Mediunidade, Estudo e Caridade: uma Interpretação Tipológica de Saúde sob a Ótica da Cultura Espírita no Brasil

July 4, 2017 | Autor: Daniel Vasconcelos | Categoria: Espiritismo, Saúde, Teoria Sociológica
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13º Encontro de Ciências Sociais Norte e Nordeste

03 a 06 de setembro de 2007, UFAL, Maceió (AL)






GT 18. "RELIGIÕES E PERCURSOS DE SAÚDE NO BRASIL DE HOJE: AS 'CURAS
ESPIRITUAIS'"











Mediunidade, Estudo e Caridade: uma Interpretação Tipológica de Saúde sob a
Ótica da Cultura Espírita no Brasil








Daniel Arthur Lisboa de Vasconcelos[1]

Universidade Federal de Alagoas

Resumo


O principal objetivo desse trabalho é discutir a relação entre a
concepção de saúde e os conceitos de mediunidade, estudo e caridade
intrínsecos à cultura espírita no Brasil. Para isso, recorreremos a uma
abordagem sócio-antropológica culturalista, fundamentada em autores como
Max Weber e Cliffort Geertz.
Inicialmente demonstraremos, utilizando o método tipológico,
weberiano o que entendemos por Espiritismo para este trabalho, ou seja, o
conjunto de expressões culturais que têm um direto vínculo filosófico,
religioso e/ou moral com a codificação de uma doutrina empreendida pelo
pedagogo Hippolyte Leon Denizard Rivail, mais conhecido como Allan Kardec,
na França, em meados do século XIX.
Em um segundo momento, tentaremos delimitar um esboço tipológico da
cultura espírita no Brasil, a qual vem sendo influenciada por uma cultura
nacional sincrética, principalmente de cunho religioso católico e afro-
brasileiro, explicitando, também, uma discussão conceitual sobre o que
seria essa cultura. Finalmente, desenvolveremos a temática proposta para
esse grupo de trabalho, que consiste no esboço de uma interpretação
tipológica do conceito de saúde, perante a cultura espírita no Brasil.
Para lograr êxito em nosso objetivo, discutiremos alguns aspectos
fundamentais da doutrina kardecista, relacionando-os ao "ethos" e à "visão
de mundo" dos seus seguidores. Decidimos enfatizar as categorias
"mediunidade", "estudo" e "caridade" pela constatação de que as mesmas são
centrais na construção da identidade cultural do Espiritismo brasileiro e,
por isso, servem de norte para as construções teóricas sobre a temática
estabelecida.











A Codificação de Allan Kardec: uma tipologia[2] do Espiritismo nascido na
França




Como assinala Doyle (1960), não há época histórica no mundo em que não se
registrem traços de interferências sobrenaturais sobre a conduta do homem;
tal fato dificulta a fixação de uma data em que pela primeira vez
apareceram os relatos de forças inteligentes desconhecidas influenciando as
relações humanas. Em seu livro intitulado História do Espiritismo, Doyle
(1960) assinala que os espíritas ingleses e americanos indicam o ano de
1948, quando ocorreu o episódio mediúnico de Hydesville[3], como o marco
inicial do Espiritismo na modernidade. Entretanto, segundo Pires (1960), o
fato de Doyle não ter completo conhecimento da obra de Allan Kardec[4], não
permitiu que esse escritor reconhecesse o lançamento de "O livro dos
espíritos", em 18 de abril de 1857, nas livrarias de Paris, como o
principal marco do moderno Espiritismo.

