MEDINET HABU: A ICONOGRAFIA BÉLICA COMO PROPAGANDA E DEFESA

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CAMPOS DE ANDRADE

GUILHERME HIANCKI MONTEIRO

MEDINET HABU: A ICONOGRAFIA BÉLICA COMO PROPAGANDA E DEFESA CONTRA O CAOS: EGITO, 1190 A.C.

CURITIBA 2015

GUILHERME HIANCKI MONTEIRO

MEDINET HABU: A ICONOGRAFIA BÉLICA COMO PROPAGANDA E DEFESA CONTRA O CAOS: EGITO, 1190 A.C.

Monografia apresentada ao Curso de História, do Centro Universitário Campos de Andrade, como requisito para a obtenção da graduação em Licenciatura em História.. Orientadora: Prof Dra. Liliane Cristina Coelho;

CURITIBA 2015

TERMO DE APROVAÇÃO GUILHERME HIANCKI MONTEIRO

MEDINET HABU: A ICONOGRAFIA BÉLICA COMO PROPAGANDA E DEFESA CONTRA O CAOS: EGITO, 1190 A.C.

Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Licenciado em História no Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE.

Curitiba, 14 de dezembro de 2015.

_________________________________ Profa. Me. Ely Gonçalves Coordenadora do Curso de História

_________________________________ Profa. Dra. Liliane Cristina Coelho Orientadora – Curso de História

_________________________________ Prof. Dr. Moacir Elias Santos Arguidor – Curso de História

_________________________________ Profa. Me. Mariana Bonat Trevisan Arguidora – Curso de História

AGRADECIMENTOS

Gostaria de registrar neste parágrafo o mais profundo agradecimento a várias pessoas que marcaram estes três anos de curso; aqui registro meu agradecimento aos professores do Centro Universitário Campos de Andrade pela forma com que se dispuseram a nos ensinar da melhor forma possível; sobretudo, gostaria de agradecer imensamente à Profª Drª Liliane Cristina Coelho que me auxiliou na construção desta monografia, dedicando seu tempo e esforços nesta tarefa. Não pode faltar neste pequeno espaço o meu reconhecimento às pessoas com quem passei estes três anos, que conheci e com quem aprendi muitas coisas. Este agradecimento vai especialmente aos meus colegas de classe que me apoiaram na alegria e nos revezes da caminhada de estudo e aos quais pude servir quando necessário. E os agradeço com a certeza de encontra-los pelos caminhos que trilharmos relembrando este grande período de nossas vidas que passamos juntos. Meu agradecimento vai também aos meus familiares e amigos pela compreensão e pelo auxílio dispensado nesta etapa de minha vida, pois sem o apoio destes este trabalho não teria se concretizado.

À

Deus,

aos

meus

Professores e Colegas de Classe.

Familiares,

RESUMO

O Reino Novo (c. 1550 – 1070 a.C.) trouxe ao Egito faraônico um novo desafio: projetar-se como uma “potência” militar face aos reinos existentes no Levante, desde o reinado dos primeiros faraós deste período. Esta projeção foi fartamente e detalhadamente narrada em templos por todo o Egito por meio dos quais esta monografia tem por objetivo entender seu

funcionamento como

propaganda e como elemento protetor contra o caos simultaneamente, focando-se no reinado de Ramsés III, que viveu na década de c. 1190 a.C., e que conta suas peripécias militares contra os Povos do Mar – grupo multiétnico advindo do Mediterrâneo Central e que penetrava em território egípcio desde o reinado de faraós anteriores. Os relevos preservados no complexo funerário de Medinet Habu, Tebas Ocidental, foram analisados por meio do estudo iconográfico de Richard H. Wilkinson (1951 - ) e hieroglífico de Sir Henderson Alan Gardiner (1879 – 1963).

Palavras-Chaves: Ramsés III; Medinet Habu; Povos do Mar;

Abstract

The New Kingdom ( c. 1550-1070 BC) brought the Pharaonic Egypt a new challenge: to project itself as a " power " military face to existing kingdoms in the Levant , from the reign of the first pharaohs of this period . This projection was widely and in detail told in temples throughout Egypt through which this monograph aims to understand its functioning as propaganda and as a protective element against chaos simultaneously, focusing on the reign of Ramses III, who lived in the late c. 1190 BC, and counting his military adventures against the Sea Peoples - arising multiethnic group in the Central Mediterranean and penetrated Egyptian territory since the reign of previous pharaohs. The reliefs preserved in the funerary complex of Medinet Habu, Western Thebes, were analyzed using the iconographic study Richard H. Wilkinson (1951 - ) and hieroglyphic Sir Alan Henderson Gardiner (1879-1963 ).

Key Words: Ramses III; Medinet Habu ; Sea Peoples;

Contents 1. Introdução. ............................................................................................................................ 11 2. 2.1.

Capítulo I. Notas Introdutórias; ................................................................................... 14 O Contexto – Breve Explicação sobre o Reinado de Ramsés III e Situação

Política Externa do Mediterrâneo Leste no Século XI a.C;.................................................... 14 2.2. 3.

O Conceito de Guerra para os Egípcios; ............................................................... 17 As Fontes e sua Análise – Medinet Habu e os Relevos dos Povos do Mar; .... 33

3.1.

Breve Histórico sobre a Construção de Templos no Egito Antigo; ............... 33

3.2.

Ensaio Básico sobre a Arte Egípcia;....................................................................... 41

3.2.

Informações Gerais sobre o Local; ......................................................................... 47

3.3.

Fontes e Fichas de Análise; ...................................................................................... 58

4. 4.2.

A Análise Iconográfica e Textual dos Relevos; ....................................................... 71 Análise Iconográfica, Primeira Etapa: Extrações: ............................................... 75

4.2. Análise Iconográfica, Segunda Etapa: Elementos Simbólicos; ........................... 83 4.3.

O Relevo de Guerra e o Templo como Propaganda – Possíveis Aplicações

do Termo nos Relevos de Medinet Habu;.................................................................................. 87 6.

Referências Bibliográficas: ........................................................................................... 98

Lista de Figuras FIGURA 1 – MAPA DAS RELAÇÕES COMERCIAIS NA IDADE DO BRONZE, C. 1450 A.C. ........ 31 FIGURA 2 – EXEMPLO DE TEMPLO COM PIRÂMIDE. .......................................................... 35 FIGURA 3 – KARNAK, TRÊS SETORES; ............................................................................ 38 FIGURA 4 – RAMSÉS II COMO CRIANÇA; ......................................................................... 44 FIGURA 5 – EIXO OCIDENTAL DE TEBAS ......................................................................... 48 FIGURA 6 - KV38, TUMBA DE TOTHMÉS I; ...................................................................... 49 FIGURA 7 – PLANTA DE DEIR EL-MEDINA ....................................................................... 50 FIGURA 8 – CORTE LATERAL DO GRANDE TEMPLO DE MEDINET HABU ............................. 52 FIGURA 9 – PLANTA DE MEDINET HABU; ........................................................................ 55 FIGURA 10 – ASSENTAMENTOS EM MEDINET HABU ......................................................... 56 FIGURA 11 – PLANTA ESQUEMÁTICA DOS RELEVOS EM MEDINET HABU; ........................... 57 FIGURA 12 – DESENHO DA EPIGRAPHIC SURVEY MOSTRANDO A LOCALIZAÇÃO DAS IMAGENS DOS POVOS DO MAR;

FIGURA 13 – ADAGA

............................................................................................ 59

DE

GEBEL

EL

ARAK, MUSEU

DO

LOUVRE;

EM VERMELHO, AS

EMBARCAÇÕES. ..................................................................................................... 73

FIGURA 14 – DETALHE DA RODA, NA IMAGEM 31;............................................................ 86 FIGURA 15 – FOTO

AÉREA DE

MEDINET HABU,

EM VERMELHO A LOCALIZAÇÃO DOS

ARMAZÉNS. ........................................................................................................... 90

FIGURA 16 – LOCALIZAÇÃO DA IMAGEM 35; .................................................................... 91 FIGURA 17 – PLANTA DA FACE NORTE ........................................................................... 93 FIGURA 18 – PILONO COM CENAS DE EXECUÇÃO ............................................................ 95

Lista de Tabelas: TABELA 1 .................................................................................................................. 76 TABELA 2 .................................................................................................................. 83

Fichas de Análise: 3.3.1. FICHA DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 29. ....................................................... 60 3.3.2. FICHA

DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 31. ...................................................... 62

3.3.3. FICHA DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 32. ....................................................... 64 3.3.4. FICHA DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 35. ....................................................... 65 3.3.5. FICHA DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 37. ....................................................... 66 3.3.6. FICHA DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 42. ....................................................... 67 3.3.7. FICHA DE ANÁLISE INTEGRADA – IMAGEM 43. ....................................................... 69

1. Introdução. O presente trabalho tem por objetivo entender o funcionamento da iconografia militar egípcia como propaganda e como elemento mágico de proteção, situados no templo de Medinet Habu – Tebas –, construído entre as dinastias XVIII e o período romano. Trata-se de um tema amplo, sobretudo pelas discussões que serão trazidas nas próximas páginas, tendo em vista a monumentalidade da arquitetura e arte egípcia. O Egito Antigo nos deixou toda a sua história desenhada e muito bem detalhada em centenas de relevos e representações por todo o vale do Nilo. Muito sobre sua estrutura militar e a organização de sua máquina de guerra é revelada por meio destas imagens. Trazem também os mais vastos relatos sobre as peripécias militares dos faraós da XVIII a XX dinastia, fornecendo um grande acervo documental, em muitos dos casos a céu aberto. O acesso às fontes egípcias foi um desafio aos pesquisadores do XIX e XX, como por exemplo, Jean-François Champollion (1790-1832), membro da expedição napoleônica no Egito, Carl Richard Lepsius (1810-1884), quando a ida ao Egito e a observação in loco era algo que determinava os rumos da pesquisa. Hoje o acesso a estas fontes é facilitado graças à internet e, sobretudo, aos institutos e organizações que se debruçam sobre estes monumentos. Este trabalho, por exemplo, contou com materiais que estão disponibilizados online pelo Oriental Institute, da Universidade de Chicago e foram digitalizados pela mesma, haja vista que as expedições de extração dos relevos e de escavação deste sítio se deram pelas décadas de 20 a 40. Alguns desafios se mostrarão constantes no decorrer deste trabalho. Um deles, senão o principal é o mergulhar numa sociedade de, no mínimo, 3000 anos de distância da nossa. Despir-se, deixar de lado, todos os pré-conceitos e todas as visões de mundo de uma época pautada na tecnologia e na informação, tomando o cuidado para não contaminar a fonte com as mesmas é o mais difícil de toda a pesquisa histórica. Por isso uma ressalva nesta introdução se faz necessária: alguns conceitos soariam totalmente estranhos a um egípcio do Reino Novo, tais como o próprio conceito de arte, guerra, propaganda e etc. – que são usados hoje por nós ocidentais do século XXI, e talvez nem existissem na época. Mesmo assim, 11

essarelação é perceptível na essência de certas obras arquitetônicas e certos lugares onde a guerra foi representada. Outra grande dificuldade: entender os padrões de representação iconográfica e da escrita hieroglífica. Hoje a historiografia sobre isto é farta, exceto em língua portuguesa. Por isso, mesmo que em língua inglesa, nomes como o do egiptólogo Raymond Oliver Faulkner (1894-1982) e James P. Allen (1945-) estarão presentes neste trabalho para explicar os padrões da escrita egípcia, sobretudo do Reino Médio. Por questões escasso tempo necessário para se completar esta monografia, não serão feitas grandes trabalhos de traduções hieroglíficas; será utilizado, em vez disso, as de James Henry Breasted (1865-1935) em sua vasta coletânea de textos traduzidos. Por fim, para se analisar o material de natureza iconográfica, grande foco deste trabalho, serão utilizados os escritos de Richard H. Wilkinson (1951-) e de Sir Alan Gardiner (1879-1963) – deste último principalmente sua Egyptian Grammar, que contém a célebre listagem de hieróglifos e seus respectivos significados, utilizada hoje em outras obras da qual são derivadas. Desta forma, pode-se explicar qual a dinâmica usada neste trabalho. Será dividido em três capítulos. O primeiro explicando rapidamente o contexto do reinado de Ramsés III (c. 1194 – 1163 a.C.) e de seus antecessores, bem como estabelecendo uma conceituação e discussão com relação à guerra e seu valor para a sociedade egípcia, bem como a estrutura do exército egípcio entre os Reinos Médio e Novo e sua respectiva utilização – principalmente contra os Povos do Mar, grupo étnico que, na época, representava uma ameaça de invasão ao Egito. O segundo segue uma linha mais teórica, abordando o histórico de construção dos templos no Egito e sua significação simbólica. Em seguida, se faz obrigatória uma abordagem sobre o funcionamento teórico da arte egípcia e suas representações, somando-se como elemento de grande importância na arquitetura religiosa egípcia. No capítulo 2 também se encontram as Fichas de Análise que serão trabalhadas e analisadas, contendo as imagens extraídas de uma das obras do Oriental Institute. Por fim, o terceiro capítulo será onde se poderá visualizar a aplicação dos conceitos explicados e entendidos nos dois primeiros, buscando compreender a problemática de forma satisfatória. Será composto de uma série do que se 12

chamarão Extrações – o isolamento de pequenos trechos e pedaços da imagem – e de uma leitura – sim, este é o termo que poderia ser empregado: a linha que separa texto hieroglífico e imagem é muito tênue – da representação proposta. E, ao final, será feita uma breve conclusão dos resultados vistos em todo o percurso desta monografia. É um privilégio dos historiadores o poder se lançar numa busca por fontes e construir conhecimento por meio destas. O tempo e recursos gastos neste investimento se tornam prazerosos quando se vê o fruto do trabalho pronto: mais uma fatia, pequena, de conhecimento extraída do passado para os dias de hoje.

13

2. Capítulo I. Notas Introdutórias; A partir de agora, visando o entendimento do contexto e da discussão proposta por essa monografia, deve-se tecer algumas considerações introdutórias sobre certas questões-chaves que serão cruciais para o alcance de tal objetivo, de acordo com a historiografia consultada.

2.1.

O Contexto – Breve Explicação sobre o Reinado de Ramsés III e Situação Política Externa do Mediterrâneo Leste no Século XI a.C1; Precisa-se voltar à alguns anos anteriores ao faraó em questão, para se

compreender seu contexto. Após a morte de Merneptah, c. 1214 a.C, houveram algumas disputas políticas pelo trono que vai permanecer corrente nos reinados posteriores. A propósito, o poder político esteve tão fragmentado que, uma vez ou outra, um alto funcionário governou efetivamente o território: caso esse de Bay2, à época da rainha Tauseret (c. 1188-1186 a.C.). Nessa disputa pelo poder egípcio, uma liderança estrangeira assumiu o trono. Irsu, o sírio, tornou-se o governante e, segundo Jacobus Van Dijk3, marcou seu tempo pela corrupção e pelo seu desagrado aos deuses. O mesmo autor aponta que o Papiro Harris4, escrito algumas décadas depois, narra como o faraó Sethnakht, escolhido pelas divindades para ser o Restaurador, devolveu a ordem e expeliu aos “rebeldes”5, deixando para trás o que haviam retirado do Egito. Seu filho Ramsés III assumiu dois anos depois, em c. 1184 a C; John Baines aponta que este herdou um período de estabilidade interna6. Há poucas informações sobre essa situação política, aliás, não somente disso mas como sobre todo o seu reinado. Sabe-se que estabilidade não é algo que se percebe tão facilmente nesse período, afinal inversamente, conflitos internos e externos serão uma constante. De qualquer forma, Ciro Flamarion Cardoso aponta esse como um dos últimos reinados de maior renome na história egípcia, o que pode ser visto em algumas obras

1

Datação feita com base na obra WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 13 -14; 2 BAINES, John. MÁLEK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p. 46; 3 DIJK, Jacobus Van. The Amarna Period and the Later New Kingdom (c. 1352 -1069) in SHAW, Ian (org). The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford. Oxford University Press. 2003. p .296; 4 Idem. p. 296; 5 Idem. p. 297; 6 BAINES, John. MÁLEK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p. 46;

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arquitetônicas7. Uma delas é Medinet Habu8, complexo funerário e um centro administrativo de grandes proporções – fonte primária para esse trabalho. Tratar-seá deste mais à frente. Duas coisas que marcaram o reinado desse faraó: a construção e suas campanhas militares, no geral defensivas. Ramsés III não elaborou campanhas contra oponentes de “grande porte”, se é que se pode assim chama-los, como os hititas ou os Mittani. Seus grandes desafios são comunidades tribais ou nômades, aliás um tanto conhecidas dos demais faraós anteriores, que volta e meia invadiam as bordas do país: os líbios. Ainda no início de seu reinado, no 5º ano, os líbios avançavam sobre o Delta, aproveitando a desordem que ainda restava para penetrar no território9 e se instalar. Jacobus Van Dijk relata que, inicialmente, houvera uma aceitação sobre essa imigração, haja vista que à primeira vista seria pacífica10. Com o tempo, quando a instalação desses começou a prejudicar a corte, o faraó precisara expulsá-los do Vale do Nilo; constam em Medinet Habu alguns relevos mostrando essas expedições militares de enfrentamento aos líbios. O risco era de que esses influenciassem na sucessão ao trono, impondo seu próprio rei11. Os outros opositores vieram de regiões mais distantes: são os chamados Povos do Mar, um vasto grupo de comunidades tribais em constante movimentação pelo Mediterrâneo oriental12. As fontes desse trabalho serão compostas de relevos, ou desenhos de linha, resultantes do enfrentamento desses com os egípcios, também dispostas no templo selecionado. Antecessores seus já haviam entrado em conflito com os mesmos, inclusive Merneptah13, No entanto foi Ramsés III quem, segundo a bibliografia consultada, teve um maior enfrentamento contra os mesmos e isso é unânime nos textos sobre esse tema. Ramsés III registrou a Guerra do Ano 8º em Medinet Habu como uma vitória. Não foi o caso de algumas potências da região como os hititas. Hattusa, a capital

7

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo. Brasiliense. 1986. p. 74; Idem, p. 74; 9 DIJK, Jacobus Van. The Amarna Period and the Later New Kingdom (c. 1352 -1069) in SHAW, Ian (org). The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford. Oxford University Press. 2003. P.297; 10 Idem, p. 297; 11 Idem, p. 297; 12 D‟AMATO, Raffaele. SALIMBETI, Andrea. Sea Peoples of the Bronze Age Mediterranean, c. 14001000 B.C. Oxford. Osprey Publishing. 2015. p. 4; 13 Idem, p. 8 8

