê-la. Isto nos aproxima bastante da concepção de Todorov (2014)5 de que os “gêneros são precisamente essas escalas através das quais a obra se relaciona com o universo da literatura” (p. 12). Assim, ao tratarmos uma obra como manifestante de algum gênero 6, estamos explicitando instantaneamente sua função nesse grupo. Ao a olharmos através das lentes do gênero identificado, a perceberemos como tradicional ou inovadora, central ou marginal (ATTEBERY, 1992), profunda ou superficial, desta ou daquela subcategoria, pura ou híbrida (considerando sua relação com demais gêneros), pois toda obra modifica o conjunto, atribuindolhe ou tirando-lhe características, já que “um texto não é somente o produto de uma combinatória preexistente [...] é também uma transformação dessa combinatória” (TODOROV, 2014, p. 11). Além disso, o rol de gêneros identificáveis muda de acordo com a perspectiva, visto que “os gêneros existem a diferentes níveis de generalidades e o conteúdo dessa noção se define pelo ponto de vista escolhido” (TODOROV, 2014, p. 9). Para ilustrar isso, podemos observar os vários gêneros de diferentes naturezas descritos pelos teóricos literários, organizados em duas categorias por Angelskår (2005, p. 9): gêneros de forma e gêneros de conteúdo7. Para este autor, os primeiros seriam o sistema que divide a literatura em poema, romance, drama, épico etc., levando em consideração a forma e a estruturação dos textos. Os segundos seriam o romance policial, a ficção científica, o terror, a fantasia e afins; pelo ponto 5

Versão original de 1970. “Deve ser dito que uma obra manifesta tal gênero, não que ele exista na obra [...] não há qualquer necessidade de que uma obra encarne fielmente seu gênero, há apenas uma probabilidade de que isso se dê” (TODOROV, 2014, p. 26) 7 No original, respectivamente: genres of form e genres of matter. 6

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de vista das temáticas e elementos abordados nas obras. É provável que ainda mais sistemas possam ser identificados com outros conjuntos de generalidades sendo privilegiados, como faixa-etária do público (literatura infanto-juvenil, young adult, adulta etc.) e tamanho (conto, romance, série, entre outros). A Fantasia, como foi indicado por Angelskår, é um gênero de conteúdo. Ou seja, sua função como grupo se dá pelas generalidades dos elementos e temáticas abordados em suas obras. Ao enxergamos uma obra pelas lentes do gênero Fantasia, podemos perceber suas especificidades – como ela apresenta e, quem sabe, adapta e modifica os elementos da Fantasia, em que níveis, com que profundidade e assim por diante – e também suas generalidades – como ela se aproxima ou se afasta de outras obras do gênero, como ela imita a noção clássica dele ou a revoluciona e expande suas margens, como ela modifica as relações da Fantasia com os gêneros vizinhos, com a literatura como um todo, com o contexto social e histórico da obra etc. Certo. Mas, então, que conjunto de generalizações devemos procurar para identificar a Fantasia em um texto? Como definimos a Fantasia como um gênero literário? Essa definição tem sido buscada por diversos teóricos através das décadas, cada um com abordagens e pontos de vista diferentes, de modo que ainda não existe, até hoje, um consenso. Alguns autores dão preferência a conceitos mais restritos e fechados, sendo criticados por outros por serem exclusivos demais e deixarem muitas obras amplamente conhecidas como Fantasia de fora. Já outros trazem conceitos mais amplos e inclusivos, sendo criticados por falta de precisão e por tornar o gênero heterogêneo demais. Mas Angelskår (2015) nos ajuda a entender o fio comum que move todos esses autores: “a única coisa que todas as definições de fantasia tiveram em comum é de que um texto de fantasia contém ou lida com algo irreal, seja na forma de algo impossível ou apenas algo que é inexistente no nosso mundo real” (p. 14-15, tradução nossa8). Assim, compreendemos que, antes de mais nada, para uma obra manifestar o gênero da Fantasia, ela precisa apresentar elementos impossíveis e inexistentes, que não façam parte da realidade como a conhecemos. O problema em parar a definição por aí, é que assim se incluem textos de naturezas muito diferentes, desde lendas, mitos e folclore, a contos de fadas e fábulas, a ficção científica e terror. Cada uma dessas categorias possui características muito próprias e específicas para serem consideradas todas parte de um mesmo gênero. Daí a necessidade dos autores de irem além

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No original: The one thing that all definitions of fantasy have had in common is that a fantasy text contains or deals with something unreal, whether in the form of something impossible, or just something that is nonexistent in our real world.

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dessa definição primária e de delimitar o gênero de forma mais precisa, e é nesse momento que as discordâncias começam a aparecer. Um dos principais nomes que surgem quando se discute Fantasia é o do teórico búlgaro Tzvetan Todorov. Sua obra Introdução à Literatura Fantástica (2014), lançada originalmente na década de 1970, causou uma grande comoção entre os estudiosos do gênero, sobretudo por sua visão polêmica e restrita. Apesar de não usar o termo Fantasia (por utilizar uma nomenclatura própria), ele contribuiu bastante para a discussão do gênero no âmbito acadêmico, de modo que boa parte dos trabalhos a respeito atualmente o mencionam, mesmo que apenas para se posicionar discordantes e contrários às ideias dele. O termo utilizado por Todorov é o fantástico, que ele define como um gênero de fronteira onde predomina a dúvida, sobretudo no leitor, em relação à realidade dos eventos descritos. Quando duas soluções – uma natural e outra sobrenatural – são dadas como possíveis a um determinado evento, sem de fato apontar uma delas como a correta, é onde se dá o efeito do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas neste caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós [...]. O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (p. 30-31, grifo nosso).

Esse efeito pode perdurar até o fim do livro (e, consequentemente, até após ele), que é o que o autor define como o fantástico puro; mas também pode solucionar o mistério antes disso, dando uma das explicações como verdadeira: caso a explicação seja a das leis naturais da realidade, ocorre o fantástico estranho; caso seja sobrenatural, o fantástico maravilhoso. Categorias híbridas do fantástico que Todorov precisou explicitar para dar conta da fragilidade do fantástico puro, já que dificilmente uma dúvida de tal natureza conseguiria se manter por todo o decorrer de uma história. O estranho e o maravilhoso, como vimos, são descritos como gêneros vizinhos ao fantástico (com os quais o fantástico estranho e o fantástico maravilhoso se relacionam), mas que dele se diferenciam. Eles se classificam pela não presença da dúvida: o estranho possui eventos incomuns, mas cuja realidade nunca é posta em discussão, sempre possuindo explicações condizentes com a normalidade (um método narrativo comum a romances policiais,

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por exemplo); o maravilhoso é quando o sobrenatural é visto como real e existente, quando ele não é questionado e é tido como comum dentro da narrativa, ainda que ele vá de encontro às leis naturais da realidade do leitor. Destes o que mais vai ao encontro do que entendemos por Fantasia é o maravilhoso, mas o próprio fantástico pode ser visto como integrante do gênero. No entanto, muitos autores (ANGELSKÅR, 2005; BOULD, 2002; CAMARANI, 2014; MONLEÓN, 1990) enxergam problemas na teoria de Todorov, como a fragilidade de sua precisão. Ao construir uma definição com tantas especificidades, ele acaba por criar um gênero volátil que não dá conta de existir em si mesmo, daí a necessidade de colocá-lo em função e em constante comparação com os gêneros vizinhos. Além disso, o fantástico tem dificuldade de englobar uma obra por completo, sendo necessária a criação de categorias híbridas que estão mais próximas dos outros gêneros de que falam do que daquele a que são designadas A imprevisibilidade do posicionamento do leitor também enfraquece ainda mais a definição desse fantástico. Ao pôr a base do conceito nas mãos da hesitação de quem lê, Todorov faz com que o gênero possa deixar de se manifestar na obra a qualquer momento, assim que o leitor tomar um partido. Este pode se posicionar de forma cética mesmo que as explicações ainda não lhe tenham sido apresentadas, se recusando a cogitar quanto à possibilidade do sobrenatural. Assim como ele pode ser mais crente e se posicionar a favor da versão mágica, descartando qualquer explicação mais plausível com a realidade. Nesses dois casos a dúvida não chega a se formar, de modo que o efeito do fantástico não toma lugar, impossibilitando a manifestação do gênero na obra. Com essa inconsistência, o fantástico de Todorov mais parece um método narrativo para tentar envolver o leitor, o que pode ser mais ou menos efetivo de acordo com cada indivíduo, do que um gênero literário em si, que localize a obra em um conjunto de produções que se relacionam e se transformam mutuamente. Para tentar delimitar o fantástico de forma mais eficaz, Todorov nos apresenta também o estranho e o maravilhoso, sendo esse último muito próximo da concepção que se tem de Fantasia. Mas este gênero secundário é problemático de se apropriar como definição de Fantasia por ser o exato contrário do fantástico: amplo e impreciso demais. Ele acaba funcionando com um reservatório dos textos que não se encaixam no fantástico, e, portanto, abrange uma variedade muito grande de obras extremamente diferentes entre si. Afinal, o maravilhoso seria toda obra em que o sobrenatural fosse retratado como parte integrante da realidade e utilizá-lo como sinônimo de Fantasia seria voltar para o início do problema, onde a definição primária do gênero o tornava heterogêneo demais e, portanto, pouco útil como gênero literário.

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Outro grande nome das teorias da Fantasia se posiciona no polo oposto ao de Todorov. Enquanto o búlgaro concentra suas definições apenas em histórias (possivelmente) sobrenaturais que se passam no mundo real, como o conhecemos, J. R. R. Tolkien, em seu ensaio On Fairy-Stories (1947), propõe como condição para a Fantasia a sua ocorrência em um mundo diferente e separado do nosso, um mundo secundário. Tolkien também usa uma nomenclatura própria para discorrer sobre suas teorias, em sua obra ele não trata a Fantasia como um gênero literário, mas como um elemento existente dentro de um tipo de história9, as histórias de fadas, que são o principal objeto de seu texto. Mas é fácil perceber que por histórias de fadas, Tolkien também fala de Fantasia, principalmente se observarmos que muitos dos preceitos desse ensaio servem para justificar e antecipar a obra na qual o inglês estava trabalhando na época, The Lord of the Rings, considerado um grande clássico do gênero. É difícil compreender exatamente por que Tolkien preferiu tomar histórias de fadas como termo quando logo de início ele já trata de afastar completamente a definição desse tipo de história da noção das criaturas fadas. Ele diz que “histórias de fadas não são [...] histórias sobre fadas ou elfos, mas histórias sobre Faërie, isto é, o Reino Encantado, o reino ou estado em que as fadas existem” (TOLKIEN, 1947, p. 4, tradução nossa10). Ele explica ainda que essas histórias possuem muito mais que fadas e elfos, assim como muito mais que anões, bruxas, gigantes e dragões, elas contêm também o mar, o sol, a lua, o céu e ainda a árvore e o pássaro, o pão e o vinho, e os homens mortais, quando encantados. Assim entendemos que as histórias de fadas não falam apenas de seres fantásticos, mas também de coisas comuns. Uma parte muito pequena dessas histórias são de fato sobre o povo fada, na realidade, a maioria dessas histórias é sobre as aventuras dos homens pelo Reino Encantado e seus confins. “A definição de histórias de fada, portanto – o que é, ou o que deveria ser – não depende de qualquer definição ou relato histórico de elfos ou fadas, mas da natureza do Reino Encantado: o Reino Perigoso em si, e do ar que sopra nessa terra’ (Idem, ibidem, tradução nossa11). Enquanto Tolkien deixa claro o conteúdo que se espera de tais histórias, ele é vago quanto ao que realmente seria esse Reino Encantado. Na verdade, o autor se quer tenta

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Entendemos pela definição de Tolkien, que fantasia é a natureza do Reino Encantado, a alteridade desse mundo secundário e sua qualidade de estranheza e admiração. 10 No original: fairy-stories are not (…) stories about fairies or elves, but stories about Fairy, that is Faerie, the realm or state in which fairies have their being. 11 No original: The definition of a fairy-story – what it is, or what it should be – does not, then, depend on any definition or historical account of elf or fairy, but upon the nature of Faërie: the Perilous Realm itself, and the air that blows in that country.

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esclarecê-lo, pontuando que essa imprecisão é uma característica natural do Reino. “Não tentarei defini-lo, nem o descrever diretamente. Não pode ser feito. O Reino Encantado não pode ser capturado em uma rede de palavras, por ser uma de suas qualidades ser indescritível, embora não imperceptível” (Idem, ibidem, tradução nossa12). Mesmo assim, ele nos dá alguns vislumbres do que compõe essas terras: “o Reino Encantado, talvez, possa ser traduzido de forma mais próxima como Magia” (idem, ibidem, tradução nossa13) (em seguida ele se preocupa em diferenciar esse tipo de magia – de modo e poder peculiares – do tipo técnico praticado por ilusionistas. Em inglês isso se faz necessário devido ao uso de apenas uma palavra para os dois tipos, magic. Mas isso pode ser facilmente esclarecido em português pelas diferenças entre os termos magia e mágica). Isso nos faz compreender que o Reino Encantado é o plano em que a magia pode se manifestar e existir, já que isso não é possível de acontecer na nossa realidade empírica. Contudo, Tolkien acrescenta que, caso haja sátira na história de fadas, a magia jamais deve ser alvo dela. A magia do Reino Encantado deve ser levada a sério, vista como integrante daquela realidade e jamais questionada. Essa seriedade da magia é o primeiro passo para a construção da coerência e consistência da Fantasia, elementos tão caros para os próximos conceitos do autor com que trabalharemos. Ao definir o fenômeno fantasia como a união da Imaginação com a Arte Subcriativa, isto é, da concepção de imagens com o poder de dar a elas a consistência interna da realidade, Tolkien nos apresenta três conceitos chaves para a compreensão da Fantasia como gênero. São eles: a subcriação, o Mundo Secundário e a Crença Secundária. A subcriação é o ato, o fenômeno. A ação do escritor de criar uma realidade diferente da nossa para hospedar suas histórias. Tolkien chama o autor de subcriador e sua obra de subcriação, assim com o sufixo sub, por suas crenças religiosas. Para o inglês, Deus é o Criador e sua obra é a Criação, o Mundo Primário, o nosso mundo; e os escritores se assemelham a ele em sua arte, mas produzem obras hierarquicamente abaixo da dele, portanto subcriações. O Mundo Secundário é o produto de tal criação. Esse mundo provindo da mente do escritor não é apenas diferente do nosso, precisa ser coerente dentro de si, precisa ter a “consistência interna da realidade”, e, portanto, existir em si mesmo e ser crível, verossímil. Caso isso seja alcançado, o leitor será convencido da existência dele, enquanto se propuser a por ele se aventurar. 12

No original: I will not attempt to define that, nor describe it directly. It cannot be done. Faërie cannot be caught in a net of words, for it is one of its qualities to be indescribable, though not imperceptible. 13 No original: Faerie itself may perhaps be most nearly translated by Magic.

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A Crença Secundária é exatamente esse efeito. Não é a inocência e a ingenuidade do leitor de que aquilo lhe possa acontecer, no Mundo Primário; tampouco é a “suspensão voluntária da incredulidade”, como se, ao adentrar aquele mundo, ele perdesse seu senso crítico e ceticismo. É, na verdade, a crença de que os elementos do Mundo Secundário são verdadeiros dentro de seus limites, ou seja, a compreensão de que aquela realidade faz sentido naquele plano; que lá algumas coisas são possíveis, mas outras não; que ali existe um sistema de leis e regras que funcionam, mesmo se diferentes daquelas da realidade empírica. Para Tolkien, só quando o Mundo Secundário, através da subcriação, resulta na Crença Secundária do leitor é que a Fantasia se manifesta em sua mais pura forma. O que acontece de fato é que o criador de histórias se prova um “subcriador” bem-sucedido. Ele concebe um Mundo Secundário no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é “verdade”: de acordo com as leis daquele mundo. Nós então acreditamos, enquanto estamos, por assim dizer, lá dentro. No momento em que surge a descrença, o feitiço se quebra; a magia, ou mesmo a arte, falhou. Estamos então no Mundo Primário novamente, olhando do lado de fora para o Mundo Secundário fracassado (p. 12, tradução nossa14).

Assim concluímos que histórias de fadas, e, portanto, histórias de Fantasia, são aquelas que ocorrem no Reino Encantado, este sendo o plano em que os Mundos Secundários (as subcriações coerentes da mente dos escritores que criam no leitor a Crença Secundária) possam existir e conter suas histórias fantásticas. O problema na teoria de Tolkien, no entanto, está em sua falta de clareza sobre os limites entre o Mundo Primário e o Secundário. Não fica claro, em sua obra, se essas fronteiras precisam ser físicas, fazendo com que os dois estejam completamente separados, ou abstratas, permitindo que um exista dentro do outro, de forma simultânea ou mesclada. Esse questionamento é válido pela grande ocorrência de histórias da Fantasia Moderna que se passam no nosso próprio mundo, que seriam os casos dos subgêneros da Baixa Fantasia, da fantasia urbana e da fantasia contemporânea, por exemplo. Seriam essas versões alternativas do Mundo Primário, que também se chamam Terra, que também possuem os mesmos países e cidades, os mesmos povos, mas onde a magia existe (e existe de forma consistente, com leis coerentes, como se exige para a Crença Secundária) consideradas Mundos Secundários por Tolkien? Seriam esses seres, edifícios e lugares fantásticos abordados como parte da nossa realidade, mas que, por algum motivo, nós pessoas 14

No original: What really happens is that the story-maker proves a successful “sub-creator.” He makes a Secondary World which your mind can enter. Inside it, what he relates is “true”: it accords with the laws of that world. You therefore believe it, while you are, as it were, inside. The moment disbelief arises, the spell is broken; the magic, or rather art, has failed. You are then out in the Primary World again, looking at the little abortive Secondary World from outside.

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“normais” (não dotadas do fator mágico dessas histórias) não enxergamos, considerados frutos da subcriação da teoria tolkieniana? Não sabemos. Ele não nos apresenta, em seu ensaio, argumentos que neguem ou permitam essa condição. Visto que esclarecer esse ponto é de vital importância para esse trabalho, cujo objeto é a série Harry Potter, que se encaixa nessa descrição, há a necessidade de procurar uma terceira definição de Fantasia como gênero. Uma que dê conta das relações do Mundo Primário com o Secundário sem descartar os conceitos introduzidos por Tolkien. Esta, encontramos em Encyclopedia of Fantasy (1999), uma importante enciclopédia de Fantasia editada por John Clute e John Grant em 1997, e então disponibilizada online em 1999 com algumas correções e adendos. Ela é fruto de uma vasta pesquisa e estudo que reúne e explica uma grande variedade de termos relacionados à Fantasia, não apenas na literatura, como no cinema e em outras formas de arte. Nela, Clute e Grant (1999) explicam que Um texto de fantasia é uma narrativa coerente em si mesma. Quando situada neste mundo, conta uma história que é impossível no mundo como o percebemos; quando situada em um outro mundo, esse mundo será impossível, embora as histórias que lá se passam são possíveis nos termos dele (p. 1, tradução nossa15).

Podemos notar que a dupla continua com as noções de Tolkien de consistência interna da realidade nas histórias de Fantasia, como vemos em “narrativa coerente em si mesma”, assim como prossegue com o conceito de Crença Secundária, vide “histórias [...] possíveis nos termos dele [do outro mundo]”. No entanto, os dois esclarecem que a Fantasia pode ter dois tipos de ambientação, seja neste mundo, como o percebemos, ou em outro mundo. Essa diferença de ambientação, na verdade, é um elemento importante na divisão da Fantasia em seus dois maiores subgêneros: Alta e Baixa Fantasia. Um elemento importante, mas não o único. O simples fato de situar a história no lá ou cá não é o suficiente para classificá-la como Alta ou Baixa Fantasia. Essa distinção é um pouco mais complexa e Angelskår (2005) pode nos ajudar a compreendê-la melhor. Na Alta Fantasia, os elementos impossíveis ou irracionais funcionam de acordo com as leis naturais do universo fictício. Ao menos uma parte desses elementos é tratada como lugar-comum ou natural. Alta Fantasia quase sempre envolve um mundo secundário. Baixa Fantasia, no entanto, é situada no nosso próprio mundo reconhecível. Os elementos impossíveis ou sobrenaturais são tratados como tais. Algo existe ou ocorre que está 15

No original: A fantasy text is a self-coherent narrative. When set in this world, it tells a story which is impossible in the world as we perceive it; when set in an otherworld, that otherworld will be impossible, though stories set there may be possible in its terms.

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explicitamente em conflito com as leis naturais. Há também casos liminares entre esses subgêneros, mas normalmente os dois tipos são fáceis de se distinguir (p. 10, tradução nossa16).

Assim percebemos que, além da ambientação, algo muito importante na diferenciação dos dois tipos de Fantasia é a forma com que os elementos sobrenaturais são vistos e tratados pelos habitantes desse ambiente. Na Alta Fantasia a magia é vista como comum, como natural, parte da realidade; enquanto que na Baixa Fantasia, ela é intrusiva, estranha, algo que não deveria estar ali. Desse modo, podemos sim presenciar uma Baixa Fantasia situada em um Mundo Secundário, desde que nele a magia não seja algo normal ou presenciada sem estranhamento ou conflito. Um Mundo Secundário com essa configuração pode não ser a Terra e, portanto, não ter a mesma geografia, história etc.; mas ainda assim será um mundo racional, e muito próximo da nossa realidade. Quanto à Alta Fantasia, ela pode ocorrer no Mundo Primário? A resposta a esse questionamento é um pouco mais complexa, isto porque ela põe à prova o nosso entendimento de Mundo Secundário. Para tentar respondê-la, devemos compreender de que diferentes formas a Alta Fantasia pode se construir. Boyer, Tymn e Zahorski (apud OPHEIM, 2010) destacam três maneiras: “Primeiro, como mencionado anteriormente, há o clássico mundo secundário, aquele que não é conectado ao mundo primário. O mundo primário é simplesmente ignorado; ele não existe fisicamente ou geograficamente” (p. 11, tradução nossa17). Esta é a forma mais típica de Alta Fantasia, aquela em que o Mundo Secundário se apresenta de forma mais completa, a que Tolkien chamaria de fantasia em sua forma mais pura. Não coincidente, um grande exemplo dessa categoria seria exatamente The Lord of the Rings, cujos eventos se situam completamente em um Mundo Secundário, a Terra-Média, onde nada se sabe ou se menciona sobre o Primário. Para aquela história, ele simplesmente não existe. Boyer, Tymn e Zahorski (apud OPHEIM, 2010) não nomeiam suas divisões, mas para fins de clareza da argumentação deste trabalho, tomaremos a liberdade de fazer isso por eles. Para tal, tomaremos emprestados os termos alcunhados por Farah Mendlesohn, em seu ensaio

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No original: In high fantasy the impossible or nonrational elements function according to the natural laws of the fictive universe. At least some of these elements are treated as commonplace or natural. High fantasy nearly always involves a secondary world. Low fantasy, however, is situated in our own recognisable world. The supernatural or impossible elements of the work are treated as such. Something exists or occurs which is explicitly in conflict with natural laws. There are borderline cases between these subgenres as well, but usually the two types are easy to distinguish from each other. 17 No original: Firstly, as mentioned earlier, is the classical secondary world, the one that is not connected to the primary world. The primary world has simply been ignored; it does not exist physically or geographically.

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Towards a Taxonomy of Fantasy (2002); mas apenas isto, os termos, tendo em vista que os conceitos de Mendlesohn não se comportam da mesma forma que os de Boyer, Tymnn e Zahorski. Assim, trataremos esta primeira categoria como fantasia imersiva, por nela o leitor mergulhar na realidade secundária, sem possibilidade de recurso a um correspondente de sua realidade primária. Aqui o leitor é lançado nesse mundo sem apresentações, e ele deve aprender sobre tal mundo enquanto o explora ao lado do protagonista, o qual, ao contrário do leitor, é nativo e, portanto, já conhece as leis daquela realidade. Na segunda alternativa, o mundo primário não é ignorado. Aqui encontramos uma relação entre o mundo primário e o secundário. Uma marca nesse tipo de alta fantasia são os portais usados para se viajar entre os mundos. O portal mais conhecido é um armário feito de uma árvore provinda de um mundo diferente, Nárnia. No entanto, tornados, facas mágicas, buracos de coelho e portas estranhas também podem funcionar como portais a mundos estrangeiros (BOYER; TYMN; ZAHORSKI apud OPHEIM, 2010, p. 11, tradução nossa18).

Esta chamaremos de fantasia de portal. Nela os Mundos Primários e Secundários coexistem, mas separados, com algumas conexões entre si, por onde é possível se transportar. Normalmente, iniciamos essas histórias no Mundo Primário, acompanhando a vida mundana do protagonista que então é levado ao Secundário, o qual descobrimos junto com ele, estrangeiros como ele. É comum haver, portanto, alguma espécie de personagem guia que se encarregará de apresentar aquele novo mundo ao personagem visitante. Grandes exemplos, como já mencionados, são The Chronicles of Narnia, His Dark Materials e Coraline. O contrário, alguém do Mundo Secundário se transportando para o Primário, é raro e, de qualquer modo, é muito mais provável que se manifeste como Baixa Fantasia (em que a magia é intrusa e estranha) do que Alta Fantasia de portal. A terceira variação é o mundo-dentro-do-mundo. Aqui não há mundos separados ou portais. O mundo secundário reside dentro do primário. Normalmente, o mundo secundário tem algum tipo de fronteiras físicas dentro do mundo. Dentro dos limites dessas fronteiras, eventos podem ocorrer que não podem ocorrer em outro lugar BOYER; TYMN; ZAHORSKI apud OPHEIM, 2010, (p. 11, tradução nossa19).

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No original: In the second alternative, the primary world is not ignored. Here we find a relationship between the primary world and the secondary world. An important hallmark for this kind of high fantasy is the portals used to travel from one world to another. The most known portal is a closet made from a tree originated in a different world, Narnia. However, tornados, magical knives, rabbit holes and strange doors, can also function as portals to strange worlds. 19 No original: The third variety is the world-within-the-world. Here there are no separate worlds or portals. The secondary worlds reside inside the primary world. Usually the secondary world has some sort of physical boundaries within the world. Within these boundaries events can happen which can not happened elsewhere.

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Esta, finalmente, é a categoria que mais nos interessa. Aqui os dois mundos coexistem, não de forma separada, mas mesclada, seus limites são difusos. Existem dois lados do mesmo mundo, a realidade comum como a conhecemos, o Mundo Primário, e a realidade sobrenatural, o Mundo Secundário. Os habitantes do Primário são ignorantes sobre a existência do Secundário, dele não sabem e desconhecem a magia. Mas os habitantes do Secundário, dotados do fator fantástico, sabem do Primário e dele se escondem e o evitam. Este é exatamente o caso da série Harry Potter, em que bruxos e trouxas20 coexistem na mesma realidade, mas em ambientes separados. Os bruxos sabem da existência dos trouxas, mas deles se escondem e seus ambientes evitam. Eles procuram viver entre os próprios bruxos, frequentam lugares que apenas bruxos têm acesso, e se cercam de diversos feitiços que afastam os trouxas ou os impedem de enxergá-los. As fronteiras entre os dois mundos nesse tipo de Fantasia podem ser tanto físicas quanto de percepção. As físicas separam de forma bem demarcada o ambiente primário do secundário, comportando-se de forma muito parecida com um portal; como podemos ver, por exemplo, na cena da plataforma 9 ¾ em Harry Potter e a Pedra Filosofal (ROWLING, 2000a, p. 80-85). Para chegar a Hogwarts, sua escola de magia, Harry deve pegar um trem na plataforma 9 ¾ da estação King’s Cross, em Londres. Aparentemente, isso não é possível, já que existem apenas plataformas de números inteiros e não há nada entre as plataformas 9 e 10 que não seja uma coluna de tijolos. Mas Harry logo descobre que para ter acesso à tal plataforma bruxa ele deve se dirigir à barreira entre as plataformas 9 e 10 e atravessá-la: do outro lado estará o trem que o levará à escola. Existe assim uma divisão clara entre as plataformas do Mundo Primário, as de número inteiro, acessíveis a qualquer pessoa; e a do Mundo Secundário, escondida atrás de uma coluna sólida, acessível apenas àqueles dotados de magia. As fronteiras de percepção, por sua vez, não separam os mundos fisicamente, mas impedem que os habitantes do Primário enxerguem os elementos do Secundário que estão entre eles. Em Pedra Filosofal (p. 62-63), Hagrid leva Harry ao Caldeirão Furado, um pub exclusivo para bruxos localizado em uma rua qualquer de Londres. De início, Harry não percebe a existência do pub, e só passa a vê-lo quando Hagrid aponta para o bar. Em seguida, o jovem bruxo observa que as pessoas comuns nem olhavam para o lugar, seus olhos corriam da livraria ao lado direto para a loja de discos do outro, como se o pub não estivesse ali. Muitas construções bruxas no decorrer da série são apresentadas como invisíveis a olhos trouxas, como o Largo

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Como as pessoas não bruxas são chamadas na série.

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Grimmauld nº 12 (ROWLING, 2003), ou a casa dos Potter (ROWLING, 2007), permitindo que apenas seres do Mundo Secundário, dotados de magia, interajam com essas localizações. O mundo bruxo (Secundário), escondido dentro do mundo trouxa (Primário), que não pode ser percebido pelos habitantes deste, deve ser considerado um Mundo Secundário porque possui consistência e coerência própria. Nele a magia é natural e integrante da realidade, ela é comum a seus habitantes, os quais não se impressionam com ela. Essa magia é levada a sério e faz parte de um sistema de lei e regras, com um horizonte próprio do que é possível e o que é impossível para ela. Prova principal disso é que não são todos que a possuem, e os que o fazem devem ser treinados e estudá-la, fim para o qual existe a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts que Harry frequenta. Além disso, uma parte predominante dos eventos da série se passam dentro dos limites desse mundo, em ambientações bruxas, povoadas por personagens bruxos. As passagens pelo mundo trouxa são poucas e somente isto, passagens (normalmente apenas no início de cada livro). As fronteiras foram impostas pelos próprios bruxos que preferem viver de forma separada dos trouxas e possuem leis e hábitos que não permitem que a magia seja praticada fora desses limites. Para os bruxos, a magia deve ser mantida como segredo a todo custo. Embora não recomendável, a magia não está impossibilitada de transbordar essas fronteiras, como podemos ver no assassinato de uma família trouxa por um bruxo no início de Cálice de Fogo (ROWLING, 2001), ou no ataque de um dementador21 ao primo trouxa de Harry em Ordem da Fênix (2003), ou os diversos ataques de Comensais da Morte22 à sociedade trouxa em Enigma do Príncipe (2005) e Relíquias da Morte (2007). Mas como é perceptível, essas ocasiões são negativas, tratadas na série como sintomas do caos que está tomando o mundo bruxo, isto é, elas não deveriam ocorrer e só ocorrem porque há algo de errado que assola aquela realidade secundária. Ainda não nomeamos este tipo de Alta Fantasia porque, neste ponto, os termos de Mendlesohn (2002) não são satisfatórios. Sua fantasia intrusiva, em que o fantástico interrompe a normalidade da realidade dos personagens, está mais próxima da Baixa Fantasia do que qualquer tipo que se manifeste na Alta, e sua fantasia liminar mais parece com o fantástico de Todorov (2014) e com o gênero do realismo mágico, ideias distantes do que estamos discutindo. Assim, tomaremos nós mesmos a iniciativa de encontrar um termo que melhor se encaixe com

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Criatura das trevas que suga a felicidade das pessoas na série. Como são chamados os seguidores de Lord Voldemort, o vilão da série.