Conforme salienta Colombo (2001) o Espiritismo é uma doutrina codificada —
"o que vale dizer, organizada, sistematizada, porém não inventada" por
Allan Kardec. Desse modo, para os fins de nossa abordagem, consideraremos
como a matriz da formação doutrinária espírita a "codificação", empreendida
por Kardec em meados do século XIX. O primeiro dos livros da assim chamada
codificação kardeciana, como vimos, foi "O Livro dos Espíritos" (publicado
em 1857, e republicado em 1860), seguido, nessa ordem, de "O Livro dos
Médiuns" (publicado em 1861), "O Evangelho Segundo o Espiritismo"
(publicado e republicado em 1864), O Céu e o Inferno (ou A Justiça Divina
Segundo o Espiritismo, em 1865) e de A Gênese (ou Os Milagres e as
Predições Segundo o Espiritismo, em 1868).

De acordo com Pires (1960), foi Kardec quem apresentou, inicialmente,
o Espiritismo como uma doutrina tríplice, abarcando aspectos científicos,
filosóficos e religiosos. Assim, a doutrina codificada por Allan Kardec
nasce por conta de sua curiosidade acerca de fenômenos ocorridos por volta
de 1848 na América e na Europa. Ruídos, batidas e movimentos de objetos
ocorriam sob influência de algumas pessoas presentes. Para que ocorressem
esses fenômenos, essas pessoas sentavam-se ao redor de mesas, as quais sem
causa aparente realizavam movimentos de rotação, saltos, pancadas, e até
flutuações. Tais fenômenos ficaram conhecidos como "danças das mesas" ou
"mesas girantes". (KARDEC, [1862] 1989). Assim, afirmou Kardec ([1890]
1993:266): "Eu estava, pois, diante de um fato inexplicado, aparentemente
contrário às leis da Natureza e que minha razão repelia [...] a idéia de
uma mesa falante ainda não me entrava na mente".

Em suas pesquisas, Kardec observou que essas mesas eram capazes de
reproduzir respostas inteligentes a suas perguntas, através de códigos e
pancadas. Ressaltemos que foram denominados médiuns[5] os indivíduos que,
em sua presença, ocorriam esses fenômenos.

Desse modo, utilizando-se de axioma científico de sua
contemporaneidade, marcada pela cultura iluminista, naturalista e
positivista, o pedagogo formulou o seguinte princípio lógico: "se todo
efeito tem uma causa, todo efeito inteligente deve ter uma causa
inteligente". Assim, essas inteligências ao serem interrogadas sobre sua
natureza, declararam-se "espíritos", pertencentes ao "mundo invisível"
(KARDEC, [1862] 1989:12-13). Como resultado mais imediato de suas pesquisas
sobre tais fenômenos, os "espíritos" e a "mediunidade", Kardec lança o
primeiro livro da codificação espírita, que traz em prefácio a seguinte
nota:




O Livro dos Espíritos. Contendo os princípios da Doutrina
Espírita sobre a imortalidade da alma, a natureza dos
Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a
vida presente, a vida futura e o porvir da humanidade –
segundo o ensinamento dos Espíritos superiores, através de
diversos médiuns, recebidos e ordenados por Allan Kardec
(KARDEC, [1857] 1996).







Um Esboço Tipológico do Espiritismo no Brasil



O Espiritismo chegou ao Brasil ainda no século XIX. Segundo Stoll
(2003), acredita-se que há aproximadamente 150 anos, imigrantes leitores de
jornais europeus trouxeram ao país a moda européia de experiências de
comunicação com as chamadas "mesas girantes". A partir dessa prática, abriu-
se o espaço para a constituição de grupos dedicados ao estudo e à
divulgação da doutrina espírita. Stoll (2003) afirma que os primeiros
grupos kardecistas constituídos no país surgiram no Rio de Janeiro (em
1865), e em Salvador (em 1873). Esses grupos eram formados,
predominantemente, por membros da colônia francesa instalados na Corte e
por intelectuais, médicos, engenheiros e militares das elites e classes
médias locais.

