Méllo, Ricardo Pimentel. Do estranhamento à familiaridade: estratégias e contradições na construção da noção de \"abuso sexual infantil intrafamiliar\". 2002. 265 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002. (23-Nov-2002)

May 29, 2017 | Autor: R. Pimentel MÉllo | Categoria: Document Analysis, Child Sexual Abuse, Constructionist Movement
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RICARDO PIMENTEL MÉLLO

Do estranhamento a familiaridade: estratégias e contradições na construção do “Abuso sexual infantil intrafamiliar” como um tipo

São Paulo Março 2001

RICARDO PIMENTEL MÉLLO

Do estranhamento a familiaridade: estratégias e contradições na construção do “Abuso sexual infantil intrafamiliar” como um tipo

Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutor em Psicologia Social à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink.

São Paulo Março 2001

Comissão Julgadora

_______________________ Mary Jane Paris Spink

_______________________ Ana Maria Almeida Carvalho

_______________________ Margareth Rago

_______________________ Peter Kevin Spink

_______________________ Sidnei Jose Cazeto

_______________________

Quero unir-me aos que criam, que colhem, que festejam ...

(Nietzsche)

AGRADECIMENTOS

Este trabalho está constituído de inúmeras vozes explícitas: autores do mundo acadêmico, literário que permeiam os capítulos. E de vozes não tão explícitas, mas que ecoam com tal vigor que sem elas a construção da pesquisa não seria possível. São como lembra Foucault, vozes do mundo dos sem fama, dos “in-fames” e são para o meu trabalho “existências-clarão”, “poemas-vida”. Por isso lhes agradeço.  À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa concedida.  Ao Departamento de Psicologia Social e Escolar da Universidade Federal do Pará, que com a licença concedida me permitiu a realização deste doutorado.  À minha orientadora Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink, sempre sensível, provocando-me caminhos, trilhas, transformando esta tese em um delicioso esporte radical de riscos.  Aos professores Dr. Peter Spink e Dra. Margareth Rago, pelas valiosas observações durante o exame de qualificação.  Aos professores do Programa de Psicologia Social, em especial, à Profa. Bader Sawaia, (sempre solícita à frente da coordenação do Programa) e a Profa. Fúlvia Rosemberg, afetiva em momentos difíceis em Sampa. 

Aos parceiros do Núcleo e Pesquisa em Psicologia Social e Saúde que se dispuseram a inúmeras vezes ouvir, sempre atentos, as minhas lucubrações criticando-as: Andréa Domanico, Adriana Cintra, Cláudia Pedrosa, Claudia Castro, Dolores Galindo (Tina), Dráuzio Camarnado, Edna Roland, Jefferson Bernardes, Maria Auxiliadora Ribeiro (Xilii), Roberta Edo, Rosineide Cordeiro, Sergio Aragaki, Vanda do Nascimento, Vera Menegon. Zoica Bakirtzief, Jefferson Bernardes (meu posto avançado no Rio Grande do Sul).

 Aos membros do Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae, pelas oportunidades de discussão e troca, em especial, Dalka Ferrari, que se dispôs a me relatar tudo que sabia sobre as primeiras discussões sobre “abuso“ no Brasil e Rose Myahara, sempre interessada nas discussões que o tema provoca.  Aos membros do PAVAS, pelas reflexões que me proporcionaram nas discussões de casos de “abuso”, em especial, ao médico Théo Lerner e a psicóloga Andréa Machado  Aos parceiros que encontrei no curso: Rosangela Almeida, Antônio Saldanha, Adriana Domingues, Célia Escanfella, Leandro Andrade, Rosângela Freitas, Rose Mary Frezza, pelas conversas entre um café e

uma aula, sempre interessantes, seja pelas elaborações acadêmicas, seja pelas descontrações. 

À Terezinha, secretária do Programa, sempre acolhedora.