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a terceira variação de Alta Fantasia de Boyer, Tymn e Zahorski (apud OPHEIM, 2010). Como nela o Mundo Secundário está escondido dentro do Primário, existe junto com ele, mas não pode ser percebido ou acessado pelos habitantes dele, chamá-la-emos de fantasia oculta. Harry Potter, portanto, é uma Alta Fantasia oculta. Esperamos, então, já ter respondido à pergunta de parágrafos atrás sobre a possibilidade da Alta Fantasia se situar no Mundo Primário. Ao discutirmos a definição de fantasia oculta, esclarecemos que sim, desde que dentro do Primário exista uma realidade em que a magia seja natural e, portanto, possa ser considerada um Mundo Secundário. Afastamo-nos, assim, da noção de que um Mundo Secundário precise ser separado da nossa realidade, com fronteiras físicas delimitadas; e aceitamos que ele pode existir em comunhão com este mundo, divididos apenas de forma abstrata.

1.3 Do Egito às Américas Uma vez que entendemos do que trata a Fantasia e que tipo de histórias podemos encontrar em suas terras, podemos enfim olhar para trás e perceber de onde vêm essas histórias e o que as alimenta, assim como seu percurso até aqui. Neste tópico, traçaremos um breve histórico do gênero, de modo que possamos compreender melhor sua configuração na atualidade. A literatura de Fantasia, como a entendemos hoje, é bastante recente, um pouco mais de dois séculos de ocorrência; no entanto, muitos dos elementos que identificamos como fantásticos atualmente permeiam boa parte das histórias do mundo desde o início da literatura e até mesmo desde antes dela. Brian Stableford (2009) conta que a Fantasia, “apesar de ser o gênero literário mais recente a ganhar um lugar no mercado, é também o gênero mais antigo a ser facilmente identificável” (p. 38, tradução nossa23). Ele explica que o contar histórias24 é mais antigo que a literatura e que a maioria dessas histórias, de diversas culturas, segundo as observações antropológicas em que ele se baseia, tinham elementos fantásticos e sobrenaturais. Como elas eram predominantes, foram essas histórias que serviram de base para a cultura literária quando a escrita foi desenvolvida pelos povos. Por isso, Stableford acredita que a “literatura de fantasia

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No original: although it is the most recent genre of literature to acquire a marketing label, it is also the most ancient genre that is readily identifiable. 24 No original: storytelling.

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é tão antiga quanto a literatura em si, e seus elementos fantásticos ainda mais antigos” (p. 44, tradução nossa25). Muitos textos antigos, épicos gregos e romanos, romances medievais, lendas e mitos, utilizavam traços que encontramos muito comumente em Fantasia: criaturas sobrenaturais, feitiçaria, transformações mágicas, deuses, heróis etc. Segundo Matthews (apud OPHEIM, 2010, p. 12), o exemplo mais antigo em que se pode identificar Fantasia é um pergaminho do Egito Antigo (cerca de 2000 A.C.) chamado The Tale of the Shipwrecked Sailor26. Nele um navegante que sofre um naufrágio chega a uma ilha encantada, encontra-se com um gênio, enfrenta uma serpente monstruosa e enfim foge, retornando para o Egito como um homem mais sábio. Outros (JAMES; MENDLESOHN, 2012) afirmam que Epic of Gilgamesh (cerca de 2100 A.C.), um épico da Mesopotâmia, e a Odisseia de Homero (século 8 A.C.), um épico grego, são os mais antigos. O primeiro é a jornada de um rei, Gilgamesh, e seu melhor amigo, Ekkindu, contra monstros e deuses e, depois da morte de Ekkinduh, a viagem de Gilgamesh em busca do segredo da vida eterna. É neste épico que se encontra uma das primeiras menções ao tão difundido mito da Grande Inundação. Em Odisseia, acompanhamos Odisseu em sua jornada de retorno a casa, após a Guerra de Troia (contada em outro épico de Homero, Ilíada). No caminho, Odisseu enfrenta sereias, feiticeiras, ciclopes, entre outros seres mitológicos, também chegando a seu destino como um homem mais experiente. A diferença entre esses textos e a Fantasia que lemos hoje é que, na época, eles eram vistos como reais, imbuídos dos mitos e das lendas de seus povos, os quais eram sua forma de explicar o funcionamento do mundo e, por vezes, sua religião. Tais deuses e criaturas eram acreditados como reais e, inclusive, louvados ou temidos. Era comum o repasse, de geração a geração, de histórias sobre esses seres, de como eles influenciavam na vida e cotidiano humano, lendas de heróis que exerciam grandes feitos em seus nomes ou de tolos que os desafiavam e enfureciam. Esses mitos e lendas antigos, assim como os folclores, ainda possuem grande influência na Fantasia Moderna. Eles fazem parte do que Clute e Grant (1999) chamam de taproot texts, textos raízes; obras que são anteriores à consolidação da Fantasia, no final do século 18, mas 25

No original: Fantasy literature is as old as literature itself and that its elements of fantasy are much older. 26 O Conto do Náufrago, em tradução livre.

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que apresentam elementos fantásticos e tiveram grande importância para o gênero. Assim, podemos considerar os taproot texts como os primeiros ingredientes a serem despojados e misturados no Caldeirão de Histórias, o nome dado por Tolkien (1947) ao coletivo de histórias que os autores de Fantasia – os fantasistas – usam como fontes de influência, reciclagem e inspiração, as quais mesclam com suas respectivas invenções. A mitologia greco-romana, nórdica, celta, egípcia, assim como as lendas arthurianas, alexandrinas, de Carlos Magno, árabes, japonesas, chinesas, e, mais recentemente, indígenas e aborígenes se consolidaram como grandes cânones da Fantasia. Outros taproot texts que ganharam grande importância no Caldeirão de Histórias e para a Fantasia Moderna são os contos de fadas – transformações literárias de lendas/histórias folclóricas. Folclore vem do inglês folklore, conhecimento do povo (folk, povo; lore, conhecimento); para Clute e Grant (1999) é a “testada e confiável sabedoria acumulada de gerações” (p. 1, tradução nossa27), nem sempre correta, mais ainda assim acreditada. É o conjunto de anedotas, lendas, ditados, provérbios, superstições, rimas e canções típicas de um povo ou região. Esse folclore é passado informalmente, pela tradição oral, através das gerações. Os elementos do folclore que possuem estrutura narrativa são os folktales, contos populares, histórias/lendas folclóricas. Quando um folktale é transformado em literatura, podado e embelezado de forma artística, ele se torna um conto de fadas. “O conto em que Cinderela se baseia, por exemplo, foi identificado em quase 700 versões espalhadas por mais de 1000 anos” (p. 1, tradução nossa28). O termo contos de fadas surgiu com Madame d’Aulnoy, que intitulou sua coletânea literária de folktales franceses adaptados como Les contes de Fées (1699-1697, vol. 1-3). Embora pouco conhecidos hoje, seus contos foram muito influentes em seus tempos e foram os precursores de muitos dos arquétipos e fórmulas usadas pelas histórias fantásticas posteriores – como a madrasta má e o Príncipe Encantado. Charles Perrault também era francês e contemporâneo a d’Aulnoy, mas, diferente dela, seus contos adaptados eram mais curtos, menos satíricos e voltados para crianças – talvez por isso tenham se tornado mais memoráveis. Entre seus contos mais famosos estão A Bela Adormecida, O Gato de Botas, Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul etc. (CLUE; GRANT, 1999).

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No original: The tried and trusted accumulated wisdom of generations. No original: The tale upon which Cinderella is based has been identified in almost 700 versions spread over 1000 years.

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Os contos continuaram a ser amplamente escritos e publicados pela França nos séculos futuros, como no caso da versão original de A Bela e a Fera de Gabrielle-Suzanne de Villeneuve – que, segundo Zipes (apud CLUE; GRANT, 1999), viria a ser o conto de fadas mais conhecido no mundo. Durante o século 19, foi a vez dos românticos29 alemães a se aventurarem pelos reinos das fadas. Dentre eles, são de suma importância, não apenas para a literatura de contos de fadas como para a Fantasia Moderna, os achados dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm – folcloristas e filologistas que reuniram contos populares de diversos folclores em sua obra Die Kinder- und Häusmarchen30 (1812-1815, vol 1-3). De início, eles transcreviam os contos populares o mais literalmente que podiam; mas com o tempo, os dois, sobretudo Wilhelm, passaram a deixar a forma literária dos contos cada vez mais trabalhada, assim como a atenuarem seus temas e formas. Dentre os contos mais famosos atribuídos a eles estão Branca de Neve e os Sete Anões, Rapunzel e João e Maria (CLUE; GRANT, 1999). Os contos de fadas não foram a única contribuição dos românticos para a Fantasia; na realidade, o Romantismo foi um movimento essencial para a consolidação da Fantasia como gênero. Como o movimento surgiu em oposição aos ideais científicos e de racionalização do Iluminismo, as obras românticas estabeleceram um ambiente fértil para as histórias se utilizarem de elementos fantásticos, sobrenaturais e de ocultismo. “No final do século 18, o distanciamento de uma compreensão iminente da religião e do aumento do ceticismo acerca da influência do sobrenatural no mundo [...] abriu espaço para uma aproximação lúdica do fantástico” (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [e-book, p. irreg.], tradução nossa31). Um tipo de literatura que muito se aproveitou dessas condições na época foram os romances góticos do final do século 18 e decorrer do 19. Gradativamente, surgiu um senso de que algo existia abaixo do mundo como ele era delimitado por aqueles no poder. A própria ideia de que o mundo podia ser controlado e compreendido foi subvertida em um modo literário, o Gótico, no qual o mundo da superfície é uma ilusão (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [e-book, p. irr.], tradução nossa32).

A estreia do estilo foi em 1764, com The Castle of Otranto de Horace Walpole – a história de um lorde em sua tentativa desesperada de manter sua linha hereditária, para quebrar

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Autores que faziam parte do movimento literário, artístico e filosófico do Romantismo. Contos Infantis e Domésticos, em tradução livre. 31 No original: By the late eighteenth century, the move away from an imminent understanding of religion and increasing scepticism about the possibility of supernatural influence in the world […] opened a space for a playful approach to the fantastic. 32 No original: Increasingly there was a sense that something existed below the world as it was delineated by those in power. The very idea of a world that could be controlled and understood was subverted into a mode of literature, the Gothic, in which this surface world is a delusion. 30

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a suposta maldição jogada em sua família. Traços comuns a esses tipos de romance são a tragédia, a violência, a tensão entre o real e o sobrenatural, o grotesco, o terror psicológico, os cenários medievais, as personagens melodramáticas e vários outros aspectos que ditaram muito do que seria utilizado futuramente em gêneros e subgêneros como a dark fantasy33, o Terror ou o romance policial. No momento em que esses romances góticos vitorianos realmente lançaram mão de elementos sobrenaturais em suas narrativas foi quando encontramos a Fantasia dando seus primeiros passos como gênero literário, na forma de Fantasia Gótica. Como exemplos do estilo podemos citar Vathek de William Beckford (1786) e The Mysteries of Udolpho de Ann Radcliffe (1794), ou até mesmo Frankestein de Mary Shelley (1818), Northanger Abbey de Jane Austen (1818) e Jane Eyre (1847) e Wuthering Heights (1847) das irmãs Brontë, além de A Christmas Carol (1843) de Charles Dickens, The Legend of Sleepy Hollow (1820) de Washington Irving, Dracula (1897) de Bram Stoker e diversas obras de Edgar Allan Poe (JAMES; MENDLESOHN, 2012). Além de grande percursora do Terror, a Fantasia Gótica se tornou também a grande ancestral do subgênero que conhecemos hoje como fantasia urbana: histórias fantásticas que se passam em grandes centros urbanos, onde a cidade e suas ruas, becos e prédios possuem grande influência na trama. Mas enquanto os romances góticos atingiam seu auge e então declinavam durante o século 19, e a Fantasia Gótica migrava para outro contexto (espalhando suas influências pela Baixa Fantasia, a dark fantasy e a fantasia urbana), outro tipo de fantasia ganhava seu pontapé inicial no final dos anos 1800. “Escritores de fantasia anteriores haviam vestido um manto da crença de que o fantástico poderia ocorrer no nosso mundo, ou haviam providenciado uma estrutura de concha (como um sonho34) para permitir que o leitor viajasse” (JAMES; MENDLESOHN, 2012[e-book, p. irreg.], tradução nossa35). William Morris foi o primeiro a construir um mundo como se ele fosse o único a existir, em The Well at the World’s End (1896), dando início ao subgênero da fantasia imersiva, inspirando muitos grandes fantasistas futuros como Tolkien e C. S. Lewis, além de firmar muitas das estruturas das histórias de grandes jornadas (quest fantasy). Na obra, acompanhamos a jornada de Ralph, príncipe de um pequeno reino chamado Upmeads em um mundo que não é o nosso, em busca do Poço no Fim do Mundo, cuja água pode rejuvenescer e

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Fantasia obscura, em tradução livre. Subgênero da Fantasia conhecido por suas altas doses de terror e suspense. 34 Como em Alice’s Adventures in Wonderland, de Lewis Carrol (1865). 35 No original: Previous fantasy writers had donned a cloak of belief that the fantastic could occur in our world, or had provided a shell structure (such as a dream) to allow the reader to travel.

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prolongar a vida; em um percurso repleto de elementos que, em muito, lembram as baladas medievais com seus amores corteses, cavalheirismos, atos de lealdade e bravura. Como podemos perceber, até o final do século 19, a Fantasia Moderna era feita para adultos e se utilizava predominantemente do medo para se manifestar. Com a chegada do século 20, dois autores mudaram algumas regras do jogo. E. Nesbit foi a primeira a introduzir o sobrenatural no nosso mundo de forma não assustadora (OPHEIM, 2010, p. 14); seus contos eram narrados com uma voz prática: Londres, ou o próprio quintal em plena luz do dia, viravam cenário para os eventos fantásticos. Uma fada poderia ser encontrada em uma caixa de areia no fundo do jardim; mas como fadas de asas diáfanas não sobreviveriam por muito tempo, a evolução [...] produziu algo peludo, que hibernava e tinha um péssimo temperamento antes do café da manhã (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [e-book, p. irreg.], tradução nossa36).

Grande parte de suas obras fantásticas deram prosseguimento a essas condições, como The Phoenix and the Carpet (1904), The Story of the Amulet (1906), e The Magic City (1910). Já L. Frank Baum foi responsável por impulsionar a fantasia de portal com seu The Wonderful Wizard of Oz (1900), o primeiro de uma série. Os exemplos do subgênero até o momento eram escassos e imprecisos acerca de seus Mundos Secundários. Baum apresentou uma fantasia de portal clara, com uma viagem entre os mundos bem evidenciada, e um Mundo Secundário, Oz, bem delimitado, com políticas próprias e, inclusive, mapeado (iniciando a longa tradição de mapas das terras fantásticas presentes em tantas séries de Fantasia). Talvez por estímulo de Nesbit e Baum, os primeiros anos do século 20 produziram uma quantidade considerável de Fantasia infantil de forma bastante inventiva (JAMES; MENDLESOHN, 2012). Em 1911, foi publicado Peter Pan and Wendy (a versão novelizada da peça de 1904, Peter Pan), de J. M. Barrie, sobre o garoto que nunca envelhecia e a Terra do Nunca. Em 1908, Kenneth Grahame lançou The Wind in the Willows, grande clássico inglês da Fantasia de animais. Durante o período da Primeira Guerra Mundial, no entanto, a tendência infantil se atenuou, retornando apenas nos anos 30, com a famosa série de P. L. Travers sobre a babá dotada de poderes mágicos, Mary Poppins. Com a chama reavivada, a Fantasia infantil voltou a ser massivamente publicada durante as últimas décadas da primeira metade do século 20, o que pode ter contribuído para o estigma que se criou ao redor do gênero de que ele seria

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No original: tales are told in a matter-of-fact voice: London, or your back garden in bright daylight, become venues for fantastical occurrences. A fairy can be found in a sandpit at the bottom of the garden; but as fairies with gossamer wings would not survive long, evolution […] has produced some- thing hairy, that hibernates, and has a terrible temper before breakfast.

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exclusivamente infantil e simplório. Estigma que tanto inquietou Tolkien, apesar de ele próprio ter contribuído para o mercado infantil de Fantasia com seu The Hobbit (1937). Por outro lado, “a emergência de algo claramente comercializado para crianças pode ter apoiado o crescimento de uma fantasia com um forte toque adulto” (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [e-book, p. irreg.], tradução nossa37). Também nesta época, foram publicados os romances de Lord Dunsany, como The King of Elfland’s Daughter (1924), e a obra inicial de E. R. Eddison, The Worm of Ouroboros (1922). Foi também a época do surgimento da fantasia cristã, que mesclavam dogmas religiosos aos elementos fantásticos de suas narrativas, como em War in Heaven (1930), de Charles Williame, e a trilogia pré-narniana de C. S. Lewis, iniciada por Out of the Silent Planet (1938). A própria série The Chronicles of Narnia – que se tornou um grande clássico da Fantasia Moderna – é um belo exemplo da fantasia cristã do período, estreando com The Lion, The Witch and the Wardrobe em 1950. Nessa época, “junto com o aumento de romances de fantasia, o crescente mercado de revistas produziu um ambiente para um grande número de escritores de histórias curtas” (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [e-book, p. irreg.], tradução nossa38). Conhecidas como pulp magazines, em referência ao tipo de papel com que eram feitas, essas revistas de ficção sofreram um grande impulso na primeira metade do século 20. “Na década de 1900, histórias de fantasmas eram recorrentes e muito populares em revistas, atraindo contribuições de escritores tão proeminentes como Rudyard Kipling e Conan Doyle” (tradução nossa39). Essa popularidade muito se deve ao aumento de espiritualidade e ocultismo nos primeiros anos pós-guerra, devido ao luto e à melancolia que assolaram a Europa. A primeira pulp magazine especializada em Fantasia foi a The Thrill Book, embora tenha durado apenas seis meses em 1919. Muito mais importante foi a Weird Tales que ainda continuou sendo publicada por mais três décadas. Nela, nomes importantes do gênero iniciaram suas carreiras, como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard e Ray Bradbury. Foi na Weird Tales que E. Howard deu início ao popular subgênero de Fantasia swordand-sorcery40 com suas histórias sobre o herói Conan, o Bárbaro. Inúmeros fantasistas

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No original: The emergence of something clearly marketed for children may have supported the growth of fantasy that had a very adult feel. 38 No original: Alongside the rise of the fantasy novel, the growing magazine Market provided a venue for a number of short-story writers. 39 No original: By the 1900s, ghost stories were staple and highly popular magazine fare, attracting contributions from writers as prominent as Rudyard Kipling and Conan Doyle. 40 Espada-e-feitiçaria, em tradução livre.

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posteriores viriam a imitar suas histórias episódicas de um bravo guerreiro de espada sem poderes mágicos e suas batalhas contra as mais diferentes formas de magia e sobrenatural. Outra de suma importância foi a revista Unknown, que correu entre 1939 e 1943. Seu editor, John W. Campbell, tinha uma visão bastante racionalizada do gênero, claramente por ser ele próprio escritor de Ficção Científica, e sua edição intervencionista transformou o periódico em uma casa de textos fantásticas com altos graus de magia cientificamente explicada, construindo um subgênero conhecido como fantasia científica, ou science fantasy – híbrido dos dois gêneros que lhe dão nome. Durante a era das revistas pulp, que também serviu de grande influência para a disseminação da Ficção Científica, era comum os escritores se locomoverem entre os dois gêneros. Eram recorrentes, inclusive, revistas que publicavam os dois, como Immagination (1950-1958), The Magazine of Fantasy and Science Fiction (1949- ) e Science Fantasy (19501966). A década de 1950, considerada a Era de Ouro da Ficção Científica, foi de pouco prestígio para a Fantasia. Foi também o último período em que era comum para os escritores migrarem entre os gêneros, pois no final dos anos 50 e início dos 60, a Fantasia e a Ficção Científica passaram a ser vistas de forma separada. A década de 1960 foi um período importante para o fortalecimento da Fantasia infantil. Foram os anos de grandes obras como o livro ilustrado Where the Wild Things Are (1963), de Maurice Sendak, e vários dos sucessos de Roald Dahl, como James and the Peach (1961) e Charlie and the Chocolate Factory (1964). Apesar desse fortalecimento ter contribuído bastante para a fama de que Fantasia é para crianças, algo que mantém resquícios até os dias atuais, a popularização dos livros de brochura preparou o cenário para que a Fantasia adulta voltasse a emergir. Embora tenha sido originalmente publicada entre 1954-1955, a trilogia The Lord of the Rings de Tolkien só atingiu índices de sucesso e de vendas realmente altos quando foi republicada em brochura nos EUA, em 1965, pela editora Ballantine Books. Isso tornou a série responsável por muito dos avanços do gênero e das influências sobre o que seria escrito nele posteriormente. O sucesso de sua republicação voltou a atenção da editora para mais brochuras de Fantasia, e, em 1969, foi lançada a série Ballantine Adult Fantasy, na qual muitos clássicos do gênero foram republicados, o que ajudou a estabelecer a ideia de Fantasia como gênero na mente dos leitores. Isso contribuiu para trazer uma atenção crítica séria para as obras ao mesmo tempo em que construía uma história coletiva do gênero (JAMES; MENDLESOHN, 2012).

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Nos anos 70, uma importante tendência foi a migração de escritores de Ficção Científica para obras de Fantasia, como podemos ver na série Earthsea de Ursula K. Le Guin, para a qual ela não se desfez de seus atributos mais científicos na construção do mundo da nova saga e, ainda, estabeleceu um elemento atualmente recorrente do gênero: a relação íntima da magia com a palavra e os nomes. Nessa época, houve também uma ascensão no uso e influência da História nas obras de Fantasia, hábito certamente estimulado por Tolkien, sobretudo quanto à predominância dos ambientes medievais. Outra novidade desse período foi o surgimento dos universos compartilhados, em contrapartida ao universo de copyright; enquanto que no último o autor criava seu próprio mundo e escrevia sua história nele, o primeiro era um mundo criado por alguns, mas cujas histórias eram escritas por terceiros, em uma espécie de fantasia colaborativa, em que diversos autores contribuíam para a série. A estrutura das séries de universos compartilhados seguia muito do que podíamos enxergar em outras séries da época que utilizavam o que James e Mendlesohn (2012) chamam de “mundo teatro41”. Séries longas de histórias episódicas, sem tramas comuns entre os volumes, que apenas se utilizavam daquele mundo como cenário para as aventuras das personagens, que podiam ser as mesmas ou não (as histórias de Conan, o Bárbaro, de E. Howard, são um bom exemplo). A diferença é que nos universos compartilhados as histórias poderiam ser escritas separadamente por diferentes pessoas. O conceito certamente se iniciou com o advento do primeiro grande sistema de jogos de RPG criado em 1974 por Gary Gygax e Dave Arneson, Dungeon & Dragons. Até os anos 70, a Fantasia era bastante unificada como gênero. Mesmo que houvesse diversos tipos de Fantasia, foi só no final da década que a ideia de subgêneros realmente separados e com públicos diferentes pôde ser mais claramente observada. Essa diversificação do gênero só se intensificou ainda mais nas décadas posteriores (JAMES; MENDLESOHN, 2012). Quest fantasies se tornaram dominantes nos anos 80, enquanto que seu subgênero mais familiar, sword-and-sorcery, entrou em declínio. Ainda muito influenciada por Tolkien e Lewis, a quest fantasy se fortaleceu bastante na década de 1990 e continua sendo uma das formas de Fantasia mais recorrentes atualmente. Entre as séries influentes que seguiram esse estilo nos anos 80 podemos citar The Fionovar Tapestry (1984-1986) de Guy Gavriel Kay e The Neverending Story (1983) de Michael Ende; The Wheel of Time (1990-2013), de Robert

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No original: theater world.

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Jordan, e The Sword of Truth (1994- ), de Terry Goodkind, ambas iniciadas na década de 1990; das que começaram nos anos 2000, podemos mencionar Inheritance Cycle (2001-2011) de Christopher Paolini, e Percy Jackson & the Olympians (2005-2009) de Rick Riordan. Os anos 80 viram ainda o nascimento do estilo steampunk42, criado por Tim Power e James Blaylock; uma popularização de obras de fantasia urbana e ainda uma nova ascensão da mitologia do vampiro, principalmente estimulada pela publicação de The Vampire Lestat (1985) e The Queen of the Damned (1988), continuações de Interview with a Vampire (1976) de Anne Rice. Estes, inclusive, foram os percursores do subgênero de romance sobrenatural que viria a se tornar muito popular na Fantasia do começo do século 21. “Na década de 90, o gênero da Fantasia continuou a se diversificar e, apesar de formas antigas terem continuado, elas tomaram novas dimensões” (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [e-book, p. irreg.], tradução nossa43). A fantasia urbana encarou um crescente interesse em ambientações rurais e regionais. Houve uma emergência da dark fantasy e uma separação mais evidente desta do gênero Terror; dando origem inclusive ao tema recorrente do investigador particular sobrenatural. Fantasias medievais continuaram sendo comuns, sobretudo em obras mais realistas e de forte influência histórica, como a série A Song of Ice and Fire (1991- ), de George R. R. Martin. Foi também o período em que foram publicados boa parte dos livros da longa e satírica série Discworld (1983- ), de Terry Pratchett, um dos escritores britânicos mais bem-sucedidos das últimas décadas. Sua série, atualmente com 41 volumes, é carregada de humor, distribuído em paródias e sátiras de muitas obras influentes de Fantasia e das fórmulas e estruturas do gênero, pondo boa parte dessa produção literária em perspectiva. A Fantasia infantil experimentou um grande boom comercial no final do século 20, graças a obras como a trilogia His Dark Materials (1995-2000) de Philip Pullman (bastante polêmica por sua complexidade e densidade que criticam temas fortes, como teologia), mas, sobretudo, à série Harry Potter (1997-2007), de J. K. Rowling, como será melhor evidenciado no capítulo final deste trabalho. Tendo finalizado sua série de estreia apenas em 2007, com o sétimo e último volume de Harry, o contexto literário de Fantasia contemporâneo a Rowling nos anos 2000 é um dos mais férteis de toda a história do gênero. Com um mercado quente e populoso que muito deve às 42

Relacionado à palavra steam, vapor, é um estilo de Fantasia em que há uma grande utilização de máquinas à vapor para compor uma tecnologia contraditoriamente avançada e, geralmente, ambientada na Era Vitoriana. 43 No original: In the 1990s the fantasy genre continued to diversify and although older forms continued, they took on new dimensions.

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dimensões mundiais alcançadas pela saga de Rowling, a Fantasia finalmente deixou de vez as margens literárias para se firmar de forma efetiva no centro da produção cultural contemporânea. Muito se deve também à indústria cinematográfica (que nunca foi tão produtiva em adaptar obras literárias, sobretudo de Fantasia e Ficção Científica, como hoje), assim como à indústria dos games e à internet. Hoje, o segmento infantil e young adult44 do gênero são os mais fortalecidos, incluindo um crescimento na produção de dark fantasy voltada para esses grupos. O romance sobrenatural se tornou bastante popular, sobretudo envolvendo as mitologias do vampiro e do lobisomem, após a série Twilight (2005-2008) de Stephanie Meyer. As várias séries mitológicas de Rick Riordan (Percy Jackson, The Heroes of Olympus, The Kane Chronicles etc.) reacenderam o interesse infantil por mitologias antigas e História. Boa parte da produção infanto-juvenil atual se utiliza da fórmula de livro do aprendiz, em que a trama se desenvolve ao redor da educação ou treinamento do protagonista, como The Keys to the Kingdom (2003-2010) de Garth Nix, e The Last Apprentice (2004-2014) de Joseph Delaney. No segmento adulto, um movimento importante foi o New Weird que se iniciou no Reino Unido e no qual os escritores buscavam subverter as antigas fórmulas do gênero, esfumando as fronteiras com gêneros vizinhos, como a Ficção Científica e o Terror, e se utilizando de ambientações mais realistas. Nele podemos exemplificar, principalmente, as obras de China Miéville e Mary Gentle, assim como o comercialmente bem-sucedido Jonathan Strange & Mr. Norrel (2004) de Susanna Clarke. Hoje, “o gênero continua a lidar com questões que nos preocupam enquanto sociedade atualmente e continua a se inspirar em antigas fantasias, mitos e contos de fadas, mas, ao mesmo tempo, encontra inspiração para fazer algo novo” (OPHEIM, p. 16, 2010, tradução nossa 45). Assim, é provável que ele “continue a crescer e a se diversificar como tem feito nas últimas três décadas. Mudanças no marketing, o crescimento das oportunidades dos leitores em comprarem os livros que querem em vez dos que as livrarias vendem [...] mudaram sua dinâmica” (JAMES; MENDLESOHN, 2012, [ebook, p. irreg.], tradução nossa46).

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Jovem adulto, em tradução livre. Segmento literário voltado para adolescentes e jovens no início da idade adulta. 45 No original: The genre continues to address things that concern us in society today, and continuing to be inspired by the old fantasies, myths and fairy tales, but at the same time also finds inspiration to make something new. 46 No original: continue to grow and to diversify as it has done for the last three decades. Changes in marketing, the growing opportunities for readers to buy the books they want rather than the books which book shops sell […] have changed the dynamic of the field.

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A Fantasia nunca foi tão produzida, publicada e comercializada como atualmente, assim como nunca esteve tão integrada na cultura popular. Esse grande sucesso comercial e popularização, inclusive, são os responsáveis pelo preconceito que o gênero ainda sofre nos ambientes acadêmicos, onde ainda é confundido com uma literatura de menor qualidade e merecedora de menor atenção. Esta, obviamente, não é a posição que partilhamos nesse trabalho, mas a qual desejamos desestimular. Com esse breve histórico, tencionamos evidenciar o longo percurso que o gênero tomou até se tornar o que é hoje, e também demonstrar sua antiguidade e relevância cultural. Grandes nomes da literatura que, normalmente, não são vistos como integrantes do gênero, estão, na realidade, ligados à Fantasia. Seus inúmeros modos, subgêneros e categorias mostram que a diversidade e a versatilidade são suas características chave. A seguir, falaremos de como esse gênero, ao mesmo tempo tão recente e tão antigo, ao mesmo tempo tão fantástico e tão realista, pode se revelar muito útil para comentar, criticar e discutir a realidade que nos cerca.

1.4 De dentro da vitrine Não existe qualquer Fantasia que não tenha a realidade como o solo que sustenta suas pernas. Não seríamos jamais capazes de entender as irrealidades e impossibilidades da Fantasia sem, antes, sabermos exatamente o que é possível e real no nosso mundo. Assim, a Fantasia sempre se desenvolverá em referência à realidade, seja no que a ela se assemelha ou se diferencia. O real, no fim das contas, é um dos elementos essenciais do gênero. “Os mundos fantásticos – talvez paradoxalmente – são definidos por nós e são de interesse para nós pela virtude de sua relação com o mundo real que imaginamos ter sido pensado como normal quando a história foi composta” (RABKIN, 1979, p. 4, tradução nossa47). Ou seja, nós os chamamos de fantásticos porque somos capazes de identificar de que forma eles entram em desacordo com o mundo que entendemos como real. Ao contrário da literatura mimética, que busca imitar a realidade o mais fielmente possível, a literatura de Fantasia busca se afastar dela. No entanto, esse afastamento pode se dar das mais variadas formas e com as mais variadas intenções.

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No original: Fantastic worlds – perhaps paradoxically – are defined for us and are of interest to us by virtue of their relationship with the real world we imagine to have been thought normal when the story was composed.

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“O dragão é uma dramatização fantástica de um problema do mundo real” (p. 4, tradução nossa48), exemplifica Eric S. Rabkin (1979) quando conta que dragões desgovernados atacando fazendas podiam representar problemas de fertilidade e colheita. Para ele, a viagem no tempo, por exemplo, pode servir para levar nossa consciência para um tempo onde algo do nosso mundo está grosseiramente exagerado e, assim, pôr o problema em perspectiva. A cura para a morte, de forma semelhante, é de interesse dramático para nós apenas porque realmente percebemos a morte como um problema significativo no mundo real [...]. Ser permitido um mundo em que possamos contemplar a solução ao problema da mortalidade pode ser satisfatório, excitante, ou – dependendo do tratamento – aterrorizante (RABKIN, 1979, p. 5, tradução nossa49).