Como ocorreu na França, o maior veículo de divulgação da doutrina no
Brasil passou a ser literatura. Em 1860 foi lançado o primeiro livro
espírita impresso no Brasil: Les temps sont arrivés (MACHADO, 1996:65).
Logo, em 1865, na Bahia, foi lançado o primeiro periódico espírita
brasileiro, intitulado Echos do Além Túmulo (STOLL, 2003:50). Em 1875 foi
lançada, então, a primeira tradução de "O Livro dos Espíritos" e, segundo
Machado (1996), essa edição foi rapidamente esgotada por uma camada da
população que não tinha acesso à literatura em Francês, mas estava ávida
pelo conhecimento dos mistérios estudados por essa nova doutrina.

A partir daí, foram traduzidas as outras obras de Kardec e, mais
acessível às classes médias e populares brasileiras, o Espiritismo passou a
assumir novas características culturais nesse país. Desse modo, os
estudiosos da cultura espírita defrontam-se com um problema teórico de uma
definição mais precisa: o que é Espiritismo no Brasil?

Para Stoll (2003), já é consenso entre os teóricos culturais do
Espiritismo que na Europa, especialmente na França, os seguidores dessa
doutrina enfatizavam os traços mais científicos e filosóficos em suas
práticas. Já no Brasil, devido às características de nossa cultura, o
caráter mítico-religioso do Espiritismo assumiu um maior destaque. Estudos
como o de Camargo (1961; 1973) sustentam essa afirmação de que o
Espiritismo no Brasil foi influenciado por traços culturais de uma
interpretação sacral da realidade. Concordamos quando Stoll (2003) afirma
que em contraposição às práticas religiosas afro-brasileiras, a prática
espírita brasileira também elege elementos do catolicismo, religião
predominante no país; esse dado é confirmado pela bibliografia mais
recente acerca da cultura espírita no Brasil. Stoll (2003) e Lewgoy (2001)
enfatizam, nesse sentido, a grande influência do médium Chico Xavier[6]
sobre o movimento espírita no decorrer da segunda metade do século XX.

Para Cavalcanti (2005), o Espiritismo participa de uma configuração
simbólica da cultura religiosa nacional de um modo particularmente
explícito. Particularmente, concordamos com sua afirmação de que a síntese
cultural sui generis (ciência-filosofia-religião) proposta por essa
doutrina seja a responsável pelo discreto e duradouro papel que tal cultura
vem exercendo no panorama religioso brasileiro desde a sua chegada, mas que
a mesma teve que adaptar-se de maneira a incorporar os diversos valores
sócio-culturais brasileiros.




A Cultura Espírita no Brasil




Não é tarefa fácil definir o que seja a cultura espírita no Brasil,
principalmente se tomarmos como exemplo a diversidade semântica da palavra
"Espiritismo" e as ambigüidades e imprecisões a que a mesma remete. Segundo
Giumbelli (1997a), muito provavelmente essa palavra foi implantada no
vocabulário brasileiro a partir da obra de Kardec, mas no decorrer do tempo
nem sempre foi utilizada com essa referência, passando a representar
diversos tipos de movimentos religiosos, místicos, e outros que centram-se
em torno da mediunidade e da interferência dos espíritos na realidade
material.

Para explicitar nosso entendimento sobre a cultura espírita no Brasil,
apoiaremo-nos na concepção de cultura cunhada por Clifford Geertz:

[...] um padrão de significados transmitido
historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de
concepções herdadas expressas em formas simbólicas por
meio das quais os homens comunicam, perpetuam e
desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação
à vida (GEERTZ, 1989:103).

Neste trabalho, estamos considerando como o principal fator de
transmissão histórico e simbólico da cultura espírita no Brasil a chegada
da literatura kardecista (que é representada pela codificação anteriormente
citada e toda a obra de Kardec). Assim, para nossa abordagem, cultura
espírita seria aquela que mantém um direto vínculo teórico, moral e
religioso com a doutrina codificada por Allan Kardec no século XIX. Nesse
sentido, confirma nossa visão a constatação etnográfica de Cavalcanti
(1983:22) do lugar de destaque que a codificação de Kardec ocupa nos grupos
espíritas pesquisados por essa autora.[7]