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destes, caiu em meio à assaltos dos Povos do Mar14. Além dessa, pode-se mencionar as cidades de Alalakah e Ugarit na Síria, Tarsis na Anatólia e a Cilícia como alvos dos Povos do Mar15 e que então flertavam para o Delta do Nilo. Isso serve como um panorama do contexto externo e dos povos contemporâneos ao Egito dessa época. Quanto à política interna, Ramsés III tivera outros obstáculos. Relatam-se divergências entre sacerdotes de Amon e o faraó16, principalmente na região de Karnak17; tal cargo se tornara hereditário a partir de então e os templos acumulavam altas quantidades de terra. Soma-se a essa situação uma crise econômica de grandes proporções e certa quebra nas finanças reais18. Tal crise afeta diretamente à vila de Deir el-Medina, onde se encontram os trabalhadores – principalmente construtores das tumbas do lado oeste do Nilo, em Tebas -, deixando-os sem alimentos19. Resultado: trabalhos paralisados. No 29º ano de reinado orquestra-se o que é chamado por Cardoso de greve20 - o que seria o primeiro relato de uma na História. Nesse mesmo tempo, os líbios continuam tentando entrar no território egípcio21. O cenário que se tem então é de grande insegurança22: sacerdotes com grande poder, invasões de tribos estrangeiras em um Estado com recursos limitados. Ao final do reinado, houve uma tentativa de assassinato do rei. Esta se deu num harém em Per-Ramsés. Envolveu oficiais do exército, escribas e Tiy – uma das esposas do faraó23. A ideia era assassinar o rei em meio ao festival anual de Opet, que acontecia em Tebas; colocando como sucessor no trono Pentawet, filho da mesma24. Mas a trama envolvia muito mais coisas de forma preparatória: Pierre Montet afirma que um sujeito denominado Pen-Hui-Bin, um dos envolvidos

14

DIJK, Jacobus Van. The Amarna Period and the Later New Kingdom (c. 1352 -1069) in SHAW, Ian (org). The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford. Oxford University Press. 2003. P.297; 15 Idem, p.297; 16 Idem, p. 298; 17 BAINES, John. MÁLEK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p. 46; 18 Idem, p. 298; 19 Idem, p. 298; 20 CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo. Brasiliense. 1986. p. 74; 21 DIJK, Jacobus Van. The Amarna Period and the Later New Kingdom (c. 1352 -1069) in SHAW, Ian (org). The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford. Oxford University Press. 2003. p .298; 22 Idem. p. 298; 23 Idem, p. 298; 24 Idem, p. 298

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coadjuvantes na trama, fabricava figuras de cera e escritos mágicos para enfraquecer o faraó25. Sem sucesso. O plano fracassou e os mesmos foram pegos. O desfecho desse caso é ainda mais curioso: um julgamento26 e um “suicídio-forçado” dos acusados capturados. Isso é apontado por Montet em sua obra, utilizando-se de uma frase do próprio Papiro Harris que diz que “Morreram eles próprios.27” O elemento greve e o plano de assassinato ao faraó são fatos ao seu modo inusitados. O fim dos conspiradores, mencionados anteriormente, é outra controvérsia: para o próprio Montet, a sugestão que Gaston Maspero faz é mais plausível – a de que estes foram enterrados vivos 28.

2.2.

O Conceito de Guerra para os Egípcios; Partindo do contexto, pode-se buscar compreender o conceito de guerra para

os egípcios. Sim, busca-se por uma definição contemporânea ao próprio contexto, haja vista que a atividade bélica não tem o mesmo significado para todas as culturas e todas as épocas29. Explicando essa afirmação: a História Militar tradicional foi tratada dentro da ciência histórica, principalmente a partir do séc. XIX, partindo dos princípios de Carl von Clausewitz30 (1780 -1831), militar e teórico da guerra, para quem a mesma “é a continuação da política por outros meios31”.

Para ele, a guerra era uma das

expressões da política bem como motor da história32. John Keegan, em sua obra A History of Warfare, esboça uma razão pelo qual essa afirmação não esta completa: “Isso implica a existência de Estados, de interesses estatais e do cálculo racional sobre como esses podem ser alcançados33”. 25

MONTET, Pierre. O Egito no Tempo de Ramsés 1300-1100 a.C. São Paulo. Companhia das Letras. 1989. p. 226; 26 Idem, p. 228; 27 Idem, p. 228; 28 Idem. p. 228; 29 PARENTE, Paulo André Leira. A Construção de Uma Nova História Militar. Revista Brasileira de História Militar. Ano N/A. P.2; 30 SOARES, Luis Carlos. VAINFAS, Ronaldo. Nova História Militar. In. CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro. Elsevier. 2012. p. 114; 31 Idem, p. 114; 32 Idem. p.117; 33 KEEGAN, John. A History of Warfare. Nova York. Vintage Books. 1993. p.3;

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Numa tradução livre, a abordagem de Keegan sobre essa passagem afirma que a expressão de Clausewitz, localizada na sua obra máxima Da Guerra, deve ser entendida à luz de seu tempo34. Em suma, o militar em questão vive numa sociedade pautada pelos ideais Iluministas, pela primazia do uso da Razão, etc. Clausewitz combatera, por exemplo, contra as forças napoleônicas na Rússia em 181235 e, mesmo que indiretamente, conhecia ao próprio Napoleão Bonaparte – ou pelo menos, sabia como esse combatia e o nível de seu profissionalismo na execução dessa atividade.

Julga, portanto, as justificativas para a guerra – a

execução de metas políticas pelo uso da violência – e ela própria de forma generalizadora. A significação da guerra é um dos pontos-chaves nessa etapa desse trabalho. Keegan aponta na obra acima citada, as várias conceituações dessa atividade no tempo e nas mais diversas sociedades. Tal autor é citado por Vainfas e Luis Soares como um dos principais membros da Nova História Militar36, depois de algumas décadas de certo receio dos historiadores em tratar desse tema. Logo após Clausewitz, a teoria marxista associa a guerra à luta de classes37 e à etapa final do capitalismo, o imperialismo – teoria defendida por Lenin38. Após isso a historiografia militar, já em declínio desde o final do XIX39, acabou por ser reduzida cada vez mais e quase banida. As poucas instituições que realmente formavam historiadores voltados para essa área eram as ligadas a alguma parte das Forças Armadas40 - fenômeno que ocorre tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo – o que aumentara uma distância já existente entre acadêmicos civis e militares 41. John Keegan mesmo surge da Academia Real Militar de Sandhurst, Inglaterra, e conta suas experiências como sendo um dos únicos civis nesse ambiente, onde todos os outros componentes possuíam experiências práticas em guerras42. A busca dos teóricos desse ramo hoje se dá na procura de novos campos para o estudo das guerras, principalmente na História. A Nova História Militar tende 34

KEEGAN, John. A History of Warfare. Nova York. Vintage Books. 1993. p.3; Idem, p. 16; 36 SOARES, Luis Carlos. VAINFAS, Ronaldo. Nova História Militar. In. CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro. Elsevier. 2012. P.120; 37 Idem, p. 119; 38 Idem, p. 119; 39 Idem, p. 119; 40 Idem, p. 120; 41 Idem, p. 120; 42 KEEGAN, John. A History of Warfare. Nova York. Vintage Books. 1993. p. 1; 35

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a fazê-lo de forma a pensar não só o conflito ou a batalha em si, mas várias outras estruturas adjacentes a esses como a economia, a psicologia, a sociologia, etc. 43 e, acima de tudo, desvinculando a guerra de sua “subordinação à História Política44”. Pode-se, então, buscar entender a forma com que essa atividade é vista na sociedade egípcia e traçar um breve histórico de sua execução no decorrer da história egípcia. Surge um grande obstáculo à frente: como definir algo que supostamente não existe no vocabulário egípcio? O questionamento aparece por meio da reflexão de Sheikh „Ibada Al-Nubi ao tratar do soldado na obra O Homem Egípcio. Segundo o mesmo: O fato de haver [na língua egípcia] inúmeras formas de definir o “inimigo” e mesmo a batalha e a refrega, e não haver um termo preciso e específico pra definir a situação jurídica, política, social e 45 econômica que é a “guerra” enquanto tal, pode ser significativo ”.

No entanto, encontra-se na obra de Raymond Faulkner, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, duas palavras relacionadas à guerra: xrwryw e xrwryt46. Segundo Keegan, o conceito e justificativa para a guerra variam de acordo com o contexto e caso analisado. Para Keegan, a guerra para o egípcio estaria relegada à função da manutenção da ordem47; as excelentes condições geográficas do Vale do Nilo determinariam a importância na sociedade, pelo menos numa generalização. Para ele: (...) Os egípcios mantinham um modo de vida estável e invariável, baseados em três estações de cheia e seca, regulados pelo governo 48 de um rei que toma um lugar principal dentre seus 2000 deuses , e dedicando, em tempo ao trabalho que pode ser separado em irrigação e colheita, para construir e suprir ao palácio, templo e tumbas, sem igual em monumentalidade, aquela que a necessidade da passagem ao pós-vida, como concebiam, requeria. Dentro de um mundo em ordem, profundamente bonito em sua realização artística em toda aspereza daquele ato de criação descontraído dos que estavam na parte inferior do processo artístico, os rachadores de 43

SOARES, Luis Carlos. VAINFAS, Ronaldo. Nova História Militar. In. CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro. Elsevier. 2012 P. 114; 44 Idem, p. 114; 45 AL-NUBI, Sheikh „Ibada. O Soldado. In DONADONI, Sérgio (org). O Homem Egípcio. Lisboa. Editorial Presença. 1994. P. 135; 46 FAULKNER, Raymond O. A Concise Dictionary of Middle Egyptian. Oxford. Griffith Institute. 1991. p. 196; 47 KEEGAN, John. A History of Warfare. Nova York. Vintage Books. 1993. p 132; 48 O número de divindades exposta por Keegan é um exagero; deve-se lembrar que Keegan não é necessariamente um egiptólogo.

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pedra e [puxadores] de trenós, a guerra deveria estar relegada à uma 49 função baixa e irrelevante .

Idealizações à parte – afinal, ver-se-á que nem tão bonito e perfeito era o mundo egípcio – a síntese dessa afirmação é a busca pela manutenção da ordem natural do mundo conhecido e sua preocupação com o sobrenatural, principalmente depois da morte. Valendo-se de uma comparação com outra sociedade, os sumérios, vê-se que a geografia, para Keegan, tem outra aplicação para esta sociedade. De uma forma diferente, o sumério50 sofria também com uma cheia e seca dos rios principais, Tigre e Eufrates; porém isso traria o seguinte efeito político: (...) Cidades sumérias começaram a disputar entre si as demarcações de fronteiras, água e os resultados das cheias; os reis sumérios logo veriam sua autoridade desafiada pela chegada de imigrantes das colinas que estabeleceriam cidades em sua própria. Entre 3100 a. C e 2300 a. C, como resultado, a guerra cada vez mais dominava a vida suméria, liderando a suplantação de reis-sacerdotes à líderes militares, especialização militar, o acelerado desenvolvimento de uma metalurgia de armas e, provavelmente, a intensificação do combate 51 ao ponto que nós podemos iniciar a falar em “batalha” .

Acima de tudo, o faraó é o governante político do Egito; mas, muito além disso, o mesmo possui uma divisão de tarefas muito particular e a principal delas é agradar aos deuses52.

A prosperidade e a paz são conservadas se o monarca

cumpre tal dever essencial: Se os deuses estabeleceram como soberano Vida, Saúde, Força um ser saído de sua carne, o país conhece a paz e a prosperidade. Uma inundação generosa faz crescer na terra a cevada e a espelta. Os rebanhos multiplicam-se. O ouro, a prata e o cobre, as madeiras preciosas, o marfim, o incenso e os perfumes, as pedras afluem dos 53 quatro pontos do horizonte .

Do contrário, o caos generalizado toma conta do Egito – a continuação do trecho dá uma grande ênfase ao governo estrangeiro54:

49

KEEGAN, John. A History of Warfare. Nova York. Vintage Books. 1993. p 132; Idem. p. 133; 51 Idem, p. 133; 52 MONTET, Pierre. O Egito no Tempo dos Ramsés 1300-1100 a.C . São Paulo. Companhia das Letras. 1989. p. 203; 53 Idem, p. 203; 54 Idem, p. 203; 50

20

Mas tudo muda se a condição primordial não é preenchida. A terra do Egito fica à deriva. Não há mais autoridade, porque todos querem comandar. Cada um assassina seu irmão. Logo, suprema vergonha, o estrangeiro é o senhor. O povo não tem mais o que comer. Nada mais chega da Síria nem de Kuch. Não são mais apresentadas oferendas nos templos dos deuses, que desviam o seu 55 olhar dos que lhe foram infiéis.

Tanto o fato de o estrangeiro dominar o Egito, quanto o fato de “cada um assassinar seu irmão”, são duas coisas amplamente conhecidas dos egípcios. Vale lembrar que o que se chama de Períodos Intermediários, e que aconteceram por pelo menos três vezes na classificação temporal da história egípcia, resumem-se, grosso modo, a esse quadro: divisão, insegurança e desordem. Portanto, impedir que essa situação se aproxime do país é a outra missão de suma importância para os governantes; sobretudo, essa tarefa se alia à disputas políticas internas e externas. Ver-se-á essa questão com mais propriedade à frente.

2.3.

Construção do Exército Egípcio e sua Atuação no Reino Novo Vale destacar aqui a forma com que o exército egípcio se construiu no tempo

e sua devida utilização. Primeiramente, deve-se buscar as bases dessa instituição após o período Pré-Dinástico – a partir da unificação. Alguns autores relacionam o grande potencial defensivo do Egito Antigo à sua posição geográfica no norte da África56, justamente por estar cercado por desertos áridos, a não ser pela estreita faixa habitável em torno do Nilo57. No período que se prolonga do Reino Antigo ao Reino Médio, até aproximadamente o século XVII a.C, a atividade guerreira estava inteiramente ligada aos governos regionais – sim, subordinados ao faraó mas comandados diretamente pelos nomarcas58. Tratava-se de grupos de camponeses jovens59, que eram convocados a servir como guerreiros, por determinado tempo, conhecidos como hwnw-nfrw (“jovens recrutas60 ou “homens jovens do exército”

61

). Juntamente a

55

MONTET, Pierre. O Egito no Tempo dos Ramsés 1300-1100 a.C . São Paulo. Companhia das Letras. 1989. p.. 203; 56 FIELDS, Nic. Soldier of the Pharaoh, Middle Kingdom Egypt 2055-1650 BC. Oxford. Osprey Publishing. 2007. P. 4. 57 Idem, p.4; 58 Idem, p 10; 59 Idem, p. 10; 60 Idem, p. 10;

21

esses havia o pequeno efetivo profissional e hereditário de soldados: os aqAwty

62

(“guerreiros”), mas a grande maioria dos soldados se encontravam no primeiro grupo. O nomarca foi nesse ínterim o responsável pelo treinamento – assumindo o posto, então, de “supervisor dos recrutas63” (imy-r hwnw nfrw64) - dentro de seus domínios, e, quando solicitado, atendia aos anseios do faraó nas mais diversas atividades. Aliás, com relação ao uso desses soldados é interessante destacar que nem sempre eram chamados para um combate efetivo, principalmente no Reino Médio. Algumas vezes esses contingentes eram selecionados para trabalhos pacíficos como o da construção civil ou expedições na busca por recursos no estrangeiro65, mesmo que treinados para o confronto quando necessário. Combate esse que se restringia na época à infantaria, dispondo de machados, adagas, lanças e escudo, e ao uso do arco e da flecha66. No âmbito fluvial, destaca-se o uso das embarcações em, grosso modo, “operações anfíbias”67deslocava-se pelo Nilo até a região, assaltava-se a vila, fortaleza, ou seja, enfrentava-se o oponente e retornava-se à embarcação – desde 3000 a.C. aproximadamente68. Essa situação é a forma, por exemplo, com que posteriormente – quando do conflito contra os hicsos, ao final do Segundo Período Intermediário – um soldado de nome Amósis, filho de Abana, combateu69, por volta de 1560 a.C. Seu relato em sua tumba em El-Kab conta que certa embarcação denominada O Touro Selvagem70, a qual estava embarcado, patrulhava o rio e realizava transporte de tropas, provisões e etc. Quando necessário, a tripulação desse navio deveria descer

61

Ou simplesmente nfrw conforme: FAULKNER, Raymond O. A Concise Dictionary of Middle Egyptian. Oxford. Ashmolean Museum. 1991. p. 132; 62 Transliteração conforme: FAULKNER, Raymond O. A Concise Dictionary of Middle Egyptian. Oxford. Griffith Institute. 1991. p. 47; 63 FIELDS, Nic. Soldier of the Pharaoh, Middle Kingdom Egypt 2055-1650 BC. Oxford. Osprey Publishing. 2007. p. 11; 64 Idem, p. 11; 65 Idem, p. 8; 66 Idem, p. 12; 67 Idem, p. 26; 68 Idem, p. 26; 69 Grandes Civilizações do Passado. A História Cotidiana às Margens do Nilo, Egito 3050-30 a.C. Barcelona. Folio. 2007. p. 106; 70 Idem, p. 109;

22

e combater às margens do rio e retornar a ele, ilustrando bem esta forma de guerrear. O domínio militar egípcio em determinadas localidades foi mais notório, ainda no Reino Médio, haja vista a construção de estruturas militares, sobretudo na Núbia, local de intenso confronto desde a unificação uma vez que essa região era responsável por grande parte do comércio e de onde viriam as próprias tropas auxiliares de núbios juntamente com grande variedade de produtos71. Os fortes egípcios surgiram com maior frequência no sul do Egito, destacando-se os de Buhen, Semna Ocidental, Uronarti e Aniba72.