Muitos questionamentos preocupam a humanidade desde os tempos mais antigos – como o mundo surgiu, por que existimos, por que morremos e se existe vida após a morte são alguns deles. No mundo antigo, a mitologia era a responsável em explicar essas questões e apaziguar os indagadores. Mais tarde foi o folclore que tomou conta delas para entreter os povos. E, mais recentemente, os contos de fadas também passaram a respondê-las, maravilhando e educando os mais novos (RABKIN, 1979, p. 5). A tentativa de explicar os fenômenos do mundo – antes de forma literal com os mitos, hoje de forma simbólica – nunca abandonou a Fantasia. Esse conceito, como vimos no início do capítulo, vive na própria origem grega da palavra (luz, tornar visível, revelar), e as raízes que o gênero possui fincadas na mitologia, além do próprio hábito dele de recontar e referenciar essas histórias, o que fortaleceu ainda mais esse aspecto. O mito do Cupido, por exemplo, personifica o amor na forma de um deus romano (Eros, em sua versão grega). Um garotinho alado detentor de um arco e flecha que “envenena” seus alvos com uma paixão avassaladora quando os atinge. Na época, era a forma pela qual explicavam as paixões repentinas e os atos tolos que os apaixonados cometiam em nome do amor – eles haviam sido vítimas de Cupido. Hoje o mito persiste. Não tomamos mais a existência de Cupido como verdadeira, mas sua simbologia ainda faz parte da nossa cultura. É mais fácil para nós entendermos o amor como traiçoeiro, cego e irracional se o enxergarmos como uma força externa a nós mesmos (uma poção de amor, um feitiço de bruxa, uma flecha de Cupido) do que como uma emoção nascida

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No original: The dragon is a fantastic dramatization of a real-world problem. No original: The cure for death, in a similar way, is of dramatic interest for us only because we do perceive death as a significant problem in the real world […]. To be allowed a world in which we can contemplate the solution of the problem of mortality may be satisfying, exciting, or – depending upon the treatment – terrifying.

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dentro de nós. Assim, o mito se torna uma ferramenta para refletirmos e criticarmos esse sentimento humano, mesmo que não acreditemos no tal deus. Esse é apenas um exemplo dos inúmeros que as mitologias, de variadas culturas, fornecem-nos. O folclore e os contos de fadas se relacionam com o real em igual instância – João e Maria, por exemplo, pode constituir um aviso para que as crianças não entrem na floresta sozinhas, assim como Chapeuzinho Vermelho pode ser uma lição sobre as consequências de se dar informações demais a estanhos. Mesmo que na floresta não haja uma bruxa canibal de verdade, e o estranho não seja um lobo faminto, o perigo dessas situações continuam reais e conscientizar os mais novos acerca disso continua importante. De mesmo modo ocorre na Fantasia. Muitos críticos enxergam, por exemplo, uma exaltação à natureza por meio dos elfos de Tolkien e das jornadas de Frodo e companhia em The Lord of the Rings, assim como uma crítica ao industrialismo na forma das terras negras de Mordor, território do vilão da série, Sauron (JEFFRIES, 2014). Enquanto que a fantasia é tradicionalmente vista como um gênero escapista, ela é um gênero excelente para se observar questões políticas e sociais. Dentre outras coisas, ela pode desestabilizar as ideias do público sobre como as coisas deveriam ser, pode se utilizar de metáforas e alegorias para lidar com problemas da vida real, pode imaginar um mundo do zero em que pobreza, racismo ou machismo tenham sido eliminados e visualizar como esse mundo se parece (NOW NOVEL, [2015?], tradução nossa50).

A série Worldbreaker Saga (2014- ), da estadunidense Kameron Hurley, impressionou em seu ano de estreia com seu Mundo Secundário de papéis de gêneros invertidos. O mundo da série é matriarcal, mulheres governam as políticas dos reinos e povoam seus exércitos. Homens são calados por terem opiniões vistas como tolas e mantidos dentro de casa para sua proteção. A linha de sucessão é formalmente baseada no mérito, mas apenas mulheres se tornaram líderes até aquele momento da história. Personagens mulheres complexas e a violência feminina sendo retratada como poucas vezes foi na literatura. Ao se deparar com uma configuração social tão claramente oposta à que temos, o leitor é instigado, de forma muito eficaz, a questionar os papéis de gênero que ele conhece. As viagens entre mundos, a magia colhida a partir dos astros e as plantas sencientes que habitam aquele universo não prejudicam a relevância da discussão.

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No original: While fantasy is traditionally viewed as an escapist genre, it is also an excellent genre for looking at social and political issues. Among other things, it can destabilise an audience’s ideas about how things should be, it can use metaphor and allegory to tackle real-life issues, and it can imagine a world from the ground up in which poverty, racism or sexism has been eliminated and see what that world can look like.

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Cassandra Clare, por sua vez, tem sido bastante aclamada pela forma natural com que aborda personagens de sexualidades não-heteronormativas em suas séries young adult sobre os Caçadores das Sombras – The Mortal Instruments (2007-2014); The Infernal Devices (20102013); The Dark Artifices (2016- ); e mais outras por vir. Magnus, a exemplo, é um feiticeiro poderoso e muito respeitado em Nova York. Ele é um personagem crucial para várias das tramas dos livros, sendo responsável por salvar os protagonistas em muitos momentos, e que acontece de ser bissexual. Por ser imortal, inclusive, temos acesso a informações de vários de seus antigos relacionamentos através dos séculos, ora com homens, ora com mulheres. O relacionamento atual do feiticeiro, com o Caçador das Sombras Alec, é um dos mais populares entre os fãs da autora, talvez até mesmo mais que o casal principal. Outro ponto interessante do mundo de Cassandra é o fato de as fadas serem predominantemente bissexuais. Sendo elas de uma espécie que vive em comunhão com a natureza, elas vão de encontro ao tabu social de que sexualidades não-heteronormativas não são naturais e devam ser combatidas. A representatividade, sobretudo com o público jovem, é importante para o leitor que se identifica com esses personagens, e a naturalidade do tema é construtiva para os outros desmistificarem os conceitos que já possuem acerca dele. Questões essas que não são ofuscadas pelas batalhas com demônios e as tatuagens mágicas da série, mas que as complementam e aprofundam. As situações citadas são exemplos de problemas reais que estão em discussão na atualidade. O fato de eles estarem sendo retratados em obras de Fantasia não os tornam menos reais nessas obras e estarem ocorrendo em mundos completamente separados do nosso ou em versões alternativas dele não os deixa menos relevantes. Na realidade, a magia que os envolve tem o potencial de nos fazer olhar para eles por uma perspectiva diferenciada e, talvez, chegar a conclusões a que não chegaríamos em circunstâncias normais. “Por que você vai embora? Para que você possa voltar. Para que você possa enxergar o lugar do qual veio com novos olhos e cores extras” (PRATCHETT, 2004, p. 307, tradução nossa51), diz Pratchett em um de seus livros situados em Discworld. Na história, a citação se refere ao retorno da personagem a seu lugar de origem, mas aqui podemos utilizá-la para falar de Fantasia. Ir embora seria mergulhar em um mundo fantástico de uma obra do gênero e retornar seria voltar para o mundo real, fora do livro. Nesses termos, não retornamos como se

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No original: Why do you go away? So that you can come back. So that you can see the place you came from with new eyes and extra colours.

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nunca tivéssemos saído, mas carregados de novas experiências, pois vimos outros mundos, nos quais outras coisas são possíveis, e isso nos deu perspectiva de como o nosso poderia ser diferente. Vimos os nossos mesmos problemas pintados em molduras distintas, ocorrendo com outras pessoas, outros seres, em outros reinos e, de repente, damo-nos conta das reais dimensões de tais problemas. Assim funciona a Fantasia. A esse efeito, Tolkien chamou de recuperação. “Recuperação [...] é uma reconquista – a reconquista da visão esclarecida” (TOLKIEN, 1947, p. 19, tradução nossa52). Como no ato de limpar a janela para que o outro lado possa ser observado livre do embaçado da banalidade e da familiaridade (p. 19). Ele explica que as coisas que nos são familiares são apropriadas por nós e, com o tempo, se tornam banais, de modo que deixamos de notar suas singularidades. A Fantasia teria o efeito de reverter essa apropriação, trazendo a singularidade uma vez mais à tona. O autor usa o exemplo curioso da palavra fantástica Mooreeffoc, alcunhada por G. K. Chesterton. Por mais estranha que pareça, ela na realidade é bastante comum e pode ser encontrada em muitos lugares da Inglaterra. É coffeeroom (cafeteria) vista do lado de dentro do recinto, através da porta de vidro ou vitrine que leva o letreiro. Chesterton a concebeu para falar da estranheza das coisas que se tornaram banais, quando vistas de um novo ângulo. Tal como a recuperação proporcionada pela Fantasia. Se pararmos para olhar o nosso objeto de estudo mais de perto em busca dessa recuperação, não sairemos insatisfeitos, pois muitas são as metáforas e alegorias presentes em Harry Potter que tentam conscientizar o leitor de problemas da vida real. À primeira vista, Harry pode parecer apenas um garoto bruxo cujos pais foram destruídos por um bruxo das trevas e que é maltratado pela família não mágica que esconde dele seu real poder. Mas, se observarmos de forma mais atenta e sem deixar a parte fantástica ofuscar o restante, podemos facilmente perceber que é a história de um órfão que perdeu os pais de forma trágica e tem sido vítima do sistema adotivo, que o inseriu em um ambiente familiar hostil que ignora e menospreza seu potencial. Os dementadores, em outro exemplo, são criaturas que aparecem no terceiro livro da saga, como guardas da prisão dos bruxos. Seres fantasmagóricos envolvidos por um manto negro, eles se alimentam da felicidade das pessoas, trazendo névoa e uma atmosfera de desolação quando se aproximam. Em uma entrevista para a jornalista do The Times UK, Ann Treneman (2000), Rowling confirmou que os dementadores são a descrição da depressão:

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No original: Recovery [...] is a regaining – regaining of a clear view.

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Sim. É exatamente isso que eles são. [...] E foi inteiramente consciente. E inteiramente vindo da minha própria experiência. Depressão é a coisa mais desagradável que já experienciei. [...] É a incapacidade de visualizar que você algum dia vai ser feliz de novo. A falta de esperança. Aquela sensação entorpecida, que é tão diferente de se sentir triste. Tristeza machuca, mas é saudável. É algo necessário de se sentir. Depressão é bem diferente (ROWLING apud TRENEMAN, 2000, p. 1, tradução nossa53).

Na história, a forma de se combater os dementadores é por meio de um feitiço chamado Patrono (do latim patronus, protetor), que para ser realizado é necessário visualizar uma lembrança de extrema felicidade. São as memórias felizes que têm o potencial de proteger a vítima de depressão. E as circunstâncias fantásticas conectadas a dilemas reais da série não param por aí. Em sua plataforma de conteúdo relacionado à série, Pottermore, Rowling ([2014], p. 16) revelou que a condição da licantropia de Lupin54 é uma metáfora para doenças que carregam estigmas sociais consigo, como a AIDS. O fato de o professor ser um lobisomem raramente é retratado como um ponto forte no decorrer dos livros, mas como uma doença grave e socialmente não aceita, o que cria uma série de analogias com situações reais de portadores de HIV e outras doenças estigmatizadas. Como exemplos podemos citar o fato de ele tomar poções mensais para se tratar e faltar muitas aulas por estar debilitado demais, assim como ele esconder sua condição dos outros e se demitir quando é exposto, tendo, mais tarde, dificuldade em conseguir um novo emprego. Igualmente, ele fica relutante em se relacionar com Tonks55, por não se achar digno, e se desespera quando ela engravida, com receio de passar sua condição para o filho. De todas as questões sociais abordadas por Rowling, uma se faz mais importante para este trabalho: a influência dos meios de comunicação de massa bruxos sobre a sociedade bruxa do mundo de Harry Potter. Rowling é eficaz em sua crítica midiática na forma dos jornais, revistas e rádios bruxos. Estudar exatamente esse aspecto da série é o objetivo principal desse trabalho. Mas antes de observarmos de que modo isso acontece nos sete volumes, o que faremos apenas no capítulo final, faz-se necessário discutir mais a fundo os fenômenos da comunicação e da comunicação de massa.

No original: Yes. That is exactly what they are. […] It was entirely conscious. And entirely from my own experience. Depression is the most unpleasant thing I have ever experienced. […] It is that absence of being able to envisage that you will ever be cheerful again. The absence of hope. That very deadened feeling, which is so very different from feeling sad. Sad hurts but it's a healthy feeling. It's a necessary thing to feel. Depression is very different. 54 Personagem apresentado no terceiro livro da série, professor de Defesa Contra as Artes das Trevas de Hogwarts que, como é revelado mais trade, sofre por ser lobisomem. 55 Bruxa auror que nos é apresentada no quinto livro e que se apaixona por Lupin. 53

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2 Accio!56 O Feitiço da Comunicação

2.1 Ensinando a caçar Comunicação, sem surpresas, é o ato ou processo de comunicar. Explicar no que consiste esse ato, no entanto, exige um pouco mais de esforço. Comunicar-se é tão natural para o ser humano que entrou naquela categoria (da qual falamos no capítulo anterior) de coisas que, de tão familiares, são apropriadas por nós e, assim, deixamos de percebê-las. As pessoas se comunicam tanto e o tempo inteiro que, na maior parte dele, fazem-no de forma inconsciente e automática. Em uma verdadeiramente pequena parte do tempo que gastamos nos comunicando, temos em mente que é isto que estamos fazendo. Nosso objetivo mais importante é sempre terminar de contar uma história ou de ouvi-la, e não refletir sobre o processo que está permitindo que a contemos ou ouçamos. Por isso pode se mostrar desafiador para as pessoas, no dia a dia, explicar o que é esse ato de se comunicar, é possível que elas nunca tenham parado para pensar nisso antes. Isso acontece porque nós nascemos sabendo nos comunicar, e, em algum momento enquanto crescemos, simplesmente percebemos que aquilo que estávamos fazendo se chamava comunicação. Pronto. Aprendemos uma nova palavra e a como usá-la. Em nenhum momento foi preciso traduzi-la em outras palavras que a explicassem, o que torna fazê-lo, quando é chegado o momento, bem mais difícil. Assim ocorre com a maioria das coisas que nascemos fazendo, como viver e pensar. Claro, ninguém nasce falando. Mas todos nascemos chorando e fazendo variados tipos de sons e expressões faciais, assim como reagindo a todos os estímulos sensoriais que estamos recebendo do mundo. Enviamos e recebemos sinais desde o primeiro instante. Até o momento, ainda não paramos para tentar explicar o que é comunicação e, ainda assim, não houve dificuldade de entender do que estamos falando quando utilizamos a palavra. Porque todo mundo simplesmente sabe. E se todo mundo sabe, para que explicar? É assim que agimos no dia a dia. Mas já que estamos aqui, vamos fazer tal esforço. Quando as pessoas se dispõem a tentar explicar o termo, a forma mais simples à qual chegam, normalmente, é “uma troca de informações entre duas ou mais partes”. Detalhando: é quando alguém envia uma mensagem a outro e essa mensagem é recebida e compreendida. E aqui um ponto chave: só transmitir a mensagem não é suficiente, tão pouco é recebê-la. É 56

Feitiço do universo de Harry Potter utilizado para trazer para próximo objetos que estão distantes.

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preciso compreendê-la, isto é, decodificá-la. Se um brasileiro fala, em português, com um alemão, que não sabe português, é pouco provável que se faça entender e, portanto, a comunicação não vai se realizar. Isso podemos apreender com alguns estudiosos que se esforçaram um tanto mais para explicar esse processo, como o sociólogo E. Diatay de Menezes (1978) que disse que “somente existe comunicação quando há correspondência entre estruturas” (p. 160, grifo do autor). Ou o professor Wilbour Schrimm que, segundo Menezes (1978), explicava que “para que o fato comunicativo se complete, não basta a emissão de uma mensagem codificada, é mister que ela seja recebida e interpretada no destino” (p. 168). O Dicionário Houaiss (2009) também fez tal esforço e podemos encontrar alguns significados para a palavra comunicação em suas entradas. Entre eles: “ação de transmitir uma mensagem e, eventualmente, receber outra em troca”, que confirma o que viemos dizendo até o momento. A origem do termo é do latim communicatio, derivado do verbo communicare – repartir, compartilhar, tornar comum – que, por sua vez, veio de communis – coisa comum, pública, compartilhada por vários (DICIONÁRIO..., 1962, p. 212). E é exatamente isso que faz a comunicação: ela torna uma informação comum entre dois ou mais indivíduos, ela compartilha mensagens entre eles. Outra descrição que encontramos no Dicionário Houaiss (2009) é o sentido estendido de “habilidade de dialogar e se fazer entender; comunicabilidade”. Esse sentido, também pode ser encontrado em comunicativo, “que demonstra habilidade, tendência ou vocação para comunicar(-se); sociável, expansivo”. Aqui, por derivação, comunicação se torna a característica daqueles que têm facilidade de se expressar e se fazer entender, ou que têm o hábito de fazê-lo intensamente; curiosamente, esses são considerados indivíduos mais “sociáveis”, e não é difícil entender por quê. Veremos mais tarde que o ato de se comunicar e o de viver em sociedade estão diretamente ligados. Algumas derivações, por metonímia57, da palavra que estão listadas no dicionário carregam consigo a ideia de “conexão”. Como em “acesso entre duas ou mais coisas distanciadas no espaço” ou em “junção, união, cruzamento entre duas ou mais coisas”. A exemplo, uma porta que liga dois cômodos, uma ponte que liga duas cidades, uma garganta que liga dois vales; o encontro de dois rios, o cruzamento de duas rodovias, etc. Esse deslocamento 57

“figura de retórica que consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semântico normal, por ter uma significação que tenha relação objetiva, de contiguidade, material ou conceitual, com o conteúdo ou o referente ocasionalmente pensado” (DICIONÁRIO..., 2009).

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de sentido vem da própria natureza conectiva que a comunicação possui. Quando dois indivíduos se comunicam, eles estabelecem uma ligação entre si. Esta conexão permite um constante fluxo de informações, nas duas direções, tal como uma estrada que liga duas cidades permite o fluxo de veículos, pessoas e mercadorias entre elas. Tal ligação entre as duas cidades é reproduzida com as cidades vizinhas, dessas com as próximas e assim por diante, criando uma grande rede de transporte, de troca, de comunicação58. O funcionamento em rede, não coincidentemente, também é característico da comunicação. Na verdade, é falso pensar que o processo de comunicação começa nalgum ponto e termina noutro. Em geral toda comunicação está conectada de algum modo com as informações anteriores, assim como se ligará aos atos subsequentes. Na realidade, somos pequenos centros num quadro de distribuição do fluxo permanente da comunicação (MENEZES, 1978, p. 170).

Ou seja, primeiro há o envio da mensagem pelo indivíduo A ao indivíduo B. Então podemos observar ou a resposta de B a A (chamada feedback), ou o repasse dessa mensagem de B a C e D, e depois deles para E, F, G etc. Ao ser repassada, essa mensagem pode se transformar, sendo expandida, reduzida, alterada com comentários e opiniões de cada envolvido, e desse modo se espalhar por essa rede de indivíduos conectados pela comunicação, podendo até mesmo acabar retornando para o indivíduo A em dado momento. É esse comportamento em conexões que permite que emissores e receptores se relacionem socialmente e faz com que, como falamos mais cedo, comunicação e sociabilidade andem de mãos dadas. Menezes (1978), a partir de sua perspectiva sociológica da comunicação, explica que num plano lógico de consideração dos fatos, o processo da comunicação humana poderia ser encarado como fundamento da vida social e não o contrário, conquanto do ponto de vista da natureza ou da estrutura de tais fenômenos os dois se manifestam de forma nitidamente inseparáveis e, mais que isso, interdependentes (p. 147).

O autor nos lembra ainda um fato interessante, comunicação e comunidade são palavras que nasceram da mesma raiz, comunis (p. 152); e, de fato, as duas possuem significados que se suplementam. Também encontramos essa lógica na perspectiva linguística de Souza (1978), que defende que “a comunicação [...] é condição basilar dessa sociabilidade, que pressupõe um 58

O Dicionário Houaiss (2009) destaca que a palavra comunicação também pode ser usada como termo militar para designar o sistema de rotas viárias que permitem deslocamento de um ponto ao outro (conexão, rede); assim como – em sua forma plural, comunicações – também pode significar “o conjunto de meios de transportes existentes” (rede de conexões).

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intercâmbio entre os homens a fim de que seja possível a transmissão, de um para o outro, de experiências, conhecimentos e apelos” (p. 209). O antropólogo João de Souza Brasil (1978) define esse conjunto de experiências, conhecimentos e apelos como cultura, a qual ele também enxerga como interdependente da comunicação, “[...] cultura e comunicação são conceitos complementares, não se constituindo, nem um nem outro, fundamento mas condição para compreensão e existência de cada um” (p. 76, grifo do autor). Podemos concluir, assim, que a vida do ser humano em sociedade só foi possível a partir do momento em que ele pôde se comunicar. Só quando ele se tornou capaz de transmitir seus pensamentos, ideias e sentimentos para o outro e que eles puderam se compreender mutuamente, puderam estabelecer laços e, enfim, organizar-se socialmente. Souza Brasil (1978) explica que em questão de sobrevivência no Reino Animal, o ser humano era consideravelmente mais desprovido pela natureza que o restante. Ele não possuía garras, couraças, chifres, cascos, mandíbulas fortes ou qualquer outro atributo evolutivo que lhe desse proteção e força de ataque suficientes para competir com os outros predadores. Mas algo aconteceu a favor dele, ele ficou de pé. Em pé, o ser humano tornou-se capaz de olhar melhor a sua volta, assim como dispôs dos membros dianteiros livres para manipular o seu entorno (feito simplificado ainda mais pela presença dos polegares opositores, que garantiram precisão a essa manipulação). Agora podíamos não só localizar melhor nossas presas e nos alertar do perigo, mas perceber melhor o que podíamos manipular no ambiente que nos cercava e usar os membros livres para isso59. Podíamos fazer tudo isso enquanto nos locomovíamos, e não alternadamente, como nossos parentes primatas. Uma vez aptos a manipular nossos arredores, não dependíamos mais do código genético para nos adaptar ao ambiente no jogo da evolução; podíamos nós mesmos fazer isso. Se ficasse frio, não precisávamos de uma espessa pelugem ou de várias camadas de tecido adiposo para resistir ao mau tempo, podíamos simplesmente matar um animal e vestir sua pele; e se ficasse quente novamente, apenas despi-la. Não tínhamos garras, mas sabíamos lascar pedras e produzir facas e adagas e, mais tarde, lanças e, finalmente, flechas e assim por diante (SOUZA BRASIL, 1978, p. 78-84).

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Marshall T. Poe (2011), inclusive, defende que nós seres humanos temos um instituto evolutivo para reconhecer padrões e captar anomalias, além de um impulso natural para investigar e resolver problemas (puzzles).

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No entanto, ainda que essa independência genética para nos adaptarmos fosse de grande utilidade do ponto de vista individual, era problemático para a espécie como um todo. Afinal, todas nossas armas e utensílios assim como nosso conhecimento de como produzi-los e utilizálos não seriam hereditariamente repassados para nossas novas gerações. Precisávamos de outro método para garantir que nossa prole e semelhantes também pudessem se adaptar como nós. Assim, transmitir tornou-se importante, e comunicar fez-se essencial. Não tendo herdado geneticamente os seus mecanismos de sobrevivência [...] os humanos precisam aprender a usá-los e, principalmente, confeccionar seus artefatos para fazer jus aos benefícios dos mesmos. E esse aprendizado não prescinde de formas bastante elaboradas de comunicação para permitir aos já sabidos ensinarem aos mais ignorantes (principalmente os das gerações mais novas) as circunstâncias e as técnicas de uso e confecção de artefatos ou formas de conduta componentes do patrimônio de conhecimentos do grupo social (SOUZA BRASIL, 1978, p. 84).

Felizmente, o ser humano dispunha de um aparelho fonador sofisticado que permitia a “fragmentação de tons vocais em pulsações de sons discretos e vibratórios” (p. 85), ou seja, a fala; e de um cérebro com capacidade de processamento de dados altamente superior aos de outros animais, o que permitia a interpretação e elaboração de comunicação simbólica. Outros animais também se comunicam, embora de forma limitada, através de sinais. Sinais são usados para transmitir mensagens imediatas entre eles, como advertência, apelo sexual, fome e afins. Ou seja, mensagens relacionadas ao aqui e agora. A coisas que estão acontecendo nos arredores físicos dos emissores e no momento da emissão (SOUZA BRASIL, 1978, p. 85). A comunicação humana, no entanto, se utiliza de símbolos para transmitir mensagens e, consequentemente, fala de coisas que não precisam estar presentes nem no mesmo espaço ou tempo do ato de emissão. A linguagem simbólica permite referências a pessoas que não estão por perto, a lugares distantes, a eventos passados, a acontecimentos por vir. “A habilidade para simbolizar é considerada atributo unicamente humano” (p. 85). Sendo então capazes de repassar suas descobertas para suas novas gerações e para seus semelhantes (afinal, a vida em bandos e em cooperação era muito fácil na cadeia alimentar) de formas cada vez mais complexas, os humanos acumularam cada vez mais conhecimento de como manipular o ambiente e se tornaram uma espécie cada vez mais dominante. Assim também suas relações interpessoais se tornaram cada vez mais complexas com o desenvolvimento da linguagem, trocando o conceito de bando por sociedade e de cooperação por cultura.

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Por isso, não é difícil concordar com Menezes (1978) quando ele afirma que “só é possível comunicação humana porque o homem vive em sociedade, e esta só se realiza enquanto assenta num sistema de comunicação” (p. 147). Daí a relevância de não apenas entender esse processo (e de ser capaz de traduzi-lo em palavras que o expliquem), mas de estudá-lo com afinco e profundidade, de modo que a humanidade obtenha as ferramentas necessárias para entender melhor seu passado e presente, assim como vislumbrar seus futuros em potencial. A influência da comunicação na sociedade foi de vital importância para seu surgimento e continuou sendo para boa parte das transformações que ela sofreu através dos séculos. De início, o processo comunicacional era estudado exclusivamente por outras áreas, como filosofia, sociologia, linguística e semelhantes. Mas cada uma tinha seu escopo específico e raramente se aprofundavam fora dele. Em dado momento (após 1970, aproximadamente), notou-se a necessidade de um campo especial para que o fenômeno fosse observado e estudado em toda sua complexidade, e assim consolidou-se a Comunicação Social (CALHOUN, 2011, p. 1484). O social do nome não é de se admirar, tendo em vista que o foco do campo é a comunicação humana. A Comunicação Social, então, se solidificou ainda mais nas décadas seguintes, tanto como campo de pesquisa acadêmica quanto campo profissionalizante, formadora de jornalistas, publicitários, agentes de relações públicas, designers, cinegrafistas e afins. Como objeto de estudo, para a Comunicação Social, o processo comunicacional é extenso e complexo. Ele possui elementos, estágios, níveis e tipos. O Dicionário Houaiss (2009) apresenta uma entrada que trata a palavra comunicação como rubrica (termo técnico) da área homônima, descrita como Processo que envolve a transmissão e recepção de mensagens entre uma fonte transmissora e um destinatário receptor, no qual as informações, transmitidas por intermédio de recursos físicos (fala, audição, visão etc.) ou de aparelhos e dispositivos técnicos, são codificadas na fonte e decodificadas no destino com o uso de sistemas convencionais de signos ou símbolos sonoros, escritos, iconográficos, gestuais etc. (p. 1, grifo nosso).

Só com essa definição, já conseguimos ter uma ideia da multiplicidade de elementos envolvidos no processo, todos eles observados e analisados pelo campo da Comunicação Social. Nela já percebemos a existência do emissor (fonte transmissora), do canal (sistema utilizado para codificar/decodificar), do meio (intermédio de recursos físicos/dispositivos técnicos), da mensagem e do receptor (destinatário). Mudanças nas variáveis de cada um desse

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elementos (natureza, quantidade, contexto etc.) definem os variados tipos e níveis de comunicação. Algumas das questões levantadas por esses estudos, por exemplo, são: quem é o emissor da mensagem, com que intenção ele a emite; qual é a mensagem, sua forma, seu conteúdo; de que modo ela é transmitida, por qual meio, por qual canal; qual o sistema de signos utilizados para codificá-la e interpretá-la; quem é o receptor, como ele a recebe, como a interpreta; o que ele faz com a mensagem em seguida: responde ao receptor, compartilha a mensagem, silêncio; e assim por diante. Existem vários modelos de comunicação que adicionam ou retiram elementos ao processo. Um dos mais famosos é o modelo de Lasswell (apud WOLF, 2010, p. 12-17), proposto em 1948. Nele, o cientista político resume o processo em cinco perguntas: Quem? Diz o quê? Por qual canal? A quem? Com que efeito? Ele acreditava que as investigações da comunicação se concentravam em uma ou outra dessas questões, criando, assim, cinco áreas de estudos comunicacionais: a análise de controle (emissor – quem?); a análise de conteúdo (mensagem – diz o quê?); a análise de meios (meio – por qual canal?); a análise de audiência (receptor – a quem?); e a análise de efeitos (com que efeito?). A título de exemplo, podemos aplicá-lo em uma situação comum de comunicação oral. Um brasileiro, em português, pergunta a um alemão, que agora sabe português, “Você fala português? ”, ao que o outro responde “Sim, finalmente aprendi”. Neste caso, teríamos: Quem? O brasileiro; Diz o quê? “Você sabe português?”; Por qual canal? Fala; A quem? Ao alemão; Com que efeito? Estimulando uma resposta, e a recebendo; Algumas coisas, no entanto, não são contempladas pelo modelo de Lasswell. Como o sistema utilizado para decodificar a mensagem, neste caso a linguagem (especificamente a língua portuguesa); o contexto tanto de emissão quanto de recepção (por exemplo, o fato de os dois já terem tido uma experiência anterior em que a comunicação falhou, pelo fato de o alemão ainda não saber português até então. Isso influenciou os efeitos do processo, no caso, a resposta – feedback – do alemão, que fez referência a essa experiência anterior: “finalmente aprendi”). De todo modo, o modelo se manteve estável e influente por boa parte do século 20, impulsionando pesquisas, sobretudo, nas áreas de análise de audiência e dos efeitos. Outra área de grande destaque, e que muito se revela útil para este trabalho, é a análise dos meios.