Como foi discutido anteriormente, grande parte dos estudiosos da
cultura espírita atribui ao Espiritismo brasileiro um caráter bem
diferenciado da proposta kardecista francesa, no entanto, encaramos como
reducionistas as abordagens que tendem a dicotomizar totalmente os traços
culturais de um Espiritismo francês do século XIX (racionalista,
científico, intelectualizado) com um Espiritismo brasileiro do século XX
(religioso, místico, evangelizado). Corrobora conosco a opinião de
Giumbelli (1997) que constatou nessas análises dicotômicas uma tendência
cartesiana e apriorística, que não conseguiu apreender a lógica interna da
cultura espírita brasileira.

A partir dessa reflexão, emerge o problema teórico de como encarar as
características culturais do Espiritismo no Brasil: ciência ou religião? Ao
invés da dicotomia, preferimos seguir a concepção de síntese científico-
filosófico-religiosa apresentada na codificação kardeciana, mas sem
desconsiderar as influências da matriz cultural brasileira, principalmente
no que tange a outras influências religiosas, como o catolicismo popular
(dominante no país) e as influências dos cultos afro-brasileiros, assim
como as obras mediúnicas produzidas nacionalmente num modelo de
"Espiritismo á Brasileira".

Para que possamos analisar a lógica interna do Espiritismo brasileiro,
e a partir daí extrairmos uma breve concepção do que venha a ser a saúde de
um indivíduo nesse contexto cultural, devemos trabalhar algumas categorias
intrínsecas ao "ethos" e à "visão de mundo" dos espíritas, seguindo a
proposta de Geertz (1989). Conforme salienta Giumbelli (1997), para Geertz
as crenças pautam-se a partir de modos apriorísticos de apreensão da
realidade por parte dos indivíduos, de onde se determinam, previamente, as
explicações para as experiências reais.




Concepções de Saúde na Cultura Espírita Brasileira




Para que possamos iniciar nossa discussão acerca de um conceito de
saúde sob a ótica da cultura espírita, consultaremos Kardec ([1857]1996:22-
23) com o intuito de sintetizar alguns postulados basilares da codificação
do Espiritismo.

Deus é eterno, imutável, imaterial, único, todo-
poderoso, soberanamente justo e bom.

Criou o Universo, que compreende todos os seres animados
e inanimados, materiais e imateriais.

Os seres materiais constituem o mundo visível ou
corporal e os seres imateriais o mundo invisível ou
espírita, ou seja, dos Espíritos.

O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno,
preexistente e sobrevivente a tudo.

O mundo corporal é secundário; poderia deixar de existir
ou nunca ter existido, sem alterar a essência do mundo
espírita.

Os Espíritos revestem temporariamente um invólucro
material perecível e sua destruição pela morte os devolve
à liberdade.

Entre as diferentes espécies de seres corporais Deus
escolheu a espécie humana para a encarnação dos Espíritos
que chegaram a um certo grau de desenvolvimento, o que
lhe dá superioridade moral e intelectual ante as
demais.

A alma é um espírito encarnado, e o corpo apenas o seu
invólucro. [...].




Explicitando os postulados de Kardec, não podemos deixar de considerar
que o Teísmo (ou deísmo) e a tese reencarnacionista são traços fundamentais
da cultura espírita, ou seja, considera-se a idéia de Deus como causa
primária de todas as coisas, inclusive dos "espíritos", ou seja, entidades
imateriais de um mundo espiritual primitivo, nascem (encarnam) nos corpos
da espécie humana, objetivando seu aprimoramento intelecto-moral
reencarnando em sucessivas vidas.

Dessa maneira, o conceito de saúde sob a ótica dessa cultura espírita
perpassa por toda uma consideração ontológica, não se restringindo ao
paradigma materialista da "saúde fisiológica". Para os seguidores da
codificação kardeciana, a saúde é um estado de bem-estar físico, mas
obrigatoriamente atrelado a um estado de equilíbrio espiritual, em
conformidade com os "desígnios e leis de Deus".