Ao norte, no Delta do Nilo, outras

fortalezas se fizeram importantes, como as conhecidas Muralhas do Príncipe73, de Amenenhat I, para defender tal região de ataques externos. O Segundo Período Intermediário revelou, como se percebe anteriormente, certa continuidade nas técnicas de combate do Reino Médio o que pode ser mostrado pelo relato do guerreiro Amósis de Abana. Entretanto, é a partir da reunificação, guerra que esse indivíduo estava envolvido, que se marca o início do Reino Novo – período no qual a bibliografia consultada revela uma grande importância do exército e do desenvolvimento bélico na história egípcia. Para Ciro Flamarion Cardoso, por exemplo: O Reino Novo esteve marcado pelas peripécias de construção, apogeu e progressiva perda de um império egípcio que compreendia a Síria-Palestina e a Núbia (...). [Por isso] Muitos dos aspectos da política interna decorrem desta política externa agressiva, em particular a importância crescente do militarismo e dos militares na história do país, não só politicamente como também no plano da 74 propriedade de terra.

Uma das características desse novo exército é o poder que seus chefes, subalternos ao faraó – ele é o supremo comandante -, obtiveram. Na citação de Cardoso, identifica-se uma questão relevante: a relação dos militares com a posse da terra. Ibada Al Nubi explica bem essa relação e vai mais além, conforme abaixo: [no Reino Novo] Os soldados são um grupo social hereditário, que transmite a sua posição de pais para filhos. São registrados em listas constantemente atualizadas, e quando o militar é dispensado, o filho 71

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo. Brasiliense. 1986. p. 23; VOGEL, Carola. The Fortifications of Ancient Egypt, 3000-1780 BC. Oxford. Osprey Publishing. 2010. p. 27; 73 SHAW, Ian. Egyptian Warfare and Weapons. Buckinghamshire. Shire Publications. 1991.p.16-17; 74 CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo. Brasiliense. 1986. p. 23; 72

23

ocupa o seu posto e as vantagens que lhe estão associadas, ou seja, o usufruto de um pedaço de terra, normalmente situado em zonas circunscritas, para que se possam constituir autênticas aldeias militares, cujos residentes tinham à sua disposição um campo e os 75 escravo que foram recebendo como recompensa da sua bravura .

A partir de então, principalmente em meados desse período, os soldados passariam a receber recompensas e condecorações (sim, cita-se o caso de um soldado de nome Amenemheb que recebera pelos seus atos em guerra na Síria e Palestina o que chama de “ouro da honra”, onde estavam inclusos além de várias outras peças, uma mosca e um leão; duas condecorações76) por mérito obtido em batalhas. Uma delas, segundo tal trecho, é um lote de terras ao sair do serviço ativo nas fileiras do exército faraônico, principalmente para os patamares mais altos – devido a sua importância dentro do governo. Esses guerreiros formaram uma classe intermediária entre o faraó e os trabalhadores, segundo a concepção do mesmo autor: Não são verdadeiros proprietários, pelo menos até a XIX dinastia, mas constituem um grupo que vive do trabalho de outrem, e que prepara assim o nascimento de uma classe intermédia entre a classe dominante e a dos trabalhadores privados da posse dos meios de 77 produção .

Continuando o raciocínio exposto por Cardoso anteriormente, o Reino Novo trará consigo como bagagem do Segundo Período Intermediário: o aperfeiçoamento na estrutura militar, seus equipamentos e técnicas. O trato com essas inovações foi o fator que colocou “o Egito do Reino Novo grosso modo em pé de igualdade com o resto do Oriente Próximo, na fase final da Idade do Bronze 78”. Mas há um item que figura como a principal das inovações: o uso do cavalo e do carro de guerra79. Essa combinação foi o suprassumo dos faraós dessa época. Forneceram grande potencial em manobra, além de serem rápidos e leves. O próprio hicso já os utilizava; foram uma constante entre os vizinhos hititas, hurritas e os micênicos do Egeu, e então passaram a aser utilizados pelos egípcios. 75

AL-NUBI, Sheikh „Ibada. O Soldado. In DONADONI, Sérgio (org). O Homem Egípcio. Lisboa. Editorial Presença. 1994. p 150; 76 Idem, p. 150; 77 Idem, p. 150; 78 CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo. Brasiliense. 1986. p. 23; 79 SPALINGER, Anthony J. War in Ancient Egypt: The New Kingdom. Oxford. Blackwell Publishing LTD. 2005. p 8;

24

O arsenal egípcio sofreu alterações, influenciados pelos povos vizinhos. O arco figura como um dos principais exemplos. Morkot afirma que o arco composto, vindo da Ásia, sobrepôs o que era utilizado anteriormente, tonando-se mais forte e resistente do que os demais e contando com um alcance de tiro maior80; houve a introdução de uma cimitarra curva, denominada khopesh81, também vinda do Oriente, que era utilizada por diversos tipos de soldados, mas, sobretudo pelo faraó quando este oferecia os cativos à divindade e entre outros. Uma das mudanças mais significativas estava relacionada à estrutura militar egípcia; para entendê-las é necessário observar a dinâmica externa ao qual o Egito se encontrava, analisando a atuação dessa força bélica caso a caso. O Reino Novo foi para o Egito a época de maior projeção no estrangeiro. Em toda a Síria e Levante, dezenas de cidades e vilarejos, tais como Tiro, Sidon, Qadseh, Meggido, entre outras, foram cenários de disputa entre as forças egípcias, hurritas e, posteriormente hititas. Uma certa relação de vassalagem entre as regiões conquistadas pode ser resumida da seguinte forma por John Baines: Os minúsculos Estados da Síria e da Palestina, que formavam o “império” egípcio, estiveram ligados ao faraó por pactos de alianças e pagavam tributos a ele, mas continuaram com governos autônomos e 82 fazendo sua própria política local.

Os hurritas, ou Mitani, surgiram nesse panorama após as expedições de Tutmés I ao Eufrates83. Nesta ocasião, o mesmo batizara a região de Naharin, ou “O País do Rio”; em uma segunda ocasião a região seria relatada em um texto como Maittani84. Ocuparam essa região há muito tempo, mas se tornaram uma potência política e econômica a partir da XVIII dinastia 85, defrontando-se com os faraós da mesma. Existem poucas fontes sobre tal sociedade, sabe-se que os principais embates se deram nos reinados de Amenhotep I, Tothmés I e Tothmés III86. No reinado desse último, Megido, ao sul do atual território israelense, foi palco de um 80

MORKOT, Robert. G. Historical Dictionary of Ancient Egyptian Warfare. Maryland. The Scarecrow Press Inc. 2003. p. 51; 81 Idem, p. 120; 82 BAINES, John. MÁLEK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p. 42-43; 83 ROAF, Michael. Mesopotâmia. Barcelona. Folio. 2006. p. 132; 84 Idem, p. 132; 85 MORKOT, Robert. G. Historical Dictionary of Ancient Egyptian Warfare. Maryland. The Scarecrow Press Inc. 2003. p. 145; 86 Idem. p. 145;

25

grande confronto. Situa-se na chamada Via Maris, potencial rota de comércio durante a Antiguidade que uniria o norte ao Egito e que se localizava acima de um monte de mesmo nome87. O rei de Qadesh, aliado ao soberano de Mitani, estabeleceram uma aliança e se reuniram nessa mesma cidade para confrontar aos egípcios 88. Tothmés acabou surpreendendo a ambos, haja vista que desviou do caminho principal89, seguindo por uma passagem entre os montes cortando caminho e atacando, com seus carros, o acampamento do rei de Qadesh. Anthony J Spalinger na obra War in Ancient Egypt: New Kingdom menciona que muito além dos desfechos políticos que a batalha em Megido possa ter trazido – Mitani não conseguiu conter o controle egípcio nessa região – a principal consequência foi o ideal de um Rei Herói90 que seria fartamente utilizado por seus sucessores.

Seu comportamento em batalha, segundo o mesmo, retrata o

estereótipo do faraó combatente em vários aspectos: No relato de Megido [...] a imagem de Tothmés III é justa e imparcial. O rei não vacila. Ele não mostra covardia nem atos de tirania. Assume-se desde o início que Tothmés é um guerreiro eficaz. [...] O faraó está sempre pronto, resoluto, e forte. Ele ouve aos conselhos e evita divagações sobre seu objetivo. Verdadeiramente, ele empurra suas tropas, mas ele sempre obedece aos sons da prática militar. Os campos são deixados logo ao amanhecer; não há demora. O centro de seu exército permanece forte, mesmo quando as duas alas [do 91 exército] são criadas ao redor do inimigo. ”

Tothtmés IV, por outro lado, teve um relacionamento diferenciado com os hurritas, casando-se com a filha do rei Artatama, em uma união diplomática – fato evidenciado pelas suas correspondências com esse governante nas Cartas de Amarna - o que se deu também com seu filho Amenhotep III92. Mitani, porém, não tardaria a cair. Conflitos internos com relação à sucessão do trono, durante o reinado de Tushratta, dividiram o território. Artatama II foi o rival

87

KOCHAV, Sarah. Israel. Barcelona. Folio. 2006. p. 224; Grandes Civilizações do Passado. A História Cotidiana às Margens do Nilo, Egito 3050-30 a.C. Barcelona. Folio. 2007. p. 114; 89 Idem, p. 118; 90 SPALINGER, Anthony J. War in Ancient Egypt: The New Kingdom. Oxford. Blackwell Publishing LTD. 2005. p 101; 91 SPALINGER, Anthony J. War in Ancient Egypt: The New Kingdom. Oxford. Blackwell Publishing LTD. 2005. p. 101; 92 MORKOT, Robert. G. Historical Dictionary of Ancient Egyptian Warfare. Maryland. The Scarecrow Press Inc. 2003. p. 145; 88

26

que buscava derrubar o rei; para isso, contou com o auxílio de outro reino da Península da Anatólia: os hititas93 e conquistara a metade oriental do reino, enquanto Supilulima I, o rei hitita, tomaria a outra metade, transformando Mitani num de seus vassalos – o governante da parte ocidental do território chamou-se Shatiwaza, filho de Tushratta que assassinou seu pai94. Surgiu dessa forma outro dos principais rivais do Egito no Reino Novo. De um aglomerado de tribos que migraram para a Península Anatólia, no 3º milênio a.C.95, os hititas estavam, a partir do séc. XIV a.C., no seu auge96, confrontando-se com Mitani na busca pelo domínio de certas localidades na região norte da Síria e Levante, inclusive a Cilícia. Existiam neste cenário três grandes forças buscando o controle dessa região: os egípcios, o que restava de Mitani e o reino Hitita97. O sistema de alianças é demonstrado pelas Cartas de Amarna, principalmente sobre o reinado de Akhenaton e Tutankhamon, e, sobretudo, entre hititas e egípcios – Tushratta ficara sem aliados, haja vista as relações estáveis entre os dois98 (nessa época, o centro da atividade faraônica se internalizou haja vista as reformas religiosas de Akhenaton). Além desses, estavam cercados por outros reinos que se lançavam à expansão territorial como os assírios. Michael Roaf menciona que: Os hititas foram os principais beneficiados pelo colapso do reino de Mitani, dado que passaram a controlar a região ocidental do império. Os assírios obtiveram a sua parte de benefícios, porque, libertados do domínio Mitani, estabeleceram-se em termos de igualdade com o 99 Egito, o Hati e a Babilônia .

O mesmo autor afirma que isso levou aos assírios a expansão às regiões limítrofes do reino hitita100. As relações entre egípcios e hititas logo se deteriorariam. Na XIX dinastia Sety I (c. 1305- 1290 a.C.) entrou em guerra contra os hititas, tomando deles

93

MORKOT, Robert. G. Historical Dictionary of Ancient Egyptian Warfare. Maryland. The Scarecrow Press Inc. 2003. p. 145; 94 Idem, p. 145; 95 NOSSOV, Konstantin S. Hittite Fortifications, 1650-700 B.C. Oxford. Osprey Publishing. 2008.p.4; 96 Idem, p. 5; 97 ROAF, Michael. Mesopotâmia. Barcelona. Folio. 2006. p. 137; 98 Idem, p.137; 99 Idem, p 139; 100 Idem, p. 139;

27

novamente as posses na Síria101. Sob o reinado de Ramsés II essa confrontação assumiu níveis maiores, sobretudo no episódio de Qadesh, o ato maior do embate entre as duas potências, onde se vê o auge do militarismo egípcio, com sua máxima organização e profissionalismo, mesmo que sem um desfecho definido. Tal é importantíssima para se entender também o poder que o discurso real possuía; deve-se, portanto, entender como ela funcionou. Qadesh, ou Tell Nebi Mend, representava uma posição de extrema importância para ambos os lados102. Significava o controle de uma região, um vale, ao norte da Síria, próxima ao rio Orontes. Estava, porém, sob o comando hitita, o que representava para o Egito uma enorme desvantagem, haja vista que fica a mais de 1600 quilômetros de distância de suas fronteiras originais; além disso foi muito bem protegida por muralhas, situada no topo de uma colina e era capaz de abrigar e acomodar o exército hitita de forma satisfatória103. Ao 5º ano do reinado de Ramsés II os hititas haviam ajuntado vários vassalos para combater os egípcios, uma verdadeira coalizão de todos os povos da faixa norte da Síria. Avançaram do Delta à Qadesh e, quando estavam acampados ao sul desta cidade, chegaram dois beduínos para falar com Ramsés II sobre a localização do rei hitita104, passando uma informação falsa ao faraó. O Poema de Qadesh menciona também outro elemento: a divisão do exército egípcio em vários grupos menores: Observou, o miserável, vencido chefe de Hati, junto com os vários países aliado, que estavam estacionados em formação de batalha, escondidos ao noroeste da cidade de Qadesh, enquanto Vossa Majestade estava sozinho consigo mesmo, com sua guarda pessoal, e com a divisão de Amon que marchava atrás dele. A divisão de Rá cruzara sobre o leito do rio ao sul da cidade de Shabtuna, à um iter de distância [aproximadamente 1 milha e meia segundo Breasted] da divisão de Amon; [...] a divisão de Ptah estava ao sul da cidade de Aranami; e a divisão de Seth estava marchando sobre a estrada 105 [...].

Isso significa que o exército alcançara sobre o reinado de Ramsés II um nível de expertise maior que os antecessores. Mark Healy, em sua obra The Warrior 101

BAINES, John. MÁLEK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p. 46; MORKOT, Robert. G. Historical Dictionary of Ancient Egyptian Warfare. Maryland. The Scarecrow Press Inc. 2003. p.183; 103 HEALY, MARK. New Kingdom Egypt. Oxford. Osprey Publishing. 1992. p. 47; 104 BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt: Historical Documents from the Earliest Times to the Persian Conquest, Vol III – The Nineteeth Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 143; 105 Idem, p. 139; 102

28

Pharaoh: Ramesses II and the Battle of Qadesh menciona que ao contrário do hitita que possuía uma organização um pouco mais simples, o exército que o faraó utilizara nessa batalha estava dividido em formações com cerca de 5000 homens, sendo 4000 soldados de infantaria e 500 pertencentes ao corpo de carros106.

O

restante, 500 soldados, eram formados por grupos de líbios, núbios, canaanitas e Sherdens que serviam ao Egito, grosso modo, como “mercenários”. Ramsés fez questão de se fazer representar como vitorioso em vários lugares do Egito, segundo Breasted, em pelo menos seis templos no Alto Egito e Núbia e mais alguns no Baixo107. Abu Simbel, na fronteira sul, é um dos principais. O confronto de Qadesh, desastroso para o faraó – que acabara, segundo ele mesmo, ficando sozinho no campo de batalha e vencendo a todos108 - terminou em acordo entre as duas partes de se manter a fronteira entre Hati e Egito sobre o rio Orontes. Por fim, esse elemento novo no exército, o mercenário, sobretudo Sherden (uma das etnias dos Povos do Mar que havia recém-chegado ao Egito) é algo que foi uma constante ao final da XIX e XX dinastias, sendo vastamente representados nos relevos militares. O próprio Ramsés III combateu posteriormente contra os Povos do Mar contendo mercenários pertencentes a estes grupos em suas fileiras. As origens desses grupos são, na maioria das vezes, incertas. De qualquer forma, deve-se entender que o Egeu tem uma dinâmica própria, paralela ao próprio Oriente Próximo, com quem tais povos mantem relações comerciais de longa data, principalmente no período classificado como Pós-Palaciano, c. 1200 a.C109. A Idade do Bronze dessa região pode ser estimada entre c. 3300 – 1100 a.C110, e formou uma grande diversidade de sociedades distintas entre si. Destacam-se culturas como a Minóica (c.1500 – 1250 a.C), em Creta, e os Micênicos, no continente; a primeira como uma sociedade mais voltada ao comércio e à formação de uma talassocracia, enquanto a segunda contava com uma vasta influência militar – vista sobretudo na própria formação da cidade principal, Micenas,

106

HEALY, Mark. The Warrior Pharaoh: Ramesses II and the Battle of Qadesh. Oxford. Osprey Publishing. 1993. p. 32; 107 Op. Cit. p. 148; 108 MONTET, Pierre. O Egito no Tempo dos Ramsés 1300-1100 a.C . São Paulo. Companhia das Letras. 1989. p. 253; 109 MORKOT, Robert. The Penguin Historical Atlas of Ancient Greece.Londres. Penguin Books. 1996. p. 22; 110 Idem, p. 22;

29

que é cercada por uma muralha de pedras e pelas diversas representações de soldados já encontradas. As rotas navais comerciais são algo a se levar em consideração quando se busca entender as relações entre egípcios e o restante do Mediterrâneo. Morkot afirma que: Material arqueológico de muitos sítios em todo o Oriente Próximo oferecem evidências para a exportação de objetos micênicos e minoicos. A correspondência diplomática entre os faraós egípcios e os governantes das cidades-estados da Síria, Palestina e os reinos da Anatólia e Mesopotâmia, realçam o método e o tipo de 111 mercadorias negociadas .

Na Figura 1, o mapa demonstra como funcionava o comércio entre essas sociedades. Percebe-se com ele que uma grande parte do cobre provinha da região sobre influencia micênica. As relações com o Egito também são uma constante em tal povo; verifica-se que uma vasta gama de produtos, inclusive alguns tipos de alimentos, vinha do território egípcio (ver legenda).