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Um meio de comunicação, como o próprio nome já faz inferir, é um elemento que se localiza no meio da comunicação, entre o emissor e receptor, intermediando o processo. Por intermediá-lo, tem grande influência no processo de comunicação como um todo, definindo desde o formato da mensagem ao impacto no receptor. Segundo Marshall T. Poe (2011) ele tem, ainda, grande influência sobre as práticas sociais e os valores culturais da sociedade. O primeiro meio de comunicação foi a fala, que se apresenta através da linguagem simbólica, cujas causas e efeitos já discutimos anteriormente neste tópico. O advento da escrita, no entanto, permitiu, de forma mais clara, o reconhecimento de que a comunicação ocorre, ao menos em algum de seus estágios, externamente ao indivíduo, pois havia ali uma prova física de sua existência. A fala, muitas vezes, pode ser confundida com um meio natural de comunicação (embora a linguagem simbólica seja claramente uma invenção humana) por se utilizar de dispositivos naturais, nossos aparelhos fonador e auditivo, a nossa voz.... Mas a escrita era muito mais evidentemente artificial, muito mais facilmente compreendida como um artefato humano. Segundo Poe (2011, p. 62-72), a escrita surgiu pela necessidade do homem de contabilizar os crescentes impostos de seus grupos sociais cada vez maiores. Primeiro totens, então gravações em tábuas de argila, então numerais, enfim numerais abstratos (um símbolo para quantidades maiores que a unidade) e daí todas as unidades simbólicas consequentes: pictogramas, ideogramas, logogramas, silabários e alfabetos. A invenção da escrita teve consequências diversas sobre a humanidade, dentre elas, a historicização desta: com a escrita, nasceu a História. Os grupos sociais cresceram ainda mais, se transformando em grandes centros urbanos, com grandes mercados, grandes governos estatais e grandes polos religiosos. Tudo isso exigiu uma capacidade ainda maior de documentação, estoque e divulgação, criando a necessidade de uma forma de escrita menos trabalhosa. A imprensa foi inventada, e o custo e a escala de reprodução espantosamente alterados. Dentre as várias influências da imprensa sobre a humanidade, houve a alfabetização em massa. Com a imprensa, a habilidade de ler e escrever foi amplamente democratizada. Além disso, com a possibilidade de produzir várias cópias do mesmo texto, e assim várias versões da mesma mensagem, a mensagem impressa obteve um efeito diferenciado do da mensagem falada e escrita. A fala e escrita são meios de ponto-a-ponto (mesmo que possamos falar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, ou mais de uma possa ler o que escrevemos, esse número continua sendo incrivelmente limitado), o que os classifica como meios de comunicação interpessoal (entre pessoas e pessoas). No entanto, a imprensa revelou-

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se um meio de um-ponto-para-vários, isto é, sua mensagem podia atingir uma grande quantidade de receptores simultaneamente; este tipo de meio chamamos de meio de comunicação de massa (entre uma pessoa e uma massa de pessoas). A imprensa foi o primeiro meio de comunicação de massa inventado pelo ser humano. Com a chegada da tecnologia eletrônica, uma variedade de meios de comunicação dos dois tipos se seguiu. Entre os de comunicação interpessoal: o telégrafo, o telefone, o telefone móvel e o smartphone (este último um meio de comunicação híbrida – simultaneamente de massa e interpessoal). Entre os de comunicação de massa: o cinema, a música gravada, o rádio, o vídeo gravado, a televisão, o computador, a Internet e a Web (estes últimos também híbridos). Assim percorremos brevemente a definição do processo de comunicação, seu surgimento, relevância e influência (assim como de sua área científica homônima). No entanto, uma vez que o objetivo deste trabalho é observar as influências dos meios de comunicação de massa sobre a sociedade de Harry Potter, devemos ir além, ou melhor, com maior enfoque. No próximo tópico iremos visualizar alguns conceitos que nos ajudarão a compreender melhor o funcionamento da comunicação de massa e sua influência, a fim de que melhor nos preparemos para realizar o estudo no capítulo final.

2.2 Um por todos Como já adiantamos, a comunicação de massa é aquela efetuada entre apenas um emissor, ou poucos, e uma grande quantidade de receptores simultâneos. Por isso de massa, “multidão ou conjunto numeroso de pessoas” (DICIONÁRIO..., 2009, p. 1). Nas palavras de Denis McQuail (1983), o conceito de massa é relevante para a Comunicação sob o sentido de “produção múltipla ou em massa e o grande tamanho do público atingido pela mídia” (p.35, tradução nossa60). Embora pareça simples posto assim, os estudos sobre a comunicação de massa se deparam com problemáticas diversas, temáticas complexas e uma miríade de elementos e noções que, por sua vez, multiplicam as perspectivas, hipóteses e abordagens das pesquisas nessa área. Mauro Wolf (2010) ilustra bem essa variedade ao dizer que os meios de comunicação de massa constituem, ao mesmo tempo, um setor industrial de máxima relevância, um universo simbólico que é objeto de consumo em grande escala, um investimento tecnológico em contínua expansão, uma experiência individual cotidiana, um terreno de conflito

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No original: multiple or mass production and the large size of the public reached by the media.

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político, um sistema de mediação cultural e agregação social, uma maneira de passar o tempo etc. (p. IX).

Ou seja, podemos assumir diferentes ângulos e tomar diferentes direções quando nos propomos a estudar o tema, afinal se trata de “algo bastante complexo e com vários elementos, que está aberto para análises de pontos de vista alternativos e de acordo com conceitos e métodos contrastantes” (MCQUAIL, 1983, p. 51, tradução nossa61). Como logo se tornará claro, a perspectiva que adotamos para estudar os meios de comunicação de massa neste trabalho é a dos efeitos da mídia, precisamente seu poder de influência, seus efeitos de influência e sua eficácia em influenciar. Mas antes de enveredarmos por essas questões, faz-se necessário esclarecer alguns termos e ideias. O conjunto dos meios que possibilitam a comunicação de massa, isto é, os meios de comunicação de massa, também pode ser referido como ‘mídia de massa’; a palavra mídia é proveniente do plural da palavra ‘meio’ em latim, terminologia também adotada pelo inglês (singular: medium; plural: media). Outra terminologia comum é referir-se ao conjunto de receptores possíveis ou atingidos pela mensagem como ‘audiência’. Denis McQuail, em sua obra Mass Communication Theory: An Introduction (1983), começa seu apanhado de teorias esclarecendo o que ele entende como a instituição da mídia de massa, isto é, seu conjunto de elementos, características e funcionamento. Ele a descreve como um grupo distinto de atividades (envio e recepção de mensagens), realizadas por pessoas exercendo papéis específicos (reguladores, produtores, distribuidores, membros da audiência), de acordo com determinadas regras e entendimentos (leis, códigos e práticas profissionais, expectativas e hábitos da audiência) (p. 33, tradução nossa62).

Assim, a instituição da mídia de massa não se limita ao processo de troca de mensagens, mas abrange todos os indivíduos envolvidos e as regras de conduta que definem seu envolvimento. Influencia no processo comunicacional de massa: os seres reguladores, que decidem o que deve ou não ser transmitido, e o que é permitido ou não de sê-lo, através das leis que eles próprios estabelecem; os seres produtores da mensagem, que produzem essas informações e definem o que será transmitido, dentro daquilo que a lei permite, de acordo com uma conduta profissional compartilhada entre eles; os distribuidores, que se responsabilizam em garantir que a mensagem chegue a esse grande número de receptores em diferentes lugares,

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No original: something very complex and with many elements, which is open to analysis from alternative points of view and according to differing concepts and methods. 62 No original: a distinct set of activities (sending and receiving messages), carried out by people occupying certain roles (regulators, producers, distributors, audience members), according to certain rules and understandings (laws, professional codes and practices, audience expectations and habits).

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que também agem de acordo com uma conduta profissional partilhada; por fim, a audiência, que, por meio de suas expectativas, define que mensagens gostaria de consumir e, através de seus hábitos, as que de fato consome. Desse modo, percebemos que o processo comunicacional da mídia de massa pode ser transformado em várias das suas etapas de realização e que todos os indivíduos participantes têm certo grau de influência sobre ele. Em seguida, McQuail (1983) se ocupa em apresentar os atributos mais importantes dessa instituição (p. 33-34). Antes de tudo, ela é preocupada com a produção e distribuição de conhecimento (informações, ideias, cultura). Em segundo lugar, ela providencia canais que relacionam certas pessoas a certas pessoas, isto é, emissores a receptores, membros da audiência a outros membros dela, todos à sociedade e às suas instituições constituintes. Em terceiro, ele afirma que a mídia opera quase que exclusivamente na esfera pública, ela compreende uma instituição aberta em que todos podem participar como receptores e, sob algumas circunstâncias, até como emissores. Ela também tem caráter público no que concerne ao fato de a mídia de massa lidar com questões em que a opinião pública existe ou pode ser devidamente formada. Mais adiante, ele explica que a participação como membro da audiência é essencialmente voluntária, sem coerção ou obrigação social, mais do que muitas vezes é o caso em outras instituições preocupadas com a distribuição de conhecimento, como educação, religião e política. O quinto atributo que ele menciona é o fato de a mídia estar conectada à indústria e ao mercado por meio de sua dependência no trabalho, na tecnologia e na necessidade por finanças. Finalmente, ele cita que a instituição da mídia de massa está invariavelmente ligada de alguma forma ao poder estatal, por meio de mecanismos legais e ideias legitimadoras que variam de uma sociedade para outra. O que os atributos de McQuail nos mostram é que a mídia de massa se institucionalizou na sociedade como uma fonte de conhecimento, ao lado de outras como família, educação, religião e política. Portanto, é comum as pessoas buscarem a mídia para adquirir informações, sobretudo acerca de assuntos importantes da esfera pública, em que é esperada a existência de uma opinião pública. Isso colocou a mídia em uma posição de intermediadora, de quem proporciona o contato entre algumas pessoas da audiência e outras, assim como entre elas e instituições, contato esse que muitas vezes não é possível dentro da experiência imediata da população. Essa posição garante à mídia um poder considerável de gerenciar essas relações. Isto, somado ao fato de ela ser dependente em determinadas circunstâncias do mercado e do governo, torna-a passível de ser controlada por certos grupos de interesse para que atinjam seus

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objetivos. Felizmente, o caráter de participação voluntária da audiência limita o poder da mídia, já que os receptores têm autonomia para decidir por receber ou não as mensagens e quais, das disponíveis, consumir. Em outro momento, McQuail (1983) define o conceito do conhecimento do qual a mídia é fonte como no sentido mais amplo de grupos de símbolos que possuem uma referência significativa ao mundo da experiência. Esse conhecimento nos permite fazer sentido do mundo, molda nossa percepção dele e contribui para o estoque de conhecimento do passado e para a continuidade do nosso entendimento do presente (p. 51, tradução nossa63, grifo nosso).

Moldar é a palavra-chave nessa descrição, já que nossas relações com pessoas, objetos, organizações e eventos são moldadas pelo conhecimento que adquirimos da mídia. Nós somos capazes de saber relativamente pouco, até mesmo da nossa própria sociedade, através da experiência direta e o nosso contato com o governo e líderes políticos [por exemplo] é amplamente baseado em conhecimentos midiaticamente derivados (p. 52, tradução nossa64).

Como os limites daquilo que podemos entrar em contato direto, dentro na nossa própria experiência, são restritos, e a mídia nos dá a impressão de alargar essas fronteiras, acabamos por nos tornar consideravelmente dependentes dela para saber do que está fora de nosso alcance. Muito do que sabemos dos lugares a que nunca fomos, das pessoas que nunca conhecemos, das organizações com quem nunca lidamos etc. é ditado pela forma com que a mídia os retrata. Fica claro, assim, que a influência da mídia de massa sobre a sociedade, ainda que limitada, existe. Quando falamos de influência da mídia, estamos transpondo os limites da análise dos meios e adentrando a dos efeitos. E que a mídia de massa possui tais efeitos é algo que McQuail (1983) julga incontestável, “Todo o estudo da comunicação de massa se baseia na premissa de que existem efeitos causados pela mídia” (p. 175, tradução nossa65). E ele explica: Nós nos vestimos sob a influência da previsão do tempo, compramos algo por causa de um anúncio publicitário, assistimos a um filme mencionado no jornal, reagimos de incontáveis formas à televisão, ao rádio ou à música. Vivemos em um mundo em que processos políticos e governamentais são 63

No original: in the widest sense of sets of symbols having a meaningful reference to the world of experience. This knowledge enables us to make sense of the world, shapes our perception of it and contributes to the store of knowledge of the past and the continuity of our present understanding. 64 No original: our relationships with persons, objects, organizations and events are shaped by the knowledge that we acquire from media. We can know relatively little from direct experience even of our own society and our contact with government and political leaders is largely based on media-derived knowledge. 65 No original: The entire study pf mass communication is based on the premise that there are effects from the media.

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baseados na suposição de que sabemos o que está acontecendo a partir da imprensa e da televisão ou do rádio. Existem poucas pessoas que não são capazes de rastrear nenhum pedaço de informação ou opinião a uma fonte na mídia e muito dinheiro e esforço são gastos em direcioná-la para atingir tais efeitos (p. 176, tradução nossa66)

No entanto, mesmo que incontestáveis, os efeitos da mídia são limitados, nem sempre previsíveis, e com frequência não intencionais. Para compreender melhor isso, é interessante olhar para a distinção entre efeitos, poder e eficácia feita por McQuail. Ao falarmos de ‘efeitos da mídia’, estamos necessariamente nos referindo ao que já ocorreu como uma consequência direta da comunicação de massa, seja pretendida ou não. A expressão ‘poder da mídia’, por outro lado, refere-se ao potencial para o futuro ou declaração de probabilidade de efeitos, sob determinadas condições. ‘Eficácia da mídia’ é uma asserção acerca da eficiência da mídia em alcançar um dado objetivo e pode ser aplicada ao passado, presente ou futuro, mas sempre denotando intenção (1983, p. 178, grifo do autor, tradução nossa67).

Em outras palavras, a mídia de massa tem o potencial de causar efeitos, e é esse potencial que chamamos de poder da mídia. No entanto, tais efeitos podem ou não ocorrer, devido a uma grande variedade de fatores que facilite ou impeça sua ação, alguns intrínsecos à mídia, outros à audiência ou ao próprio contexto da comunicação. Caso os efeitos ocorram, eles podem estar de acordo com a intenção do emissor ou não, também devido a uma diversidade de fatores, ligados a vários dos estágios da comunicação, que influenciam no processo. Quando os efeitos ocorridos são os pretendidos, a comunicação de massa é considerada eficaz. Para discorrermos melhor sobre as condições e circunstâncias desses processos, vamos dividi-lo em três momentos: Como? A quem? E quais as consequências?

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No original: We dress for the weather under the influence of the weather forecast, buy something because of an advertisement, go to a film mentioned in a newspaper, react in countless ways to television, radio or music. We live in a world where political and governmental processes are based on the assumption that we know what is going on from press and television or radio. There are few people who can trace no piece of information or opinion to a source in the media and much money and effort is spent in directing media to achieve such effects. 67 No original: In speaking of ‘media effects’ we are necessarily referring to what has already occurred as a direct consequence of mass communication, whether intended or not. The expression ‘media power’, on the other hand, refers to a potential for the future or a statement of probability about effects, under given conditions. ‘Media effectiveness’ is a statement about the efficiency of media in achieving a given aim and can apply to past, present of future, but always denoting intention.

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2.2.1 Como a mídia de massa influencia? Um importante conceito que nos confirma a existência do poder de influência da mídia é o da agenda-setting, ou, hipótese do agendamento (sendo agenda a ordem dos assuntos a receberem a atenção de um determinado grupo). A hipótese do agendamento defende que, ainda que a mídia não consiga, na maior parte do tempo, dizer às pessoas o que pensar, ela lhes diz sobre o que pensar. Em consequência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público é ciente ou ignora, dá atenção ou descuida, enfatiza ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir ou excluir dos próprios conhecimentos o que a mídia inclui ou exclui do próprio conteúdo (SHAW apud WOLF, 2010, p. 143).

Assim uma parte considerável dos assuntos discutidos pelas pessoas no cotidiano são coincidentes com aqueles abordados pela mídia. Ainda que as opiniões das pessoas acerca do tema sejam divergentes em relação à da fonte, o tema tende a ser debatido pela audiência. A hipótese de agendamento pressupõe, então, uma transferência da agenda da mídia para a agenda pública; ela enxerga na mídia um poder de “pautar” a discussão da sociedade. “Além disso, o público tende a conferir ao que ele inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos meios de comunicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas” (SHAW apud WOLF, 2010, p. 143). Ou seja, a forma como a mídia retrata esses assuntos em sua agenda também pode influenciar no grau de importância que eles recebem na agenda do público. Maxwell McCombs (2000), um dos mais influentes estudiosos da hipótese, fornece-nos um quadro geral dessa perspectiva ao dizer que As pessoas não apenas adquirem informações factuais acerca das questões públicas a partir da mídia, mas leitores e espectadores também aprendem quanta importância atribuir a um tópico baseadas na ênfase dada a ele nas notícias. Jornais disponibilizam uma variedade de pistas sobre a saliência dos tópicos em sua cobertura diária – matéria de capa, primeira página, grandes manchetes, etc. Noticiários televisivos também oferecem pistas de saliência – a matéria de abertura, o tempo dedicado a uma história, etc. Essas pistas repetidas dia após dia comunicam efetivamente a importância de cada tópico. Em outras palavras, a mídia de notícias é capaz de estabelecer a agenda da atenção pública em direção àquele pequeno grupo de temas ao redor do qual a opinião pública se forma (p. 1, tradução nossa68).

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No original: Not only do people acquire factual information about public affairs from the news media, readers and viewers also learn how much importance to attach to a topic on the basis of the emphasis placed on it in the news. Newspapers provide a host of cues about the salience of the topics in the daily news – lead story on page one, other front page display, large headlines, etc. Television news also offers numerous cues about salience – the opening story on the newscast, length of time devoted to the story,

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Em sua obra, The Agenda-Setting Role of Mass Media in the Shaping of Public Opinion (2000), McCombs cita várias pesquisas realizadas através dos anos, em diferentes países, que comparam o grau de correspondência da agenda midiática à da pública, e que encontraram muitos resultados positivos que corroboram essa assertiva. Ele próprio fez uma pesquisa do tipo, em parceira com Donald L. Shaw (1972), acerca da campanha presidencial dos EUA de 1968. Os produtores da mídia não têm a capacidade ou possibilidade de retratar todos os eventos e assuntos da realidade social em seus meios, portanto, há uma seleção, baseada em critérios profissionais e de interesse público (mas não isenta da influência de critérios individuais), que termina por crivar apenas partes específicas desse todo. Como muitos meios de comunicação pertencem a grupos privados ou a poderes estatais, os interesses dessas instituições também influenciam nesse processo de seleção. Esse apanhado de assuntos que passaram pelo crivo, em relação aos que ficaram de fora, assim como a proeminência que alguns deles recebem, dentro da seleção, em detrimento dos outros, é o que constrói a agenda da mídia, a qual será veiculada em massa para sua audiência. O público, por sua vez, tem uma capacidade limitada de adquirir informações através da sua experiência imediata, de modo que depende consideravelmente do que a mídia veicula para se informar. Por isso, ele acaba se tornando suscetível de partilhar dessa agenda midiática construída por critérios de terceiros. Mas as análises de McCombs (2000) não param por aí. Ele diz ainda que A influência da agenda-setting da mídia de notícias não está limitada ao passo inicial de focalizar a atenção pública em um tópico particular. A mídia também influencia o próximo passo no processo comunicacional, a nossa compreensão e perspectiva nos tópicos das notícias (p. 5, tradução nossa69).

Ele chama de ‘objetos’ as coisas em que a atenção da mídia e do público são focalizadas, isto é, os componentes dessas respectivas agendas. Objetos podem ser assuntos e temas públicos, itens e tópicos de discussão, eventos, notícias, figuras públicas, instituições etc. Cada um desses objetos possui ‘atributos’, ou seja, traços e características que os descrevem. Quando a mídia e o público pensam e falam desses objetos, eles enfatizam alguns atributos, dão menos

etc. These cues repeated day after day effectively communicate the importance of each topic. In other words, the news media can set the agenda for the public’s attention to that small group of issues around which public opinion forms. 69 No original: The agenda-setting influence of the news media is not limited to this initial step of focusing public attention on a particular topic. The media also influence the next step in the communication process, our understanding and perspective on the topics in the news.

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atenção a outros, e muitos não recebem atenção alguma. Esse processo cria uma segunda agenda, não uma agenda de assuntos, mas uma agenda de atributos para cada um deles. [...] a agenda de assuntos ou de outros objetos apresentada pela mídia influencia sobre o que são as imagens nas nossas cabeças. A agenda de atributos apresentada para cada um desses assuntos, figuras públicas, ou outros objetos literalmente influenciam as próprias imagens que temos em mente (MCCOMBS, 2000, p. 6, grifo do autor, tradução nossa70).

Isto significa que os aspectos de um determinado assunto que serão retratados na mídia, farão uma diferença considerável em como as pessoas o visualizarão, em sua perspectiva. Uma cobertura ostensiva da migração dos refugiados da Síria e de países árabes à Europa transformará o assunto em um grande tópico de discussão pública. Uma grande ênfase aos aspectos negativos dessa migração, ou uma atenção mais intensa nas consequências ruins das presenças deles e um eufemismo das causas de suas fugas poderão disseminar uma opinião pública predominante ruim e contrária a esses estrangeiros. A omissão, tanto de assuntos quanto de atributos, também exerce uma alta influência na agenda pública no sentido de excluir determinados tópicos das discussões e redirecionar a atenção da sociedade desses temas para outros, ou de certos aspectos dos temas para outros. A omissão é utilizada com frequência como ferramenta para mascarar atitudes polêmicas, de organizações e figuras públicas, que podem ter um efeito negativo na audiência.

2.2.2 A quem a mídia de massa influencia? No entanto, nós não podemos tomar uma posição hipodérmica71 e presumir que todos os membros da audiência serão impactados da mesma forma pelas mensagens da mídia de massa e suas agendas. “Os membros do público não se expõem ao rádio, ou à televisão, ou ao jornal num estado de nudez psicológica; ao contrário, eles são revestidos e protegidos por predisposições existentes, por processos seletivos e por outros fatores” (KLAPPER apud WOLF, p. 24). Como dissemos antes, os efeitos de influência da mídia podem ou não ocorrer e podem ou não estar de acordo com a intenção dos emissores. Essas variáveis entram em jogo porque os receptores são diferentes uns dos outros e possuem formas particulares de selecionar, 70

No original: the agenda of issues or other objects presented by the news media influence what the pictures in our heads are about. The agenda of attributes presented for each of these issues, public figures, or other objects literally influences the pictures themselves that we hold in mind. 71 A teoria hipodérmica, ou da bala-mágica, é uma teoria da comunicação que enxerga a audiência como uma massa homogênea e passiva de receptores que são invariavelmente impactados pela mensagem (WOLF, 2010, p. 4-12).

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interpretar e reagir às mensagens a que são expostos. “Respostas variam sistematicamente de acordo com as categorias sociais nas quais o receptor pode ser localizado, portanto, de acordo com idade, ocupação, estilo de vida, gênero, religião etc.” (MCQUAIL, 1983, p. 170). Mas, de forma sistemática, podemos agrupar os fatores mais proeminentes que impactam a influência no público em dois grupos: fatores relativos à audiência em si e à sua relação com a fonte. Do primeiro grupo, um aspecto importante é a familiaridade do receptor com o assunto. McQuail (1979, p. 12-13) diz que quanto mais distante e mais novo for o assunto de uma mensagem para o receptor, melhor ele vai responder a ela. Isto ocorre porque desconhecendo o assunto e não tendo lidado com ele dentro de sua experiência imediata, o receptor não estará servido de informações prévias com as quais contrastar a mensagem, tendo assim menor possibilidade de criticá-la e resistir-lhe. Assim, se a cobertura da mídia de um determinado evento tiver informações diferentes das de um receptor que esteve nesse mesmo evento, ele não irá acreditar naquela mensagem e não será impactado da forma que o emissor planejou. Um receptor que não esteve no evento e não tem informações de como ele se realizou será mais facilmente convencido da versão da mídia, e a comunicação será mais efetiva. “A experiência direta, imediata e pessoal de um problema torna-o suficientemente saliente e significante, a ponto de atenuar, em segundo plano, a influência cognitiva da mídia” (WOLF, 2010, p. 155). No entanto, uma vez familiarizado com o tema, o posicionamento ou a inclinação do receptor em relação a ele também influencia sua recepção da mensagem. Pessoas tendem a evitar mensagens que estão em desacordo com suas opiniões pré-estabelecidas e a se expor àquelas com que concordam. Para além disso, tendem não apenas a esquecer, pois julgam pouco relevantes, as informações que vão de encontro a seu posicionamento, mas a distorcê-las; a isso os autores chamam de exposição, interpretação/percepção e memorização seletivas (WOLF, 2010; MCQUAIL, 1983). Se as pessoas tendem a expor-se sobretudo às comunicações de massa de acordo com as próprias atitudes e com os próprios interesses, a evitar outros conteúdos tão logo os encontram diante dos olhos, e se, por fim, tendem a deturpá-los mesmo quando se lembram deles, então é claro que a comunicação de massa muito provavelmente não mudará o ponto de vista desse público. Aliás, é certamente muito mais provável que ela reforce as opiniões preexistentes (KLAPPER apud WOLF, 2010, p. 23).

Como na situação dos imigrantes, se um receptor já tem um posicionamento normalmente contrário à imigração, ele será mais facilmente convencido de uma notícia sobre imigrantes serem responsáveis por um crime, ou por um problema econômico. Mas se outra

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pessoa já tem um posicionamento comumente a favor da imigração (ou por conhecer ela própria imigrantes, tendo assim lidado com o assunto dentro de sua experiência imediata, ou porque construiu essa opinião a partir de informações consumidas) irá duvidar da notícia e será mais dificilmente convencida. Além disso, essa pessoa tenderá a lembrar-se menos desta notícia do que de outras que são positivas para os imigrantes, assim como tenderá a distorcê-la (em relação à intenção que o emissor tinha para ela), atribuindo-lhes valores de falsa e enviesada. Isto acontece diariamente no consumo de informações e notícias por parte do público. Se a audiência já sabe que o posicionamento de um determinado meio é contrário ao seu, ela procurará consumi-lo menos, e interpretará as informações dele de acordo com os filtros de suas opiniões, adicionando à mensagem ou retirando-lhe camadas de sentido para que ela se encaixe melhor dentro de seu quadro de informações prévias. Porém, receptores indecisos ou confusos, que ainda não definiram que posicionamento tomar naquele assunto e possuem dúvidas, estão mais suscetíveis a serem convencidos pela mensagem. “Em tempos de mudanças e incertezas, é também altamente provável que pessoas sejam mais dependentes da mídia como fonte de informação e direcionamento” (BALLPOKEACH e DEFLEUR apud MCQUAIL, 1983, p. 164). No outro grupo de fatores, referentes à relação do receptor com o emissor, um aspecto importante é a credibilidade da fonte, que, por sua vez, pode ser afetada por vários outros aspectos. Se a fonte possui uma posição de autoridade, como instituições oficiais políticas ou legais; se o emissor é alguma figura pública de grande prestígio com a audiência; ou ainda se é algum especialista no assunto, que possua um nível de conhecimento considerado superior e legitimado no tema (MCQUAIL, 1983, p. 13). A credibilidade pode estar relacionada também com competência profissional, isto é, a experiência do receptor com a competência da fonte em transmitir mensagens verdadeiras. Se o público já teve experiências anteriores de notícias falsas, mal apuradas, imprecisas e similares vindas de uma determinada fonte, a tendência é que esse público passe a desconfiar cada vez mais das informações que obtiverem a partir dela. “Confiança na – e respeito pela – fonte podem ser conducentes aos efeitos” (MCQUAIL, 1983, p. 185, tradução nossa72). A credibilidade da fonte também pode ser questionada pelo receptor em questão de parcialidade e falta de objetividade. “A aparência de efeitos de agendamento requer a existência de sistemas políticos e mídias razoavelmente livres e abertas” (MCCOMBS, 2000, p. 7,

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No original: trust in – and respect for – the source can be conducive to effect.

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tradução nossa73). Situações em que a informação é sabida como enviesada e direcionada, como construída de forma proposital a atingir algum interesse, criam maior resistência no receptor que irá desacreditá-la e acusá-la. Percebemos, dessa forma, que a mensagem pode ser interpretada de formas diferentes pelo público dependendo da fonte que a entrega. A imagem que o público possui do emissor tem a capacidade de validar ou invalidar a mensagem consumida, ou mesmo de criar barreiras para que as mensagens nem cheguem a ser recebidas. Sendo assim, podemos concluir que são mais suscetíveis a serem convencidas pelas mensagens as pessoas que: desconhecem o assunto ou não estão familiarizadas com ele; possuem opiniões concordantes com a mensagem ou estão mais inclinadas e sensíveis a concordar; pessoas que ainda não tomaram um posicionamento ou estão confusas; pessoas que acreditam na autoridade da fonte ou reconhecem sua credibilidade, seja por confiarem em sua capacidade profissional de informar ou em sua imparcialidade. E são mais suscetíveis a resistir às mensagens as pessoas que: estão familiarizadas com o assunto e possuem informações contrastantes; possuem opiniões contrárias à mensagem ou estão inclinadas a discordar; pessoas que desconfiam da credibilidade da fonte, pois não acreditam em sua autoridade, ou em sua capacidade profissional de informar ou mesmo em sua imparcialidade. Estes, no entanto, não são os únicos fatores existentes que influenciam na recepção da mensagem, nem mesmo são os únicos levados em consideração por McQuail (1979; 1983), McCombs (2000) e Wolf (2010). Entram em jogo ainda outros como o interesse pela informação, a relevância que o receptor lhe dá, se a pessoa possui maior ou menor senso crítico, se está mais ou menos disposta a mudar de opinião, a discutir o assunto, além de variadas questões sociais e psicológicas que seriam difíceis de listar, e impossíveis de prever. Elencamos, assim, as que são mais imediatas no processo e mais facilmente perceptíveis, e que, portanto, servirão de melhor base de análise para o capítulo final.

2.2.3 Quais as consequências da influência da mídia de massa? Enfim reconhecendo que a mídia de massa possui um poder de influenciar a sociedade e de estabelecer sua agenda pública (não só de assuntos, mas também as agendas de atributos desses assuntos), e que o grau e eficácia com que realiza isso depende de fatores ligados à

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No original: the appearance of agenda-setting effects requires the existence of reasonably free and open media and political systems.

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audiência e à relação dela com o emissor, podemos tentar observar quais são algumas das potenciais consequências disso para a sociedade, para a mídia e para as pessoas, grupos e instituições que são objetos da mídia. Antes de mais nada é necessário ter em mente que a seleção de assuntos que adentram a agenda midiática consiste em um recorte da realidade, em seguida, entender que quando essa agenda consegue ser transferida para o público e este depende dela para construir sua percepção da realidade, essa percepção também será recortada e limitada. Portanto, À medida que o destinatário não é capaz de controlar a exatidão da representação da realidade social, com base em algum padrão externo à mídia, a imagem que ele forma para si mesmo mediante essa representação acaba por ser distorcida, estereotipada ou manipulada (ROBERTS apud WOLF, 2010, p. 144, grifo do autor).