Delimitando melhor nossa abordagem, tentaremos fazer uma descrição
típico-ideal do que Cavalcanti (1983) chamou de "o sistema ritual
espírita", com foco nas categorias mediunidade, estudo e prática da
caridade. É importante frisarmos que a doutrina espírita, em sua matriz
teórica kardecista, tem uma pretensão de distanciar-se do que
tradicionalmente conhecemos como os ritos religiosos, entretanto, a
realidade difere do que Weber (1982) chamou de "tipos-ideais". A
consideração desses aspectos ritualísticos não é feita de forma
apriorística, atribuindo ao Espiritismo simplesmente a noção de ritos
religiosos, pelo contrário cosidera-se uma cultura com suas especificidades
intrínsecas. Para todos os efeitos, deve-se considerar nossa descrição e
análise teórica como algo que busque se aproximar da realidade, mas sem a
pretensão de explicá-la de forma inexorável e definitiva.

Freqüentemente, quando um indivíduo busca um centro espírita[8]
alegando problemas de saúde logo é orientado sobre os princípios espíritas
que giram em torno do conhecimento e domínio da mediunidade, do estudo
doutrinário e da prática da caridade. Em uma interpretação espírita, a
saúde individual, no sentido de equilíbrio físico-psiquico-espiritual,
dificilmente é alcançada sem um tratamento que contemple cuidados
abrangendo todos esses campos.

Ao chegar ao centro espírita em busca de auxílio, o indivíduo enfermo
é encaminhado para consultas, onde o mesmo expõe sua situação para os
trabalhadores espíritas transmitirem orientações sobre o tratamento mais
adequado ao caso, das quais os espíritos participam de maneira direta
(através de incorporação[9] nos médiuns) ou indireta (quando os
trabalhadores são inspirados pelas entidades espirituais). Detectado o
problema do "enfermo", geralmente esse é encaminhado para o tratamento, que
consiste, inicialmente, na doutrinação.

A partir do momento em que o indivíduo aceita o tratamento espírita,
faz-se necessário que esse comece a conhecer os princípios básicos
doutrinários. Essa doutrinação é feita de maneira gradual e contínua, seja
por meio das leituras indicadas pelos trabalhadores do centro (onde se
destaca o papel fundamental da codificação kardeciana e de toda a
literatura que apóia e complementa essa), seja por meio das palestras, que
tratam de temas relacionados aos princípios morais da cultura espírita.
Assim, o doente é convidado a participar de maneira ativa no seu processo
de cura, seja por meio dos estudos realizados, seja por meio de uma reforma
íntima, na qual o paciente deve empenhar-se em busca de seu aperfeiçoamento
intelecto-moral, com base nos postulados doutrinários.




Mediunidade e Desequilíbrio da Saúde




Devemos entender, sob a ótica aqui tratada, a mediunidade como a
capacidade de um indivíduo comunicar-se (direta ou indiretamente) com o
mundo espiritual. Em "O Livro dos Espíritos" e "O Livro dos Médiuns",
Kardec descreveu diversas possibilidades de comunicação com esse mundo
espiritual. No Brasil, existe uma extensa literatura espírita que trata do
tema da mediunidade, a exemplo das obras de Chico Xavier.

Na lógica reencarnacionista espírita, a morte[10] entendida como o
fim da existência não ocorre; o que dá-se é um processo de desenlaçamento
entre corpo material e corpo espiritual. Assim, os espíritos que
"desencarnam", apesar de não mais possuírem corpo físico, mantêm sua
identidade preservada pelo que Kardec conceitua como perispírito[11],
carregando para o plano espiritual todas as características e experiências
vividas no corpo físico. Desse modo, as relações sociais (de harmonia e/ou
desarmonia segundo a moral espírita) continuam existindo. Quando a relação
entre médiuns e espíritos encontra-se em desarmonia com os princípios
doutrinários ocorre o fenômeno conhecido como obsessão.