111

MORKOT, Robert. The Penguin Historical Atlas of Ancient Greece.Londres. Penguin Books. 1996. p. 28-29;

30

Figura 1 – Mapa das Relações Comerciais na Idade do Bronze, c. 1450 a.C. MORKOT, Robert. The Penguin Historical Atlas of Ancient Greece.Londres. Penguin Books. 1996. p. 28 -29;

31

A forma obscura com que os Povos do Mar surgiram nessa realidade faz necessária uma breve análise sobre os grupos principais dessas populações. Entenda-se que essa definição é criada por egípcios e é uma generalização; seus nomes derivam, geralmente, dos lugares de origem 112 – o que gera uma série de especulações sobre a localidade exata de onde procederam tais pessoas. As razões para as migrações desses grupos também são controversas. Segundo Raffaele D‟Amato, variam desde movimentações de povos guerreiros, “bárbaros”, busca por novos ambientes para colonizar, a queda desse sistema Palaciano no Egeu, etc 113. Podem-se citar os seguintes grupos, muitos deles mencionados nas fontes egípcias: os Sherdens, os Peleset, os Tjekker, os Denyen, os Shekelesh, os Ekwesh, os Teresh, os Karkisas, os Lukka e os Weshesh. São representados com suas principais características em termos de vestuário, elmos e armamentos114. Esses dados são cruciais para se entender, e observar, o que será apresentado nas fontes dessa monografia. Alguns desses serão recorrentes com o decorrer dos trabalhos aqui demonstrados e, ao final, serão ligados com as informações sobre arte e a arquitetura religiosa, haja vista que são elementos dessas relações que aparecem nas paredes das mesmas.

112

MORKOT, Robert. The Penguin Historical Atlas of Ancient Greece.Londres. Penguin Books. 1996. p. 31; 113 D‟AMATO, Raffaele. SALIMBETI, Andrea. Sea Peoples of the Bronze Age Mediterranean, c. 14001000 B.C. Oxford. Osprey Publishing. 2015. p. 4; 114 Idem, p. 4;

32

3. As Fontes e sua Análise – Medinet Habu e os Relevos dos Povos do Mar;

3.1.

Breve Histórico sobre a Construção de Templos no Egito Antigo; Uma vez que as fontes primárias dessa monografia se referem à relevos da

realeza egípcia em templos, convém esboçar também – antes mesmo de se buscar conhecer as particularidades do complexo de Medinet Habu – um breve ensaio sobre os vários motivos da construção religiosa em geral, bem como entender, mesmo que minimamente, sua evolução no tempo. O templo em si tem suas peculiaridades no que se refere à sua função prática. Wilkinson, por exemplo, afirma que diferentemente das construções religiosas de épocas mais recentes, o templo egípcio não tinha

como função

primária a adoração da divindade. Servia como morada dos deuses locais, cujas necessidades deveriam ser supridas – vestimenta e alimentação – diariamente. Além disso, funcionavam como um modelo do universo, uma emulação da criação primordial; bem como uma forma de manter o caos afastado do Egito115. Cada

componente,

cada

pedaço,

do

templo

egípcio

possuia

suas

particularidades e funções, geralmente sobrenaturais. Entretanto, deve-se entender como se deu o seu histórico de construções para a partir de então, analisá-lo parte a parte, uma vez que passaram por inúmeras alterações desde os períodos mais antigos. O primeiro exemplo que Wilkinson relata na obra The Complete Temples of Ancient Egypt, surge ainda no Pré-Dinástico. Trata-se do sítio encontrado a cerca de 100 quilômetros de Abu Simbel, ao sul, denominado Nabta Playa. Este era composto por uma formação circular de pedras pequenas, com algumas ao centro116. Ainda ao Pré-Dinástico, Wilkinson relaciona o templo de Hierakômpolis, sendo o primeiro com características de uma construção de culto, que serviria como certo modelo para as posteriores. Nesse caso, o sítio arqueológico conserva elementos da construção (marcas no solo e fundações) que evidenciam, segundo o mesmo, uma estrutura alta, por volta de 13 metros, e 32 de comprimento, cercada por uma paliçada de madeira. Ainda destaca que essa estrutura era complementada

115

D‟AMATO, Raffaele. SALIMBETI, Andrea. Sea Peoples of the Bronze Age Mediterranean, c. 14001000 B.C. Oxford. Osprey Publishing. 2015. p 42; 116 WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 16;

33

por um poste que no seu topo possuía uma figura de falcão – a divindade local, associada à realeza117. Fazendo um parêntese nessa sequência, Wilkinson relaciona, na mesma obra, as teorias de desenvolvimento do templo, que surgem recentemente – e que se fazem interessantes nesse momento. Segundo o mesmo, o egiptólogo David O‟Connor, analisa que essas estruturas, principalmente no Pré-Dinástico e Reino Antigo, seguiriam a um mesmo padrão, assemelhando-se ao templo de Hierakômpolis, formando as bases para as construções posteriores, haja vista que possuem características em comum. Abydos representa para Wilkinson uma forma de se ver os templos dos primórdios do Egito: a do templo “fortaleza dos deuses”, citando uma definição criada por O‟Connor, para quem as estruturas encontradas nessa cidade se assemelhavam aos palácios reais118. Havia, nessa região, um apelo muito forte à relação entre faraó e Hórus, o que é visto em rituais denominados Cortejos de Hórus – por meio do qual se faziam jornadas à esses locais a cada determinado tempo. Por volta das primeiras dinastias do Reino Antigo, Abydos tornou-se um centro religioso de grande importância, por causa da crença em Osíris-Khentamentiu “Primeiro dos Ocidentais”, ou seja, soberano dos mortos119 - a quem os faraós das dinastias posteriores davam extrema importância. No Reino Antigo, o templo atinge grandes níveis de complexidade. É nesse período que essas construções estão intimamente relacionadas às pirâmides. Wilkinson relaciona a mesma à uma superestrutura composta da pirâmide em si, unida a um templo mortuário, cercada por um muro120.

Na figura 2, uma

representação de um modelo de complexo do Reino Antigo e suas estruturas:

117

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 17; 118 Idem. p. 19; 119 BAINES, John. MALÉK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. P. 144; 120 Op cit, p. 20;

34

Figura 2 – Exemplo de Templo da pirâmide. WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 21;

As indicações que constam na imagem descrevem os diversos locais que existiam dentro dessa construção. Destacam-se os armazéns, os santuários o salão de entrada e etc. O corredor, na entrada, ligava o complexo a um curso d‟água, no qual os barcos que vinham do Nilo podiam estacionar, desembarcar e embarcar pessoas e objetos em direção ao templo121. Esse é um padrão que será repetido em várias localidades. Um dos melhores exemplos para se observar essa formatação é em Gizé, nos casos das pirâmides de Khufu (Queóps), Khafra (Quéfren) e Menkaura (Miquerinos)122. Abu Ghurab é outro exemplo de templo do Reino Antigo. O templo solar, em função da divindade Rá, assemelha-se aos padrões anteriores, no entanto, possuía um grande obelisco – construído em pedras – e um altar ao centro. A construção de 121

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 21-22; 122 BAINES, John. MALÉK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p.158;

35

Niuserre (c. 2416-2388 a C.) indica a dualidade existente nesse período em se tratando de construções religiosas: a de culto (no caso dessa região) e o templo funerário123. No Reino Médio, por sua vez, os templos receberam certa simetria, de forma diferente dos períodos anteriores. Wilkinson trata de algumas estruturas que se destacam nessa época. O primeiro é o que foi erigido por Montuhotep (c. 2061 – 2010 a C.) em Deir el–Bahari, na região de Tebas124. Nesse caso, trata-se de um templo feito em colunatas, com pelo menos dois andares (o segundo, poderia conter uma pequena pirâmide acima)125. Esse está assentado próximo, ao lado, de um templo da rainha Hatshepsut, que segue o mesmo traçado – relacionado por Wilkinson a uma inspiração da versão de seu antecessor. Por fim, o Reino Novo trará consigo um novo modelo de templo, pautado em alguns aspectos nos tipos anteriores, mas com suas particularidades. Essa é a planta comum desse recorte temporal é foi utilizada nos diversos exemplos das dinastias XVIII a XX, ao qual Medinet Habu faz parte. O aparecimento do pilono, estrutura em formato de torres que funcionava como portão principal e o uso largo de colunas dos mais diversos tipos são duas das novidades que serão vistas a partir de então. Mas em meio a um aumento nas construções – alavancado pela situação econômica em que o Egito se encontrava na época126 - nem todos os templos seguirão necessariamente o mesmo traçado. Surgiu, nesse momento, uma grande variedade de construções. Isso, segundo Wilkinson, pôs um fim à ideia da existência de dois tipos de templos: o de culto e o funerário, porque, na prática, serão formatados sem necessariamente responder a um padrão geral, mesmo que grande parte desses sejam muito parecidos quanto à forma e à estrutura interna127. Wilkinson faz uma reflexão sobre a questão da função do templo mortuário no Reino Novo, dizendo que esse assume, então, a denominação de “Castelo de um Milhão de Anos”, feito em função da crença e no desejo do pós-vida128. Tebas, como capital, exercerá grande influência na sociedade e será o centro político e religioso do Egito, desde a expulsão dos Hicsos. É nessa localidade que se 123

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000, p. 21; 124 Idem, p. 23; 125 Idem, p. 23; 126 Idem, p. 24; 127 Idem, p. 24; 128 Idem, p. 25;

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encontram grandes quantidades desses monumentos tanto no lado leste quanto no lado oeste do Nilo. No primeiro, encontrava-se o exemplo máximo que representa a importância dessa estrutura para os faraós das dinastias XVIII a XX. É nesse interim que a tríade tebana, Amon, Khonsu e Mut (o primeiro com a supremacia sobre os três), representavam os deuses maiores do Egito, exceto durante o reinado de Amenhotep IV – Akhenaton – quando o Disco Solar, Aton, se tornou o objeto primário do culto estatal. Trata-se de Karnak. Esse conjunto de templos é o ponto focal do culto egípcio, ao qual os faraós de praticamente todas as dinastias do Reino Novo, e dos períodos posteriores, utilizaram para erguer sua casa para os deuses. Divide-se em, pelo menos, fazendo uma referência a John Baines e Jaromír Malék, três partes maiores: o Recinto de Montu, o Recinto de Amon e o Recinto de Mut 129. Uma das primeiras construções desse complexo é a Capela Branca de Senusret I, ainda no Reino Médio. Em volta dela os faraós que o sucederam adicionaram outros templos, que podem ser identificados por meio dos pilonos de entrada que ainda estão em pé. São sete no eixo leste-oeste. No eixo norte-sul, unidos ao terceiro, somam-se mais quatro, pelo menos, formando o Recinto de Amon130. Ao lado, cercados por extensas muralhas, surgem templos menores como o de Khonsu que fora iniciado por Ramsés III, além de um lago sagrado. À entrada, o que se repete na saída para o conjunto ao sul, Recinto de Mut, a via é ladeada por esfinges em forma de carneiro. Na Figura 3, há uma planta dos templos acima mencionados:

129 130

BAINES, John. MALÉK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. p.90; Idem, p. 91-92;

37

Figura 3 – Karnak, três setores; WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 154;

38

Wilkinson mostra ainda uma descrição das funções simbólicas e mágicas do templo, em sua composição máxima até Reino Novo. Elementos que vem desde os primórdios e que formam o conjunto da obra nos períodos posteriores, quase uma junção de todas as peças necessárias para a totalidade que se veria a partir de então. Iniciando, portanto, pelo item mais icônico dessa arquitetura que é o pilono, construído como torre-portão do templo é onde surgem as já mencionadas representações da cena do faraó golpeando seus inimigos131. O caráter de fortaleza é reforçado com a função simbólica de defesa, fortaleza, bastião, contra o caos e suas investidas132. Vale ressaltar que é no pilono que se encontram as bandeirolas, nTr, relacionados ao conceito de divindade. O pilono esta relacionado ao hieróglifo Axt, horizonte, o qual era uma representação dessa forma escrita133, realçando o caráter simbólico da construção. A citação abaixo resume bem essa outra função do templo: De acordo com a visão de mundo egípcia, o templo representa um nexo entre três esferas o paraíso, a terra e o submundo; e assim servia como uma espécie de portal por onde deuses e homens poderiam passar de um para outro. Da mesma forma com que o pilono do templo funcionava simbolicamente como um AXT ou „horizonte‟ em termos do ciclo solar, então o templo inteiro funcionava como um tipo de um akht espacial e temporal. Da mesma forma como o horizonte físico é a interface entre paraíso e terra – e em termos do aparecimento do sol entre o hoje e o amanhã, o presente e o futuro, nesse mundo e o posterior – então o templo, dos mais variados tipos, foi considerado como uma interface entre essas esferas e domínios e era 134 representado como tal .

Do Reino Antigo surgem as esfinges, que farão a proteção do local. Nessa época, o exemplo mais famoso é a Grande Esfinge de Gizé, localizada próximo às pirâmides, citadas acima, sobretudo ao lado do templo do vale de Khafra. No Reino Novo, encontra-se em modelos de menor tamanho em Karnak, na via que liga este templo ao de Luxor135. Obeliscos também são outras construções que surgem no Reino Antigo e acompanham os séculos de arquitetura religiosa egípcia. Segundo Wilkinson, são 131

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 60; 132 Idem, p. 60; 133 Idem, p. 77; 134 Idem, p. 79; 135 Idem, p. 55;

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erguidos em pares no Reino Novo, geralmente à entrada do templo, e relatam, nos textos que os preenchem, as vitórias que o faraó obteve em campanhas e, por causa disso, seriam oferecidos como presentes aos deuses136. No geral, muitos templos possuem colossos. Wilkinson os relaciona ao culto ao faraó, haja vista que ficavam para fora dos portões, portanto, acessíveis aos adoradores137. Outra região pública, que merece destaque agora, é o santuário – área geralmente com teto aberto, cercada – pelo menos no caso de algumas construções do Reino Novo – por estátuas da realeza ou privadas, erguidas como memorial138. Nessa última área de acesso ilimitado é onde se encontram altares de oferenda e, em alguns casos, escadas que levam ao teto da sala hipóstila139. Essa parte em questão serve para ocultar dos olhos de quem estiver no santuário o que se passa na capela da barca e no santuário onde se localizava a estátua do deus adorado no templo, haja vista que se trata de uma sala em colunata – que servem para segurar e suportar o teto do recinto – que representam as várias espécies de plantas do pântano criacional. As colunas mais comuns se dividem em três ou quatro tipos principais, onde se destacam as do tipo palmiforme, lotifrme e a papiriforme. Encontram-se, ainda, colunas finalizadas com algumas características peculiares como a face de uma divindade a exemplo da hathorica, em Dendera, no templo do período Greco-Romano, onde existe a face da deusa Hathor140. Os santuários que vem depois da sala hipóstila são os locais mais reservados do templo. Existe um que recebia a barca, objeto de procissão em festivais, com a face do deus, e outro para a estátua da divindade representada no templo141. Ambos são o coração toda a construção. Existem outras características menores que são encontradas nos templos. Pode-se citar as criptas, onde eram guardados os materiais de culto e outros objetos, bem como os lagos sagrados, para a purificação, as capelas menores que rodeavam o templo principal, denominadas Orelhas da Audição142 – geralmente onde se entrava para cultuar e interceder diante de uma divindade – além de 136

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p, 55; 137 Idem, p. 60; 138 Idem, p. 63; 139 Idem, p. 69; 140 Idem, p. 67; 141 Idem, p. 70; 142 Idem, p. 71;

40

armazéns, fornos, nilômetros (usados para medir e prever as cheias do rio), etc. Muito comum é a existência de muralhas para cercar o templo. Serviam como proteção efetiva contra ataques externos ou levantes populares, delimitando o espaço de culto em detrimento do espaço público.

3.2.

Ensaio Básico sobre a Arte Egípcia; Com relação à arte egípcia o conhecimento prévio de alguns elementos se faz

extremamente necessário. Sabe-se que praticamente toda essa forma de arte possui algum significado específico – ou seja, geralmente possui alguma função prática na vida, morte, ou pós-vida do indivíduo e não é algo apenas decorativo. Ao se falar desse tema, tratamos do uso de certos padrões advindos desde o Pré-Dinástico (c. 3000 a. C.), como a própria representação do rei Narmer subjugando seus oponentes143. Na cena este permanece em pé e segura, com uma mão o inimigo e com outra uma maça de guerra – com a qual o golpeia. Quando se tratou das funções do faraó, anteriormente, narrou-se a importância da religião sobre o pensamento do governante. Narmer representa muito bem essa característica. Richard Wilkinson na obra Magya y Símbolo en el Arte Egípcio, aponta que: O rei egípcio não só representava a humanidade diante dos deuses, como também os deuses diante da humanidade. Este outro lado do papel simbólico do rei se reflete em vários motivos literários e figurativos, o que envolve o uso de seus poderes sobrenaturais na proteção de seu país e à preservação de Maat. Este aspecto da função do rei se tem chamado corretamente de “a contenção do não governado” e aparece desde o começo do período 144 dinástico..

Numa tradução livre, essa representação funcionava como uma via de mãodupla, tanto o faraó representava a humanidade diante dos deuses quanto o contrário. O uso de atributos sobrenaturais é uma das coisas que o faraó utilizava para “conter o não governado”, no caso de Narmer, o invasor estrangeiro que não pertenceria ao cotidiano egípcio, por isso deveria ser barrado, combatido e controlado. Sobre o relevo de guerra, Wilkinson afirma que: 143

SHAW, Ian. Egyptian Warfare and Weapons. Buckinghamshire. Shire Publications. 1991.p 9; WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 195; 144

41

Desde a época do Reino Novo, os muro externos da maioria dos templos egípcios (incluindo os pilonos e o primeiro pátio) mostram cenas que representavam a destruição dos inimigos. Ainda que estas cenas possam representar inimigos reais, o motivo é simbólico, portanto, representa o conceito mais amplo de caos e desordem que ameaçava a sociedade egípcia, e o equilíbrio do mesmíssimo cosmos. Por isso, a representação da destruição destes inimigos não é um mero alarde militar, mas uma contenção simbólica do caos e do estabelecimento a ordem e harmonia com a cenas, criando para seus próprios lugares uma garantia mágica de segurança e calma para o 145 culto do deus que lá se encontra.