McQuail (1983, p. 53) consegue ilustrar isso de forma bastante clara em sua obra, quando elenca uma série de metáforas que procuram demonstrar as diversas formas de controle que podem ser exercidas pela mídia. O autor a descreve como placa de sinalização (signpost), quando a mídia direciona a atenção propositalmente para certos aspectos escolhidos da realidade. Quando alguns assuntos ganham mais destaque que outros, sendo retratados com mais atenção ou maior repetição, temos a mídia exercendo essa função. McQuail também a configura como filtro (filter), quando ela fornece apenas uma visão restrita da realidade, filtragem que, quanto mais sistemática, mais distorce a versão da realidade visualizada pelo público. Isso pode ser observado no processo da mídia de selecionar determinados assuntos para irem ao ar/serem publicados enquanto outros são deixados de fora. Quanto mais específicos são os critérios dessa seleção, maior é a lacuna entre a versão da mídia e a realidade. Por fim, ele a define como tela (screen) ou barreira (barrier), quando essa distorção ultrapassa um certo nível e toma do público o conhecimento genuíno e as possibilidades de compreender sua experiência. Se o sistema de seleção é específico demais, a realidade que é veiculada se torna muito distante da verdadeira, dificultando consideravelmente a chance da audiência de ter acesso e compreender o mundo. Esse quadro se agrava quando uma mídia de massa se torna hegemônica e concentrada na mão de uma elite (seja de classe, estatal ou religiosa) em uma sociedade. Essa visão limitada de realidade que a mídia fornece ao público facilita que os interesses dos grupos que a controlam sejam priorizados e os contrários desestimulados ou mesmo excluídos, contribuindo para uma distribuição de conhecimento menos democrática. Assim, instituições, figuras públicas e grupos

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de pessoas considerados adversários ou oponentes são mais passíveis de serem vítimas do enquadramento enviesado dessa mídia, e mais passíveis de terem menor aceitação pública. Essa concentração dificulta também a reação da audiência, por não dispor de um meio de comunicação de igual alcance para combater o que é veiculado pela mídia. Isso diminui o impacto de grupos de resistência que possuem uma narrativa contra-hegemônica, limitando a contra-argumentação a ser algo localizado e dificultando sua disseminação. Em dado momento, McQuail (1983) menciona esse quadro quando ressalta que “sob condições de tensão e incerteza, governos e negócios ou outras elites e interesses são suscetíveis de tentar utilizar a mídia para influenciar e controlar” (p. 178, tradução nossa74). Ainda que a configuração midiática de uma sociedade seja mais descentralizada, é provável que grupos de interesses tentem ganhar, se não controle, influência sobre esses meios, oferecendo acordos e parcerias, para conseguir que a agenda veiculada seja uma agenda de assuntos e atributos que os favoreçam. McQuail (1983) lembra essa estratégia em situações de campanhas partidárias, por exemplo, quando os partidos procuram se servir da influência da mídia reconhecida pelo público como “objetiva”. Há, no entanto, um conflito inerente entre objetividade e atividade partidária. Isto tem duas consequências: o fato de que outras mídias podem trabalhar contra as campanhas, e de que um alvo comum de muitos agentes de campanhas é assegurar ou publicidade ou uma cobertura favorável na mídia ‘objetiva’, especialmente nos noticiários (MCQUAIL, 1983, p. 192, tradução nossa75).

Existe, porém, uma intenção de não se libertar completamente dessa “objetividade” mesmo que para mantê-la apenas como aparente. Como já destacamos anteriormente, uma parcialidade evidente e óbvia causa muito mais resistência no receptor do que aceitação, o que diminuiria o poder de influência dessa mídia, enfraquecendo sua utilidade para os respectivos grupos de interesse. É por isso que em situações de centralização midiática preocupantes, a exemplo de governos ditatoriais e opressores, a insatisfação pública, cedo ou tarde, leva à procura, ou mesmo criação, de meios de comunicação alternativos, fortalecendo a resistência e culminando em rebelião. Esse quadro se deflagra porque, como também já explicamos, a audiência não é

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No original: under conditions of tensions and uncertainty, government and business or other elites and interests are likely to try to use media for influence and control. 75 No original: There is, however, some inherent conflict between objectivity and what is by definition a partisan activity. This has two consequences: the fact that other media may work against campaigns, and that an aim of many campaigners is to ensure either publicity or favourable coverage in the 'objective' media, especially in news.

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passiva nem impactada uniformemente pelos meios, existem fatores que limitam os poderes da mídia e que tornam a audiência capaz não só de resistir como de reagir.

Chegando aqui, enfim, conseguimos construir a base teórica dos processos comunicacionais necessária para realizar os estudos do capítulo seguinte. Com esse capítulo, quisemos primeiramente compreender o fenômeno da comunicação de forma geral para que, então, pudéssemos observar a comunicação de massa em especial e com maior propriedade. Em seguida, procuramos estabelecer que a nossa perspectiva é a da análise dos efeitos, mais especificamente da influência da mídia de massa sobre a sociedade, e discorrer sobre os conceitos atribuídos a esse tema, alicerçando-nos majoritariamente na hipótese do agendamento e nos aspectos que com ela se relacionam. Agora, no capítulo final, nós vamos utilizar o conhecimento até aqui coletado para lançar um olhar crítico sobre a influência que a mídia de massa retratada em Harry Potter exerce sobre a sociedade descrita nos livros, o que nos permitirá visualizar se a obra, como manifestante do gênero da Fantasia, consegue se corresponder com a realidade. Mas antes disso, também precisaremos contextualizar a nossa pesquisa, apresentando nosso objeto de estudo e os elementos dele que são importantes para a discussão.

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3 Expelliarmus!76 A Magia de Harry Potter

3.1 O-menino-que-sobreviveu e vendeu Seria um grande desafio encontrar alguém que não tenha a mínima ideia de quem seja Harry Potter ou que não esteja, pelo menos, familiarizado com o nome. Sucesso editorial desde a década de 1990, igualmente sucesso cinematográfico a partir dos anos 2000, e um grande sucesso mercadológico de produtos e mais produtos que surgiram como derivados desses livros e filmes, Harry Potter se tornou uma marca mundialmente conhecida e valorizada. O pequeno bruxo entrou para aquele seleto rol de personagens (ao lado de figuras como Sherlock Holmes, Indiana Jones, Darth Vader e outros) que se cristalizaram dentro do imaginário coletivo como parte da cultura global. As pessoas podem até não ter um conhecimento aprofundado desses personagens ou dos detalhes das histórias que o cercam, mas certamente sabem quem são. Mesmo assim, para evitar qualquer lacuna que por ventura venha a atrapalhar a compreensão do estudo e para garantir que estejamos todos familiarizados o suficiente com o objeto, fazem-se necessárias algumas apresentações. Harry Potter, portanto, é uma série literária infanto-juvenil de Fantasia, composta por sete livros originalmente publicados entre os anos 1997-2007 no Reino Unido, pela editora Bloomsbury, e entre os anos 2000-2007 no Brasil, pela editora Rocco. Eles foram escritos pela inglesa Joanne Rowling, que os assina como J. K. Rowling, que se tornou a primeira escritora na história a ficar bilionária com as vendas de seus livros (FORBES, 200477). O enredo é sobre um jovem garoto órfão que é precariamente criado por seus tios, os quais fazem tudo o que uma péssima família adotiva poderia fazer. Ele tem que dormir no armário debaixo da escada da casa, todos seus objetos e roupas são de segunda-mão, repassados dos pertences de seu primo mimado Duda, ele é incumbido de vários dos afazeres domésticos assim como é obrigado a ouvir constantes xingamentos sobre ser estranho, bizarro e ingrato. Quando está prestes a fazer 11 anos, no entanto, Harry recebe uma carta de uma chamada Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, afirmando que o garoto possui uma vaga na instituição e que seu ano letivo está para começar. Ele então descobre que é um bruxo, assim

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Um dos principais feitiços de defesa do universo de Harry Potter, utilizado para desarmar o adversário. 77 Ainda segundo a revista Forbes (2004), na época, Rowling havia se tornado uma das apenas cinco mulheres que ficaram bilionárias por mérito próprio; e, no ramo dos bilionários do entretenimento, ela estava listada ao lado de Steven Spielberg, George Lucas e Oprah Winfrey.

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como seus pais que, na verdade, não morreram em um acidente de carro como lhe fora feito pensar, mas foram assassinados por um bruxo das trevas. Por algum motivo, esse bruxo não conseguira matar Harry quando bebê e foi destruído na tentativa, o que deu ao garoto não apenas a cicatriz em formato de raio que carrega na testa, mas também a fama de O-menino-quesobreviveu na comunidade bruxa. Harry parte então em sua jornada de sete anos para aprender a ser um bruxo na Escola de Hogwarts e para entender a controvertida história por trás de sua fama e de sua relação com o bruxo das trevas, talvez não tão destruído assim, Lord Voldemort. Os sete volumes, um para cada ano em Hogwarts, que contam essa jornada são, cronologicamente: Harry Potter e a Pedra Filosofal (2000), Harry Potter e a Câmara Secreta (2000), Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2000), Harry Potter e o Cálice de Fogo (2001), Harry Potter e a Ordem da Fênix (2003), Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2005) e Harry Potter e as Relíquias da Morte (2007)78. A ideia para essa heptalogia mágica surgiu sorrateira, como uma semente que nasce discreta no asfalto, na mente de Rowling, durante uma longa viagem de trem, sete anos antes de Pedra Filosofal chegar a qualquer prateleira. Era 1990. Meu namorado na época e eu tínhamos decidido ir até Manchester juntos. Depois de ficar procurando por um apartamento um fim de semana, viajava sozinha de volta a Londres em um trem lotado e a ideia de Harry Potter simplesmente surgiu na minha cabeça. Eu vinha escrevendo quase continuamente desde os seis anos de idade, mas nunca tinha ficado tão entusiasmada com uma ideia antes. Para minha imensa frustração, não tinha uma caneta que funcionasse e era tímida demais para pedir a alguém uma emprestada... Eu não tinha uma caneta que funcionasse, mas eu acho que isso provavelmente foi uma coisa boa. Simplesmente fiquei sentada pensando por quatro horas (o trem estava atrasado), enquanto todos os detalhes borbulhavam em meu cérebro e esse menino magricela, com cabelos pretos, de óculos que não sabia que era um bruxo foi se tornando cada vez mais real para mim [...] (ROWLING, 2012).

Depois de seis anos, um período difícil em sua vida, em que ela teve de lidar com a perda da mãe, com o fim de um primeiro casamento desastroso e com as dificuldades de criar sua primeira filha sozinha, sem emprego e vivendo com ajuda de custo do governo britânico, Rowling enfim conseguiu terminar o manuscrito de seu primeiro livro. Ao lado de seu recém78

Originais britânicos: Harry Potter and the Philosopher’s Stone (1997), Harry Potter and the Chamber of Secrets (1998), Harry Potter and the Prisoner of Azkaban (1999), Harry Potter and the Goblet of Fire (2000), Harry Potter and the Order of the Phoenix (2003), Harry Potter and the Half-Blood Prince (2005), Harry Potter and the Deathly Hallows (2007).

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encontrado agente literário Christopher Little, ela foi recusada por diversas editoras até ser aceita por Barry Cunningham, o então editor da Bloosmbury Publishing, uma editora razoavelmente pequena na época. A tiragem que foi às ruas em junho de 1997 foi modesta, apenas 500 cópias79, das quais cerca de 300 foram distribuídas a bibliotecas. Mas o sucesso conseguinte foi instantâneo e imprevisível; em pouco tempo, o livro teve várias reimpressões e reedições para dar conta da nova demanda (ERRINGTON, 2015). As premiações entregues à obra naquele ano também não se intimidaram, foram várias as indicações e prêmios de livro infantil do ano, entre elas Nestlé Smarties Book Prize, British Book Awards e Birmingham Cable Award, para citar alguns (BLOOMSBURY, 2014). Hoje, quase 20 anos depois de sua publicação, a Pedra Filosofal permanece o livro mais vendido de toda a saga, com estimativa de 107 milhões de cópias vendidas mundialmente (GRABIANOWSKI, 2011). Os sucessos das obras seguintes só foram replicados e multiplicados. Foi um livro por ano até o Cálice de Fogo, quarto da série, que passaram semanas nas listas de mais vendidos, arrecadaram ainda mais prêmios, e quebraram recordes de vendas. Em 2001, foi lançada a primeira adaptação cinematográfica da saga, o filme Harry Potter and the Philosopher’s Stone, produzido pela Warner Bros. Pictures, cujo faturamento foi superior a 970 milhões de dólares em bilheteria no mundo todo. A adaptação do segundo livro da série saiu no ano seguinte, também com números expressivos de bilheteria (STATISTIC BRAIN, 2015). O sucesso dos filmes impulsionou ainda mais as vendas, não só dos livros, mas de uma grande variedade de artigos e produtos ligados à marca Harry Potter. Quando o quinto livro da série, Ordem da Fênix, enfim chegou às livrarias, em 2003, três anos após o lançamento de seu antecessor, a expectativa e ansiedade pelo novo volume estavam mais elevadas que qualquer outro momento antes na história da publicação. Não à toa, tornou-se o livro mais rapidamente vendido de todos os tempos. Esse recorde foi quebrado de novo e de novo pelos próximos dois livros da saga, Enigma do Príncipe e Relíquias da Morte, tendo o último vendido mais de 2,6 milhões de cópias apenas nas primeiras 24 horas no Reino Unido (ERRINGTON, 2015). O total de vendas da saga é estimado em 450 milhões de cópias no mundo todo, tendo sido traduzido para 78 idiomas (BLOOMSBURY, 2014)80.

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Hoje em dia, uma cópia dessa rara primeira edição pode ser encontrada sendo vendida por volta de 40 mil dólares (TIME, 2013). 80 Além dos sete livros que contam a história de Harry, a saga conta também com três livros de acompanhamento que carregam informações e contos extras da série escritos pela própria autora. São eles: Quadribol Através dos Séculos (2001), Animais Fantásticos e Onde Habitam (2001) e Contos de

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Mesmo com o final da série de livros, em 2007, Harry Potter nunca permaneceu fora dos holofotes. Entre 2000 e 2011, foram produzidos oito filmes no total, um para cada livro, com exceção do último que foi dividido em duas partes. A bilheteria geral dos oito, combinada, é estimada em mais de 7 bilhões de dólares, sendo mais de 1,3 bilhões apenas com o filme final, Harry Potter and the Deathly Hallows Part 2 (2011). Tanto os filmes quantos os livros provocaram a produção de inúmeros jogos de videogame, brinquedos, roupas, acessórios e uma grande variedade de produtos de merchandising que continuaram movimentando o mercado por ainda vários anos, mesmo depois do último livro e filme. Em 2010, foi inaugurado The Wizarding World of Harry Potter, um parque temático de grandes proporções, no complexo da Universal Orlando Resort, em Orlando, Estados Unidos, que conta com reproduções em larga escala do castelo de Hogwarts, do vilarejo de Hogsmeade e do Beco Diagonal, lugares importantes do universo mágico da história. Hoje o parque já possui mais duas filiais, uma em Osaka, Japão, e outra em Hollywood, Estados Unidos (UNIVERSAL STUDIOS, 2016). Em 2012, surgiu o Pottermore, um website oficial da saga que disponibilizava uma leitura interativa dos livros, com jogos, ilustrações e efeitos sonoros, assim como escritos inéditos da própria autora sobre personagens, lugares e outros aspectos da série que nunca foram publicados. O site também possui uma loja online, o único lugar onde podem ser adquiridos as versões em audiobook e ebook oficiais dos livros. Em 2015, o site foi reinaugurado com um novo formato, findando o projeto de leitura interativa e se posicionando como o centro de informações, notícias, artigos e conteúdo oficial da série no mundo digital. Os escritos inéditos da autora continuam sendo publicados (POTTERMORE, 2015). Os últimos dois anos, inclusive, se tornaram ainda mais movimentados para os fãs e apreciadores de Harry Potter. Diversas notícias anunciando o retorno do mundo mágico e até uma continuação da série foram anunciadas, até que, finalmente, em julho de 2016, estreou no West End de Londres a peça de teatro Harry Potter and the Cursed Child. Uma oitava história da saga, 19 anos depois dos acontecimentos do sétimo livro, agora focada nos personagens adultos e seus filhos, mas em um novo formato: os palcos. Ela foi escrita por Jack Thorne em colaboração com a autora, J.K. Rowling, e o diretor da peça, John Tiffany. No dia seguinte à estreia, o roteiro foi lançado nas livrarias e em lojas digitais, também quebrando recordes de

Beedle, O Bardo (2008). Todo o lucro arrecadado com as vendas deles foi revestido para as instituições de caridade Comic Relief e Children’s High Level Group.

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vendas ao se tornar o livro mais rapidamente vendido desde o lançamento de Relíquias da Morte (2007) (FLOOD, 2016). Não suficiente, a Warner Bros. Pictures também está trabalhando em reviver a saga nos cinemas. Uma trilogia81 baseada no universo mágico da série está programada para ser lançada no decorrer dos próximos anos; o primeiro filme, Fantastic Beasts and Where to Find Them, já virá a público em novembro de 2016. O roteiro é da própria J.K Rowling e é inspirado no livro de acompanhamento de mesmo título que ela lançou ainda em 2001. A história, entretanto, é a respeito do autor fictício desse livro, Newt Scamander, e suas aventuras na sociedade bruxa nova-iorquina dos anos 1920 (THE POTTERMORE CORRESPONDENT, 2015). O que podemos notar com todo esse histórico de sucesso é que, muito mais que uma série de livros, Harry Potter se tornou um fenômeno82. A história ultrapassou as fronteiras literárias e foi adaptada e readaptada nas mais diversas mídias, produzindo os mais variados conteúdos e movimentando de diferentes formas a indústria criativa e cultural em escala global. Desse modo, não é difícil perceber a relevância de se analisar um produto midiático de tamanha proeminência e destaque, assim como uma obra literária que tenha recebido tamanha atenção. Alguém pode acabar se perguntando o que poderia ter motivado um sucesso de tais proporções. O que há, afinal, de tão especial nesses sete livros sobre um garoto órfão que descobre que é bruxo? Responder a essa pergunta não é o objetivo central deste trabalho, mas nem de longe somos a única pesquisa acadêmica realizada sobre a obra: esse e outros aspectos são analisados com afinco por múltiplos artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado, teses de doutorado, etc. em todo o globo. Katherine Vasconcelos (2013), por exemplo, listou sete razões que poderiam justificar o caráter de best-seller alcançado pela criação de Rowling. A partir de uma pesquisa realizada junto ao público da série, ela conseguiu elencar alguns elementos como: amadurecimento da obra e do leitor; referências a outras obras, acontecimentos históricos e fatores externos à série; identificação com os personagens; linguagem simples etc. Com uma audiência assim tão grande, o alcance que as mensagens contidas na série podem ter é suficiente para despertar o interesse de muitos comunicólogos ou pesquisadores literários. Se observamos de perto o próprio conteúdo, encontraremos ainda mais aspectos e

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Atualização (Dez/2016): após a finalização da primeira versão deste trabalho, a criadora e roteirista dos filmes J. K. Rowling revelou que a série de filmes Fantastic Beasts terá cinco filmes em vez de três (FANTASTIC..., 2016, 50’46”). 82 O valor, estimado, da marca Harry Potter como um todo chega a 15 bilhões de dólares (TIME, 2013). É provável que esse número já tenha aumentado consideravelmente com a inauguração das novas filiais do parque temático, a estreia da peça de teatro e os futuros filmes.

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mais camadas de sentido passíveis de serem analisadas e estudadas. Para este trabalho, no entanto, limitamo-nos a apenas um. Aqui nos debruçamos sobre os sete livros de Harry Potter em busca dos meios de comunicação de massa integrantes de sua realidade e o poder de influência que eles detêm sobre a sociedade bruxa com que interagem. Porém, antes de mostrar o que encontramos, é importante entender que sociedade é esta da qual falamos.

3.2 Magia nas veias A sociedade ou comunidade bruxa, por vezes referida como mundo bruxo, é o conjunto de todos os bruxos, instituições bruxas e criaturas mágicas existentes no mundo fictício de Harry Potter. Na série, bruxos são as pessoas que nascem dotadas de habilidades mágicas capazes de manipular a realidade que as cerca, enquanto que trouxas (Muggles no original) são as pessoas comuns que não possuem tais habilidades. Um bruxo pode ser um descendente direto de uma família bruxa, um mestiço (com um dos pais trouxa), ou ainda um nascido-trouxa (cujos dois pais são trouxas). É explicado, no decorrer da série, que este último caso ocorre devido à provável existência de algum bruxo na árvore genealógica do descendente. Devido às intensas perseguições que sofriam nos séculos 15, 16 e 17 (quando eram enforcados, queimados ou decapitados pelos trouxas amedrontados e revoltados com o desconhecido e inexplicável), os bruxos entraram para a clandestinidade definitiva em 1689, quando foi assinado o Estatuto de Sigilo da Confederação Internacional de Bruxos. Desde então, tornou-se veementemente proibida a exposição de qualquer forma de magia para a comunidade trouxa (ROWLING, 2008). Assim se iniciou o afastamento das famílias bruxas dos conglomerados trouxas, que passaram a viver isoladas ou a criar suas próprias aldeias e vilarejos, ou até mesmo a formar pequenas comunidades próprias dentro de comunidades trouxas, onde os bruxos beneficiavam uns aos outros com apoio e proteção (ROWLING, 2007). Esse separatismo apenas se fortaleceu nos séculos seguintes e foi o que garantiu a total ignorância dos trouxas acerca da existência do mundo bruxo e a crença cultural, dentre os bruxos, de que a comunidade não-mágica devia ser mantida longe de seus assuntos. Isso possibilitou diversas discrepâncias entre as versões trouxa e bruxa da História e até mesmo da Geografia. Além disso, existe um certo descompasso entre a “evolução” tecnológica entre as duas comunidades, já que muitos dos aparatos tecnológicos trouxas inexistem no mundo bruxo simplesmente por serem facilmente substituídos por feitiços e encantamentos capazes de exercer as mesmas funções (ROWLING, [entre 2012 e 2015]c).

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Meios de transporte modernos como aviões, helicópteros, metrôs e semelhantes não são utilizados pelos bruxos83. Nesse mundo, as pessoas preferem se transportar por meio da aparatação84, da Rede de Flu85, de Chaves de Portal86, de vassouras voadoras, de criaturas mágicas aladas e de outras variedades de objetos encantados (ROWLING, [entre 2012 e 2015]a). Aparelhos elétricos e eletrônicos em geral não costumam ser usados por bruxos, na realidade, o próprio funcionamento deles é afetado em locais com alta concentração de magia (ROWLING, 2001). O dia a dia se torna muito mais simples quando se podem encantar as coisas para se lavarem, varrerem e limparem sozinhas; consertar móveis quebrados com um simples Reparo!; trazer objetos distantes para mais próximo com um Accio!; produzir fogo e realizar tantas outras atividades domésticas e cotidianas com um simples balançar de varinhas. A comunidade bruxa se orgulha de sua habilidade de resolver os problemas diários com a magia e de sua independência dos aparatos trouxas. O acúmulo de tecnologia trouxa em uma residência bruxa, na verdade, seria visto com maus olhos, como uma admissão de inadequação mágica (ROWLING, [entre 2012 e 2015]c). A fé na superioridade mágica somada aos séculos de isolamento criaram na comunidade bruxa uma disseminada crença na inferioridade dos trouxas. Em tempo, a manutenção do Estatuto de Sigilo Internacional virou menos uma questão de segurança do que um desejo cultural de não se misturar. Apesar disso, esse sentimento não é uniforme por toda a comunidade bruxa, tendo em vista a numerosa presença de bruxos nascido-trouxas, vários deles orgulhosos de suas origens. As camadas mais conservadoras da sociedade, no entanto, a exemplo de famílias tradicionais com longas linhagens de bruxos, tendem a enaltecer sua condição de bruxos “sangue-puros” e julgarem-se superiores a bruxos mestiços e nascidostrouxas, os últimos, por vezes, sendo pejorativamente chamados de “sangue-ruins” e tachados como menos capazes.

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Existem algumas exceções, como carros (o Ford Anglia dos Weasleys), trens (o Expresso de Hogwarts) e ônibus (o Nôitibus Andante); mas, além de não serem tão comuns, esses veículos estão sempre revestidos de encantamentos variados para adaptá-los às necessidades bruxas, como invisibilidade, voo, velocidade, expansão de espaço interno etc. Ainda assim, famílias bruxas mais conservadoras tendem a não usar esses tipos de transporte e a criticá-los vigorosamente. 84 Feitiço que permite o teletransporte do bruxo de um lugar a outro de sua escolha. 85 Uma rede mágica de conexões que ligam as lareiras de diversas casas e prédios bruxos, permitindo o transporte entre elas. Para utilizá-las, o bruxo adentra a lareira lançando um punhado de pó mágico, chamado Pó de Flu, ao fogo. Também é necessário proferir o nome do local de destino em voz alta. 86 Objetos quaisquer encantados para teletransportar pessoas em locais específicos para destinos específicos (às vezes também em horários específicos).

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O racismo baseado na “pureza” mágica do sangue é um problema social enraizado na sociedade bruxa e de difícil combate, como podemos ver na jornada da pequena Hermione Granger, melhor amiga de Harry, durante os sete livros. Sendo filha de dois dentistas trouxas, Hermione é constantemente ridicularizada por estudantes da Sonserina, a casa 87 mais conservadora de Hogwarts, além de ter sua competência frequentemente posta em dúvida, apesar de ela ser comprovadamente a aluna mais inteligente e dedicada da escola. Essa questão fica ainda mais evidente com o retorno de Voldemort, nos livros finais, e sua perseguição a nascidos-trouxas e desdém por não-bruxos que, muitas vezes, terminam em tortura e morte. A crença na superioridade bruxa também abrange outras criaturas mágicas sapientes do mundo mágico, como os centauros, os sereianos, os duendes e os elfos domésticos. O convívio dos bruxos com essas e outras raças é repleto de tensões e conflitos, por vezes recheados de desprezo de uma raça pela outra. Embora vários fatores estejam envolvidos, é visível que isso é mantido e até reforçado pela atitude bruxa de se julgar superior às outras espécies. Entre os próprios bruxos, a capacidade mágica também é essencial para a manutenção do status de cada indivíduo. Quanto mais poderosa a magia que um determinado bruxo for capaz de realizar, mais respeitado ele se torna. Casos extremos de inadequação mágica, como os raros abortos (bruxos, filhos de pais bruxos, que não desenvolveram qualquer habilidade mágica), são vistos como pessoas enfermas e dementes. A exemplo, o Sr. Filch, o zelador da escola (um aborto), e Hagrid, o guardião dos terrenos e das chaves de Hogwarts (que foi expulso da escola quando estudante e teve a varinha quebrada, tendo sua formação mágica interrompida). Os dois exercem trabalhos predominantemente braçais por serem desacreditados, pela sociedade, como capazes de tarefas mais elaboradas. Mesmo quando Hagrid se torna professor, no terceiro livro, sua competência em exercer o cargo não deixa de ser frequentemente questionada. O grau de autoridade política no mundo bruxo é definido pela relação com o governo bruxo, e aqui um esclarecimento: embora seja explicitado nos livros que existem bruxos no mundo inteiro, e de fato conhecemos alguns desses bruxos estrangeiros, os sete volumes são focados exclusivamente na comunidade bruxa britânica. Sendo assim, só entramos em contato com uma forma de poder estatal: na Grã-Bretanha, a instituição que governa os bruxos é o Ministério da Magia, cujo líder recebe o título de Ministro da Magia.

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Imitando o sistema educacional tradicional britânico, Hogwarts divide seus alunos em quatro casas, sendo elas Grifinória, Corvinal, Lufa-Lufa e Sonserina.

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Trabalhadores do Ministério têm considerável maior influência na sociedade do que os cidadãos comuns, como é demonstrado nas poucas regalias que Sr. Weasley (pai do melhor amigo de Harry, Rony, e empregado de um departamento de baixo escalão do Ministério) recebe em certos momentos da série, como, esporadicamente, carros particulares do governo e informações sigilosas. Obviamente, quanto mais alto o cargo, maior o prestígio do bruxo e mais forte a sua autoridade, como podemos visualizar em vários personagens ministeriais que exercem essa condição em algum ponto da série, como Bartô Crouch, Ludo Bagman e Dolores Umbridge. Esse quadro se instaura porque o Ministério da Magia possui uma ampla responsabilidade na manutenção do funcionamento social bruxo. Ele concentra em si próprio todos os três poderes e ainda o equivalente às forças armadas ou de policiamento. Alguns de seus órgãos, por exemplo, podem ser citados: a Suprema Corte dos Bruxos, o Departamento de Execução das Leis da Magia, o Quartel-General dos Aurores88, a Seção de Controle do Uso Indevido da Magia, o Esquadrão de Reversão de Feitiços Acidentais etc. Isso faz com que os bruxos tenham uma grande preocupação e interesse pelas medidas tomadas pelo governo, mas também uma alta confiança e expectativa depositadas nele. É garantido ao Ministério, assim, um notável poder de interferir na vida cotidiana bruxa, sem, no entanto, deixá-lo livre de cuidados com a imagem que o governo possui junto ao público, tendo em vista que o Ministro da Magia é definido democraticamente por voto popular em eleições periódicas89. Podemos enxergar na figura do Ministério da Magia, portanto, a instituição social do Estado exercendo seu papel de administrar as leis de conduta da sociedade. Das outras duas instituições (que conhecemos da realidade empírica, que realizam essas mesmas funções), isto é, a Religião e a Ciência, apenas a última possui seu equivalente no mundo bruxo. Enquanto que nenhuma forma de religião é citada nos sete livros de Harry Potter, a Magia pode ser interpretada como correspondente da Ciência nesse universo, tendo em vista que: é necessário ser formalmente iniciado e instruído nela; existem estudos e pesquisas contínuas acerca de seus aspectos, com invenções e descobertas; ela é a forma de conhecimento utilizada pelos bruxos para compreender o mundo que os cerca, para facilitar a própria vida, para se proteger e atacar e para tratarem de suas enfermidades.

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Um auror é um bruxo treinado e encarregado de rastrear, combater e conter perigosos bruxos das trevas. Seria um correspondnte a policiais ou soldados. 89 Ele pode, porém, ser escolhido de forma indireta em situações emergenciais, até que uma eleição seja viável (ROWLING, [2013 e 2014]b). Isso pode ser observado na sucessão de três ministros diferentes, e um temporário, apesar de nenhuma eleição popular ter sido realizada durante os sete livros.

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Como análoga à Ciência, a Magia também é a entidade que compreende a esfera da Educação. Na Grã-Bretanha, existe apenas uma instituição educacional para bruxos, a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Por lei, todos os bruxos, quando atingem os 11 anos, devem ter uma vaga na escola e iniciar seus estudos. Bruxos não treinados são instáveis e um perigo não apenas para a segurança de si mesmos e de seus familiares, como um perigo à clandestinidade bruxa. Assim sendo, Hogwarts envia uma carta para todos os pequenos magos da idade requerida, sejam nascidos bruxos ou trouxas, convidando-os para o início do ano letivo. A formação em Hogwarts compreende sete anos letivos, com diversas disciplinas mágicas como Feitiços, Transfiguração, Defesa Contra as Artes das Trevas, Poções e outras. Muitas das práticas educacionais da realidade empírica, sobretudo aquelas baseadas no modelo britânico, são aqui aplicadas: trabalhos escritos, questionários, exercícios práticos e teóricos, provas, notas, detenções, suspensões etc. Sendo a única instituição de ensino da Grã-Bretanha e já tendo sido fundada há muitos séculos, Hogwarts é bastante respeitada e prestigiada em meio aos bruxos britânicos. A excelência acadêmica é almejada e exigida pelos pais bruxos e o corpo docente da escola também dispõe de seu grau de autoridade, sobretudo o diretor.

3.3 Pague a coruja Dentre tantas particularidades, os bruxos possuem também uma forma diferenciada de se comunicar. Antes de mais nada, não é hábito bruxo o uso de canetas, lápis ou papéis. No mundo mágico, as cartas, os trabalhos escolares, os comunicados oficiais são todos escritos a tinta e pena em folhas de pergaminho. Não fica muito claro, no decorrer da saga, o porquê do apego bruxo a essa antiga forma de documentação, principalmente visto que eles parecem lidar muito bem com o advento da tecnologia de impressão (afinal eles produzem e consomem livros, revistas, jornais...). O que podemos presumir é que as vantagens que a escrita em papel ou a caneta e a lápis pareciam trazer já podiam ser facilmente alcançadas pelos bruxos através da magia. Afinal, a comunidade mágica é muito mais propícia a inventar novos feitiços e encantamentos que supram suas necessidades, do que buscar novos materiais e aparatos. Eles podem, por exemplo, enfeitiçar suas penas para que escrevam sozinhas, para que produzam a própria tinta, para que autocorrijam o texto... A tinta para que seja permanente ou invisível ou sugá-la para fora do pergaminho... O pergaminho pode ser encantado para ser resistente à água, ao fogo, colado na parede, feito mais leve e assim por diante, através da magia.