 À psicanalista Graciella Barbero, pela disponibilidade em ler as minhas primeiras reflexões sobre “abuso” e psicanálise com contribuições interessantíssimas. E ao psicanalista Ernesto Duvidovich, pela participação crítica durante uma discussão sobre os gráficos que construí sobre “abuso” e “incesto”. 

À Helo, amiga sempre, tão perto ainda que tão longe, pelas observações em alguns trechos deste trabalho, pela disponibilidade em localizar enviar textos e livros fundamentais para a pesquisa. Meu posto avançado em Cambridge.



À Lia, carinhosamente compartilhando todos os momentos em São Paulo, pela sua presteza. Devo-te uma maniçoba.

 Ao prof. Raul Navegantes, amigo que se dispôs a ler alguns trechos colaborando com observações importantes e sempre atento me indicando publicações e a Graça Navegantes, sempre solidária.  Ao amigo descoberto no meu percurso no doutorado: Benê, parceiro de Núcleo e agora de vida.  À Érica, minha ponte no Rio de Janeiro, sempre disponível para acolher minhas solicitações de publicações.  À Rosely, pelo carinho com que se disponibilizou a nos ajudar em vários momentos nos cuidados com o Caio.  À Denise e Cláudio, que nos proporcionaram momentos de descontração tão importantes na nossa vida em Sampa.  À Mazinha e Sonia, que cuidaram dos lugares onde morei com Ercília, Caio, Bia. Favoreceram enormemente o meu trabalho.  À D. Yvette, minha mãe. Leila, Sylvia, Rutinha, irmãs e Roberta e Renata, sobrinhas, pelas gostosuras enviadas sempre de Belém, para adoçar os intervalos de trabalho.  À D. Lucia pela disponibilidade em cuidar dos netos, sempre atenta. Ao seu Zé Maria, pelas palavras de incentivo. E à Hulda por tantos telefonemas para saber “como vão as coisas”.  Ao Caio e a Bia, meu filho e minha filha, pelo constante alerta que me oferecem sobre o perigo da exclusividade de minhas escolhas ao exigirem atenção, permitindo que a minha vida suscite inquietação, agitação e fuga da mesmice.  À Ercília, companheira de sempre, primeira leitora do que escrevi e que teve a paciência de reler cada linha várias vezes, (quiçá mais do que eu), com seu olhar instaurador de prosaica dúvida e revelador de contradições e beleza em trechos do trabalho.

RESUMO

Partindo do pressuposto que as nomeações ou construções de sentidos são negociadas em um espaço social, são coletivas (LATOUR, 2000, p. 53) e são talhadas durante vários anos imprimindo mudanças que se “naturalizam”, é possível verificarmos na história humana períodos em que instituições (estruturas sociais) compartilham a construção hegemônica de sentidos atribuídos a uma ação específica, criando uma “noção”.

A esse conjunto de instituições Hacking denominou matriz (1999, p. 10),

entendida também como um “espaço social” (Ibid.) onde “funciona uma classificação” (Ibid., p. 11) ou nomeação (determinado sentido) de um acontecimento. Utilizando

documentos

publicados

no

Brasil

e

exterior

(publicações

acadêmicas e jornalísticas, folders, relatórios, anais, legislação, etc.) e outras expressões gráficas (quadros estatísticos, fotografias, etc.), busca-se a matriz e as estratégias de construção e naturalização da noção de “abuso sexual infantil”. Fundamenta-se na perspectiva construcionista representada na Psicologia Social por vários autores (Tomás Ibáñez; Kenneth J. Gergen; Mary Jane Spink, entre outros), na proposta arqueológica de Michel Foucault e na noção de "tipo" desenvolvida por Ian Hacking (1999). Desta forma, "abuso sexual” pode ser compreendido como uma categorização, portanto a organização e seleção de uma construção social que se constitui em práticas discursivas, sustentadas por dispositivos institucionais, que se fundam a partir de vivências diversas tais como, as interações face-a-face, as mediadas pelos meios de comunicação e em última instância, pelos processos

históricos

vivenciados por cada pessoa e pela humanidade. O estudo permite apontar dois movimentos importantes:

1) Durante a

construção do “abuso” como um tipo, o saber médico teve uma participação pioneira, mas o saber psicológico o sobrepujou, constituindo-se então como um problema que extrapola as conseqüências físicas, ou seja, a ênfase no “trauma” provocado pelo “abuso” deixou de ser unicamente física para se direcionar ao e “emocional” ou “psicológico”, com a peculiaridade de que o “trauma psicológico” apresenta conseqüências a longo prazo e pode ser potencializado pela memória;

2) A vida familiar privada pôde ser invadida,

com o objetivo explícito de proteger a criança (pessoa, frágil e com direitos específicos), e implicitamente tornar a estrutura familiar ainda mais forte.

ABSTRACT

Assuming that labels or meanings are negotiated in a social space, and that, therefore, they are socially constructed (LATOUR, 2000, p. 53) and historically sculpted reflecting dynamic changes, it is possible to identify in human history periods in which social institutions share the hegemonic construction of meanings that gives significance to a specific action, which creates the concept of “notion.” To this group of social institutions, Hacking called matrix (1999, p. 10), Matrix is also understood as a “social space” (Ibid.) where that determines de meaning of an event (Ibid., p. 11). Accordingly, this thesis aims to search for the “matrix” and the strategies involved in the construction and naturalized notion of “children’s sexual abuse.” In order to accomplish such intend, documents published in Brazil and in other countries, as well as academic publications, newspaper articles, government reports, laws, information flyers, and so on, were analyzed. The framework adopted in this thesis is in line with the constructivist perspective presented in the field of social psychology through the work of scholars, such as Tomás Ibanez (1990,1993,1994), Kenneth J.Gergen (1985, 1991, 1998, 2001), Mary Jane Spink (1996, 1999), among others. Additionally, it is also theoretically based on Michel Foucault’s (1985b, 1991, 1996, 2000) archeological proposal and on Ian Hacking’s (1999) idea of “kind.” Regarding these theoretical assumptions, the concept of “sexual abuse” might be understood as a categorization that results from selective organization within the dialogical discourse. Therefore, “sexual abuse” is a concept socially constructed supported by institutional mechanisms, which are grounded in diverse social practices, such as interpersonal interactions (face-to-face), media mediated interactions, and, at last level, individual’s as well as humanity’s historical processes. The study leads to two important historical movements: 1) During the construction of the concept of “abuse” as a kind, the psychological paradigm took over the medical knowledge, which was pioneer on this field. In the psychological paradigm, “abuse” moves beyond physical problems to emphasize the “trauma” aspect of it. Therefore, “abuse” lost its solely physical dimension to involve the “emotional” or “psychological” perspectives with the peculiarity that the “psychological trauma” implies long-term consequences guided and augmented by the memory. 2) The privacy of family life is allowed to be broken with the intention of protecting the child (fragile being with specific rights), and of, implicitly, strengthening of the family structure.

RESUMÉ Partindo do pressuposto que as nomeações ou construções de sentidos são negociadas em um espaço social, são coletivas (LATOUR, 2000, p. 53) e são talhadas durante vários anos imprimindo mudanças que se “naturalizam”, é possível

verificarmos

(estruturas

sociais)

na

história

compartilham

humana a

períodos

construção

em

que

hegemônica

atribuídos a uma ação específica, criando uma “noção”.

instituições de

sentidos

A esse conjunto de

instituições Hacking denominou matriz (1999, p. 10), entendida também como um “espaço social” (Ibid.) onde “funciona uma classificação” (Ibid., p. 11) ou nomeação (determinado sentido) de um acontecimento. Utilizando documentos publicados no Brasil e exterior (publicações acadêmicas e jornalísticas, folders, relatórios, anais, legislação, etc.) e outras expressões gráficas (quadros estatísticos, fotografias, etc.), busca-se a sua matriz e estratégias de construção e naturalização da noção de “abuso sexual infantil”. Fundamenta-se

na

perspectiva

construcionista

representada

na

Psicologia Social por vários autores (T. Ibáñez; K. Gergen; Spink, Mary Jane, entre outros), na proposta arqueológica de Michel Foucault e na noção de "tipo" desenvolvida por Ian Hacking (1999).