O trecho acima faz menção à busca pela manutenção da ordem e da harmonia, também mencionada anteriormente, mediante influência da deusa Maat. As duas citações acima se referem a essa questão primordial, que é a luta contra o caos e a desordem da qual a guerra é um dos frutos. Nesse caso a deusa aparece como personificação da justiça, verdade e ordem cósmica146. Em contrapartida, há uma divindade que serve indiretamente como antagônica à Maat: trata-se de Seth, a divindade antropomórfica do caos. Mais do que isso, Seth representa, para Wilkinson, a personificação do mal e violência147. O trecho, portanto, relaciona o relevo de guerra com a busca pela conservação desse status; o templo por si mesmo é construído com essa finalidade. Deve-se buscar analisar essas divindades e suas ações no cotidiano. Maat está associada aos conceitos acima mencionados. No entanto, essas condições deviam ser renovadas constantemente, mesmo que não houvesse um culto a essa deusa propriamente dito148. Todavia, a forma com que essa renovação acontecia era sua representação nas construções tebanas, de certa forma uma consagração à mesma149. Seth, por outro lado, além de ser o deus que personifica a maldade, a fúria e o caos generalizado150, foi, no Reino Novo – sobretudo, ao se tratar da atividade militar – associado à força física. Isso é perceptível quando alguns reis incorporavam

145

WILKINSON, Richard H.The Complete Gods and Godesses of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2003. p. 76; 146 Idem, p. 76; 147 Idem, p. 75; 148 Idem, p. 152; 149 Idem, p. 152; 150 Idem, p. 197;

42

esta característica e se autoproclamam “Amado de Seth151”, como no caso de Tothmés III. Analisando certos elementos artísticos e religiosos, pode-se compreender como estes influenciavam a arquitetura. O posicionamento e localização das imagens é algo que deve se levar em consideração, Wilkinson, por exemplo, relaciona a existência de certos elementos na arquitetura que demonstram esse apelo ao religioso152. Nesse critério incluem-se a localização do templo no espaço, a orientação geográfica do mesmo, seguindo o ciclo solar, etc 153. Esse item é visualizado várias vezes nos templos do Reino Novo, pela forma do disco solar alado, principalmente no templo de Ramsés III154. No templo, isso se mostra nas diferenças do tamanho dos muros externos – quanto mais próximos ao santuário, menores os muros155. Gestos também devem ser analisados de forma cuidadosa. Cada qual tem uma interpretação correta, e podem até ter mais de uma forma de ser percebida na arte egípcia. Wilkinson trabalha com grupos gestuais, principalmente relacionados a certas posições das mãos, e até expressões corporais, dos personagens desenhados, cuja classificação elenca os seguintes casos: dominação, submissão, proteção, louvor, invocação, oferenda, luto e alegria156. A integração ente escrita hieroglífica e imagem é algo que é levado em consideração quando se pretende analisar a iconografia egípcia. Neste caso, Wilkinson afirma que: As pinturas e as esculturas egípcias podem assim conter, ou serem compostas em sua totalidade de formas hieroglíficas e, a integração entre o escrito e a representação iconográfica era da maior importância simbólica. Desse modo, os signos hieroglíficos formam a verdadeira base da iconografia egípcia, à que competia a função de fazer afirmações simbólicas específicas mais por meios pictográficos do que escritos. As formas hieroglíficas incrustradas ou “codificadas” com frequência também atuam em algum com os textos ou inscrições com as que estão relacionadas, dado que o uso das

151

WILKINSON, Richard H.The Complete Gods and Godesses of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2003. p. 197; 152 WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 75; 153 Idem, p. 75; 154 Idem. p. 75; 155 Idem, p. 76; 156 Idem, p. 213-215;

43

formas hieroglíficas na arte egípcia raras vezes se dá em completo 157 isolamento da palavra escrita .

Isso significa que se encontra com larga frequência essa interação entre formas e texto. No entanto, Wilkinson não se refere somente ao escrito propriamente dito. Uma imagem pode ser o texto, por assim dizer, e vice-versa. O melhor exemplo que pode ser analisado, e trazido a este contexto, é a estátua onde Ramsés II se representa como uma criança – dedo à boca, faixa lateral de cabelo – ou, segundo Wilkinson, relacionando com a palavra ms, “menino”158, tendo um disco solar à altura da cabeça, rA, e uma planta, que Wilkinson relaciona com a palavra sw formando o nome do faraó, Ra-Mes-Su, ou Ramsés159, conforme Figura 4:

Figura 4 – Ramsés II como criança. SANTOS, Moacir Elias. Hieróglifos: Entre o Simbólico e o Mágico. In. IX Jornada de História Antiga., 2010, Rio de Janeiro. Anais do I Encontro Internacional e II Nacional de Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo. Núcleo de Estudos da Antiguidade da UERJ. 2010. P. 5;

157

WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 169; 158 Idem, p. 168; 159 Idem, p. 168;

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Wilkinson trabalha também com o conceito de Analogia Visual e da Metáfora Visual, para explicar essa característica. O primeiro pode ser visto em casos onde os hieróglifos podem ser vistos em formas cuja utilização é diferente do seu significado. Como exemplo, Wilkinson aponta o espelho e vários outros objetos em forma do hieróglifo para vida, anx. No segundo caso, usa-se um conceito maior e mais abstrato para se referir a outro respectivo. Observa-se isso nas várias representações em que um babuíno é representado, relacionando-se à Thoth, divindade da escrita e dos escribas, que possuía o símio como sinônimo de sabedoria, conhecimento, juízo, etc160. No entanto, na obra Magya y Símbolo em el Arte Egípcio, Wilkinson aponta algumas facetas de análise que serão importantes para o entendimento da relação imagem-texto. Primeiramente, deve-se compreender como a escrita hieroglífica funcionou. James P. Allen, na obra Middle Egyptian: An Introduction to the Language and Cultures of Hieroglyphs, explica que os caracteres egípcios atuavam ou como ideogramas – um símbolo, uma ideia – ou como fonema – um símbolo, um som, quase como um alfabeto - , ou ainda como um determinativo – um ícone que compõe o final da palavra e indica seu real sentido161. Nesse caso, Wilkinson apresenta a mesma forma de análise textual e de interpretação da língua. Mas o mesmo vai pouco mais além: utiliza-se do conceito de analogia visual, quando um objeto, ou o que quer que seja, tem uma aparência relacionada a uma segunda ideia, como o exemplo do espelho que, em seu formato, dialoga diretamente como o símbolo para a palavra vida

, anx

162

.

A metáfora visual também é uma forma de se compreender a arte egípcia. Nessa se utiliza um determinado ícone para representar uma ideia – pessoa, conceito, divindade, etc – mais complexa por meio de seu simbolismo. O exemplo citado por Wilkinson é o uso de um babuíno, em determinados locais, para representar a Toth, haja vista que:

160

WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p.174 - 175; 161 ALLEN, James P. Middle Egyptian: An Introduction to the Language and Culture of Hieroglyphs. Cambridge. Cambridge University Press. 2010. p.3; 162 Op cit. 182;

45

O babuíno (Papio hamadryas) aparece, desde os tempos mais antigos, em diversos contextos da arte egípcia. (…) Desde o Reino Antigo este símbolo foi associado a Toth, o deus da escrita e patrono dos escribas. Como animal sagrado desta atividade, o babuíno aparece com frequência sentado sobre a cabeça ou ombros 163 de um escriba, como se o dirigisse .

Ações e determinadas atividades estão relacionadas com os dados expostos acima, possuindo também seu devido simbolismo, analisado por Wilkinson. O autor elenca pelo menos três eixos que precisam ser entendidos juntamente aos gestos. O primeiro é a que se relaciona às Atividades Reais e Míticas164. Essas, Segundo Wilkinson, tratam-se de algumas cenas que narram feitos dos reis, que dialogavam diretamente com temas religiosos, divindades e seres mitológicos, por assim dizer, como é o caso da cena em que Tothmés III treina com seu arco e fleche diante de Seth165, mesclando ambas as interpretações num mesmo relevo. Nessa categoria, Wilkinson afirma: Um terceiro exemplo mostra como as atividades de fato estavam sutilmente adaptadas aos propósitos deste tipo de representação propagandística, assim possibilita ao artista produzir o que poderíamos chamar “ações iconográficas” baseadas em acontecimentos reais, ainda que não os retratem de uma maneira totalmente realista. Os monarcas egípcios aparecem com frequência em batalha disparando o arco em seus carros de uma maneira pouco realista e vários detalhes das cenas parecem estar 166 ajustados artificialmente .

Esse trecho relaciona diretamente o relevo de guerra à atividade de propaganda, principalmente no que se refere ao fato do faraó se posicionar em seu carro, atingindo inimigos com suas armas. Foi mencionado anteriormente que o papel do monarca, ou uma de suas principais funções, é a contenção do não governado. Wilkinson aponta que essa atividade é demonstrada por meio do confronto com determinados animais, dentre eles os mais nocivos à população egípcia, como o hipopótamo, o leão, entre outros, servindo como uma forma de

163

WILKINSON, Richard H. Como Leer el Arte Egípcio: Guía de Jeroglíficos del Antiguo Egipto. Barcelona. Crítica. 2004. p. 85; 164 WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 188; 165 Idem. p. 188; 166 Idem. p. 190;

46

alegoria do estabelecimento da ordem cósmica167, sendo o segundo eixo elencado por Wilkinson: A Manutenção da Ordem. Resgatando uma das outras funções do próprio monarca, há a terceira e última etapa que serve para entender e analisar as fontes: O Serviço aos Deuses. O faraó atuava como um intermediário entre deuses e humanos, cuja satisfação das divindades era o requisito essencial para que Maat fosse preservada168, e isso pode ser representado de inúmeras formas possíveis.

3.2.

Informações Gerais sobre o Local; A partir de então, pode-se buscar algumas informações sobre o templo de

Medinet Habu, seu histórico de construção e suas principais características. No entanto, deve-se iniciar pelo local onde está assentado, em Tebas Ocidental. WAst – utilizando-se da nomenclatura da época - torna-se, no Reino Novo, o centro de poder do Egito169, exceto no período amarniano, quando a capital passa para El-Amarna, sob o reinado de Akhenaton. Segundo Baines e Málek “seus templos foram os mais importantes e ricos de todo o Egito170” nesse período, haja vista que as divindades locais, principalmente Amon, tornam-se as mais proeminentes do “panteão” egípcio. A Figura 5 mostra um panorama geral da região de Tebas. Ao leste do Nilo encontram-se, além da atual cidade de Luxor , os templos Luxor e Karnak. No lado oposto, e que mais interessa para esse trabalho, se localiza a maior quantidade de templos e tumbas da região centro-sul do Egito. Grande parte dos faraós do Reino Novo fez seus complexos funerários nessa localidade. A figura dá uma visão do eixo Leste-Oeste, onde se verificam os templos de Sethy I, à frente, Deir El-Bahari, atrás desse, seguidos à esquerda pelo de Tothmés III, Siptah, pelo Ramesseum – de Ramés II -, Tothmés IV, Merneptah, Tothmés I, Amenophis III, Ay-Horemheb e, por fim o de Ramsés III. Ao fundo, verificam-se o Vale dos Reis e o Vale das Rainhas, à esquerda, além de Deir ElMedina, a vila dos construtores de tumbas. Uma visão geral dos três será feita a seguir. 167

WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 196; 168 Idem, p. 192; 169 BAINES, John. MALÉK, Jaromír. A Civilização Egípcia. Barcelona. Folio. 2008. P. 84; 170 Idem, p 84;

47

Figura 5 – Eixo Ocidental de Tebas WILKINSON, Richard H.The Complete Valley of the Kings – Tombs and Treasures of Egypt’s Pharaohs New York. Thames and Hudson. 1996. p.16;

Greatest

Durante o Primeiro Período Intermediário, c.2134 e 2040 a C., iniciaram-se as edificações na necrópole tebana171. No Reino Médio, Montuhotep (c.2061 - 2010 a.C.) mandou levantar o templo em Deir El-Bahari, onde existe o de Hatshepsut, construído depois172, contendo uma câmara no subterrâneo e, evocando a tradição antiga, uma pirâmide pequena em seu topo, da qual, nada restou173.

171

WILKINSON, Richard H.The Complete Valley of the Kings – Tombs and Treasures of Egypt’s Greatest Pharaohs New York. Thames and Hudson. 1996. p.15; 172 Idem, p. 15; 173 Idem, p. 14;

48

É durante o Reino Novo que as tumbas do Vale dos Reis começaram a ser construídas, a partir de Amenhotep I174, segundo faraó da XVIII Dinastia175. Na Figura 6, um modelo de uma tumba desse período:

Figura 6 - KV38, tumba de Tothmés I; Extraído de: http://www.thebanmappingproject.com/atlas/index_kv.asp?tombID=undefined Acessado em 21/10/2015

A imagem mostra um esquema da KV 38, a tumba de Tothmés I que retrata as principais características de um enterramento típico do Vale dos Reis. Foi descoberta em 1899 por Victor Loret em suas expedições176 e trata-se de um corredor que desce em uma espécie de espiral leve pela direção oeste. É uma das menores também, possuindo duas câmaras onde a segunda, que termina o pequeno complexo em forma de cartucho (representação usada para nome os nomes

174

WILKINSON, Richard H.The Complete Valley of the Kings – Tombs and Treasures of Egypt’s Greatest Pharaohs New York. Thames and Hudson. 1996. p. 15; 175 Idem, p. 88; 176 Idem, p. 95;

49

próprios)177, abriga o sarcófago e os recipientes canópicos178. Serve, portanto de modelo – de certa forma – para os que vieram depois desse, embora maiores que o mesmo; e, com o decorrer do tempo, estas estruturas se tornaram cada vez mais complexas. Em Tebas Ocidental é onde se localiza a força de trabalho, conforme Wilkinson, do Vale dos Reis. Trata-se da vila de Deir el-Medina, a cidade dos construtores de tumbas. Fundada na XVIII dinastia, a vila chegou a ter mais de 100 famílias identificadas pelos documentos da mesma em seu auge179.

Seu layout

pode ser visualizado na Figura 7.

Figura 7 – Planta de Deir el-Medina UPHILL, Eric P. Egyptian Towns and Cities. Buckinghamshire. Shire Publications. 2001. p 22;

Percebe-se na planta a existência de um muro que Uphill menciona ter entre 6 ou 7 metros de altura e 1,5 metros de espessura, aproximadamente. Além disso, vê-se uma rua central que corta a cidade em duas. As casas, segundo esse autor, eram marcadas com os nomes de seu “dono” (entre aspas, haja vista que as habitações eram concessões do faraó aos que ali vivessem, de caráter hereditário)180.

Nela se encontravam os trabalhadores e suas famílias, mas além

177

Extraído de: http://www.thebanmappingproject.com/atlas/index_kv.asp?tombID=undefined Acessado em 21/10/2015; 178 WILKINSON, Richard H.The Complete Valley of the Kings – Tombs and Treasures of Egypt’s Greatest Pharaohs New York. Thames and Hudson. 1996. p.95; 179 UPHILL, Eric P. Egyptian Towns and Cities. Buckinghamshire. Shire Publications. 2001. p 23; 180 Idem, .p. 25;

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delas, grande parte da burocracia faraônica relacionada à construção em Tebas ali se encontrava. Essa vila se relaciona com Medinet Habu, abordada logo à frente, por causa dos ocorridos do ano 29 do reinado de Ramsés III, c. 1165 a.C., o levante dessas pessoas contra a falta de fornecimento do alimento. Esses trabalhadores se reportaram ao complexo administrativo que havia no templo vizinho, e não voltaram a trabalhar – pelo menos os grupos que param dia a dia de executar as tarefas – até receberam o pagamento em grãos181. Pode-se, por fim, após esse panorama do que se encontra no Vale dos Reis, entrar mais profundamente no complexo mortuário de Medinet Habu e explorar as fontes iconográficas selecionadas. Recorrer-se-á a um dos trabalhos mais completos sobre o mesmo que é a obra dirigida por Harold Hayden Nelson, Earlier Historical Records of Medinet Habu, uma coleção de cópias, no formato desenhos de linha, dos relevos encontrados nas paredes do templo, no caso dessas, da face norte. Medinet Habu é um dos monumentos mais preservados de Tebas Ocidental. É um complexo que começou a ser construído no Reino Novo e se prorrogou até o Período Tardio, apresentando sua constituição total como é vista hoje. Seu nome vem do árabe e significa “Cidade de Hapu”, por causa de um templo de Amenófis filho de Hapu que existe a poucos metros deste; entretanto, na Antiguidade, era chamado de Djamet, em língua copta182. Sua construção vem de períodos pré- XVIII dinastia, mas não há informações suficientes, segundo Harold H. Nelson, sobre as edificações anteriores183. A partir dos reinados de Tothmés I, Hatshepsut e Tothmés III o templo começava a tomar a forma que se conhece atualmente. Uma inscrição relevante da época diz o seguinte: Ele fez [isso] como seu monumento para seu pai, Amon-Rá, rei dos deuses, fazendo para si um grande templo sobre o [...] distrito que Tothmés III [chamou]: “Esplêndido é o Trono de Amón”; de fino arenito branco; ele deve-se, portanto, ser dado vida, para sempre. [...] Ele fez [isso] como seu monumento para seu pai, Amon, Senhor de Tebas, celebrante sobre o “Esplendor do Oriente”, erigindo para si uma esplêndida entrada de fino arenito branco, [em] seu lugar de costume de início. Minha Majestade estabeleceu isso mais uma vez, ele deve-se, portanto, ser dotado de vida para sempre. [...] Vossa 181

WILKINSON, Richard H.The Complete Valley of the Kings – Tombs and Treasures of Egypt’s Greatest Pharaohs New York. Thames and Hudson. 1996. p.23; 182 Idem p.193; 183 NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p.1;

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Majestade tem encontrado isso iniciando da queda à ruina; ele deve ser dotado de vida como Rá, para sempre. [...] Fazendo para si “Esplendor do Ocidente”, como abrigo de seu senhor e para os senhores do distrito de Thamut [...]. Ele fez a “Câmara do Cemitério” para seus pais, os senhores do reino esplêndido [...]. Ele fez o “Possuidor da Eternidade” para seu pai Ptah-Tatenen do “Senhor da 184 Vida” [...]