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Essa proeza mágica fornece aos bruxos uma ampla variedade de meios de comunicação interpessoal. É possível, por exemplo, encantar objetos para criar um canal de comunicação; como Hermione faz ao enfeitiçar várias moedas gêmeas que se alteram simultaneamente quando palavras são gravadas na moeda original, para informar seus colegas sobre datas e horários de reuniões (ROWLING, 2003); como o par de espelhos de Harry e Sirius que permite que os dois se vejam e se comuniquem quando estão longe (ROWLING, 2003; 2007); ou ainda como os diversos quadros bruxos, onde as figuras pintadas se mexem e falam e são capazes de se transportar entre os quadros da mesma parede ou entre as réplicas do mesmo quadro em diferentes lugares, por vezes levando mensagens a pedido dos bruxos. O feitiço do Patrono, que cria uma forma animal feita de luz, pode ser enviado a outras pessoas para reproduzirem mensagens e desaparecerem sem deixar rastros. Além disso, a própria Rede de Flu pode ser utilizada para comunicação em vez de transporte, já que é possível colocar apenas a cabeça nas chamas e transportá-la para a lareira destino e, assim, conversar com os lá presentes (ROWLING, 2001; 2003). Mesmo assim, a forma de comunicação mais utilizada pelos bruxos é de longe o correio coruja. Habitualmente, os bruxos arregaçam as mangas, escrevem suas cartas, prendem-nas no pé de uma coruja e as enviam ao destinatário quando precisam compartilhar informações. Essa preferência pode ser explicada pelo fato de que, apesar de tudo, a magia não é algo simples de se executar. Encantamentos como os supracitados (moeda, espelho, Patrono...) são complexos e exigem esforço e estudo, muito mais do que é preciso para se escrever uma carta. Além disso, adquirir esses objetos mágicos pode sair caro, muito mais do que repor o estoque de tinta, pergaminho e pena e comprar uma coruja particular no Simpósio de Corujas ou contratar uma no serviço postal. As lareiras, por sua vez, têm uso limitado por serem fixas e precisarem de permissão ministerial para serem ligadas à Rede de Flu. São as corujas também a principal forma de entrega e transporte de mercadorias no mundo bruxo, dentre elas, os vários exemplares dos jornais e revistas consumidos pela sociedade mágica. Quando falamos de comunicação de massa, a mídia impressa é a forma predominante entre os bruxos. Dentro dela, o veículo de comunicação de massa mais influente é o jornal O Profeta Diário, o único jornal bruxo da Grã-Bretanha. Seu escritório fica no Beco Diagonal e ele é entregue todas as manhãs via coruja na maioria das residências e instituições bruxas da

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região. Os clientes leitores depositam cinco nuques90 na bolsinha de couro que vai amarrada à pata do animal como pagamento (ROWLING, [entre 2012 e 2015]d). Pelo que podemos entender a partir dos livros, o jornal é um veículo independente e privado, muitas vezes sensacionalista, mas não completamente livre de influência ou interferência do governo. Como veremos mais tarde, ele inicia a série como veículo majoritariamente informativo, até que sua função de transmitir a agenda política do Ministério vai se tornando cada vez mais evidente. Segundo Rowling ([entre 2012 e 2015]d), uma pista da real motivação por trás dos interesses do jornal pode ser encontrada em seu próprio nome, The Daily Prophet, no original. Prophet, em inglês, é um homófono de profit, que significa lucro, o que esclarece que as intenções do veículo são tendencialmente capitalistas e este nos faz crer que sua relação com o governo pode estar diretamente ligada a acordos comerciais. Afora o Profeta, outros veículos impressos que aparecem na série são as esporádicas revistas Transfiguração Hoje – uma publicação acadêmica especializada – e o Semanário das Bruxas – um periódico de entretenimento, com conteúdo mais voltado para notícias de celebridades, cultura e variedades. Além dessas, há a revista O Pasquim, editada por Xenofílio Lovegood, pai de uma das alunas de Hogwarts, amiga de Harry. A publicação não detém muita credibilidade dentro da comunidade bruxa devido a suas matérias mirabolantes, especulativas e conspirativas, por vezes tão absurdas que é evidente ao leitor a falta de veracidade. No entanto, a revista tem uma participação importante durante a série, principalmente por exercer um papel de mídia alternativa e contra-hegemõnica, dando espaço para que seja exposto aquilo que o Profeta Diário não publica, por exemplo. Um detalhe particular dessas publicações é que, assim como as pinturas bruxas, as fotografias e ilustrações do mundo mágico se movem continuamente, como vídeos sem fim. Desse modo, ao ler um exemplar do Profeta Diário, um bruxo poderá se deparar com a foto de uma pessoa sorridente, que pisca e acena para o leitor. Mas nem só de imprensa vivem os porta-varinhas. É mencionado, no decorrer dos sete livros, o também hábito bruxo de ouvir ao rádio, mais especificamente à Rede Radiofônica dos Bruxos (RRB). No entanto, nas contadas vezes em que o rádio apareceu ou foi citado na saga, ele esteve quase sempre associado ao entretenimento musical, como uma apresentação da cantora Celestina Warbeck ou da banda As Esquisitonas. A única exceção é no sétimo e último

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Unidade monetária bruxa. O dinheiro bruxo é medido por três tipos de moedas: 29 nuques de bronze formam um sicle de prata, e 17 sicles formam um galeão de ouro.

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livro, quando a RRB é, pela primeira vez, retratada como fonte de notícias e quando entramos em contanto com a estação pirata de rádio Observatório Potter, a qual se posiciona como mídia contra-hegemônica tal como O Pasquim. Alguns veículos de comunicação trouxa (como a televisão e alguns jornais impressos) aparecem nos inícios de alguns livros. Porém, eles são incluídos apenas de forma acessória, para compor o cenário, ou para dar a Harry e ao leitor a ideia da dimensão de certos acontecimentos que ultrapassam as fronteiras do mundo bruxo e adentram o trouxa. Nessas ocasiões, esses veículos exercem pouca ou nenhuma influência na trama ou sobre a sociedade bruxa. Uma vez compreendidos o contexto e os hábitos comunicativos dos bruxos, podemos seguir para o próximo tópico onde iremos observar a influência que a mídia de massa exerce sobre a sociedade bruxa. Nosso objetivo é verificar se de fato essa influência ocorre e de que modo. Para isso, utilizaremos momentos midiáticos importantes dos setes livros que compõem a série, mas centrando nosso estudo apenas no veículo mais recorrente e influente da história, O Profeta Diário. Algumas breves exceções são feitas para a revista O Pasquim e a rádio Observatório Potter, quando eles entram em cena exercendo um papel de contraste ao do Profeta, tornando-se relevantes para a discussão por suprirem necessidades da audiência quando o grande jornal não as satisfaz. Para realizar o estudo, tomaremos como base os conceitos discutidos no capítulo anterior acerca da comunicação de massa. Isto é, a hipótese do agendamento, que aponta que a mídia tem a capacidade de pautar os assuntos das discussões públicas e quais os aspectos desses assuntos que serão levados em conta. Igualmente, os conceitos de poder, efeitos e eficácia da mídia de Denis McQuail (1983), que levam em consideração o potencial de influência da mídia, a sua real influência e o quanto ela está de acordo com a intenção do emissor. Ainda serão considerados os fatores relativos à audiência91 e à sua relação com o emissor92 no estágio de recepção da mensagem e como essas condições alteram a forma como os receptores consomem e interpretam as mensagens, limitando o poder de influência da mídia. E, por fim, a habilidade da mídia de construir um recorte da realidade que direciona, filtra ou limita a experiência de mundo da audiência e, por essa razão, a possibilidade de ela ser usada por grupos de interesse para atingir seus objetivos.

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Familiaridade com o tema da mensagem, inclinação a concordar ou discordar dela ou indecisão. Confiança na autoridade, na credibilidade e/ou na imparcialidade da fonte.

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3.4 Profecia nossa de cada dia O nosso estudo será divido em seis subtópicos, um para cada livro da série e mais um dedicado às considerações finais. As exceções são os três primeiros volumes, que dividirão o mesmo subtópico por serem livros curtos e terem uma participação escassa dos meios de comunicação de massa em suas páginas. Nesses subtópicos, daremos as informações da trama de cada volume que forem necessárias para a compreensão da participação da mídia e então apresentaremos um estudo detalhado das passagens mais importantes em que constam O Profeta Diário (e, de modo breve, outros veículos quando necessário). As passagens selecionadas foram as em que os veículos possuem uma importância notável para a cena e onde se podem observar efeitos de influência sobre as personagens ou a sociedade bruxa de forma geral. Foram excluídas as passagens em que os veículos de comunicação são acessórios, citados apenas como parte da caracterização do cenário, ou aquelas em que se observa um aspecto comunicacional já amplamente discutido pelo subtópico do volume, de modo que a discussão não ficasse repetitiva. Algumas passagens não possuem nenhum veículo sendo citado diretamente, mesmo assim, a influência da mídia pode ser facilmente inferida, pois atividades e comportamentos sociais que evidenciam os efeitos da mídia são descritos nessas cenas.

3.4.1 Pedra Filosofal, Câmara Secreta e Prisioneiro de Azkaban O Profeta Diário aparece pela primeira vez já no primeiro livro da série, logo nos capítulos iniciais, quando Hagrid vai buscar Harry para informá-lo de que é um bruxo (ROWLING, 2000a, p. 57 e 60), embora essa passagem sirva apenas para nos apresentar o veículo. Nos três primeiros volumes da série, o jornal é retratado como uma confiável e séria fonte de notícias, quase sempre entrando em cena com uma informação necessária para o desenvolvimento da trama. Em Harry Potter e a Pedra Filosofal (ROWLING, 2000a, p. 57 e 124), é através do jornal que Harry fica sabendo da tentativa de roubo a Gringotes, o que estimula suas investigações sobre a Pedra Filosofal, findando por salvá-la de ser capturada por Voldemort, ao final do livro. Em Harry Potter e a Câmara Secreta (ROWLING, 2000b), apesar de aparecer um pouco mais, o jornal não chega a contribuir com a trama principal do livro, que neste volume é

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a busca pela Câmara Secreta da lenda de Salazar Slytherin 93 e pela identidade de seu herdeiro que estaria atacando os nascidos-trouxas de Hogwarts. Ainda assim, a participação do veículo nesse volume se torna relevante pela introdução de um personagem ávido pela fama, Gilderoy Lockhart, novo professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. Lockhart é um bruxo famoso por seus livros que contam suas supostas proezas mágicas e aventuras pelo mundo enfrentando criaturas perigosas. A cena em que o conhecemos é uma sessão de autógrafos de seu mais novo lançamento em uma livraria bruxa. O detalhe notável desta cena é a presença de um fotógrafo do Profeta, que dá uma outra dimensão ao evento, legitimando a importância do acontecimento e a fama de Lockhart (p. 57). Aqui se pode observar um dos pontos discutidos pela hipótese do agendamento sobre, ao selecionar certos eventos em detrimento de outros para a sua cobertura, a mídia repassar à população os assuntos aos quais ela deve atentar e por quais se interessar. Isso fica ainda mais claro, no final do livro, quando descobrimos que Lockhart é um charlatão e que nenhum dos feitos contados em seus livros são realmente de mérito dele. Isso nos permite presumir que uma das principais responsáveis pelo prestígio que o bruxo recebeu através dos anos foi sua exposição midiática, o que lhe garantiu, inclusive, um emprego como professor em Hogwarts, mesmo sem nenhuma qualificação evidente. Outro detalhe interessante desta cena é a afirmação de Lockhart de que “Juntos, você [Harry] e eu valemos uma primeira página” (p. 57). A hipótese do agendamento também discute que o grau de importância que um assunto recebe na cobertura midiática reflete-se na importância que o público dá a ele. No caso dos jornais impressos, as notícias de primeira página são as de maior destaque da publicação. Em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (ROWLING, 2000c), o Profeta se faz bem mais presente que nos volumes anteriores e com fortes relações com a trama principal do livro. Neste volume, há um fugitivo de Azkaban, a prisão dos bruxos, o primeiro a conseguir esse grande feito. Ele se chama Sirius Black e, segundo é divulgado, é um antigo servo de Voldemort e, portanto, altamente perigoso. A sociedade bruxa fica então em estado de alerta, atenta para como andam as buscas por Black, onde ele foi avistado pela última vez e com medo de seus membros serem suas próximas vítimas (o motivo pelo qual ele fora preso teria sido o assassinato de 13 pessoas de uma só vez). Tudo isso é cultivado pela cobertura do caso feita pelo Profeta Diário. Neste momento da série, o jornal continua detendo um alto grau de credibilidade e confiança por parte da

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Um dos quatro fundadores de Hogwarts, fundador da casa Sonserina.

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comunidade bruxa, como podemos ver na carta que Hermione envia a Harry ainda no início do livro, “mandei entregar o jornal no meu endereço de férias, é tão bom continuar em dia com o que acontece no mundo dos bruxos” (ROWLING, 2000c, p. 16). Inclusive, tomamos conhecimento da fuga de Black e de quem ele é precisamente, por meio do periódico, quando Harry foge da casa dos Dursleys e é resgatado pelo Nôitibus Andante94, no qual se depara com um personagem lendo um exemplar do jornal com a notícia. Harry comenta que Black também aparecera no noticiário trouxa, ao que o leitor do jornal responde “Claro que apareceu no noticiário dos trouxas, [...] por onde você tem andado? ” (p. 36). A fala corrobora a assertiva de que a repetição de uma mesma mensagem em meios diferentes possui uma eficácia ainda maior de agendamento, pois aumenta a percepção da sociedade quanto à relevância do assunto. O jornal volta a ser citado várias outras vezes no decorrer do livro trazendo novas informações acerca do caso de Black e suscitando a discussão das personagens sobre o assunto; como quando Harry e a família Weasley estão hospedados no Caldeirão Furado95 e se deparam com uma matéria de capa sobre o fugitivo. Nessa cena a discussão é somada às informações internas sobre as buscas do Ministério pelo bruxo, que são compartilhadas pelo Sr. Weasley (p. 55); quando, já em Hogwarts, os alunos descobrem pelo jornal que Black fora avistado por uma trouxa em uma área não muito longe da escola, o que eleva o grau de tensão em que a instituição já se encontra (p. 106-107); ou quando Harry e Lupin conversam sobre a decisão do Ministério, divulgado pelo Profeta, de permitirem que os dementadores96 performem o beijo97 em Black quando o capturarem: é perceptível aí um embate ético nas opiniões divergentes dos dois personagens acerca de o fugitivo merecer ou não esse castigo. No último capítulo do livro, o Profeta é mencionado pelo Ministro da Magia, Cornélio Fudge, quando ele se refere às possíveis coberturas do impresso sobre os acontecimentos recentes. Primeiro, ele fala sobre seu desejo de contar ao diário que capturara Sirius. Aqui, percebemos a importância que o governo bruxo dá ao que é divulgado na mídia, pois acredita que isso possa influenciar na imagem que a população tem da competência do Ministério. Porém, logo em seguida, ao perceber que Black havia conseguido fugir, o Ministro volta atrás e demonstra receio do que o jornal falará ao descobrir o ocorrido, o que reforça a importância

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Ônibus mágico que funciona como transporte de emergência para bruxos e bruxas perdidos. pub exclusivo para bruxos, e invisível para trouxas, localizado em uma rua de Londres. 96 Criaturas das trevas que sugam a felicidade das pessoas. Eles são os guardas da prisão de Azkaban e estão efetuando as buscas por Black. 97 O beijo de um dementador suga a alma da vítima, deixando-a viva, porém sem qualquer forma de consciência. Na série, esta é considerada uma pena pior que a morte. 95

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que o governo dá à forma pela qual o veículo o retrata (p. 334-337). O poder de influência da mídia em modelar a experiência da audiência acerca do mundo que está além de sua experiência imediata, o que inclui instituições como o governo estatal, preocupa essas organizações que podem ser prejudicadas por uma opinião pública negativa, ou que podem se beneficiar de uma opinião pública positiva. A contribuição mais importante para a discussão do poder da mídia nesse ponto da história, no entanto, é algo que não é diretamente conectado à mídia nas páginas do livro. Descobrimos, ao final do volume, que Black, na verdade, não é culpado ou sequer perigoso. Ele fora incriminado por outro bruxo que fugira e vivera disfarçado na sociedade bruxa desde então, permitindo que Black fosse preso no seu lugar. Percebemos assim que toda a sensação de perigo e estado de alerta que a comunidade bruxa vivenciou no ano que se passou não tinha fundamentos na realidade, mas era mantida como real pela cobertura da mídia. A população não tinha informações empíricas acerca do perigo que Black oferecia, mas foi convencida pela mídia de que corria riscos. Aqui percebemos um exemplo claro do recorte de realidade que a mídia constrói, por vezes distante da realidade em si, e como esse quadro limitado de experiência pode ser apropriado pela audiência. Mesmo que alguém seja inocente, se a mídia o define como culpado é provável que as pessoas acreditem que este alguém o seja, principalmente se elas não o conhecerem e não possuírem informações prévias com que contrastar a versão da mídia.

3.4.2 Cálice de Fogo Em Harry Potter e o Cálice de Fogo (ROWLING, 2001), temos um momento de efervescência na comunidade bruxa britânica, devido à realização de grandes eventos internacionais nesse território, tal como acontece durante a Copa do Mundo FIFA ou durante as Olímpiadas no mundo real. O Reino Unido se torna palco da final da Copa Mundial de Quadribol98, entre a Irlanda e a Bulgária, e Hogwarts, a anfitriã do renascido Torneio Tribruxo, um campeonato entre as três maiores escolas de magia da Europa (a britânica Hogwarts, a francesa Beauxbatons e a leste-europeia Durmstrang), em que um estudante de cada uma é escolhido como campeão para se enfrentarem em três tarefas mágicas de alta dificuldade; sendo essa a primeira vez que a competição seria realizada em 100 anos. Desta feita, no entanto, apenas bruxos maiores de idade, isto é, com 17 anos ou mais, poderiam se candidatar. 98

Esporte favorito dos bruxos, onde os jogadores jogam voando montados em vassouras.

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Desse modo, a comunidade bruxa, neste quarto volume, encontra-se consideravelmente mais agitada e com as atenções muito mais voltadas para o que acontece dentro dos terrenos da escola. Porém, algo sai errado e joga Harry mais uma vez para os holofotes. Misteriosamente, o garoto é escolhido pelo Cálice de Fogo99 como um quarto campeão do torneio, o segundo de Hogwarts, mesmo ele sendo menor de idade, com apenas 14 anos, e não tendo se candidatado. Como ele foi selecionado magicamente pelo Cálice, ele é obrigado a competir mesmo sendo contra as regras, o que garante a Harry um longo ano de exposição midiática, de estresse e preocupação com o perigo das tarefas que não está preparado a enfrentar e de especulação acerca de quem o teria inscrito e com quais intenções. A participação do Profeta Diário nesse livro se dá de maneira ácida e agressiva, na forma de uma personagem de práticas jornalísticas pouco éticas e altamente sensacionalistas, Rita Skeeter100, e de um longo período de crise de imagem enfrentado pelo Ministério da Magia devido aos constantes ataques e especulações do veículo sobre a falta de eficiência do governo. A primeira ocorrência é logo após os conturbados eventos que seguiram a final da Copa Mundial, em que Comensais da Morte101 surgiram espalhando terror entre os torcedores e a Marca Negra102 foi conjurada no céu. O Profeta do dia seguinte chegou com a manchete “CENAS DE TERROR NA COPA MUNDIAL DE QUADRIBOL”, e “Ministério erra... responsáveis livres... segurança ineficaz... Bruxos das trevas correm desenfreados... desgraça nacional...” na primeira página (p. 119-120). Sr. Weasley fica preocupado com a repercussão do evento no jornal e não se surpreende ao constatar que é Rita Skeeter que assina a matéria. “Essa mulher vive implicando com o Ministério da Magia!” (p. 120) acrescenta um furioso Percy, um dos irmãos de Rony que também é empregado do Ministério como o pai. A aflição dos dois ministeriais não é infundada, tendo em vista a inquietação do próprio Ministro, no fim do livro anterior, com a repercussão que a fuga de Black poderia ter no diário. O Profeta é o meio de comunicação mais proeminente da sociedade bruxa britânica e, particularmente possuindo uma jornalista tão ativamente crítica do governo como Rita Skeeter, é preocupante para eles a imagem que a população possa construir da instituição a partir do enquadramento do jornal.

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Objeto mágico onde os alunos depositavam suas candidaturas e que é o responsável por selecionar os três campeões tribruxos. 100 Foram excluídas do estudo as passagens que se referem apenas ao caráter da personagem, as que focam mais em seu fazer jornalístico que nos efeitos de suas matérias publicadas no jornal, e as em que ela escreve para o Semanário das Bruxas. 101 Como são chamados os seguidores de Lord Voldemort. 102 Uma caveira com uma cobra no lugar da língua, a marca de Voldemort.

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O trecho seguinte da matéria é o que mais alarma Sr. Weasley. Se os bruxos aterrorizados que prendiam a respiração à espera de notícias na orla da floresta queriam ouvir do Ministério da Magia uma palavra que tranquilizasse foram lamentavelmente desapontados. Um funcionário do Ministério saiu da floresta uns minutos depois do aparecimento da Marca Negra, dizendo que não havia ninguém ferido, mas recusando-se a dar maiores informações. Resta ver se tal declaração será suficiente para abafar os boatos de que vários corpos foram retirados da floresta uma hora mais tarde (ROWLING, 2001, p. 121).

O pai de Rony fica exasperado ao ler as palavras de Skeeter, era ele o funcionário citado na matéria e ele critica a forma como a jornalista fez parecer que ele estava escondendo algo, uma vez que ninguém havia sido ferido realmente e não existia qualquer corpo: “Ora, agora é que vai haver boatos depois de ela publicar isso” (p. 121). Com uma situação delicada em mãos, Percy e o pai partem para o Ministério durante as próprias férias para tentar minimizar os estragos que o jornal pode ter causado à imagem do governo. Uma semana mais tarde, Sr. Weasley relata que a jornalista continua criando problemas para o Ministério e que agora descobrira o recente caso de uma funcionária desaparecida, o que seria a manchete do dia seguinte. É interessante notar que, afora o jornalismo questionável de Skeeter, a imprensa carrega em si um caráter valioso de denúncia e de fiscalização das instituições públicas. O Ministério está agora atento e cauteloso devido às investidas do jornal em expor seus erros. Portanto, o poder de influência da mídia pode ser usado de forma construtiva, o problema se inicia quando interesses diferentes do da instrução do público entram em jogo, como o sensacionalismo de Skeeter em exagerar as falhas ministeriais sem se importar com a veracidade dos fatos apenas para garantir audiência. Em dado momento, Harry demonstra a Rony estar preocupado com a falta de retorno de sua coruja, Edwiges, que ele enviou mais de uma semana antes para entregar uma carta a Sirius Black, seu padrinho. Quando pergunta ao amigo se ele acha que Black fora capturado, o ruivo responde prontamente: “Nããão, teria saído no Profeta Diário [...] O Ministério iria querer mostrar que capturou alguém, não acha? ” (p. 127, grifo da autora). Os personagens assumem, nessa cena, que compreendem que o governo tem o interesse de passar a impressão de competência à população e que se utilizariam do veículo de comunicação para transmitir essa imagem. “Sob condições de tensão e incerteza, governos e negócios ou outras elites e interesses são suscetíveis de tentar utilizar a mídia para influenciar e controlar” (MCQUAIL, 1983, p. 178, tradução nossa). O conflito entre o Ministério e o jornal se estende por ainda vários capítulos, com funcionários tentando abafar ocorrências polêmicas e Rita Skeeter as desacobertando e

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publicando de forma sensacionalista. Mas o foco da publicação muda com o início do Torneio Tribruxo e a polêmica da seleção de Harry para o campeonato. Em certo momento, Hermione tenta convencer o amigo a avisar Black sobre os eventos recentes. “Ele vai descobrir de qualquer jeito... [...] Harry, isso não vai ser abafado. Esse torneio é famoso e você é famoso. Eu ficaria realmente surpresa se já não tiver saído alguma coisa no Profeta Diário...” (ROWLING, 2001, p. 233). A questão válida de comentário nesta passagem é a ideia de que, se saiu na mídia, as pessoas vão ficar sabendo, elas vão ter acesso a essa informação e elas vão falar sobre isso, processos todos característicos da mensagem de massa identificados sob a ótica do agendamento. Não por coincidência, essa ideia é o argumento utilizado por Hermione para convencer Harry de que ele deve informar Black dos últimos acontecimentos antes que o padrinho os descubra sozinho. A primeira vez que Harry entra pessoalmente em contato com Rita Skeeter é quando a bruxa realiza a cobertura para o Profeta Diário da pesagem das varinhas dos campeões, uma espécie de exame de preparação para as tarefas. Na ocasião, a jornalista realiza uma entrevista particular com o garoto cheias de perguntas intimidadoras e tendenciosas, com o uso de uma pena duvidosa de “repetição rápida” que parece acrescentar ao texto detalhes e informações irreais (p. 242-243). E, como já era de se imaginar, foram exatamente essas informações que saíram no artigo do Profeta sobre o Torneio Tribruxo. Na realidade, a matéria estava mais interessada em expor a vida de Harry do que falar da competição em si, os campeões das outras escolas foram citados apenas na última linha do texto e Cedrico, o outro campeão de Hogwarts além de Harry, sequer fora mencionado. “Rita Skeeter pusera em sua boca uma porção de coisas que ele [Harry] sequer se lembrava de ter dito na vida, muito menos no armário de vassoura [onde ocorreu a entrevista]” (p. 252). O artigo atribuiu a Harry um falso depoimento sobre como ele acreditava que os pais estariam orgulhosos de vê-lo no torneio e de como ele ainda chorava pela perda deles, além de várias outras informações nunca proferidas pelo jovem bruxo. Harry se sentiu envergonhado e nauseado pela publicação, principalmente tendo em vista que boa parte da escola estava caçoando do garoto pelos corredores por terem acreditado que ele havia dito tudo aquilo para Skeeter apenas para conseguir atenção. Os alunos de Hogwarts receberam sem resistência as informações de Skeeter por não conhecerem a conduta da jornalista como Harry, Rony, Hermione e o Ministério da Magia já conheciam; a relação dos estudantes com a fonte ainda não havia se tornado uma de desconfiança, como já o era nos casos citados. Além disso, existia na escola uma predisposição

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a concordar com informações negativas acerca de Harry, uma vez que eles não acreditavam que o garoto não havia se candidatado e quebrado as regras do torneio por iniciativa própria e estavam insatisfeitos com a participação dele na competição, por julgarem Cedrico o verdadeiro campeão de Hogwarts. Receptores inclinados a concordar com a mensagem e em uma relação de confiança na credibilidade da fonte são mais suscetíveis de serem convencidos. Tendo Harry uma capacidade de influência muito menor que a do Profeta, ele acaba sendo intimidado pela opinião pública que o jornal constrói sobre ele. Essa situação cria no menino um certo receio e aversão pela mídia. Na primeira visita dos alunos a Hogsmeade103 naquele ano, Harry prefere esconder-se sob sua Capa de Invisibilidade, embora Hermione lhe tenha pedido que a retirasse, pois ninguém o incomodaria ali. O garoto responde apontando para Rita Skeeter, “Ela está hospedada no povoado. Aposto como vai assistir a primeira tarefa” (p. 255), seguido por uma sensação de pânico que lhe toma o estômago. Harry ficara abalado pela repercussão do artigo e prefere evitar quaisquer novas exposições à mídia. Isso se evidencia ainda mais quando o jovem compartilha suas preocupações a respeito disso com o seu padrinho, certa noite em que estão conversando através das chamas da lareira da sala comunal da Grifinória104, via Rede de Flu. Quando Black comenta que tem acompanhado o periódico, Harry responde amargamente “Você e o resto do mundo” (p. 266), evidenciando o amplo alcance e grau de influência do veículo, e o desagrado do garoto com o fato. Fora a questão pessoal de Harry com o jornal, Black ainda explica ao afilhado o que conseguiu ler nas entrelinhas de um dos artigos de Skeeter sobre os problemas ministeriais. O bruxo consegue conjecturar sobre uma série de informações a partir do que a jornalista escreveu, mesmo considerando partes do que ela diz como falsas. O que essa cena demonstra é que é possível absorver informações relevantes da mídia de massa, mesmo quando seu conteúdo é duvidoso, se o fizermos com um olhar crítico. Isto é, se questionarmos o que está ali escrito e interpretarmos a mensagem através de um filtro criado pelas informações prévias adquiridas do nosso meio e da nossa experiência, com as quais podemos contrastar as novas. Logo após a primeira tarefa do torneio, em que Harry teve que capturar o ovo dourado de um enorme dragão, o que ele faz muito bem com a ajuda de sua vassoura voadora, a satisfação dos estudantes de Hogwarts pela sua participação na competição parece aumentar. Entusiasmados com o desempenho do jovem bruxo, o público deixa a inclinação negativa a seu

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Um povoado nas redondezas de Hogwarts. Único vilarejo completamente bruxo da Grã-Bretanha. Uma das quatro casas de Hogwarts, a casa de Harry, Rony e Hermione. Cada casa possui uma sala comunal própria, onde apenas os alunos da casa podem entrar e onde ficam os dormitórios.

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respeito e passa a favorecê-lo, ignorando as informações do artigo de Skeeter e deixando-as cair no esquecimento (p. 309). Mas Skeeter consegue uma nova vítima, Hagrid, o guardião das caças de Hogwarts e professor de Trato das Criaturas Mágicas, amigo do trio principal. Na matéria que sai a seu respeito, Skeeter afirma que a contratação do professor foi “o maior erro de Dumbledore105” (p. 348), o que ela justifica com base em vários dos preconceitos já citados como cristalizados na comunidade bruxa. Segundo ela, Hagrid seria pouco qualificável por ter sido expulso de Hogwarts quando ainda estudante, por colocar seus alunos em risco devido à presença de criaturas perigosas durantes as aulas e por ele ser filho de uma mulher gigante, sendo, portanto, um mestiço. A repórter acrescenta, em seguida, uma série de questões polêmicas sobre a raça dos gigantes, sobre eles serem violentos e brutais, presumindo que Hagrid não teria um comportamento diferente do de sua ascendência. Skeeter se aproveita das crenças culturais dos bruxos na falta de competência de pessoas com menores habilidades em magia e na inferioridade de outras criaturas mágicas, escrevendo para um público que possui uma predisposição para consumir e concordar com esse tipo de mensagem. Como consequência, o professor acaba se afastando de seu emprego e escondendo-se por vergonha e receio das pessoas. Sua ascendência era um segredo que ele já guardava há muito tempo por medo das repercussões, e agora estava se sentindo exposto. Hagrid não é demitido, pois Dumbledore confia no professor e sabe da parcialidade e sensacionalismo de Skeeter (ou seja, é familiarizado com o assunto da mensagem, Hagrid, e desconfia da credibilidade da fonte), mas é revelado, mais tarde, que o meio-gigante recebe uma série de cartas ofensivas e revoltosas de pais e bruxos que o não o querem ensinando seus filhos. Esses remetentes nunca tiveram contato com Hagrid dentro de sua própria experiência, portanto, desconhecem o jeito bondoso, gentil e amável do bruxo que nada tem a ver com a brutalidade dos gigantes descrita por Skeeter. Eles também desconhecem a exímia habilidade do professor em lidar com criaturas mágicas e seu profundo conhecimento do assunto (adquirido pelos anos trabalhando como guarda-caças da escola), que em nada se relaciona com o fato de ele ter menor eficiência mágica por ter sido expulso. Sem as informações prévias necessárias para fazê-los familiarizados com o bruxo, e partilhando dos preconceitos habituais da comunidade em que se inserem, esses receptores foram mais facilmente convencidos pela mensagem de Skeeter, de cuja credibilidade eles não desconfiam.

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Diretor de Hogwarts.