Ocorre a obsessão espiritual quando espíritos desencarnados começam a
interferir de modo desequilibrado e pernicioso sobre os espíritos
encarnados. Na visão espírita, a obsessão pode acontecer em indivíduos com
qualquer grau de mediunidade, sendo que aqueles que possuem uma relação
mais direta e constante (ostensiva) com o mundo espiritual sofrem de
maneira mais acentuada os efeitos desse problema. Segundo a etnografia de
Cavalcanti (1983:90), alguns espíritas distinguem três etapas principais
nesse processo:

1. A obsessão simples. Através da influência espiritual
sutil, o Espírito mina as forças morais da vítima até que
ela se torne incapaz de reagir.

2. A fascinação. O Espírito começa a agir diretamente sobre
o pensamento do homem.

3. A subjugação. Fase final do processo obsessivo,
correspondendo à paralisação total da vontade do Espírito
encarnado.



Na pesquisa dessa autora, os relatos espíritas demonstram que a
evolução desse quadro obsessivo pode causar "a perturbação completa do
organismo e das faculdades mentais", assim como das relações sociais do
cotidiano. Nesses casos, o tratamento espiritual deve ser realizado de
maneira mais intensiva, o que exige grande empenho do doente no seu
aperfeiçoamento intelecto-moral e na prática da caridade.




Estudo e Aperfeiçoamento Moral




O estudo doutrinário é requisito fundamental para que o indivíduo
doente possa assimilar os princípios espíritas e, assim, harmonizar-se com
o ethos e a visão de mundo intrínsecos a essa manifestação cultural. Como o
Espiritismo foi codificado numa proposta de síntese científico-filosófico-
religiosa, para que se possa começar a entendê-lo de maneira mais profunda,
faz-se necessário um considerável esforço de cunho intelectual.

Cavalcanti (1983) afirma que a valorização do estudo faz parte do
sistema estrutural de crenças espírita, para que os indivíduos possam,
gradualmente, assimilar as "verdades" transmitidas pelos espíritos; nessa
perspectiva, o estudo eleva o homem, desenvolvendo nesse o gosto pela
leitura e pelo saber. Para a autora, essa valorização do saber aproxima o
Espiritismo do conhecimento científico, devido à noção de que o saber
caminha de maneira progressiva. No entanto, a visão teísta está sempre
presente, pois esse conhecimento é revelado ao homem, por Deus e seus
intermediários espirituais, de acordo com o esforço e o merecimento
individual; essa concepção de adquirir merecimento faz com que o esforço no
aprendizado tenha papel central nessa cultura. As principais atividades
intelectuais desenvolvidas nos centros espíritas giram em torno de leituras
de obras espíritas, grupos de estudos, debates e palestras doutrinárias.

Analisando um grupo de estudos espíritas, Lewgoy (2004) observou que
os debates gerados e os ensinamentos adquiridos com esses estudos focavam
uma relação moral de transformação do indivíduo pela revelação espírita.
Percebe-se, com esse exemplo, o afastamento da cultura espírita de uma
"erudição vazia de uma moralidade", que é apresentada como a máxima
expressão do cristianismo. É esse o sentido espírita do estudo para a saúde
do indivíduo.

O doente que busca sua cura na doutrina espírita deve empenhar-se em
sua regeneração, seu aperfeiçoamento moral, enfim, na sua "reforma íntima"
para que sua saúde possa afinar-se com os ensinamentos doutrinários e
cristãos, afim de que o carma[12] individual (o que inclui as relações com
espíritos ditos obsessores, que podem perseguir o indivíduo no decorrer de
sucessivas vidas) possa começar a ser revertido na lei de causa e efeito
que rege a relação do indivíduo com o mundo, seja ele material ou
espiritual. No grupo analisado, Lewgoy (2004) constatou um discurso
psicologizante com ênfase sobre "o indivíduo e suas emoções", que expressa
muito bem a noção de reforma íntima.