Harold Nelson aponta que essa inscrição pertence à XX dinastia. Isso ele declara pela menção que faz ao epíteto usado, Esplêndido é o Trono de Amon, que não aparece na construção de Ramsés III, e por causa do aparecimento de Thamut, um dos nomes da região185. Analisando sua arquitetura pela obra de Uvo Hölscher, The Excavation of Medinet Habu, Vol I – General Plans and Views, percebe-se que este templo obedece aos “padrões” do molde do Reino Novo. Pode-se ver isto quando se compara a Figura 8, abaixo, com o que foi trabalhado no Capítulo 2 desta monografia, visto principalmente no corte lateral do templo, acima na imagem:

Figura 8 – Corte Lateral do Grande Templo de Medinet Habu; N HÖLSCHER, Uvo. The Excavation of Medinet Habu, Vol I. General Plans and Views.. Chicago. The University of Chicago Oriental Institute Publications 1934. p.61;

184

BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt – Vol II: The Eighteenth Dynasty. Chicago. The University of Chicago Press. 1906. p. 257; 185 NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p.2;

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A estrutura segue um eixo que vai da entrada ao santuário, a parte mais reclusa do templo. São dois pilonos de entrada, um que dá para a primeira corte – com representações da clássica cena de execução - e outro que dá para a segunda. A primeira corte é preenchida aos lados por colunas em estilo papiriforme, no lado do palácio, e por estátuas do faraó ao lado norte. A segunda corte é um tanto menor e também ladeada por colunas e estátuas, da mesma forma que na primeira. São duas salas hipóstilas que seguem estes dois perímetros e contem dois pequenos santuários em salas menores ao seu lado: o santuário de Osíris e o de Rá. Por fim, chega-se ao Santuário de Amon. David O‟ Connor relaciona a construção com os demais templos do eixo ocidental de Tebas, principalmente o templo de Hatshepsut em Deir el Bahari, e sobretudo à execução de festivais anuais envolvendo as duas margens do Nilo 186. Um desses é o Belo Festival do Vale, que acontecia uma vez por ano desde o Reino Médio. Consistia na travessia com as barcas dos deuses da tríade tebana a Margem Ocidental de Tebas, numa procissão em visita dessas aos templos funerários dos faraós deificados e às outras divindades, assemelhando-se ao ritual mortuário onde os parentes de determinada pessoa já falecida visitam o morto, levando oferendas e etc187. As relações de Medinet Habu com Deir el Bahari se dão, segundo O‟Connor em seu próprio formato e estrutura interna. O mesmo afirma que: Essa segunda função – para habitar e facilitar o impacto da visita anual de Amon – foi o outro propósito primário do templo mortuário, isso evidenciado pelas outras características de sua forma. Basicamente, o Festival do Vale envolvia a montagem das barcaspalanquins de Amon de Karnak, sua consorte Mut, e seu filho Khonsu no Banco Leste; seus transportes em três barcas cerimoniais separadas para o Banco Oeste; o ritual de visitação ao contemporâneo templo mortuário real e, notadamente ao menos, para todos os antepassados; finalmente o progresso das três barcaspalanquins tebanas e aquelas dos reis falecidos aos seus templos mortuários para Deir el-Bahari, onde as barcas de Amon seriam depositadas na capela de Hathor, o lugar central da capela onde se relacionaria com Amon. Quando os rituais que estavam associados com o “casamento sagrado” de Amon e Háthor eram finalizados, a tríade tebana retornava aos templos do Banco Leste, enquanto as

186

O‟CONNOR, David. The Mortuary Temple of Ramesses III at Medinet Habu. In O‟CONNOR, David. CLINE, Eric (Orgs). Ramesses III: The Life and Times of Egypt’s Last Hero. Michigan. The University of Michigan Press. 2012. p. 214; 187 WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p, 193;

53

barcas dos reis retornavam a seus respectivos templos no Banco 188 Oeste .

O‟Connor aponta que esse festival trouxe algumas influências do templo de Hatshepsut em Deir el-Bahari ao de Medient Habu, principalmente no que se refere ao eixo central do templo, que levaria à capela da barca de Amon, o coração do templo conforme anteriormente foi mencionado189. Entretanto, essa é uma característica que se observa na maioria dos casos encontrados no Reino Novo, como os de Tothmés III, também nessa região, além do construído por Ramsés II, entre outros. No reinado de Ramsés III, Medinet Habu sofre significativas alterações e o templo torna-se praticamente um centro administrativo no meio do eixo ocidental de Tebas. A Figura 8 mostra uma planta que será melhor trabalhada anteriormente. Segue o mesmo molde dos templos mais recentes do Reino Novo, contendo pilonos e etc. No entanto, algumas características são as únicas desse complexo. Em especial Ramsés III construiu um portão diferente do comum: um migdol, ou pequena fortaleza para defender o local, aos moldes dos povos asiáticos da Síria e Palestina190. No entanto, essa estrutura estava repleta de imagens do faraó em contato com as mulheres do harém. O‟Connor aponta que esse tipo de representação tem seu significado específico e uma razão de estar ali: A recreação com as mulheres fornecia ao rei não somente uma fonte de prazer mas foi de fundamental importância ideológica, em que isso manteria ou restauraria sua estabilidade emocional e o balanceamento de cada uma de suas capacidades físicas, tudo o que era essencial se o rei quisesse exercer sua função efetiva como governante, responsável não somente pela estabilidade do mundo 191 mas como para uma interação produtiva com o mundo divino .

No entorno do templo existem várias outras estruturas menores como casas, armazéns, quartéis, edifícios administrativos, etc. Merece destaque o palácio real, 188

O‟CONNOR, David. The Mortuary Temple of Ramesses III at Medinet Habu. In O‟CONNOR, David. CLINE, Eric (Orgs). Ramesses III: The Life and Times of Egypt’s Last Hero. Michigan. The University of Michigan Press. 2012. p. 214 – 215; 189 Idem, p. 215; 190 WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p, 193; 191 O‟CONNOR, David. The Mortuary Temple of Ramesses III at Medinet Habu. In O‟CONNOR, David. CLINE, Eric (Orgs). Ramesses III: The Life and Times of Egypt’s Last Hero. Michigan. The University of Michigan Press. 2012. p. 256;

54

entre o primeiro e o segundo pilonos, tendo servindo como acesso ao templo a célebre janela da aparição, onde o faraó se exibe ao público dia sim, dia também192. A obra de Uvo Hölscher revela ocupações de todos os períodos posteriores, sobretudo na região entre a entrada principal e o primeiro pilono193 - conforme Figura 9 -, mostrando que a estrutura do complexo é muito mais abrangente que o comumente mostrado como o próprio exemplo da planta da Figura 8. Esta obra trata-se de um trabalho arqueológico feito sobre as estruturas arquitetônicas que são encontradas nesta região.

Figura 9 – Planta de Medinet Habu; WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p, 193;

192

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p, 198;

55

No quadro da Figura 10 encontram-se assentamentos que vão da XX dinastia, a época de Ramsés III – até o século IX da nossa era, cujas habitações estão próximas a uma igreja copta desta época, ao sul da planta.

Figura 10 – Assentamentos em Medinet Habu HÖLSCHER, Uvo. The Excavation of Medinet Habu, Vol I. General Plans and Views.. Chicago. The University of Chicago Oriental Institute Publications 1934. p.39;

56

Logo à frente foi construído um pequeno templo nos reinados de Hatshepsut e Thotmés III, que foi incorporado ao complexo posteriormente. O templo central, chamado de “O Templo de User-Maat-Rá-Meriamom Unido com a Eternidade na Possesão de Amon em Tebas Ocidental”194, é a maior estrutura do perímetro. Outra denominação encontrada para esse local é a de “Casa de Milhões de Anos do Rei do Alto e Baixo Egito, Usermare Meriamon, Durável pela Eternidade na Propriedade de Amon ao Oeste de Tebas”195 O templo é planejadamente decorado com material de fundamental importância para essa monografia. O‟Connor em sua obra tem uma imagem que detalha muito bem essas representações e suas localidades. Nas paredes externas, no geral, encontram-se as narrações das vitórias obtidas contra os Povos do Mar, contra os líbios, núbios, bem como o aparecimento do faraó em festivais, conforme se observa na Figura 11:

Figura 11 – Planta esquemática dos Relevos em Medinet Habu; O’CONNOR, David. The Mortuary Temple of Ramesses III at Medinet Habu. In O’CONNOR, David. CLINE, Eric (Orgs). Ramesses III: The Life and Times of Egypt’s Last Hero. Michigan. The University of Michigan Press. 2012. p. 258;

194

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson. 2000. p. 196; 195 NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p.2;

57

Nas próximas páginas, serão exibidas algumas imagens, extraídas do primeiro volume da coleção Epigraphic Survey, que serão utilizadas como fonte para esse trabalho em suas respectivas fichas de análise e, posteriormente no capítulo III, falar-se-á sobre a natureza dos relevos como um todo, bem como uma análise sobre seu conteúdo.

3.3.

Fontes e Fichas de Análise; Com base na obra acima mencionada, buscou-se utilizar a numeração

exposta por Harold Nelson para trabalhar os relevos de guerra. Os dois volumes desta apresentam ao leitor as faces norte e sul. Da mesma forma, James Henry Breasted se debruçou em traduzir inúmeros textos hieroglíficos, dentre os quais os de Medinet Habu, que compreendem parte de sua obra Ancient Records of Egypt e ambos foram a base para a compilações de informações e análise iconográfica. Construiu-se, portanto, fichas de análise das representações, contendo a numeração, uma breve descrição do que esta narra e a tradução de grande parte de seus textos. A Figura 12 mostra a face norte onde se localizam as imagens dos Povos do Mar. Separou-se para analisar o grupo que compreende os números 29 e 43 que estão na Figura 12. Vale ressaltar que em todo o templo existem essas representações contra os inimigos do monarca, incluíndo os Povos do Mar; na face sul existe inclusive um enfrentamento contra os hititas que a historiografia sobre esse faraó não menciona, além dos outros povos contemporâneos ao Egito dessa época.

58

Figura 12 – Desenho da Epigraphic Survey mostrando a localização das imagens dos Povos do Mar, grupo 29 – 43; NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p.30;

59

3.3.1. Ficha de Análise Integrada. Imagem 29

Acima dos Oficiais: “Enunciado dos príncipes, companheiros, e líderes da infantaria e do corpo de carros: “Tu és o rei que brilha sobre o Egito. Quando tu surges, as Duas Terras vivem. Grande é teu poder no meio dos Nove Arcos. Teu rugido é distante como o circuito do sol. A sombra de tua espada está sobre o exército. Eles marcham, preenchidos com teu poder. Teu coração é forte, teus excelentes planos estão estabelecidos. Amon-Rá aparece, liderando teu caminho. Ele põe debaixo de teus pés toda terra; [teu] coração está feliz – para sempre. [Tu és] a proteção que vem sem demora. O coração de Temeh está perturbado, os Peleset estão caídos, [...] em suas cidades, pelo poder de teu pai, Amon, que tem decretado para ti [...]”.

Tradução dos Textos Atrás do Faraó: “Todos os deuses são a proteção de seus membros, para dar a ele poder contra qualquer país”. Diante do Faraó: “[...] rei; ele disse [...] para os príncipes, todas as lideranças da infantaria e do corpo de carros que estão diante de Vossa Majestade: “Tragam as armas [...]. Deixem os arqueiros marcharem para destruir os inimigos, que não conhecem o Egito e seu poder”. Sobre os Oficiais com as Armas: “[...][Dê] as armas à infantaria, ao corpo de carros e aos arqueiros”.

Sobre os Oficiais que estão distribuindo as armas: “Peguem as [armas] do [Rei] Ramsés III.” Sobre os Soldados que Recebem as Armas: “ A infantaria e o corpo de carros que estão recebendo as [armas]”.

60

Descrição Geral da Imagem: Faraó em pé em sua bancada, ordenando a entrega das armas à tropa; Localização: Medinet Habu, Parede Exterior Norte;

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 86; BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 41-42;

61

3.3.2. Ficha de Análise Integrada. Imagem 31

Descrição Geral da Imagem: Faraó em seu carro, marchando contra os Povos do Mar.

Tradução dos Textos Sobre o Rei: “O rei, rico em poder, em seu carro ao Norte, grande em temor, pavor dos Asiáticos, único senhor, hábil em mãos, consciente de seu poder, como Baal, valente em força, pronto para a batalha contra os Asiáticos, marchando distante em seu avanço, [confiante], - castigando dezenas de milhares [em montões] no espaço de uma hora. Ele subjuga os combatentes como o fogo, tornando todos os que o confrontam em [cinzas]. Eles estão aterrorizados em [mencionar o] seu nome, enquanto ele está [ainda] longe, como o calor do sol sobre as duas margens do Nilo; um muro lançando uma sombra sobre o Egito. Eles vivem [confiantes] com o poder de sua força, Rei Ramsés III”.

Atrás do Rei e sobre os Sherdens: “Vossa Majestade marcha com poder vitorioso para destruir os países rebeldes. Vossa Majestade [marcha] para Zahi, com a forma de Montu, para esmagar qualquer país que transgredir nossas fronteiras. Sua infantaria é como o touro, pronto para a batalha sobre o campo. Seus cavalos são como falcões em meio às aves diante dele. Os Nove Arcos estão sob [seu] poder. Amon, seu pai augusto, é para ele um escudo, Rei, Senhor das Duas Terras, Ramsés III.”

62

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 92; BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 42-43;

63

3.3.3. Ficha de Análise Integrada. Imagem 32

Descrição Geral da Imagem: Faraó e suas tropas atacando os Povos do Mar numa batalha terrestre;

Tradução dos Textos Acima da Batalha: “[...] [em] ao vê-lo, quando Seth está furioso, derrubando o inimigo diante da barca celestial, atropelando as terras e países prostrados, esmagados [...] diante de seus cavalos. Seu calor consome [os] como fogo, desolando seus campos”.

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 93; BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 43-45;

64

3.3.4. Ficha de Análise Integrada. Imagem 35

Descrição Geral da Imagem: Caçada à três leões;

Tradução dos Textos Breasted não traduziu esses textos;

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 99;

65

3.3.5. Ficha de Análise Integrada. Imagem 37

Descrição Geral da Imagem: Batalha naval contra os Povos do Mar;

Tradução dos Textos Acima do Rei; “O bom deus, Montu sobre o Egito, grande em poder, como Baal nos países, poderoso em força, de vasta coragem, forte de chifres, terrível em seu poder, um muro, cobrindo o Egito, de modo que todos vem não deverão vê-lo, Rei Ramsés III”.

Acima do Carro: “Eis que os países do norte, que estão em suas ilhas, estão inquietos em seus membros; eles infestam os caminhos dos portos. Suas narinas e seus corações cessaram de respirar, quando Vossa Majestade vem como um vento impetuoso contra eles, lutando sobre a costa como um

Guerreiro. Seu poder e o medo penetram em seus membros. Virados e destruídos em seus lugares, seus corações são tomados, suas almas voam distante, e suas armas foram expulsas no mar. Suas flechas [do faraó] perfuram quem ele quer, e quem é atingido cai na água. Vossa Majestade é como um leão enfurecido, rasgando o que confronta com as mãos, lutando de perto à sua direita, valente à sua esquerda, como Seth, destruiu o inimigo como Amon-Rá. Ele tem derrubado as terras, ele esmagou todas as terras embaixo de seus pés, o Rei do Alto e Baixo Egito, o Senhor das Duas Terras, UsermaréMeriamon”.

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 103; BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 45-46;

66

3.3.6. Ficha de Análise Integrada. Imagem 42

Descrição Geral da Imagem: Retorno da batalha; contagem dos mortos

Tradução dos Textos “ Enunciado de Vossa Majestade aos filhos do Rei, os príncipes e aos cocheirosmordomos do Rei: “Eis o grande poder de meu pai, Amon-Re. Os países que vieram de suas ilhas do meio do mar, eles avançaram para o Egito, seus orações estão confiando em seus braços . A rede foi preparada para eles, para enredá-los. Entretanto furtivamente na boca do porto, eles caíram para ele. Presos em seu lugar, eles foram enviados, e seus corpos despojados. Eu mostrei-lhes o meu poder que estava em Minha Majestade forjado enquanto eu estava sozinho. Minha flecha os atingiu, e nenhum escapou dos meus braços nem da minha mão. Eu floresci como um facão entre as aves; minhas garras desceram sobre as suas cabeças. Amon-Rá estava sobre a minha direita e sobre a minha esquerda, a sua força e seu poder estavam em meus membros, um tumulto para você;

Comandando para mim que os meus conselhos e meus projetos devem vir a passar. Amon-Rá estabeleceu o [...] dos meus inimigos, dando-me todas as terras ao meu alcance”.

Sobre os Oficiais “Discurso dos filhos do Rei – os príncipes, e os companheiros; eles respondem ao bom deus: “Tu és Rá, brilhando como ele. Teu poder esmaga os Nove Arcos, toda a terra treme em teu nome, teu temor está diante deles todos os dias. O Egito se regozija com o fortalecimento armado, o filho de Amon, que é sobre o teu trono, o Rei Ramsés III, dotado de vida, como Rá”.

Sobre o Migdol; “Migdol de Ramsés, governante de Heliópolis”.

67

Sobre os Escudeiros “Vida ao bom deus, alcançando com os braços, tornando cada pais em algo que não existe, fortemente armado, poderoso, hábil de mão, Rei Ramsés III”.

Sobre os Prisioneiros “Disse os chefes, derrotados de Thekel: [...] como Baal [...] dar a nós [a respiração que tu dás]”.

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 114; BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 46-47;

68

3.3.7. Ficha de Análise Integrada. Imagem 43

Descrição Geral da Imagem: Apresentação dos Prisioneiros à Tríade Tebana – Amon, Mut e Khonsu;

Tradução dos Textos Acima de Amon: “Discurso de Amon-Rá, senhor do céu, governante dos deuses: “Vem tu com alegria, matar os Nove Arcos, colocar abaixo todos os adversários. Tu tens derrubado os corações dos asiáticos, lhes tiras a respiração de suas narinas, [...] por meus planos”.

Sobre Thekel: “ Disseram os caídos, os grande de Thekel, que estavam aprisionados por Vossa Majestade, ao elogiar este bom deus, Senhor das Duas Terras, Usermaré-Meriamon: “Grande é a tua força, rei vitorioso, grande sol do Egito. Maior é a tua força do que uma montanha de arenito, e teu terror é como Seth. Dá-nos a respiração, para que possamos respirá-lo, a vida que está ao teu alcance, para sempre”.

Diante do Rei: “Discurso do Rei Ramsés III diante de seu pai, Amon-Rá, rei dos deuses: “Eu sai, para que eu pudesse levar cativos os Nove Arcos, massacrar todas as terras. Nenhuma terra permaneceu firme diante de mim, e as minhas mãos levaram cativos na caravana de cada país, pelos decretos que vieram diante de cada país, pelos decretos que vieram diante da tua boca, que eu poderia derrubar todos os meus adversários. As terras que observam-me com tremor, [por que] eu sou como Montu, aquele que confia em teus projetos, ó protetor, senhor do poder”.