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Apesar disso, o posicionamento de boa parte dos personagens principais da série, dos quais todos ou já haviam sido vítimas da imprensa ou já haviam conhecido de perto a forma como ela pode abafar, esconder, distorcer e manipular informações, já possui um posicionamento firme de resistência ao que consomem do meio. Um exemplo disso é quando, algumas páginas mais tarde, o trio principal está conversando com Winky, uma elfo que trabalha nas cozinhas da escola, e Harry a informa que o Profeta Diário publicara que o antigo patrão dela estava doente, ao que Hermione acrescenta “não temos certeza de que seja verdade” (p. 426). A esta altura, os personagens têm consciência de que as informações obtidas por meio do jornal devem ser consumidas de forma crítica. O que não significa, porém, que deixarão de lê-lo. Pouco depois, Hermione diz ter feito uma nova assinatura do periódico por estar “cheia de descobrir o que acontece pela boca da turma da Sonserina” (p. 429). Inevitavelmente, o jornal é o meio de comunicação bruxo mais influente e praticamente a única fonte de notícias da comunidade mágica, é o elo que os meninos possuem com o mundo externo à escola, mesmo que eles saibam que nem tudo o que vem escrito nele seja verdadeiro Antes de o livro acabar, Skeeter faz mais uma tentativa de artigo polêmico, voltando a focar em Harry e em sua suposta falta de saúde mental e inclinação para as artes das trevas. Porém, já acostumado com as mentiras da jornalista durante todo o ano que se passou, o jovem bruxo não demonstra se preocupar com a matéria. Tranquilo, ele apenas comenta “Acho que ela está deixando de gostar de mim, não? ” (p. 488). No fim do livro, a última menção ao Profeta Diário é quando Hermione explica que não saiu nada nos últimos dias sobre as recentes tragédias da terceira tarefa do Torneio Tribruxo, a morte de Cedrico, o retorno de Voldemort e o Comensal da Morte infiltrado em Hogwarts disfarçado de professor. Ela explica que Cedrico sequer é mencionado, tampouco Voldemort, e que houve apenas uma pequena notícia informando que Harry ganhara o Torneio, “Se vocês me perguntarem, acho que Fudge [o Ministro da Magia] está obrigando o jornal a se calar” (p. 577). Esta é a primeira vez que é inserida a noção de que o governo pode estar interferindo diretamente no que é publicado no periódico, encerrando o período de conflito entre o Ministério e o jornal e iniciando a fase da mídia enviesada pela agenda política do governo que se estende pelo restante da série.

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3.4.3 Ordem da Fênix Em Harry Potter e a Ordem da Fênix (ROWLING, 2003), a comunidade bruxa está sofrendo as consequências dos acontecimentos do volume anterior. Voldemort retornou, reuniu seus seguidores e está agindo. Dumbledore está recrutando seus próprios seguidores para ressuscitar a antiga Ordem da Fênix106 e tentar compor uma resistência ao bruxo das trevas. Tudo isso enquanto tenta informar à sociedade bruxa o perigo que ela corre e é sabotado pelo Ministério da Magia, que insiste em negar que o bruxo esteja de volta. Dessa forma a trama do livro se segue, em volta desse conflito Dumbledore x Fudge, em uma batalha de versões e convencimentos, enquanto a Ordem tenta descobrir os planos de Voldemort e impedi-lo e o Ministério interfere cada vez mais no funcionamento de Hogwarts para diminuir a influência de Dumbledore. Harry inicia o livro isolado na casa dos tios, tendo passado o verão inteiro sem nenhuma notícia de seus amigos, de Dumbledore ou de seu padrinho. Em sua tentativa de se inteirar do que está acontecendo no mundo bruxo, ele adquire uma assinatura do Profeta Diário, da qual em pouco tempo começa a se arrepender. Todo esse tempo recebendo o jornal e ainda não encontrara nenhuma notícia relacionada ao retorno de Voldemort. Harry até já parara de ler o interior do jornal e estava apenas correndo os olhos pela primeira página, acreditando que os editores colocariam em grandes manchetes qualquer notícia de tamanha importância (ROWLING, 2003, p. 12). Mais uma vez um personagem crítico e resistente ao jornal acaba tendo de recorrer a ele em busca de informação por falta de opção de fontes alternativas. É notável o monopólio midiático que o Profeta Diário exerce sobre a sociedade bruxa, e isso potencializa ainda mais o poder de influência e de agendamento do veículo, tornando-o difícil de ser combatido. Nessa passagem, Harry também resgata o conceito da primeira página, quando se limita a procurar nelas os assuntos importantes. A hipótese do agendamento prevê que os assuntos que recebem mais ênfase da mídia são os que ganham mais importância na agenda da sociedade, e a frustração de Harry em não encontrar notícias sobre Voldemort na primeira página demonstra que ele também possui essa expectativa. Harry chega a xingar os editores do jornal de “idiotas” por ainda não terem percebido que Voldemort voltara e cogita escrever à “droga do Profeta Diário” para informá-los da situação. Diferente dos exemplos do livro anterior, nessa parte inicial o jovem bruxo não fica

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Grupo de aurores que lutaram na resistência a Voldemort na primeira vez que ele tentou assumir o poder, na conhecida como Primeira Guerra Bruxa.

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indignado com as mentiras do jornal, mas com a sua falta de competência em informar a população bruxa dos fatos realmente relevantes. O que estamos observando é o claro confronto entre as agendas incompatíveis de Harry e do jornal. O garoto adquirira em sua experiência imediata, no final do volume anterior, informações que encadearam assuntos em uma ordem de prioridades diferente da mantida pelo jornal, o que faz Harry não apenas resistir à agenda do jornal, mas rebelar-se contra ela. No entanto, a maior parte da população bruxa não dispõe das mesmas informações que ele. Quando Harry se junta ao restante dos personagens na sede da Ordem da Fênix, Hermione lhe explica melhor como o Profeta Diário tem agido. O governo bruxo nega veementemente o retorno de Voldemort, afirmando que isso é apenas uma invenção de Dumbledore e Harry, e conta com a ajuda do Profeta para reforçar isso com a falta de informações sobre o bruxo das trevas em suas páginas, agindo como se ele ainda estivesse desaparecido. Ao mesmo tempo, o periódico dá seguimento às antigas matérias maldosas de Rita Skeeter sobre Harry ser um jovem perturbado, utilizando-o como referência aqui e ali em notícias para desacreditá-lo, como se ele fosse “a piada da vez”, nas palavras de Hermione. Ela esclarece: Bom, estão pintando você como uma pessoa fantasiosa e sedenta de atenção que acha que é um grande herói trágico [...]. Eles não param de incluir comentários irônicos sobre você. Se aparece uma história mirabolante, escrevem [...]: “Uma história digna de Harry Potter”, e se alguém tem um acidente estranho [...] dizem: “Vamos fazer votos para que ele não fique com uma cicatriz na testa ou vão nos pedir para venerá-lo” ... (ROWLING, 2003, p. 65).

Percebemos que para “pintar” a imagem de Harry como alguém desvairado, o jornal não faz nenhuma matéria especial desmentindo-o ou falando dele diretamente. A estratégia é não confrontar Harry de forma evidente no jornal para não lhe dar destaque, transmitir a mensagem que o desacredite ao mesmo tempo que induz a população a não dar importância para o que ele está dizendo. Estratégia essa que vem dando certo se levarmos em conta o exemplo de Percy. Rony explica que o irmão brigou com os pais por, ao contrário deles, não acreditar na versão de Harry e Dumbledore e confiar nas atitudes do Ministério, “Percy leva o Profeta Diário a sério” (p. 64), complementa Hermione. Quando Harry se indigna por não ser verdade que ele queira que o venerem, a amiga responde Eu sei que não [...] Eu sei que não. Mas você percebe o que eles estão fazendo? Querem transformar você em uma pessoa que ninguém acredita. Fudge está por trás de tudo, aposto o que você quiser. Eles querem que o bruxo da rua

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pense que você não passa de um garoto burro, que é meio engraçado e que conta histórias ridículas porque adora ser famoso e quer continuar sendo (p. 65, grifo da autora).

O início deste volume vai aos poucos comprovando ao leitor que o governo conseguiu pôr as mãos na mídia de massa e a está utilizando para manipular a agenda pública de acordo com os seus interesses. Quando o protagonista enfim se encontra com os membros da Ordem, eles explicitam ainda mais a situação política e midiática em que se encontram. Lupin comenta que [...] o Ministério está confiando que o Profeta Diário não noticie o que chama de campanha de boatos de Dumbledore e, assim sendo, a maior parte da comunidade bruxa não tem a menor consciência que alguma coisa tem acontecido, e com isso se torna um alvo fácil para os Comensais da Morte, se estiverem usando a Maldição Imperius (p. 81).

Neste ponto são mostrados os prejuízos que esconder os fatos pode causar à população. Sem consciência do que está acontecendo, os bruxos se tornam ingênuos e alvos fáceis aos malintencionados Comensais da Morte, e assim mais suscetíveis, por exemplo, à Maldição Imperius, um feitiço que põe a vítima sob total controle do bruxo. A ideia que a passagem constrói é sobre a população desinformada e não equipada dos fatos ser mais fácil de ser controlada por grupos de interesse. Harry não é o único alvo da difamação da publicação. Na página seguinte, Lupin menciona a edição do Profeta da semana anterior que informava sobre a saída de Dumbledore da Confederação Internacional de Bruxos, alegando que o mago teria sido votado para fora da comissão pelos seus membros por estar “ficando velho e incapaz” (p. 81). Na realidade, foram os bruxos do Ministério que votaram pela dispensa dele após ele ter feito um discurso na comissão anunciando o retorno de Voldemort. Tanto Dumbledore quanto Harry são os alvos principais da empreitada de difamação do Ministério. Uma cena breve, mas que apresenta uma camada de sentido interessante é quando Harry vai ao Ministério para uma audiência, por um suposto uso indevido de magia que cometera, e se depara com um segurança, tanto na entrada quanto na saída, lendo um exemplar do Profeta (p. 107 e 130). É possível enxergar nesse cenário uma alegoria à união do governo e do jornal, juntos em um discurso comum. A própria função do segurança, de controlar quem é digno ou não de entrada, é análoga àquela exercida pela mídia em seu recorte da realidade. É apenas quando Harry pega o Expresso de Hogwarts para ir à escola iniciar seu ano letivo, no entanto, que observamos de perto os efeitos das publicações do Profeta. Ao passar pelo corredor, o jovem nota vários rostos se virando para ele e olhares o acompanhando, o que

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ele atribui à fama de “mentiroso exibicionista” (p. 154) que o jornal andara perpetuando por todo o verão. Os primeiros problemas surgem já na primeira noite em Hogwarts, quando um dos colegas de quarto de Harry, Simas, conta que sua mãe quase não o deixara voltar à escola devido ás notícias do Profeta sobre Harry e Dumbledore. Harry se irrita ainda mais quando Simas o questiona sobre o que havia realmente acontecido na noite em que Cedrico morrera, e o manda ir ler a respeito no jornal como a mãe dele, “O jornal vai lhe dizer tudo que você precisa saber” (p. 182). A briga só termina quando Rony adentra o quarto e interfere na situação, que só se encerra depois de Simas acusar Harry e Rony de serem loucos. Aqui os efeitos de influência do Profeta na opinião pública se tornam palpáveis para os personagens. Mesmo Simas, que tem dormido no mesmo cômodo que Harry e estudado em Hogwarts sob a diretoria de Dumbledore há quatro anos consecutivos, não consegue resistir completamente à repetitiva mensagem de insanidade dos dois bruxos, mensagem essa que parece vir de todos os lados, inclusive de sua própria mãe. Essa situação consegue se configurar justamente porque todos estão incertos demais acerca do que ocorrera na terceira tarefa do torneio Tribruxo no final do ano letivo passado. Mas nem todos são de fato convencidos pelo periódico. Felizmente, ainda na mesma cena, outro colega de quarto de Harry, Neville, defende a ele e a Dumbledore ao contar que sua avó “diz que tudo isso é tolice [...] Ela diz que o Profeta Diário que está em decadência, e não Dumbledore. Ela cancelou a nossa assinatura. Acreditamos em Harry” (p. 183). A avó de Neville tem uma posição bem mais crítica em relação ao jornal que a mãe de Simas, provavelmente devido a uma confiança já previamente adquirida em Dumbledore, e como consequência também em Harry, o que influencia fortemente a opinião de seu neto. Nas semanas seguintes, no entanto, Harry vira vítima de inúmeros comentários maldosos sobre sua saúde mental e honestidade pelos corredores da escola. Isso o deixa irritado e o faz questionar porque todo mundo parece simplesmente ter comprado a atual versão do Profeta da história, mesmo tendo todos acreditado no discurso de Dumbledore sobre a morte de Cedrico no fim do ano letivo anterior. Hermione se mostra perspicaz ao responder que acha que, na realidade, eles não tenham acreditado tanto assim. No ano anterior, Harry chegara de repente no meio do gramado segurando o cadáver de Cedrico, ninguém vira nada do que havia acontecido e a palavra de Dumbledore era a única garantia de que Voldemort havia retornado, assassinado Cedrico e batalhado contra Harry. “Só que antes de poderem assimilar a verdade, todos foram embora, passaram as férias em casa, lendo por dois meses que você [Harry] é pirado e Dumbledore está ficando senil! ” (p. 211). O

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que a jovem bruxa consegue esclarecer é que o discurso de Dumbledore não foi o suficiente para dissipar a confusão na mente desses adolescentes acerca da conturbada e inexplicável morte de Cedrico, assim, eles voltaram para casa perdidos e vulneráveis à manipulação massiva da mídia que lhes oferecia uma explicação mais simples e confortável. O impacto da mensagem de massa é mais eficaz quando o receptor está indeciso ou confuso. Em certo momento, Hermione readquire a assinatura do jornal, alegando ser “melhor saber o que o inimigo está dizendo” (p. 188). Mais tarde, o trio passa a discutir as notícias de um exemplar recém-chegado pelo correio-coruja, uma sobre Black ter sido avistado em Londres e outra sobre a prisão do bruxo Estúrgio Podmore, que eles sabem ser um membro da Ordem da Fênix (p. 238-240). O interessante dessa cena é que o trio consegue absorver informações das notícias de forma crítica, compreendendo que elas significam algo de fato, ainda que não na exata forma como estão ali escritas. Eles sabem, dentro de suas experiências imediatas, que Black não é nenhum criminoso, mas percebem que aquela informação pode indicar que ele tenha sido visto quando foi deixar Harry na estação de trem no início do ano letivo. Eles também têm conhecimento prévio de que Podmore, um auror da Ordem, não estava agindo contra o Ministério, e, a partir dessas informações anteriores, concluem que ele tenha sido vítima de alguma armação. Os garotos dão-se conta, portanto, da mesma forma como outros personagens mais velhos já foram retratados fazendo (como Black no livro anterior), de usar as notícias tendenciosas do jornal como fonte, mas discutindo até onde elas são ou não verdadeiras, combinando-as com a sua experiência prévia dos assuntos que abordam e especulando sobre o cenário verdadeiro, que não aparece no recorte da realidade que o jornal produz. Notamos que os protagonistas aqui se firmam como receptores resistentes e críticos que, apesar de continuarem consumindo o veículo e se expondo à suas mensagens, não são facilmente influenciados por ele; situação que corrobora a hipótese do agendamento quando ela assume que o efeito da mensagem não é uniforme e nem sempre eficaz. Outra notícia importante trazida pelo jornal é quando ele anuncia o cargo de Alta Inquisidora de Dolores Umbridge107, o que lhe dá o poder de inspecionar os funcionários de Hogwarts, adequá-los ao formato de ensino indicado pelo governo e, caso contrário, demiti-los. A manchete oficializa as medidas ministeriais para interferir no funcionamento da escola bruxa e traz uma série de depoimentos completamente parciais sobre a suposta incompetência de

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Atual professora de Defesa Contra as Artes das Trevas, funcionária do Ministério indicada ao cargo pelo governo quando o diretor não conseguiu encontrar outra pessoa.

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Dumbledore como diretor e a dita falta de confiança dos pais em relação a sua gestão (desconfiança esta, diga-se de passagem, influenciada pelo próprio jornal). A matéria traz apenas um depoimento a favor de Dumbledore, o de uma juíza da Suprema Corte dos Bruxos, que vem acompanhado da nota “Leiam a história completa das supostas ligações de Madame Marchbanks [a juíza] com grupos de duendes subversivos na p. 17” (p. 257). Ou seja, atrelando especulações maldosas à defensora de Dumbledore, claramente em uma tentativa de enfraquecer a relevância de seu depoimento. O jornal prossegue sendo retratado como um veículo influente e, de certo modo, até onipresente, em vários momentos em que personagens são descritos carregando ou folheando um exemplar do periódico, inclusive professores (p. 265, 296, 487 etc.). Uma passagem em que os personagens vão visitar o Sr. Weasley no hospital após o ataque que sofreu no Ministério mostra que, além de se utilizar do jornal para manchar as imagens de Harry e Dumbledore e manter a população ignorantes acerca de Voldemort, Fudge também o usa para esconder as falhas do governo e construir uma imagem de competência e eficiência da instituição. Sr. Weasley menciona que seu acidente não fora publicado no jornal, e atribui a isso o exato motivo de que o Ministério não gostaria que soubessem que um funcionário seu fora atacado quando estava em serviço (p. 400). A cena que dá os indícios mais evidentes de que o Ministro está trabalhando em conjunto com o veículo é quando Dumbledore confessa estar agindo contra o governo (para proteger Harry e os alunos da Armada de Dumbledore108) e a primeira atitude de Fudge é ordenar que uma carta contendo a confissão do diretor seja enviada ao jornal para sair ainda na edição da manhã seguinte (p. 503). Apesar da situação complicada que possuía em mãos nesta passagem, a prioridade do Ministro foi garantir que poderia utilizá-la para influenciar a opinião pública a favor do governo e contra o diretor, feito em que ele parecia ter uma confiança considerável de que poderia contar com o Profeta Diário. Mas o ponto de virada para o contexto midiático de Ordem da Fênix vem ainda no capítulo 25, quando o Profeta entrega a notícia sobre a fuga em massa de ex-Comensais da Morte em Azkaban. A notícia causa um grande impacto na população bruxa devido às dimensões do acontecimento. A proporção do ocorrido, inclusive, é o provável motivo de a notícia não ter sido abafada pelo Ministério, já que a segurança da prisão dos bruxos é de responsabilidade do governo; no entanto, o jornal não foge completamente de sua agenda

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Grupo de estudantes que treinavam feitiços de defesa e ataque clandestinamente, pois a prática havia sido proibida pela Alta Inquisidora.

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política, pois insiste em publicar apenas a versão ministerial que, nesse caso, acusa Sirius Black, o único a ter conseguido escapar de Azkaban antes, de ter ajudado seus “colegas” (p. 444-445). A fuga em massa rapidamente repercute entre os estudantes de Hogwarts que começam a conversar e a cochichar pelos corredores, espalhando boatos e especulando. Alunos que tiveram parentes vítimas dos criminosos foragidos passaram a ser abordados e interrogados pela escola, o que os fez entender exatamente como Harry havia se sentido todos aqueles anos: “não sei como você suporta: é horrível! ”, comenta uma deles (p. 448-449). Toda a comoção que se desenvolve ao redor da notícia é um grande exemplo de uma das premissas bases da hipótese do agendamento, quando ela atribui à mídia exatamente esse poder de pautar a discussão pública. Mas, por vezes, o agendamento consegue dizer ao público sobre o que pensar, mas não o que pensar; algo que começa a ficar mais claro com alguns dos desdobramentos seguintes, provavelmente não previstos pelo Profeta Diário. Harry voltou a se tornar alvo de cochichos e comentários pelos corredores, mas, felizmente desta vez, ele percebe que não de uma forma negativa, mas com curiosidade e interesse. Os estudantes estavam insatisfeitos com a versão do Profeta sobre o motivo da fuga, os fatos que eram publicados estavam ficando inconsistentes e fazendo cada vez menos sentido, o que permitiu que começassem a cogitar as versões de Harry e Dumbledore como verdadeiras. O público estava finalmente duvidando do jornal e do governo e ansiava por explicações mais esclarecedoras (p. 449). Não apenas os alunos estavam inquietos, mas os professores também eram vistos aos grupos e aos cochichos. A ponto de serem proibidos, pela Alta Inquisidora, de trocar informações com os alunos que não dissessem respeito a suas disciplinas. Umbridge, como representante do Ministério em Hogwarts, parecia temer que os docentes pudessem influenciar os estudantes com ideias contrárias ao governo, com a recente queda de confiança no Estado. A atitude, inclusive, demonstra um reconhecimento do governo do limite da influência da mídia, pois passou a tomar outras formas de controle para tentar amenizar a descrença pública em sua versão da história (p. 449-450). Aproveitando-se do momento propício, em que as pessoas se encontravam mais suscetíveis a uma outra versão dos fatos, Hermione decide fazer algo para ajudar Harry. Ela então recorre a Rita Skeeter, com quem tinha um acordo109 firmado desde o final do ano letivo 109

Ao fim do Cálice de Fogo, Hermione descobre que Skeeter é uma animaga clandestina, isto é, uma bruxa com a habilidade de se transformar em um animal (no caso dela, um besouro) que não consta no registro de animagos do Ministério, como exige a lei. Com isso, a jovem consegue estabelecer um acordo

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anterior, e a chama para um encontro em Hogsmeade junto a Harry e Luna110. O intuito é de que Skeeter faça uma entrevista com Harry contando a verdadeira versão do retorno de Voldemort e da morte de Cedrico. A reação de Skeeter à proposta de entrevista é que o “Profeta não publicaria isso [...] ninguém acredita nessa conversa fiada. Todos acham que ele é delirante” (p.462), completando com um pedido para escrever a entrevista de outro ângulo. Hermione nega, afirmando que eles não precisam de mais uma notícia sobre a insanidade mental de Harry, pois já possuíam bastante disso. A jornalista então diz não haver “mercado” para a versão do garoto, ao que a garota replica “você quer dizer que o Profeta não publicará porque Fudge não vai deixar” (p. 463). Skeeter é pega de surpresa pelo comentário da jovem bruxa, mas não o nega, “Muito bem, Fudge está ameaçando o Profeta, o que dá no mesmo. O jornal não vai publicar uma reportagem favorável a Harry” (p. 463). Nesse momento, Hermione a questiona se o periódico existe para dizer às pessoas o que elas querem ouvir, ao que Skeeter responde que ele existe para “vender exemplares, sua tolinha” (p. 463). Essa cena é muito eficaz em resumir boa parte do que Rowling vem nos dizendo acerca da mídia no decorrer das tramas de seus livros. Temos a comprovação, a partir da confirmação de uma jornalista do próprio veículo, que o meio não está interessado em histórias favoráveis a Potter e que o Ministério está realmente interferindo na publicação. Acima de tudo, nos é reforçado que os interesses do jornal são puramente capitalistas: o lucro vem antes de qualquer compromisso com a veracidade dos fatos. Ao final da conversa, no entanto, Hermione revela que é no Pasquim que a entrevista será publicada, por isso a presença de Luna no encontro. Skeeter reage com desprezo, afirmando que ninguém vai levar Harry a sério saindo em uma revista do gênero. Hermione não nega a imagem negativa da revista, mas diz que a versão do Profeta acerca da fuga em massa de Azkaban não convenceu as pessoas, que agora estão atrás de uma explicação melhor. Ela acredita que isso levantará o interesse pela entrevista de Harry, que lhes dará uma versão alternativa da história, mesmo se ela estiver publicada no Pasquim. Sem outra opção, Skeeter acaba tendo que aceitar escrever a entrevista (p.463-464). No fim das contas, o plano de Hermione dá bastante certo. Após a publicação da revista, Harry recebe várias cartas de leitores, alguns chamando-o de mentiroso, mas muitos se

com a jornalista de não a denunciar se esta ficar um ano sem publicar nada. Isso dá um fim às constantes mentiras que Skeeter vinha atribuindo a Harry. 110 Amiga de escola do trio, filha de Xenofílio Lovegood, editor da revista O Pasquim.

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mostrando indecisos ou apoiando o garoto (p. 471-472). Luna explica que aquele foi o número que mais vendeu da revista do pai, e grande parte dos alunos de Hogwarts adquirira a publicação, principalmente depois que Umbridge proibira o porte da publicação. A proibição acabou impulsionando a procura pela fonte alternativa, pois tornou evidente o posicionamento contrário do governo a uma mensagem diferente daquela da mídia hegemônica (p. 474-476). No final do livro, depois dos agitados acontecimentos da invasão ao Ministério da Magia em que Voldemort fora avistado e vários Comensais da Morte capturados, o Profeta Diário finalmente é forçado a noticiar o retorno do bruxo das trevas. Tendo sido avistado por inúmeros funcionários do Ministério, e até pelo próprio Fudge, tornou-se incontestável aquilo que Harry e Dumbledore vinham repetindo há um ano. O Ministro foi obrigado a admitir o erro publicamente e, como descobrimos no livro posterior, forçado a renunciar ao cargo. Sem o peso da interferência ferrenha do Ministério, o jornal então publica uma série de matérias explicando o ocorrido, colocando o governo como grande culpado e enaltecendo Harry como “o-meninoque-sobreviveu” e o “solitário da verdade” que enfrentou “a ridicularia e calúnia”. Hermione, então, ironiza que eles “esqueceram de mencionar que foi o próprio Profeta que ridicularizou e caluniou você [Harry]” (p. 683-685). Logo em seguida, vários alunos são vistos com o exemplar do jornal em mãos e acenando para Harry de forma convidativa, demonstrando seu recém-adquirido apoio ao jovem (p. 689). É perceptível que, mesmo que o Pasquim tenha sido capaz de mudar muitas ideias anteriormente, foi apenas quando o Profeta publicou informações a favor de Harry que ele recebeu aprovação geral do público. Isso demonstra que, ainda que a credibilidade do jornal tenha sido abalada, sua condição de mídia hegemônica não foi completamente afetada e seu poder de influência permaneceu. A última vez que o jornal é mencionado é nas mãos de Hermione quando o lê a bordo do trem de volta para casa. Ela diz que o veículo agora dava dicas aos leitores de como se defenderem das artes das trevas, falava das tentativas do Ministério de capturar Comensais da Morte e até continha algumas cartas de pessoas que supostamente haviam visto Voldemort (p. 698). Aparentemente, o jornal estava voltando atrás na narrativa que havia construído por todo aquele ano e, enfim, falando do que as pessoas precisavam saber. Mas até quando?

3.4.4 Enigma do Príncipe Em Harry Potter e o Enigma do Príncipe (ROWLING, 2005), o retorno de Voldemort já é algo publicamente sabido. Uma vez descoberto, portanto, o bruxo das trevas não está mais

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agindo por debaixo dos panos, e notícias de desaparecimentos, assassinatos e tragédias tornaram-se frequentes. O Ministério da Magia toma as medidas necessárias de segurança e proteção enquanto tenta acalmar a população e demonstrar competência. Dumbledore e membros da Ordem da Fênix continuam se articulando para descobrir os planos do bruxo e construir a resistência. Harry e seus amigos e os professores e alunos de Hogwarts seguem em seu ano letivo em um clima de terror. As forças de Voldemort estão ficando cada vez maiores. A participação do veículo do Profeta Diário neste volume é consideravelmente menos expressiva em comparação aos dois anteriores e ao seguinte. Agora livre do controle direto e enviesado de Fudge, o jornal recupera sua credibilidade e entra em cena diversas vezes durante os livros para informar os personagens do que está acontecendo no mundo bruxo. No entanto, o periódico não saiu incólume das polêmicas do ano anterior. Em vários momentos, personagens se referem ao meio de forma negativa, apontando seus erros e defeitos. Além disso, restam indícios de que ele prossiga transmitindo a agenda do Ministério, embora de forma bem menos impositiva que a de antes. De forma parecida com em Ordem da Fênix, as primeiras aparições do jornal bruxo no livro são os exemplares que Harry recebe durante suas férias de verão, contendo os acontecimentos recentes do mundo mágico, dando contexto e base para a trama futura do livro em questão. Nesta passagem, há três exemplares do periódico, com três importantes notícias. Uma delas dá prosseguimento às especulações do final do volume anterior sobre o que realmente ocorreu no Ministério da Magia na noite em que Voldemort fora avistado. A matéria cita como confirmado o foco da invasão ter sido a Sala da Profecia e especula sobre os motivos que levaram Voldemort ao local, cogitando que o bruxo das trevas estava atrás de uma profecia que anunciava Harry Potter como O Eleito, o único capaz de livrar o mundo do bruxo das trevas. Apesar de o jornal tratar isso o tempo inteiro como especulação e boato, o veículo ainda possui um poder de influência considerável o bastante para fazer as pessoas tomarem a hipótese como verdadeira (p. 35-36). A segunda notícia traz informações acerca do novo Ministro da Magia que assumira o lugar de Fudge, Rufo Scrimgeour, e seu desentendimento com o diretor de Hogwarts, Dumbledore, mas sem esclarecer os motivos da discussão (p. 36). A última retrata as medidas de segurança que estão sendo tomadas pelo novo governo para a proteção da escola britânica de magia (p. 36-37). A única dessas três mensagens que pode ser vista como problemática é a insistência do veículo em divulgar informações especulativas. É bem verdade que, de fato, Voldemort estava

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atrás da profecia referente a Harry, e essa profecia realmente caracteriza Harry como a pessoa responsável por destruir o bruxo, mas existem interesses específicos em colocar no garoto a imagem do grande salvador como veremos mais tarde. Em dado momento, Dumbledore conversa com Harry a respeito do que tem sido publicado no Profeta nas últimas semanas. O diretor explica que, apesar de muitos terem adivinhado corretamente e de o jornal ter acertado, no fundo, tudo não passa de boatos e apenas eles dois sabem com certeza que aquilo é verdade. Portanto, Harry não deve comentar com ninguém a esse respeito, a não ser com seus dois melhores amigos, Rony e Hermione. Um ponto interessante dessa passagem é que o que as pessoas (a sociedade bruxa) e o jornal sabem ou cogitam é tratado como uma coisa só por Dumbledore. Isso demonstra o reconhecimento de que o poder de influência do jornal é grande o bastante para presumir seu agendamento como eficaz, ou seja, que ele consegue pautar sobre e o que a sociedade pensa (p. 65). A agenda do jornal influencia até mesmo Rony e Hermione que abordam Harry para conversar sobre o que o veículo tem dito dele. O jovem confirma que “o Profeta acertou” e eles passam a conversar sobre a profecia (p. 80). Percebemos, em certos momentos, que a agenda do Profeta também consegue influenciar no temperamento geral da sociedade. Os relatos diários de desaparecimentos, acidentes e mortes que saem no jornal têm impacto direto na estima da comunidade bruxa e podemos ver isso, por exemplo, quando Harry reclama de que teria tido férias felizes na casa dos Weasleys, não fossem pelas notícias do diário (p. 86). Isso volta a ser demonstrado, já em Hogwarts, quando a sensação de perigo generalizada causada pelas notícias de desaparecimentos, inclusive de parentes de estudantes, culmina no cancelamento de todas as visitas dos estudantes ao povoado de Hogsmeade (p. 305). Em outro momento, a informação de que um garoto de nove anos tentara matar os seus avós sob efeito da Maldição Imperius faz o trio terminar sua refeição em completo silêncio pelo nível de horror da notícia (p. 358). Assim como nos anos anteriores, em que o Profeta fora eficaz em convencer boa parte da população sobre a insanidade de Potter, este ano ele também não obteve grandes dificuldades em estabelecer sua imagem de herói. Quando estava a bordo do Expresso de Hogwarts, no início do livro, Harry mais uma vez percebe os olhares dos alunos se voltando para ele ao passar pelo corredor, porém, diferente de antes, ele nota que os olhares são de curiosidade e fascínio, devido acreditarem na propaganda do jornal de que Harry é o Eleito (p. 109). No entanto, resquícios de erros passados do veículo são retratados no livro, demonstrando que nem todos se esqueceram tão facilmente de que foram enganados. Nesta

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mesma viagem de trem, Slughorn, o novo professor de Poções de Hogwarts, comenta com seu seleto grupo de alunos celebridades sobre a veracidade das especulações do jornal acerca do Eleito, “Naturalmente, não se sabe em que acreditar, o Profeta Diário já publicou muitas inverdades, cometeu enganos [...] É bem verdade que o Profeta muitas vezes exagera, sem dúvidas” (p. 117). Dumbledore também deixa transparecer sua desconfiança pelo periódico, em certa cena quando Harry se manifesta sobre o desentendimento do diretor com o novo Ministro. O mago comenta que “O Profeta Diário às vezes acaba noticiando a verdade, ainda que por acaso”, criticando que não é sempre que o jornal é verídico e mesmo nessas vezes, não costuma ser de forma intencional. Dumbledore já foi vítima do veículo no passado e sabe, a partir da própria experiência imediata, dos erros que ele comete (p. 280). Tonks, uma auror da Ordem da Fênix, também não se mostra muito favorável ao periódico. Ela critica a própria atualidade do meio, ao afirmar que “O Profeta muitas vezes dá notícia com atraso” (p. 365) quando Harry menciona suas últimas matérias. Esses personagens não possuem mais uma relação de confiança com a credibilidade e imparcialidade da fonte (no caso de Tonks, ela questiona a própria competência profissional do veículo em se manter atualizado), o que os torna mais resistentes às suas mensagens. Harry, Rony e Hermione dão prosseguimento ao seu consumo crítico das notícias do jornal. Eles continuam utilizado o Profeta como fonte de informação, mas não sem contrastála com o conhecimento prévio que possuem e de tirar suas próprias conclusões. Como a dedução de Harry, ao ler sobre a prisão de Stanislau Shunpike111, que ele acredita ser inocente, de que o Ministério da Magia estaria prendendo pessoas inocentes sem provas suficientes para poder mostrar serviço à população naqueles tempos de terror (p. 175). Presumivelmente, o periódico seria a ferramenta que o governo estaria utilizando para passar essa impressão. Quando Scrimgeour vai visitar Harry na casa dos Weasleys no Natal, um detalhe interessante é a menção do garoto à foto do Ministro, presente no jornal meses antes, único lugar onde ele já havia visto o bruxo (p. 267): é oportuna ao mencionar que, por vezes, uma boa parte do público tem contato com figuras públicas, líderes políticos e instituições exclusivamente por via da mídia, fora de sua experiência imediata, o que os deixa mais suscetíveis à forma pela qual os meios os retratam. Em outros momentos, o Profeta consegue se estabelecer como um meio informativo, capaz de contribuir com o compartilhamento de conhecimento. Hermione, por exemplo, utiliza-

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Trabalhador do Nôitibus Andante.