Desta forma, "abuso sexual” pode ser

compreendido como uma categorização, portanto a organização e seleção de uma construção social que se constitui em práticas discursivas, sustentadas por dispositivos institucionais, que se fundam a partir de vivências diversas tais como, as interações face-a-face, as mediadas pelos meios de comunicação e em última instância, pelos processos históricos vivenciados por cada pessoa e pela humanidade. Observa-se dois movimentos importantes: 1)Durante a construção do “abuso” como um tipo, o saber médico teve uma participação pioneira, mas o saber psicológico o sobrepujou, constituindo-se então como um problema que extrapola as conseqüências físicas;

2) A estrutura familiar pode ser invadida,

mas com o objetivo de torná-la ainda mais forte.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: sem dualismos, sem verdades com criatividades

...............................

11

..................................................

50

2. A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS: em busca das tramas do cotidiano 3. CAMINHOS E ATALHOS: possibilidades de investigar o que é disperso

....................................

80

....................................

96

4. ABUSO SEXUAL: as redes de força em negociação de sentidos 5. DO ESTRANHAMENTO A FAMILIARIDADE: o “abuso se solidifica como um tipo

...............................................

128

............................................................

177

.........................................................

221

.......................................................................................

227

6. O MOVIMENTO NO BRASIL: do abusado ao “abusado” 7. À GUISA DE CONCLUIR?

ANEXOS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SOBRE O AUTOR

..................................................

250

..........................................................................

273

Introdução:

sem dualismos, sem verdades, com criatividade

Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas imediatas”; por exemplo, “eu penso”, ou, como era superstição de Schopenhauer, “eu quero”: como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu, como “coisa em si”, e nem de parte do sujeito nem de parte do objeto ocorresse uma falsificação. (Friedrich Nietzsche, 1992, p. 21-22)

É provável que a apresentação de uma tese favoreça o que Foucault (1987, p. VII) descreveu como uma grande tentação: a de lhe atribuir uma forma, carregar-lhe com uma identidade, impor-lhe uma marca que lhe daria um certo valor constante.

Assim, estabelecer “a

monarquia do autor”, apresentando esta pesquisa como fruto exclusivo da experiência de seu “autor” com o “seu objeto” de investigação. maneira,

apresentando

a

tese

como

fruto

de

um

Desta

processo

de

assujeitamento, sem espaço para os heterônimos. Estrategicamente essa tentação é importante no caso da apresentação de uma tese, pois se trata da abertura de uma defesa. Mas desfavoreceria completamente uma postura construcionista caso se buscasse reivindicar que este trabalho se constitui em um discurso sem desdobramentos, completamente coerente e monolítico.

Ao contrário, o

objetivo é construir um texto ruidoso, que se recuse à segurança da interpretação única e favoreça a perspectiva de uma tese construída sob muitas vozes. Ao ser lida já rompe a exclusividade de sua autoria, porque proporciona novas construções, associações, outros sentidos. Dito de outra maneira, o caráter de criação desta tese deve revelar-se como fruto da perspectiva teórica que lhe sustenta: o construcionismo. No entanto, o movimento de ser re-apropriada por quem a lê, de modo algum transforma a tese num simples jogo de palavras esperando interpretação. Jorge Luis Borges, afirmava que os sentidos de seus poemas quem dá é o leitor. Porém: ... convém, é claro, que o leitor acredite que o autor tenha querido dizer alguma coisa. Pois se o leitor achar que está diante de um mero jogo de

palavras então o poema fracassou. Quanto ao sentido, pode haver diversos sentidos num único poema, todos igualmente válidos (BORGES, in: MELLO, p. 30).

O campo da criação acadêmico pressupõe versos menos livres que os da poesia, já que são construídos sobre a forma de textos reflexivos, com posturas minimamente explícitas dentro das várias possibilidades de posicionamentos teóricos e metodológicos.