Acima dos Líbios: “Disseram os caídos da Líbia, que estavam nas garras de Vossa Majestade: “Respiração, a respiração! Ó rei vitorioso, Hórus, em grande realeza”.

69

Referências: NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 115; BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 47-49;

70

4.

A Análise Iconográfica e Textual dos Relevos; Se pode, após isso, seguir às notas finais e conclusões, buscando entender a

função desses relevos como propaganda, ou não. Primeiramente, deve-se compreender o quê está aparecendo nas fontes e qual o seu simbolismo. Observando-as de forma inicial, percebe-se que a iconografia apresenta não só uma espécie de relato da guerra; existem junto às cenas inúmeros itens simbólicos que devem ser analisados e que podem definir as imagens como propaganda ou não. Definindo propaganda como “disseminação de ideias, informações ou rumores com o fim de auxiliar ou prejudicar uma instituição, causa ou pessoa 196”, ou ainda “doutrinas, ideias, argumentos, fatos ou alegações divulgadas por qualquer meio de comunicação a fim de favorecer a causa própria ou prejudicar a causa oposta197”, pode-se iniciar a discussão sobre suas propriedades, mesmo que esta seja uma definição não tão abrangente. No entanto, antes de se penetrar nos debates sobre seu uso, deve-se fazer um levantamento detalhado do que se vê – ou se lê – nas imagens propostas. Vale ressaltar: a escolha foi feita pelos relevos da parede externa da face norte; nas outras

localidades

do

mesmo

complexo

existem

muitas

outras

imagens

semelhantes, mas são as do conflito no ano 8 que interessam neste momento. Um dado importante é a metodologia que será utilizada para compreender o significado dos relevos. Será composta pelas Fichas de Análise Integradas, que já se encontram presentes no texto. Isto será sucedido por uma análise textual, das narrativas que os escritos trazem, apontando os meandros da campanha. A análise iconográfica será dividida em duas etapas: a primeira será composta de extrações das imagens, que podem tornar eficaz a solução da problemática proposta, enquanto a segunda será feita por meio da leitura das imagens de acordo com o que Wilkinson propõem na obra Como Leer el Arte Egipcio. Deve-se, primeiramente, estabelecer uma descrição do que se observa nas imagens, começando pela Imagem 29. Trata-se da preparação para a saída para a batalha; a distribuição das armas. O faraó se encontra em uma bancada conclamando o exército e atrás dele existem dois soldados segurando abanadores. Ali se encontram várias hierarquias militares, alguns ajoelhados e outros em pé 196

Extraído de: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=propaganda Acessado em 10/11/2015; 197 Idem. Acessado em 10/11/2015;

71

rendendo honras ao rei enquanto alguns oficiais entregam o armamento e equipamento à tropa. Percebe-se a diferença entre as classes militares pelo cabelo que este usa e pelo seu tamanho em relação aos demais, no alto da imagem, alguns deles carregam uma espécie de estandarte, contendo uma pluma em cima. A Imagem 31 é a marcha para a guerra. O faraó se encontra em seu carro empunhando seu arco. A tropa marcha enfileirada, organizada. Do grupo principal de soldados, destacam-se alguns outros diferentes. Aparentemente, trata-se de oficiais e, quanto mais próximo do faraó, maior é o indivíduo; à frente do rei, existem dois príncipes, identificados com a faixa lateral de cabelo. Abaixo desses se encontram os vários tipos de “mercenários”, grosso modo, incluindo os Povos do Mar além do grupo dos carros. Um detalhe interessante: entre as rodas do carro do faraó existe um leão, correndo junto com este. A batalha terrestre contra os invasores ocorre na Imagem 32. Como a maioria das cenas de confronto do Reino Novo a batalha é o caos e a desordem personificada. Soldados egípcios e inimigos se encontram juntos num mesmo canto da cena, enquanto o faraó os ataca com arco e suas flechas. Os oponentes raramente resistem ou combatem o exército numa cena semelhante a essa, são sempre vítimas do rei. Nessa imagem em questão observam-se mulheres e crianças fugindo em carros de boi enquanto os homens morrem ou fogem. A Imagem 35 é a cena da caçada real. Ramsés III se encontra atacando a três feras, seguidos na linha debaixo pelas suas tropas. Os leões não oferecem resistência; são caçados de forma deliberada. Uma grande falha existente na figura e acaba ocultando o terceiro felino. A batalha naval é tratada na Imagem 37: o rei está em pé – em cima de alguns inimigos, enquanto dispara com seu arco nos navios inimigos. É acompanhado por alguns oficiais, que carregam novamente os abanadores. Na parte inferior da cena a tropa egípcia captura os oponentes e os executa.

Um

detalhe também pode ser analisado: quando soldados aparecem matando aos inimigos, são representados de forma semelhante à Paleta de Narmer. As características das embarcações de ambos os lados são explicitamente abordadas pelo relevo; sobretudo, as que pertencem ao inimigo estão na grande maioria das vezes de cabeça para baixo enquanto a esquadra egípcia os ataca. No mar a batalha também é o caos, de uma forma muito semelhante que nos combates de 72

infantaria; verifica-se uma reminiscência do período Pré-Dinástico neste caso. Tratase do relevo existente na Adaga de Gebel el Arak, encontrada ao sul de Abydos e preservada hoje no Museu do Louvre, Paris; possui 25 centímetros de comprimento e é feita de um canino de hipopótamo198; com ambos os lados desenhados, possui representações de animais, pessoas e batalhas incluindo no rio; porém, no caso da adaga, os navios do inimigo permanecem flutuando normalmente, enquanto seus soldados estão na água, não apresentando

o mesmo grau de destruição que

Medinet Habu mostra, conforme Figura 13:

Figura 13 – Adaga de Gebel el Arak, Museu do Louvre; no quadrado, as embarcações. Extraído de: 13/11/2015.

http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/dagger-gebel-el-arak

Acessado

em

Novamente, o faraó está – na Imagem seguinte, 42 – falando com seus soldados enquanto estes levam até ele os inimigos aprisionados e contam as 198

Conforme: http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/dagger-gebel-el-arak Acessado em 13/11/2015;

73

quantidades de mortos em batalha, retirando e empilhando as mãos dos mortos em combate, próximos a uma fortaleza egípcia. Em três registros de imagem, vê-se na primeira o faraó em uma bancada – semelhante à primeira – em diálogo algumas lideranças do exército; logo abaixo, na segunda camada, estão os responsáveis pela contagem de mortos, tal qual a célebre imagem existente no caso da guerra contra os líbios, enquanto na terceira e última observa-se uma espécie de marcação dos prisioneiros, bem como sua separação. Na parte esquerda da cena esses cativos estão sendo marcados e listados, enquanto no final desta, os outros esperam sentados seus destinos. O conjunto desta última linha mostra algo muito parecido com uma inspeção ou uma seleção; nas imagens anteriores verifica-se o uso de mercenários, um conceito meio equivocado em se tratando de um serviço compulsório: o inimigo combatendo o próprio inimigo. Por fim, a Imagem 43 retrata a apresentação dos cativos à tríade tebana. Esta se apresenta à esquerda da cena; Amon está sentado num trono enquanto as demais divindades se encontram atrás dele. Curiosamente metade dos aprisionados não é da etnia que Ramsés III combatera neste episódio, muito menos os que se encontram sobre os cartuchos199; parecem-se muito mais com os líbios que com os invasores em questão.

4.1.

Análise Textual: No geral, a sequência de imagens tem a seguinte lógica: a) a cerimônia de

entrega das armas; b) a marcha para Zahi, no Delta (de localização imprecisa, mas região sob domínio ou influência dos invasores); c) batalha campal contra os Povos do Mar; d) a cena da caçada aos leões; e) a batalha contra a esquadra dos invasores; f) a contagem dos mortos e feridos e o aprisionamento dos inimigos e g) a consagração destes à tríade tebana. Grande parte dos textos principais – aqueles que efetivamente narram os fatos – está escrita num discurso quase que retórico, onde o faraó e seus soldados são exaltados de inúmeras formas possíveis: “Tu és o Rei que brilhas sobre o

199

Esse nome vem de cartuche; é a definição criada pelos expedicionários franceses, durante as campanhas napoleônicas no Egito, uma vez que se parece com uma munição de fuzil utilizados pelos soldados; conforme: WILKINSON, Richard. Como Leer el Arte Egipcio: Guía de Jeroglíficos del Antiguo Egipto. Barcelona. Crítica. 1995. p. 207;

74

Egito200”, na Imagem 29; “O Rei, rico em poder, em sua saída ao norte, grande em temor, pavor dos Asiáticos, único Senhor, hábil em mãos, (...) como Baal, valente em força (...) 201”, na Imagem 31; e entre outros. A depreciação dos inimigos é uma constante nas narrativas expostas: “os inimigos que não conhecem o Egito202”, “os países rebeldes203” e, sobretudo, aparentam estar sempre tomados pelo medo e pavor ao ver o rei em marcha. São denominados pelo texto pelo título de Nove Arcos ou PsDt., ou ainda Asiáticos. A primeira definição significa, segundo o Concise Dictionary of Middle Egypt, Países do Mundo204. Ambos fazem menção aos vizinhos e, sobretudo, aos inimigos do Egito. O aparecimento de divindades no texto é algo comum. São responsáveis pela proteção do monarca, pela vitória nas batalhas, etc. Nos textos são lidos os nomes de Amon, divindade tebana – tratado como pai do faraó. O nome de Seth é lido na cena que representa a batalha campal. O texto afirma que o rei ataca como “quando Seth está enfurecido205”. No confronto naval, o faraó associa-se ao deus Baal; tratase do deus canaanita das tempestades e ligado à guerra e à fertilidade, cujo animal de culto era o touro – uma das nomenclaturas dadas ao rei egípcio206.

4.2.

Análise Iconográfica, Primeira Etapa: Extrações: Abaixo, alguns fragmentos das imagens selecionadas. Nestes podem ser

observados elementos comuns na arte egípcia como a diferença de tamanho entre personagens hierarquicamente diferentes, elementos simbólicos, etc. Serão chamados de Extrações os fragmentos selecionados e expostos na Tabela 1, contendo no lado direito, algumas observações sobre seu significado ou sobre sua utilização. Percebe-se o uso de certo padrão de representação, por exemplo, quando o menor dos soldados de infantaria repete a mesma forma de executar 200

BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 41; 201 Idem. p. 43; 202 Idem. p. 41; 203 Idem, p. 43; 204 FAULKNER, Raymond. A Concise Dictionary of Middle Egypt. Oxford. Griffith Institute. 1991. p. 95; 205 BREASTED, James Henry. Ancient Records of Egypt, Vol VI – The Twenty Dynasty. Chicago. The Chicago University Press. 1906. p. 43;; 206 WILKINSON, Richard. The Complete Gods and Godesses of Ancient Egypt. Londres. Thames and Hudson. 2003. p. 102-103;

75

oponentes que o faraó, quando representado nos pilonos dos templos. Como de praxe, nas cenas de conflito não existem soldados egípcios caídos, apenas invasores, o que pode ser um ponto a considerar sobre a problemática deste trabalho.

Tabela 1 – Extrações das Imagens

Extração 1: Faraó em sua bancada; observar gestos e posição das mãos; Imagem 29;

Extração

2:

observar trança

Príncipe; de

cabelo

lateral e posição das mãos – idêntica a que o faraó mostra; Imagem 29;

76

Extração 3: Prisioneiro na bancada onde o faraó está; Imagem 29;

Extração

4:

Entrega

das

Líderes

do

Armas; Imagem 29;

Extração

5:

exército

e

terminados

estandartes em

pluma,

representando a ordem; Imagem 29;

Extração

6:

Tropa

em

marcha para Zahi; observar a diferença de tamanho entre os que estão abaixo (mais próximos ao faraó) e os que estão acima; Imagem 31;

77

Extração

7:

Disco

Solar

contendo duas serpentes que vestem as coroas do Alto e Baixo Egito; Imagem 31;

Extração 8: Faraó em seu carro atirando nos Povos do Mar; observar a coroa de guerra que está utilizando; Imagem 32;

Extração 9: Carro de guerra dos Povos do Mar; observar a posição de mãos do último indivíduo; Imagem 32;

Extração

10:

Egípcio

atacando a invasor fugitivo; Imagem 32;

78

Extração

11:

Soldados

invasores em fuga; observar o equipamento e armamento que carregam consigo; Imagem 32;

Extração egípcio

12:

Mercenário

atacando

a

um

invasor dos Povos do Mar; Imagem 32;

Extração 12: Carro de boi contendo homem, mulher e crianças de invasores em fuga do exército egípcio; Imagem 32;

Extração 13: Leão caçado por Ramsés III; Imagem 35;

79

Extração 14: Ramsés III na batalha

naval

contra

os

Povos do Mar, disparando flechas

nas

embarcações;

observar que o rei pisa em inimigos; Imagem 37;

Extração

15:

Embarcação

egípcia; observar a existência de

prisioneiros

dentro

do

navio; Imagem 37;

Extração

16:

Embarcação

dos Povos do Mar; notar a desordem

dentro

da

embarcação; Imagem 37;

80

Extração 17: Execução de cativo; Imagem 37;

Extração 18: Contagem de mortos por meio das mãos decepadas dos inimigos; Imagem 42;

Extração

19:

Prisioneiros

aguardando parecem

sentença;

passar por

uma

espécie de inspeção; Imagem 42;

Extração mostrado

20: na

Migdol

Imagem

42;

sobre ele Breasted traduziu: “Migdol

de

Ramsés,

governante de Heliópolis”. Imagem 42; 81

Extração

21:

Líbios

aprisionados quando o faraó está diante da tríade tebana (líbios

não

aparecem

combatendo neste episódio); Imagem 43;

Extração

22:

Parte

representação

da dos

prisioneiros em cartuchos; Imagem 43;

Extração diante

23:

da

Ramsés

tríade

III

tebana;

observar que, novamente, o rei mostra

a

posição

de

chamada e ou Imagem 43;

82

4.2. Análise Iconográfica, Segunda Etapa: Elementos Simbólicos; Feito isso, pode-se tecer uma análise mais profunda sobre as imagens selecionadas. A divisão desta etapa se dará da seguinte forma: primeiramente será confeccionada uma tabela contendo uma descrição de acordo com a lista de hieróglifos criada por Gardiner. O que será feito é uma leitura das imagens como um texto, uma narrativa, por meio dos caracteres que aparecem na Tabela 2: Tabela 2 Análise Textual/Iconográfica Símbolo207

Classificação

Significado

A26

Chamada/ invocação208;

A30

Adoração; Respeito; Louvor;

A4

Adoração; Respeito; Louvor;

S35

Abanador; Sombra; Respiração; Vida209;

S37

Abanador com pluma H6210;

H6

Pluma de Avestruz; Associado à Maat, deusa da justiça, ordem cósmica, verdade211;

207

Símbolos retirados com auxílio do software JSesh; WILKINSON, Richard. Como Leer el Arte Egipcio: Guía de Jeroglíficos del Antiguo Egipto. Barcelona. Crítica. 1995. p. 37; 209 Idem, p. 191; 210 Idem, p. 191; 211 Idem, p. 115; 208208

83

Prisioneiro212; A13

A15

Inimigo derrotado;

T10

Força Militar; Dominação;

E22

Proteção; Defesa Representação Heráldica213;

S1

Coroa Branca, Alto Egito;

S3

Coroa Vermelha, Baixo Egito;

G14

Abutre: Duas Terras; junto ao elemento H5 forma a proteção do faraó;

H5

Proteção, sobretudo quando utilizado junto ao Disco Solar;

S7

Coroa Azul;

V9

Sn eternidade214;

S34

anx, vida;

212

WILKINSON, Richard. Como Leer el Arte Egipcio: Guía de Jeroglíficos del Antiguo Egipto. Barcelona. Crítica. 1995. p. 31; 213 Idem, p. 81; 214 Idem. p. 193;

84

S40

wAs cetro; domínio; poder;

A211a

Determinativo que aparece uma única vez em Medinet Habu; possivelmente está relacionado com os Povos do 215 Mar ;

N6c

Disco Solar com serpentes e anx

C12

Amon;

Alguns itens desta tabela serão repetidos na sequência de imagens e tem sua devida importância; os gestos, os objetos que os indivíduos carregam, algumas divindades e símbolos relacionados à própria natureza foram localizados e selecionados para esta tabela. Os gestos mais comuns são os que são representados pelos itens A4, A26 e A30; no caso do primeiro e do último é possível se observar os invasores na mesma posição inúmeras vezes, principalmente quando enfrentando ao faraó. No caso do A26, vê-se apenas o rei e alguns líderes nesta posição, relacionada ao ato de chamar ou discursar, principalmente na primeira Imagem. Na lista existem alguns itens simbólicos que merecem destaque como as três coroas, duas que o rei não utiliza – a branca e a vermelha – mas que são encontradas no disco solar, ou melhor, nas serpentes que saem deste simbolizando o Alto e Baixo Egito. A coroa azul é usada quando o faraó esta combatendo ou diante das divindades na última imagem.

O disco solar, nas duas vezes que

aparece, contém os símbolos da vida anx. Nas imagens das batalhas, o disco é substituído pelo abutre, que segura em suas mãos o anel Sn e ou o estandarte em pluma.

215

NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 85;

85

Destaca-se o elemento A13 porque este aparece, na maior parte das vezes de forma direta nos relevos. No entanto, algumas vezes este item aparece em lugares inusitados, como na bancada da Imagem 29 e na roda do carro de guerra na Imagem 31, conforme Figura 14:

Figura 14 – Detalhe da roda, na Imagem 31; NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p. 92;

Por fim, pode-se trabalhar com mais alguns símbolos que foram encontrados e podem ser relevantes. O primeiro deles é o leão, também da Imagem 31. Wilkinson aponta que o leão, ou deitado ou em pé, pode representar uma espécie de proteção do faraó, por isso a esfinge, geralmente, se relaciona com o corpo deste animal. No entanto, o que aparece nesta imagem está correndo embaixo do carro e, na seguinte, o faraó caça a três animais que fogem desesperadamente. Vale ressaltar que esta cena se encontra no meio de uma entrada lateral do templo. O outro elemento é o arco. Esta arma simbolizava a dominação do oponente, haja vista que é retratada em alguns relevos similares estrangulando aos inimigos do rei. Na Imagem 31 é segurado pelo faraó de forma simbólica, talvez possa ser associada a essa mesma característica.