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se de exemplares antigos do jornal, estocados na biblioteca da escola, para fazer suas investigações sobre a identidade do Príncipe Mestiço112. A exemplo, ela mostra a Harry uma foto velha de uma antiga aluna de Hogwarts publicada no diário, chamada Eileen Prince, como uma possível identidade para o Príncipe e ainda promete continuar investigando em outros exemplares antigos para descobrir mais (p. 421-422). Capítulos mais tarde, ela consegue, afinal, desvendar o mistério com a ajuda do veículo. Próximo ao final do livro, a jovem bruxa revela ter encontrado nos jornais velhos notícias sobre o casamento de Eileen Prince com um Tobias Snape, um trouxa, e mais tarde outra notícia sobre o nascimento do filho dos dois. Ela presume, assim, que o Príncipe Mestiço se tratava de Severo Snape, um dos seus professores (p. 499). As informações divulgadas pela mídia nesse volume dão início a muitas discussões e questionamentos entre a população bruxa. Por isso, algumas cenas não citam diretamente nenhum veículo de comunicação, mas destacam efeitos na sociedade que podem ser facilmente atribuídos à influência da mídia, como quando Harry encontra os amigos no jantar inaugural do ano letivo de Hogwarts, e Rony e Hermione perguntam o que Slughorn queria com ele. Assim que o garoto responde que o novo professor queria saber o que acontecera no Ministério, Hermione comenta “ele e o mundo inteiro” (p. 131). Os dois amigos de Harry explicam que várias pessoas já os haviam abordado perguntando sobre o ocorrido e sobre Harry ser ou não o Eleito, comprovando que o agendamento do Profeta tem sido eficaz em fazer as pessoas discutirem o assunto. Até Nick Quase Sem Cabeça, um dos fantasmas que residem no castelo, entra na conversa, “Tem havido muita discussão sobre o assunto até entre os fantasmas” (p. 131). O até entre os fantasmas dá uma dimensão ainda maior à questão, pois a eficácia do agendamento da mídia atingiu até mesmo seres que não são influenciados pelo destino dos acontecimentos. Vários capítulos depois, Hermione explica a Harry o porquê de tantas pessoas terem se inscrito para os testes da seleção do novo time de quadribol da Grifinória, de que Harry é o atual capitão. Segundo ela Não foi o Quadribol que ficou popular, foi você! Você nunca foi tão interessante e, para ser sincera, nunca foi tão desejável! [...] Agora todo mundo sabe que você esteve dizendo a verdade, não é? O mundo bruxo teve de admitir que você estava certo sobre o retorno de Voldemort e que realmente o enfrentou duas vezes nos últimos dois anos, e sobreviveu às duas. E agora

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Título que assina o livro usado de Poções de Harry, no qual estão escritas várias dicas sobre o fazer de poções, além de alguns feitiços aparentemente inventados, parte deles de magia negra. A identidade do dono do livro é um dos principais mistérios do sexto volume da série.

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estão chamando você de “o Eleito”: bem, fala sério, você não entende por que as pessoas estão fascinadas por você? (p. 173, grifo da autora).

Nesse momento, notamos que a popularidade de Harry está maior do que esteve em qualquer outro ponto da série até ali. Essa popularidade é consequência da exposição midiática positiva que está recebendo do Profeta naquele ano, diferente do que aconteceu nos anos anteriores. Apesar de Hermione não citar a imprensa em sua fala, é perceptível que foi por causa dela que a sociedade bruxa alternou entre tantos pontos de vista acerca de Harry, até chegar na configuração atual. Harry, talvez mais que qualquer outro personagem, foi o principal objeto da mídia durante toda a série, e o que mais sofreu as diferentes consequências da influência de sua agenda no público. Um outro momento que descreve aspectos sociais que podem ser conectados a efeitos midiáticos acontece na conversa entre Scrimgeour e Harry, quando este o visita na casa dos Weasleys durante o Natal. O Ministro tenta convencer Harry a colaborar com o governo. Segundo ele [...] para a comunidade bruxa como um todo... é uma questão de percepção, não é? É aquilo que as pessoas acreditam que é importante [...] As pessoas acreditam que você é “o Eleito”, entende? Acham que você é um herói, o que é claro, você é, Harry, eleito ou não [...] a questão é que você é um símbolo de esperança para muitos, Harry. A ideia de que tem alguém de sentinela que talvez possa, ou até talvez esteja destinado a destruir Aquele-Que-Não-DeveSer-Nomeado113... bem, é natural que isso revigore as pessoas (p. 270, grifo da autora).

O intuito do Ministro era de que Harry visitasse o Ministério com frequência, que fosse visto entrando e saindo do prédio, para passar a impressão ao público de que o Eleito estaria trabalhando com o governo e, assim, dar a elas a sensação de segurança. É notável a intenção de manipulação da opinião pública nesta passagem. Como o próprio Scrimgeour diz, o que importa é no que as pessoas acreditam e não o que ocorre de fato. Enquanto o governo anterior negava os acontecimentos, o novo finge uma eficiência que não tem, como podemos ver na resposta de Harry ao Ministro, “o senhor [...] faz questão que eu o ajude a convencer a todos que está ganhando a guerra contra Voldemort” (p. 272). Nesta passagem, temos uma confirmação de que o Ministério continua usando a mídia para transmitir à população mensagens de seu interesse, confiando-se no seu poder de influência e em sua eficácia em agendar a discussão pública. Felizmente, Harry se recusa a contribuir com tudo isso.

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Uma das formas pela qual Voldemort é conhecido.

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3.4.5 Relíquias da Morte Em Harry Potter e as Relíquias da Morte (ROWLING, 2007, p. 17) a sociedade bruxa vive seu pior momento. Voldemort e seus seguidores estão mais fortes do que nunca, com o Ministério da Magia e a Ordem da Fênix em seu encalço em busca de impedir seu progresso. Já no início do livro, presenciamos um assassinato cruel e uma perseguição acirrada a Harry e os aurores que tentam transferi-lo em segurança para a casa dos Weasleys. O Ministério estava se tornando cada vez mais corrupto, com Scrimgeour tomando um caminho muito parecido com o de Fudge ao esconder os fatos da população e Comensais se infiltrando em seus departamentos, antes de sofrer um golpe e ser dominado de vez por Voldemort. A esta altura Harry se torna o procurado nº 1 da comunidade bruxa e os nascidos-trouxas passam a ser perseguidos e presos por um governo que não acredita no direito deles de produzir magia. A ditadura de Voldemort vai se tornando cada vez mais inclemente no decorrer do livro, enquanto a insatisfação da comunidade bruxa cresce e Harry, Rony e Hermione fogem à caça de destruir as horcruxes, os objetos mágicos que mantêm o bruxo das trevas vivo. Durante este último volume, o Profeta Diário volta a ser controlado de forma direta e contundente pelo Ministério da Magia, assim como aconteceu durante Ordem da Fênix. Apesar de o próprio Scrimgeour utilizá-lo desta forma, o controle fica mais forte com o Ministério de Voldemort, que não tolera nenhum posicionamento contrário e impõe formas intensas de censura, não apenas sobre o jornal, que utiliza para propagar suas próprias diretrizes, mas sobre qualquer outra mídia alternativa em que consegue pôr as mãos. A primeira menção ao jornal bruxo é já no primeiro capítulo do livro em que uma bruxa, a professora de Estudos dos Trouxas de Hogwarts, é assassinada por Voldemort na frente de seus seguidores. Segundo ele, a bruxa corrompia e poluía as mentes das crianças bruxas e defendia os “sangue-ruins”, com quem ela havia incentivado a miscigenação em um artigo publicado no Profeta (p. 17). A morte é o primeiro dos vários futuros exemplos da cruel censura exercida por Voldemort àqueles que se expressam contrários à sua agenda de superioridade racial e mágica, principalmente aqueles da autoridade de uma professora ou que possuam um espaço como o Profeta, em que podem influenciar a opinião pública. Quando retornamos ao ponto de vista de Harry, notamos que o garoto continua utilizando o periódico como fonte de informações, ao nos depararmos com uma pilha de exemplares do jornal em seu quarto, acumulados durante o verão na casa dos tios (p. 20). Apesar disso, Harry volta a se frustrar com o veículo, mais uma vez limitando-se a correr os olhos pelas manchetes do dia, constatando a falta de notícias sobre Voldemort. O garoto conclui, assim,

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que o Ministério continuava com as mãos sobre o Profeta e o estava fazendo omitir notícias perigosas (p 24). Em alguns momentos desse livro, a imprensa é mencionada de forma generalizada ou indireta, embora não seja difícil concluir que se refiram ao Profeta Diário. Quando Lupin informa ao trio que houvera uma fuga em massa de Azkaban, ele acrescenta que ela fora completamente abafada pelo Ministério da Magia (p. 61), dando a entender que eles, e boa parte da população bruxa, não ficaram sabendo do ocorrido pelo fato de o jornal tê-lo omitido. A situação ainda se repete outras vezes. Gui, um dos irmãos de Rony e membro da Ordem da Fênix, por exemplo, menciona não ter sido surpresa o Profeta não ter noticiado a morte de Olho-Tonto, outro membro da Ordem, assassinado durante a escolta de Harry no início do livro: “o jornal tem omitido muita notícia ultimamente” (p. 75). A estratégia, aparentemente, é passar a impressão de um governo competente à população. Quando Harry questiona Sr. Weasley se o Ministério não estava investigando o motivo de ele ter usado magia fora da escola nos últimos dias porque não queriam que ele contasse ao mundo que Voldemort o atacara, o pai dos Weasleys confirma a informação. “Scrimgeour não quer admitir que Voldemort tem tanto poder quanto ele”, ao que Harry replica “É, pra que informar ao público a verdade? ” (p. 76). O próprio Voldemort estava construindo sua rede de poder, com Comensais infiltrados no governo e interferindo em suas diretrizes e funcionamento. Em determinada cena, Hermione comenta assustada que o bruxo das trevas “está dominando o Ministério, os jornais e metade do mundo bruxo! ” (p. 71). A exata ordem em que a jovem bruxa elenca as vítimas de Voldemort pode não ser aleatória, afinal, não é difícil notar o poder de controle que uma possui sobre a outra. Se o Lorde das Trevas domina o Ministério, por consequência domina os jornais, e por consequência ainda, metade do mundo bruxo. Isto fica mais claro tão logo Voldemort e os Comensais são bem-sucedidos em seu golpe e tomam total controle do governo bruxo. Quando Harry, Rony e Hermione estão escondidos na antiga casa dos Black, Lupin vai ao seu encontro para informá-los dos acontecimentos recentes. O ex-professor mostra um exemplar do Profeta Diário aos garotos, confirmando o controle tomado por Voldemort; a capa do jornal anunciava uma busca por Harry Potter, sob o pretexto de que ele precisava depor sobre a morte de Dumbledore. Uma acusação implícita de que o garoto teria alguma participação no assassinato do antigo diretor (p. 165-166). Quando o trio questiona o auror sobre por que Voldemort precisaria de uma desculpa para caçar Harry, Lupin explica que o golpe está sendo velado e as diretrizes sendo divulgadas de forma camuflada. As mudanças políticas causaram muitos murmúrios, mas nada além disso,

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murmúrios, que é onde reside o problema. As suspeitas fazem com que as pessoas não tenham coragem de trocar confidências, por não saberem em quem confiar, por terem medo de se manifestar. Enquanto que a completa exposição do golpe poderia causar uma resposta mais direta, como uma rebelião, o acobertamento causa confusão, incerteza e medo, deixando a população mais fácil de ser manipulada e de aceitar as novas decisões (p. 166). Receptores indecisos e confusos são mais suscetíveis de serem convencidos, enquanto que receptores com uma desconfiança forte contra a parcialidade da fonte, estão mais suscetíveis a resistir. Outra matéria do Profeta que evidencia as novas diretrizes do governo é o anúncio do “Registro para Nascidos-Trouxas”, em que são apontadas supostas novas pesquisas que expõem os nascidos-trouxas como falsos bruxos que roubaram a magia de outros e que precisam ser extirpados. Uma filosofia de Voldemort acerca da superioridade do “sangue-puro” bruxo maquiada de forma a encontrar menor resistência das camadas mais sensíveis da população (p. 167). Aqui vemos o exemplo da mídia sendo utilizada por um governo ditador para legitimar suas medidas racistas e genocidas. Em dado momento da fuga do trio, Rony chega a comentar que Hermione não pode ser vista em público: “você está na lista dos nascidos-trouxas que não se apresentaram para o interrogatório! ”, diz, enquanto aponta para um exemplar do jornal (p. 184). Em outra noite, o trio está escondido acampando em uma floresta e acaba entreouvindo conversas de um grupo de bruxos fugitivos do Ministério que estavam passando por perto. Eles mencionam uma tentativa de roubo da espada de Griffyndor114 em Hogwarts por parte de alguns estudantes e um deles comenta não ter ouvido falar do ocorrido, indagando se havia saído no Profeta Diário. “Dificilmente sairia” (p. 235), respondem. Uma notícia sobre um ato rebelde, contrário aos Comensais da Morte em Hogwarts115, não era interessante ao governo, e, portanto, nem ao jornal, que caísse no conhecimento público. A conversa continua, e os bruxos começam a discutir sobre o paradeiro de Harry Potter, quando um deles diz acreditar que o garoto seja o Eleito e outro o acusa de covardia. Mas o último usa as publicações do Profeta para justificar suas opiniões e é rechaçado. “O Profeta? ”, perguntam indignados, “Você merece que lhe mintam se ainda lê aquele lixo” (p. 237) e o aconselham a ler o Pasquim se quiser saber dos fatos. Nesta passagem, mesmo entre os rebeldes, percebemos que parte da população não consegue deixar de ser influenciada pelas publicações da mídia hegemônica. Isso nos demonstra

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Um dos quatro fundadores de Hogwarts, fundador da casa Grifinória. Voldemort também tomara controle da escola de magia.

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que os filtros de interpretação da audiência são de fato múltiplos e imprevisíveis, pois mesmo em uma posição que o deixasse mais suscetível a discordar de tudo que viesse do governo, por ser um fugitivo, ele se posiciona contrário à figura de Harry, influenciado pela forma como ele está sendo retratado na mídia. Talvez por haver uma predisposição do rebelde a ter um pensamento negativo de Harry, talvez por trechos de publicações anteriores do Profeta ou outras situações que não temos como precisar. É uma passagem importante por demonstrar que os efeitos da mídia podem ser, por vezes, imprevisíveis. Outro ponto interessante é apontarem o Pasquim, pela primeira vez na série, como uma fonte de notícias mais crível que o Profeta. A insatisfação com as publicações obviamente parciais do jornal fizeram com que os rebeldes procurassem outras fontes de notícias que melhor os representasse e a encontraram no inusitado Pasquim, que, neste livro (repetindo seu feito no Ordem da Fênix), havia se firmado como um grande defensor de Harry. Dezenas de páginas mais tarde, quando Rony retorna do período em que esteve separado de Harry e Hermione, ele explica que tinha certeza de que os dois continuavam vivos. “O Profeta só fala de Harry, o rádio só fala de Harry, [...] boatos e histórias malucas, eu sabia que na mesma hora teria notícias, se vocês morressem” (p. 297). Essa passagem não só ilustra os personagens utilizando as informações da mídia ditadora de forma crítica e filtrada, como menciona, pela primeira vez na saga, o rádio como um meio de comunicação não exclusivamente musical. Passagens posteriores, inclusive, apontam que a RRB está sob o controle do governo tal como o Profeta Diário, mas que existe uma estação de rádio pirata, a Observatório Potter, que fora criada pelos rebeldes para informar a todos do que a grande mídia esconde, como as mortes de rebeldes e novidades acerca da resistência, incentivos aos fugitivos e opositores etc. Para escapar da forte perseguição censória de Voldemort, a equipe muda constantemente de lugar, o que não lhe permite ir ao ar todas as noites, e protege magicamente sua transmissão, à qual para se ter acesso é preciso executar uma senha com a varinha. Infelizmente, Xenofílio Lovegood, editor do Pasquim, não consegue ludibriar os Comensais de forma tão competente como a equipe da Observatório e acaba sendo forçado a publicar as diretrizes do governo com matérias contrárias a Potter, depois que sua filha Luna é sequestrada. A última vez que um veículo de comunicação é mencionado na saga é sob a forma de uma caixa de rádio presente no esconderijo rebelde mantido pelos alunos dentro de Hogwarts. Era por ela, eles explicam, que os resistentes se mantinham informados do que acontecia fora da escola por meio da Observatório Potter (p 449-450). A cena é uma das últimas antes da

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Batalha de Hogwarts e simboliza a parcela da população bruxa que, insatisfeita com o que consumia na grande mídia, criara seus próprios meios de comunicação capazes de lhes dar as informações de que precisavam para resistir às investidas de censura e controle do governo e lutar contra ele. A rebelião eclode depois que o trio invade Hogwarts em busca de uma das horcruxes e uma força de resistência à Voldemort se forma dentro dos muros da escola, enquanto os Comensais da Morte cercam a instituição, prontos para atacar. A Batalha de Hogwarts se segue intensa, com muitas perdas dos dois lados adversários, até que Harry enfim consegue derrotar Voldemort e salvar o mundo bruxo.

3.4.6 Considerações finais Nas mãos da mídia, Harry Potter foi um garoto trágico que chorava pelos pais, um perturbado mental com afinidade pelas artes das trevas, um mentiroso delirante, o grande herói escolhido para salvar a todos e o Indesejável Nº 1 da nação. Em cada um desses momentos, a sociedade bruxa mimetizava o que lia no Profeta Diário e apontava seus dedos para o garoto ou o aplaudia. Mesmo assim, nem todos os seus membros eram convencidos; aqueles que o conheciam e sabiam da verdade, ou que já tinha conhecimento dos erros e distorções criados pelo jornal, mantiveram-se defensores de Potter nos tempos árduos de exposição midiática. O próprio periódico teve uma constante flutuação de diretrizes. Era razoavelmente independente até o quarto livro, período em que utilizou sua liberdade para manipular a realidade de acordo com seus próprios interesses, seja se aproveitando da fama de Potter ou da polêmica ascendência de um professor de Hogwarts, seja atacando como podia as medidas do governo. No quinto livro, no entanto, o veículo ganhou um novo editor, indireto, que ordenava de longe, extraoficialmente, direto do gabinete do Ministro da Magia. Talvez por meio de acordos comerciais, talvez por meio de ameaças legais que apenas um poder estatal pode exercer, o Profeta Diário tornou-se um jornal, na ponta da pena, governamental. O que o jornal não previa era que o próprio Ministério mudaria tantas vezes de direção nos próximos três anos. Primeiro, o Ministério de Fudge e sua rixa pessoal contra Dumbledore e Harry, sua teimosia em não admitir o retorno do temido Lord Voldemort e sua insistência em esconder da população qualquer indício de que ele poderia estar enganado. O Ministério de Scrimgeour, no entanto, parecia um pouco mais sensato... de início. Reconhecia as ameaças do bruxo das trevas e permitia que o jornal contasse a todos dos perigos que assolavam a nação, desde que também reforçasse a todos o quanto o Ministério era eficiente

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e competente em combater esse mal, tudo enquanto dava esperança a todos na figura de Potter e na ideia do Eleito, pouco importando se isso era verdade ou não; se repetissem o suficiente, o povo acreditaria e, no fim das contas, era o que bastava. Mas não demorou muito para que Scrimgeour se sentisse encurralado e começasse a omitir ele mesmo os fatos das ações de Voldemort. Embora isso tampouco tenha durado muito, visto que o editor mais duro que o Profeta já teve assumiria o poder em um golpe tão logo o ex-Ministro fosse assassinado. O Ministério de Voldemort foi cruel e ditador como pôde, elegeu Harry Potter como o grande inimigo da nação, e os nascidos-trouxas como os usurpadores do que os bruxos tinham de melhor, sua magia. Iniciou-se uma campanha de terror e perseguição que permaneceu velada e disfarçada de início, para conter retaliações, mas gradativamente mostrou-se mais e mais opressora. O controle midiático alastrou-se para além das páginas do Profeta e chegou nas ondas sonoras da RRB e então nas restantes publicações insistentemente rebeldes que eles puderam encontrar; conseguiram calar a oposição berrante do Pasquim, mas jamais puseram as mãos na arredia Observatório Potter. Como pudemos observar, por boa parte da série, a grande mídia foi eficaz em pautar a discussão da população, elencando quais os assuntos de que ela devia falar e em que ordem de importância. Ela foi eficiente também em definir quais os aspectos desses assuntos a que a população teria acesso, manipulando a opinião pública acerca de pessoas, instituições e temas. Processo descrito pela hipótese do agendamento, quando ela assegura à mídia o potencial de transferir a agenda midiática para a agenda pública, assim como da agenda de atributos dos objetos retratados na mídia. Sabendo desse potencial, grupos de interesses (como o Ministério da Magia) tanto temem as atitudes da imprensa, quanto procuram alguma forma de mantê-las sob controle, permitindo apenas a publicação do que seja favorável aos seus específicos interesses (como pudemos ver na mudança da relação do Profeta com o Ministério entre os livros quatro e cinco). O recorte de realidade produzido pelos meios de comunicação de massa, que é apropriado pela audiência como sua visão de mundo, é um empecilho para os grupos adversários da grande mídia, e benéfico para seus parceiros. Isto os faz procurar manter boas relações com essas mídias ou até mesmo ganhar total controle sobre elas. Ainda assim, o poder de influência da mídia é limitado. Sua audiência é heterogênea e individual, cada membro dela possuindo, portanto, seu próprio contexto social e configuração psicológica que lhe atribui e retira diferentes filtros de interpretação, responsáveis por decidir se o indivíduo será ou não convencido pela mensagem. Boa parte dos personagens dos livros

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são persuadidos pelas publicações do Profeta, mas vários também são divergentes, discordantes e de difícil convencimento, sobretudo os protagonistas. Várias vezes durante a série, percebemos que os personagens que apresentavam um conhecimento prévio acerca dos temas da mensagem, ou uma inclinação a discordar do posicionamento da mídia naquele assunto, ou uma relação de desconfiança com a autoridade, credibilidade ou parcialidade da fonte (às vezes, todos esses simultaneamente), raramente eram convencidos pela mensagem e, na verdade, até se voltavam contra ela. Enquanto que o monopólio midiático exercido pelo Profeta Diário dificultava que os personagens resistentes deixassem de consumi-lo, eles aprenderam a fazê-lo de forma crítica e racional, balanceando as informações da mídia com as suas previamente adquiridas até chegar a conclusões mais próximas da realidade; o que nos fornece um grande exemplo de como a interpretação seletiva da audiência pode funcionar. Por fim, notamos que, quanto mais evidente forem a parcialidade e distorção exercida pela fonte, mais insatisfeita a audiência irá se tornar, ao ponto de buscar avidamente por fontes alternativas e, caso não as encontrem, de criar elas próprias as mídias contra-hegemônicas que transmitam as mensagens que querem e julgam precisar consumir. A exemplo, a entrevista de Harry publicada no Pasquim, em Ordem da Fênix, e sua ampla aceitação pela população insatisfeita com o Profeta. O comportamento da mesma revista durante Relíquias da Morte (antes de ser cruelmente censurada) e a criação da estação de rádio Observatório Potter, no mesmo volume, pela insuficiência das informações censuradas da grande mídia. Ao final desse percurso, o que podemos perceber é que os meios de comunicação de massa bruxos realmente influenciam, dentro de seus limites, a sociedade bruxa tal como acontece na nossa realidade empírica. Assim como as instituições do mundo real, as instituições bruxas também percebem esse potencial e se aproveitam dele em busca de seus objetivos, o que não significa que eles não encontrem posicionamentos críticos e de retaliação da parcela resistente da comunidade quando essas tentativas ficam evidentes demais, processo que também não diverge da sociedade em que nós mesmos estamos inseridos. Ao final da saga, podemos concluir que o contexto midiático bruxo, criado dentro desses sete livros, tem um alto grau de correspondência com os fenômenos midiáticos apontados pelas Teorias da Comunicação e, portanto, com os processos comunicacionais vivenciados por nós, trouxas; o que garante à série um poder de crítica midiática perspicaz e oportuna, bastante válida para os leitores atentos que souberem enxergá-la e aprender com ela.

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Nox!116

Literatura é comunicação. O autor é o emissor. O livro é um dos formatos da imprensa, que é o meio. A linguagem é o código. A história, a mensagem, e o leitor, o receptor. Sendo transmitida através da imprensa, ela é, inclusive, comunicação de massa, e como tal tem o poder de produzir efeitos no receptor. Dentre eles, o de influência. Ao pararmos para estudar a influência da mídia de massa bruxa sobre a sociedade mágica dentro dos livros de Harry Potter, estamos nós mesmos lidando com uma mídia de massa que influencia. É metalinguístico notar que J. K. Rowling foi ela própria uma emissora única que, por 10 anos, transmitiu mensagens para uma massa de leitores através do globo, impactando cada um deles de forma diferenciada, de acordo com suas intenções ou não, por meio de seus livros. A série possui uma diversidade de temas, personagens, enredos e elementos com o poder de causar efeitos em sua audiência. Entre eles está a crítica midiática que a autora construiu em volta do Profeta Diário com o objetivo, supõe-se, de conscientizar seus jovens leitores acerca da influência da mídia e fazê-los refletir sobre como resisti-la ou mesmo como consumi-la de forma mais esclarecida. Se a discussão de fato é percebida pelo leitor, apropriada como relevante e aplicada por ele em sua realidade empírica, isso depende de muitos fatores que variam de receptor para receptor, como tanto evidenciamos no decorrer do trabalho. Mas a crítica de fato existe. Ela está ali, distribuída pelas páginas bruxas, esperando para ser descoberta e absorvida, observada e discutida, pois sabemos de pelo menos um leitor que a notou e foi influenciado por ela, ele que mais tarde a transformaria em um Trabalho e Conclusão de Curso. Evidenciá-la e pô-la em perspectiva era nosso principal objetivo, e acreditamos ter sido bem-sucedidos em fazê-lo. Ao expô-la pudemos não apenas demonstrar que ela existe e explicar como se comporta, mas apontar que a comunicação vive nos mais variados habitats, descobri-la em cenários não óbvios que, na maioria das vezes, fogem ao nosso olhar. Pudemos mostrar que a comunicação, além de se manifestar no Jornal Nacional, na revista Veja, na BBC One e no The New York Times, também desponta na Literatura, na literatura infanto-juvenil, na literatura dos best-sellers, na Literatura de Fantasia; e que, inclusive, não o faz de forma

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Feitiço do universo de Harry Potter utilizado para reverter o efeito de Lumos!, apagando a luz por ele produzida.

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superficial ou alegórica, mas complexa, consistente, ocasionando reflexões e incitando discussões construtivas. Para chegar nesse ponto, nós caminhamos através de conceitos e teorias do fenômeno da comunicação e do campo de estudo da Comunicação Social, assim como lhe elencamos um breve histórico, com a ajuda das ideias elaboradas por E. Menezes, H. Lasswell, João Souza Brasil, Marshall Poe etc. Em seguida, adotamos um foco maior na comunicação de massa, sobretudo a partir do ângulo da análise dos efeitos, compondo a base teórica que precisávamos para o estudo do capítulo final, que foi construído, principalmente, sobre a hipótese do agendamento como discutida por Mauro Wolf, Maxwell McCombs e Donald Shaw e sobre as Teorias dos Efeitos da Mídia de Massa de Denis McQuail. Além disso, ao discorrer sobre como o tema é abordado na série Harry Potter e salientar a comunicação sob a moldurada diferenciada e inusitada da Fantasia, pudemos também alcançar nosso outro grande objetivo de evidenciar o poder que o gênero possui de discutir a realidade mesmo sem se desfazer de seus traços imaginários e mágicos. Era de vital importância para esse trabalho debater o panorama da literatura de Fantasia e combater os estereótipos e preconceitos que se constroem acerca do gênero, inclusive, dentro do meio acadêmico. Para tal, andamos de mãos dadas com as definições de Fantasia de Tolkien, John Clute e John Grant, o apanhado histórico do gênero feito por Farah Mendlesohn e Edward James, e as oportunas discussões de Brian Stableford, Eric Rabkin, Anna Opheim e outros, sobre a Fantasia, os elementos que a compõem e os temas que discute. Por fim, apresentamos Harry Potter como nosso objeto de estudo, como manifestante tanto do gênero da Fantasia quanto do fenômeno da comunicação, assim como de essencial importância para a discussão a que o trabalho se propôs. Chegamos no fim do percurso cientes de que a mídia de massa influencia a sociedade bruxa, mas também cientes de que existe muito mais a ser discutido, seja dentro da série, seja na Fantasia, seja na Literatura, seja na própria Comunicação. Se este trabalho, em sua própria natureza midiática, produzir qualquer efeito em sua audiência, gostaríamos que fosse o de compreender as múltiplas facetas da comunicação, o de aguçar o seu olhar para flagrá-la onde não se espera, e o de enxergar as obras de Fantasia não desfeitos dos olhos encantados de sua magia, mas também com a perspicácia de ver além de seu disfarce.

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