Mas ainda

assim, está no campo mais abrangente da construção de sentidos, que é o campo de interesse nesta tese.1 Por certo, que esta introdução já faz parte do exercício de negociação característica da construção de sentidos: Isto significa que o/a investigador/a deve estabelecer uma relação ativa com ele/a

leitor/a

(...): consiste mais em um exercício de negociação que de

exposição (RUEDA & ANTAKI, 1998, p. 65).

O tema “abuso” sexual, em geral, atrai mais a atenção que “construção

de

sentidos”,

mas

foi

o

mundo

acadêmico

que

me

impulsionou na escolha e casamento das duas temáticas. E posso afirmar hoje que o meu interesse pela temática do “abuso” sexual infantil está relacionado ao desejo de compreender os processos de construção de sentidos (no caso, através de uma temática com grande visibilidade na sociedade). Minha preocupação é argumentar que a construção de sentidos, inerente a dimensão relacional que nos fez seres humanos, permite que um acontecimento

— o “abuso” sexual infantil intrafamiliar —

acabe

quase sempre sendo construído como um “fato” possível de ser generalizado, universalizado e objetivamente observado. Como “fato” passa a ser desenhado e colorido no campo social de tal forma, que cria uma espécie de mapa onde basta seguir pistas para que, inevitavelmente, seja encontrado.

1

A discussão teórica sobre a construção de sentidos é realizada no próximo capítulo.

Faço aqui um pequeno parêntese para explicar porque adoto a expressão “acontecimento” para me referir ao “abuso” sexual.

Utilizo a

noção de acontecimento desenvolvida por Deleuze (1998) como algo que “se produz em nós” (Ibid., p. 151) ou seja não é um acidente (“o que acontece”), mas ele é “no que acontece” (Ibid., p. 152). Em outras palavras, um acontecimento não é como um “fato”, (um fenômeno que pode ser estudado sem a interferência de quem o estuda); ao contrário, o acontecimento se efetua no presente e com ligação ao passado através do pesquisador e do seu mundo. O acontecimento se efetua, o “fato” já foi realizado (basta descrevê-lo): Em todo o acontecimento existe realmente o momento presente da efetuação. Aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa ... (DELEUZE, 1998, p. 154).

No entanto, em todo acontecimento há uma segunda estrutura que se “esquiva” do presente.

É característica de todo acontecimento

sempre escapar, de não estar fundado para sempre. Este é o seu lado ambíguo, impessoal: Mas há, de outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente, porque ele é livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual...

(DELEUZE, 1998, p.

154).

Portanto, um acontecimento pode ser capturado em um instante, mas logo se revela escapável a qualquer sentido definitivo. Foucault diz: “trata-se de cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e funções possíveis” (FOUCAULT, 1996, p. 58). Dessa maneira, é um trabalho que questiona fortemente a concepção durkheiminiana de “fato social”:

... negando que se trata de objetos estáveis, dotados da capacidade de imporem-se as pessoas com a força de “coisas” e determinar suas condutas como acreditava Durkheim (IBÁÑEZ, 1990, p. 182).

Retomando. A temática do “abuso” está diretamente relacionada à sexualidade. Esta não é uma constante biológica, mas se constitui como um campo de práticas que ao longo da vida humana são criadas, permitidas ou proibidas, com maior ou menor visibilidade social.

A

hipótese de Foucault que o mundo moderno é regido por um “dispositivo da sexualidade”, ainda vale para o mundo “pós-moderno”. Define-o: ...

um

conjunto

instituições, medidas

decididamente

organizações

administrativas,

morais, filantrópicas. dispositivo.

heterogêneo

arquitetônicas, enunciados

que

decisões

científicos,

engloba

discursos,

regulamentares, proposições

leis,

filosóficas,

Em suma, o dito e o não dito são os elementos do

O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes

elementos.