Outra noção importante a ser explicitada é a de fé raciocinada, na
qual podemos perceber as influências de uma cultura francesa que nasceu
entre a metafísica e os ideais racionais positivo-iluministas. Para o
espírita, a fé sem razão pode levar ao fanatismo, assim como a razão sem fé
leva à descrença e ao materialismo. Essa concepção liga-se diretamente ao
método de estudo da mediunidade, no qual as comunicações obtidas devem ser
submetidas ao que Kardec ([1857] 1996) considera o "crivo da razão". Vale
destacar que o discurso espírita gira em torno da racionalização do
sofrimento, o que faz com que o indivíduo doente tenha a sua disposição
todo um sistema de explicações acerca das dificuldades pelas quais passa.
Essas explicações ultrapassam os limites do mundo material, e podem ser
ilustradas pelas falas de espíritas transcritas por Lewgoy (2004):

Viemos ao mundo para ser testados.

O nosso mundo é uma cópia pobre do mundo espiritual.

É pelo sofrimento que se chega à doutrina espírita.




Caridade e Cura




Certamente o conceito de caridade é eixo central na cultura espírita,
sendo aquele que expressa o identitário lema doutrinário: "fora da caridade
não há salvação".

Sob a ótica da ontologia espírita, a noção de evolução está totalmente
atrelada à concepção de caridade, pois neste sistema de crenças o espírito
(indivíduo encarnado ou desencarnado) evolui principalmente em dois
sentidos: o intelectual e o moral. Anteriormente discutimos a importância
do estudo para a evolução intelectual do espírito, nesse momento
enfatizamos a prática da caridade como mecanismo de evolução moral e cura
espiritual. Mas, afinal, o que é a caridade no ethos e na visão de mundo o
espírita?

Na doutrina codificada por Kardec a caridade é conceituada, de maneira
ideal, de acordo com a moral cristã de amor ao próximo, pleno e
incondicional. Desse modo, toda ação que seja direcionada ao próximo nessas
condições é expressão de caridade, onde o amor é praticado na conduta
cotidiana, nas obras assistenciais, na ajuda aos "espíritos mais
necessitados", na prática mediúnica, enfim, em todo o universo espírita
(material ou imaterial).

A caridade, segundo Jesus, não se restringe à esmola, mas
abrange todas as relações com os nossos semelhantes, quer
se trate de nossos inferiores, iguais ou superiores.
[...] O homem verdadeiramente bom procura elevar o
inferior aos seus próprios olhos, diminuindo a distância
entre ambos (KARDEC, [1857] 1996:355).




A visão de mundo espírita nos ensina que para o indivíduo doente, a
prática da caridade é aspecto fundamental na moralização do indivíduo em
evolução espiritual, a qual deve seguir a lógica cristã de exemplificar
através da ação. Com a atitude caridosa e a prática do amor, da doação ao
próximo, o enfermo (físico ou espiritual) tem a oportunidade de resgatar
seu carma, aliviando, assim, sua carga de provas e expiações terrenas, que
pode se manifestar também como enfermidades físicas. Tudo isso reflete uma
concepção holística de saúde, onde as relações interindividuais podem gerar
doenças que se manifestem física, psíquica ou espiritualmente. Corrobora
com isso o discurso espírita transcrito por Cavalcanti (1983:70): "A
caridade é uma cura de si mesmo através do outro".

Considerações Finais



Concluímos nossa breve construção com o intuito de ter logrado êxito
com nosso objetivo: o de contribuir para a discussão de outros aspectos que
se relacionem com a temática abordada. Decidimos trabalhar com as
categorias mediunidade, estudo e caridade por acreditarmos que a inter-
relação dessas pode demonstrar, de maneira generalista, como a questão da
saúde de um indivíduo pode ser analisada sob uma ótica da cultura espírita.