86

Por fim, os últimos – mas não menos importantes – são os estandartes e a pluma. Os dois estandartes aparecem várias vezes, sobretudo o abanador S35 – muito comum na arte egípcia desde os primórdios da história egípcia. É carregado por atendentes do rei, seguindo-o onde quer que este vá, simbolizando o ar, a sombra e a respiração e, indiretamente, relacionado à vida. Contudo, o S37 – que nada mais é do que um pequeno estandarte com uma pluma de avestruz, H6 – tem os mesmos significados, porém aparecem nas mãos dos líderes do exército e carros. A pluma H6 tem um significado mais conciso: representa Maat, a divindade da justiça, ordem cósmica e verdade – mencionada nos capítulos anteriores. Aparecem nos estandartes da Imagem 29, também nas mãos dos líderes que exaltam ao rei.

Ainda cabe mencionar o cetro wAs que simboliza o poder e a

dominação, neste caso, nas mãos do deus Amon, na Imagem 43.

4.3.

O Relevo de Guerra e o Templo como Propaganda – Possíveis Aplicações do Termo nos Relevos de Medinet Habu; Pode-se, a partir disto, entrar na discussão sobre o uso destes e definir a

solução da problemática: isto pode ser utilizado como uma propaganda de guerra por algum fim ou não? O contexto a que Ramsés III estava imerso se mostrou bastante conturbado: invasões estrangeiras, desequilíbrio e controvérsias com os trabalhadores de Deir el Medina, caos econômico, etc. No entanto, a composição dos relevos de Medinet Habu sobre a campanha do ano 8 fazem deste templo algo único. Mário Erbolato define propaganda como o “conjunto de atividades que visam influenciar o homem, com o objetivo religioso, político ou cívico, mas sem finalidade comercial216”.

No entanto, assim como a definição anterior de

propaganda, é muito aberta para definir o tema com eficácia. Para o século XXI a propaganda é algo fundamental: o ser humano é bombardeado quase que todas as 24 horas do dia por essas atividades que Erbolato descreve, diferentemente do que poderia ocorrer com grandes parcelas da sociedade egípcia daquela época.

216

ERBOLATO, Mario. Dicionário de Propaganda e Jornalismo. Campinas. Papirus. 1985. p. 281;

87

Desta forma, pode-se lançar a primeira hipótese. O relevo de guerra pode ter dupla função simultaneamente: como propaganda político-militar e como narrativa simbólico-religiosa, cuja função era a manutenção da ordem cósmica. Com relação ao mencionado acima, Peter Burke tem outra visão sobre o assunto, principalmente em se tratando de iconografia que retrata o líder como representante de uma forma idealizada:

Uma solução mais comum para o problema de tornar concreto o abstrato é mostrar indivíduos como encarnações de ideias ou valores. Na tradição ocidental, um conjunto de convenções para a representação o governante como heroico, na verdade um super217 homem, foi estabelecida na Antiguidade Clássica

Essa é uma busca aparentemente comum, segundo Burke, e tem raízes ainda na Antiguidade Greco-Romana. A obra inicia essa reflexão com o caso dos imperadores romanos, que se representavam de uma forma idealizada, até as propagandas e pinturas nazistas e fascistas, das décadas de 30 e 40, onde o líder político seria a representação máxima do heroísmo, bem como o patriarca da nação. Sobre o que chama de quadro-batalha – as representações de combates entre nações – é mais taxativo com relação ao seu uso como propaganda: Entre retratos de acontecimentos, a peça batalha merece lugar de destaque. Em parte por se tratar de uma tradição bastante antiga, pelo menos tão antiga quanto a batalha de Til-Tuba representada num baixo relevo assírio do século 8º a.C. E também pelo fato de que, durante séculos, especialmente de 1494 a 1914, tantos artistas europeus criaram imagens de batalhas, geralmente em terra, mas algumas vezes no mar, de Lepanto a Trafalgar. (...) Imagens de combates são uma forma clara de propaganda que oferece a 218 oportunidade de retratar o comandante de uma maneira heroica .

As duas afirmações talvez servissem para solucionar a problemática, exceto pelo fato de que Burke trabalha com um recorte temporal e espacial bem diverso ao que está sendo proposto. Mesmo assim, a busca pelo heroísmo no caso faraônico talvez seja algo a se levar em consideração.

217 218

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru. EDUSC. 2004. p.81; Idem. p. 183-184;

88

Ibada Al Nubi tem uma visão parecida com isso, ao trabalhar com o soldado egípcio: De facto, nesta época, a par desta repetição de avisos aos jovens para que não se deixem transviar pelo fascínio dos cavalos e das armas, há uma propaganda particularmente eficaz que, das paredes exteriores dos templos e dos seus pátios se estende a todo o país, narrando em complexas figurações os vários momentos dos feitos militares do soberano, representado como comandante das suas tropas e não como solitário massacrador ritual de prisioneiros perante o deus titular, representações essas que se repetem em diferentes períodos e em localidades diferentes: a batalha de Qadesh, de Ramsés II, tem uma série de réplicas que derivam todos dos mesmos cartões (iguais e, por isto mesmo, oficiais) e que, por todo o lado, colocam sob olhares de toda a gente os dramáticos momentos da batalha, as fileiras de soldados, os mortos, os locais onde tudo ocorreu. Assim são celebrados, nos relevos de Karnak, os feitos de Seth I na Síria, ou os de Ramsés III contra os Povos do Mar, no seu 219 templo funerário de Medinet Habu .

Com este trecho, Al Nubi relaciona os relevos com certo fascínio que a atividade militar poderia causar na juventude egípcia, sobretudo masculina. E isso seria possível em função dos relevos funcionarem como uma verdadeira propaganda de guerra, com o poder de gerar comoção e desejo de participação nas campanhas militares, haja vista que seus receptores veem o faraó vencendo sempre no front de batalha. Com relação à vitória invariável como tema dos relevos, Al Nubi tem uma explicação: A vitória, ou aquilo que se considera como tal, não é apenas um dado de facto óbvio; mostra-se também o modo como se obteve essa vitória, especificando até os pormenores não essenciais mas característicos, como os pastores dos países inimigos impelindo com fúria o seu gado para longe do campo de batalha. É certo que, mais do que uma dimensão histórica, essas reproduções conferem aos factos de guerra a dimensão de uma narrativa que excita a 220 fantasia .

Ou seja, as imagens estão ligadas ao texto de forma intrínseca e colaboram para tornar a iconografia bélica uma verdadeira experiência épica para quem o observa. Para Richard Wilkinson a natureza propagandística é mais fácil de ser encontrada na arquitetura e arte como um todo. Ele enxerga a construção de Abu 219

AL-NUBI, Sheikh „Ibada. O Soldado. In DONADONI, Sérgio (org). O Homem Egípcio. Lisboa. Editorial Presença. 1994. p 155; 220 Idem. p 155-156;

89

Simbel com os grandes colossos de Ramsés II como uma forma de propaganda, por causa do gigantismo destas estátuas221.

Abu Simbel também se localiza

praticamente na fronteira sul do território, portanto a relação do tamanho com a localização pode ser algo a se levar em consideração. Esta relação pode ser visualizada em duas dimensões: o macro, ou seja, onde no terreno o templo está assentado e sua relação com o contexto externo – cidades, vilarejos, outros templos, etc.; e no micro, a organização e disposição da iconografia no próprio templo. Como já foi mencionado, o templo de Medinet Habu é cercado por outras construções administrativas como depósitos, casas dos trabalhadores do complexo, palácios e etc. A parede norte está voltada para a região onde se localizavam os depósitos222, estruturas longas para armazenar como se pode observar na Figura 15.

Figura 15 – Foto aérea de Medinet Habu; HÖLSCHER, Uvo. The Excavation of Medinet Habu, Vol III. The Mortuary Temple of Ramses III, part I. Chicago. The University of Chicago Oriental Institute Publications 1941. p. 127;

221

WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 46 – 47; 222 HÖLSCHER, Uvo. The Excavation of Medinet Habu, Vol III. The Mortuary Temple of Ramses III, part I. Chicago. The University of Chicago Oriental Institute Publications 1941. p. 65;

90

Chama a atenção para esta característica justamente o fato do aparecimento da cena de caçada aos leões, Imagem 35, na frente dos armazéns, próximo à entrada lateral do templo conforme Figura 16. Quem entra por essa porta precisa, necessariamente, olhar para a imagem gigantesca do faraó em perseguição aos animais ferozes que, nesta situação, estão em fuga – desesperados de medo, conforme Extração 13.

Figura 16 – Localização da Imagem 35; NELSON, Harold Hayden (Diretor). Medinet Habu, Vol I: Earlier Historical Records of Ramesses III. Chicago. The Chicago University Press. 1930. p.30;

Além disto, o confronto com animais selvagens, hostis, é para o egípcio, mais uma forma de se conter o caos e manter a ordem cósmica. Mas esta atitude vai de encontro com a destruição de inimigos, como já o foi mencionado anteriormente. Nas construções religiosas, isto se mostra claramente nas clássicas cenas que são mostradas nos pilonos, aquela onde ele executa os inimigos – todos de uma vez. Wilkinson aponta que no Reino Novo, esta cena foi, em certo modo, substituída 223

223

WILKINSON, Richard H. Magia y Símbolo em el Arte Egípcio. Madrid. Alianza Editorial S.A. 2003. p. 196;

91

pela que mostra o faraó disparando contra seus inimigos em batalha, algo que se repete nesta sequência pelo menos duas vezes, nas Imagens 32 e 37. Em algumas imagens, como se pode observar nos fragmentos retirados na segunda etapa da análise iconográfica, principalmente nas extrações 10, 12 e 17, soldados egípcios ou ainda mercenários repetem a mesma posição de ataque que o rei faz quando executa os oponentes, embora em tamanho reduzido. Desta forma, o faraó pode indicar a superioridade do seu exército. Em suma: estes fragmentos repetem o desenho da Paleta de Narmer. O prisioneiro também é uma forma de se mostrar estas duas dimensões da arte egípcia – a propagandística e a apotropaica. Este surge em vários casos nas imagens escolhidas, inclusive em lugares de difícil acesso aos olhos, como o já citado exemplo da Extração 3 e da Figura 15. Na Imagem 37 – Extração 14 – Ramsés III pisa em inimigos enquanto dispara com o arco nos navios invasores. Na Imagem 43 – Extração 21 – aparecem soldados líbios acorrentados abaixo dos invasores. Isto pode significar que o desenho reafirme a supremacia do faraó sobre um inimigo já vencido, como os líbios. Outro dado interessante que pode mostrar o funcionamento desta dimensão político-simbólica é o uso do Disco Solar com duas serpentes, que vestem as coroas branca (S1), do Alto Egito, e vermelha (S3), do Baixo Egito, simbolizando o domínio e o governo sobre as Duas Terras, ou seja, manifestando o caráter unificador do faraó. Concluindo, por fim, a discussão, percebe-se que sim os relevos seriam utilizados como uma forma de propaganda político-militar, haja vista os elementos que nela existem que se referem à dominação dos oponentes, mostrando o poder do faraó sobre a terra, etc. No entanto, deve-se concordar com Barry J. Kemp quando este afirma que: É um erro, também, explicar a repetição da vitória [em batalha] apenas como uma propaganda. Pouco disto estivera visível ao povo como um todo, estando muitas vezes no interior do templo, ou ao menos encoberto pelas grandes muralhas externas. Isto representa uma constante atualização de fórmulas teológicas, particularizadas por cada rei. Isto é também como aquela grande cena de vitória e a listagem de lugares conquistados frequentemente ocorrem nas paredes dos templos, particularmente nas torres dos pilonos na

92

entrada, onde era considerado como uma proteção mágica eficaz em 224 salvaguardar o Egito da hostilidade estrangeira .

A justificativa de Kemp deve ser levada em consideração, principalmente na receptividade dos relevos. Kemp tem, portanto, uma visão diferente de Ibada Al Nubi, colocando estas representações como ocultas, na maioria dos casos, aos olhos de quem passava pelo templo ou participasse dos festivais. No entanto, Medinet Habu deixa estes relevos à mostra para suas as duas laterais, a norte e a sul, contando aos transeuntes os feitos do faraó em terras distantes. A afirmação de Kemp se confirma quando se analisa o templo de acordo com as plantas da obra de Hölscher. Ao olhar a planta da face norte, percebe-se que estas imagens estariam visíveis apenas para a via lateral do templo – onde estavam os armazéns - ocultado pela robusta muralha interna. De fora dessas muralhas sim, encontram-se algumas habitações, mas estas teriam pouco acesso às imagens. Abaixo, a Figura 17 mostra bem esta situação:

Figura 17 – Planta da face norte; N HÖLSCHER, Uvo. The Excavation of Medinet Habu, Vol I.General Plans and Views.. Chicago. The University of Chicago Oriental Institute Publications 1934. p.43;

224

KEMP, B. J. Imperialism and Empire in the New Kingdom Egypt. In. GARNSEY, P.D.A; WHITTAKER, C.R. (Orgs). Imperialism in the Ancient World. Cambridge. Cambridge University Press. 1978. p. 8;

93

Como foi visto, percebe-se uma busca imensa por parte do faraó em se mostrar como cumpridor de suas tarefas básicas – mantenedor da ordem, representante dos deuses no Egito, etc, e Ramsés III parece ter cumprido estes objetivos; por causa disto, deve-se a este rei a expansão do templo de Medinet Habu e a confecção e destas imagens, utilizadas como seu relato deste fato histórico, mesmo existindo poucas fontes para se contrapor a estes dados. Deve-se, portanto, confiar no que seus artistas representaram, para poder interpretar estes fragmentos do conflito contra os Povos do Mar. No entanto, algumas ressalvas podem ser feitas quanto à diferença discurso e realidade. Ramsés II, seu antecessor, replicou diversas vezes, como uma propaganda, a sua vitória sobre os hititas, mesmo que a famigerada Batalha de Qadesh tenha terminado com um acordo entre as partes do conflito. E algo semelhante pode ser visto no reinado de Ramsés III: o estudo das intempéries do reinado e dos desafios que este líder precisou enfrentar, enquanto faraó, pode servir como uma mostra da realidade na qual o Egito passou nesta época, onde a desordem efetivamente atuava – a vida real, cotidiana.

94

5. Conclusão; Por fim, podem-se tecer as considerações finais e estabelecer uma síntese do que fora discutido nestas páginas. Com relação à resposta à problemática proposta, sim, o relevo tem essa dupla função, simultânea, de propaganda e de proteção simbólica contra o caos e seus agentes – como os invasores externos. Propaganda pela forma com que o faraó é representado e lida com a campanha militar: este é glorificado de inúmeras formas, ou pelo menos ordena que o façam nas paredes dos templos. Qual a atmosfera de respeito que se pode ter ao se entrar num templo egípcio e ver os enormes pilonos mostrando o faraó em proporções gigantescas, executando aos cativos com as bênçãos dos deuses do Egito, como a Figura 18 representa abaixo:

Figura 18 – Pilono com as Cenas de Execução N HÖLSCHER, Uvo. The Excavation of Medinet Habu, Vol I. General Plans and Views.. Chicago. The University of Chicago Oriental Institute Publications 1934. p.69;

Proteção por causa da representação do rei cumprindo com seu papel de mantenedor da ordem cósmica e como o indivíduo responsável pela contenção do caos, algo que inclusive pode estar relacionado à Figura 18 acima e que se relaciona também com cenas de guerra contra os invasores. 95

A análise sobre o militarismo egípcio acabou funcionando quase que como um anexo neste trabalho, haja vista a quantidade de material sobre a construção do templo e da arte egípcia. Procurou-se trabalhar com a Nova História Militar, onde a guerra não é entendida como uma definição homogênea para todas as sociedades no tempo, sobretudo com o trabalho de John Keegan, mesmo que com falhas em alguns dados sobre o Egito Antigo – como quando este apontou uma quantidade irreal de divindades egípcias. Fugiu-se, portanto, da clássica definição de guerra como um dos meios para atingir objetivos políticos, que nasce com Clausewitz e perdura até os dias atuais em alguns lugares; apropriou-se da noção de que o conflito armado para o egípcio representa este confronto com o caos – pelo menos em seu discurso – o que é visto nas cenas militares, fontes deste trabalho. No entanto, confiar demais nas fontes tem seus dilemas: ignorar que as guerras do Reino Novo tem sua natureza política é, no mínimo, ingenuidade. Quando Ramsés II entrou em guerra contra os hititas em Qadesh, fechou um acordo com o rei deste povo e mandou construir inúmeros relevos narrando sua vitória sobre eles, o elemento político está mais do que presente, aliado ao próprio elemento religioso. E o mesmo se repete com os demais faraós em várias épocas distintas, e mais ainda na Baixa Época, quando reis estrangeiros, gregos e romanos, se representam como faraós para se legitimar como governante das Duas Terras. Exemplo clássico: os reis da Dinastia Ptolomaica, entre os anos c. 300 e 30 a.C. Encontram-se

algumas

estátuas

de

César

Augusto,

imperador

romano,

representado como faraó225. Portanto, esta é uma discussão que se faz pertinente. Medinet Habu pode ser entendido como um dos vários laboratórios existentes no Egito para se compreender a arte egípcia e suas peculiaridades. Resta a nós, do século XXI, estudar e preservar estes sítios arqueológicos para que o conhecimento sobre esta sociedade – e muitas outras – possa multiplicar e se fazer comum entre os historiadores. E isto se torna um desafio cada vez mais difícil de alcançar, haja vista a destruição sistemática de inúmeros locais em função do terrorismo, principalmente no

225

WILKINSON, Richard. The Complete Temples of Ancient Egypt. New York. Thames and Hudson.

2000. p. 27;

96

Crescente Fértil - Síria, Líbano, Palestina, Iraque, Israel, Egito, etc. Cabe lembrar a recente implosão do templo existente em Palmira226. Com todas as dificuldades para a realização da pesquisa, esta se deu de forma satisfatória e respondeu à problemática. Pôde-se entender um pouco mais sobre esta sociedade que foi quase infinita em possibilidades de pesquisa e produções de fontes. Cada pequeno hieróglifo tem seu determinado lugar nos imensos relevos e textos analisados; cada imagem tem sua função e padronização nos vários milênios de história que o Egito ainda nos tem a revelar.

226

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150823_ei_palmira_templo_rm 26/11/2015;

Acessado

em

97

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