Temos consciência da limitação de nosso recorte teórico diante do
universo do que temos denominado cultura espírita, até mesmo pelo fato da
nossa construção tipológica não ser um fim em si, mas um meio de se
aproximar do conhecimento de uma realidade sócio-cultural. Por isso,
gostaríamos de frisar que o prosseguimento com nosso objeto de estudo nos
possibilitará o desenvolvimento discussões mais ricas e precisas acerca da
temática estabelecida para esse momento.



Referências



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[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia - PPGS da
Universidade Federal de Alagoas - UFAL.
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[2] No método weberiano: "Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação
unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de
grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que
se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que
se acentuam, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se
impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza
conceitual, pois trata-se de uma utopia." (WEBER, 1982:106)
[3] Artur Connan Doyle narra o episódio em que ocorre um processo de
comunicação entre vivos e mortos, realizado em 1848 pelas irmãs Fox, em um
vilarejo do então estado americano de Nova York, conhecido como Hydesville.
Narra-se que no decorrer desse processo de comunicação chegou-se à
descoberta de um crime ocorrido numa casa desse vilarejo. Para detalhes
sobre o episódio, consultar Doyle (1960), Cap. IV.
[4] Hippolyte Leon Denizard Rivail era o verdadeiro nome desse pedagogo
francês. Nascido em Lyon, no ano de 1804, desde cedo interessou-se pelos
estudos de ciências e filosofia. Em meados do século XIX entrega-se
inteiramente às pesquisas espíritas, adotando o cognome Allan Kardec. Morre
em 1869, acometido de um aneurisma.
[5] Segundo Kardec ([1861] 1998) a origem do termo é do latim, e significa
meio, intermediário. Na codificação da Doutrina Espírita essa palavra é
utilizada para designar uma pessoa que pode servir de medianeira, um canal
entre o mundo material e os Espíritos.
[6] Mineiro, nascido em Pedro Leopoldo e criado em meio a uma cultura
católica, Francisco Cândido Xavier (1910-2002) conhece o espiritismo,
trabalhando à luz dessa doutrina no decorrer de sua vida de médium. É
considerado por muitos espíritas como o maior médium psicógrafo já nascido
no país, com uma produção literária que até hoje tem projeção nacional e
internacional. Para maiores informações biográficas, consultar Stoll (2003)
e Lewgoy (2001).
[7] Analisando casos no Rio de Janeiro, Cavalcanti (1983) constatou a força
centrípeta que essa literatura exerce nos grupos espíritas.
[8] Concordamos com a consideração de Giumbelli (1997a) sobre os centros
espíritas, de que esses constituem as células básicas da instituição
espírita.
[9] Em "O Livro dos Médiuns", Kardec (1998) discute esse fenômeno como um
tipo de mediunidade denominada psicofônica, na qual o espírito utiliza-se
do aparelho vocal do médium para comunicar-se.
[10] Na cultura espírita não há o conceito de morte, como no sentido
materialista. O que ocorre é o processo de encarnação (ou seja, nascimento
em corpo físico) e desencarnação (a morte, que nesse sentido é um retorno à
condição natural de espírito). Nesse sentido, o espírito deve encarnar e
desencarnar sucessivas e necessárias vezes, até que se complete sua
evolução espiritual no sentido intelecto-moral.
[11] Segundo Kardec, o perispírito é um tipo de corpo semi-material,
normalmente invisível aos olhos humanos, que envolve o espírito, ou seja,
"o princípio intermediário [...] substância semimaterial que serve de
primeiro envoltório ao Espírito e liga a alma ao corpo. Tais, num fruto, o
gérmen, o perisperma e a casca". (1996:23)
[12] O conceito de carma está diretamente ligado a tradições religiosas
orientais, como por exemplo o Bramanismo e o Budismo. Na cultura espírita
brasileira, equivale à lei de causalidade, causa e efeito, ação e reação.
Essa concepção explica como o destino moral do espírito está interligado
através das sucessivas vidas, ou seja, da reencarnação.
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