Ao estudar a construção do “abuso sexual infantil intrafamiliar”2 como um tipo3, busco demarcar o período em que emergiu4 enquanto um problema (“estranhamento”), entender a formação de saberes e as práticas

institucionais

direcionadas

ao

seu

controle,

a

partir

de

documentos relacionados ao tema. Parto do pressuposto que sempre houve formas variadas de regulação das relações sexuais intrafamiliares, inscrevendo-se em códigos morais diversos. Estas formas de regulação exigem uma “perpétua atenção a si” (FOUCAULT, 1985, p. 108), criam o imperativo de ocupar-se

2

Apenas para tornar a leitura mais fluida, optei por substituir o termo “abuso sexual infantil intrafamiliar”, em alguns momentos, simplesmente por “abuso” ou “abuso infantil”. 3 A discussão sobre “tipo” encontra-se mais à frente na p. 18. 4 Sei das dificuldades em utilizar esta palavra, mas ainda não consegui substituí-la por uma mais adequada à visão construcionista. Aqui, ela tem o sentido de um acontecimento que toma visibilidade na sociedade em função de uma rede de negociações e torna-se “objeto” de estudo, debates, controle, etc. A palavra “emergência” também pode se referir, no caso do “abuso”, a uma situação grave que

consigo mesmo (Ibid., p. 50), favorecendo enfim toda uma estética de existência que pertence à esfera do governo de si. São formas regidas, sobretudo, por códigos morais. Entretanto, a literatura sobre o tema do “abuso” sexual infantil intrafamiliar possibilita dizer que, a partir dos anos 50, relações sexuais entre familiares e especialmente, ações sexualizadas focalizadas nas crianças, se tornam passíveis de "governamentalidade” (FOUCAULT, 1985),5 no sentido de governo dos outros. É a partir desse momento que é criado um vocabulário específico para falar desse tipo de relação e ocorrem formas variadas de registro para o “abuso” (como por exemplo: cálculos estatísticos e fotos), que lhe favorecem a visibilidade e também são definidas instâncias e técnicas específicas para lidar com o "problema” já aí definido. Especificando ainda mais, o objetivo desta tese é compreender a emergência de práticas (vocabulários, formas de cálculo e maneiras de regulação), que fazem das relações sexuais entre adultos e crianças no âmbito da família, um problema e constituem o tipo “abuso”. Instituições anteriores tornaram possível a nomeação de um acontecimento como “abusivo”: 1) A crença na singularidade do ser humano ou, em outras palavras, a invenção do "Eu" (self) lhe dando a qualidade de "Pessoa" (pessoalidade) e uma subjetividade; 2) A noção de infância (mais especificamente, a inocência infantil); 3) A concepção de que o ser humano tem direitos (portanto a criança também), são duas delas. Constituem a “matriz”6 que dá condições de possibilidade ao tipo “abuso” sexual infantil.

exige ação imediata. Afasto o sentido de “emergência” como um ensejo fortuito, casual e acidental. 5 A definição de “governamentalidade” encontra-se mais à frente, na p. 27. 6 As discussões sobre “matriz” encontram-se mais à frente na p. 18.

Algumas questões7 foram tomando forma quando me interessei em pesquisar a construção de “tipos” e escolhi o “abuso” infantil intrafamiliar:

Como o “abuso” é definido? Quais são os “saberes” que o

definem? Em que momento passou a ser um problema a ser controlado? Como são ilustradas suas inscrições?8 Por que é um problema a ser controlado? Quem deve controlá-lo?

Ao longo deste trabalho procuro

pistas que possibilitem construir algumas respostas.

Da escolha do tema: Já desde o mestrado, cuja dissertação versou sobre a temática da

violência

agrária

no

acontecimentos violentos.

sul

do

Pará,

me

dediquei

a

pesquisar

Logo após a sua conclusão ajudei a criar o

Grupo de Estudos da Violência (GEV), na Universidade Federal do Pará, com o intuito de montar um banco de dados que reunisse documentação que incluía textos jornalísticos, livros e textos acadêmicos. Pouco tempo depois do seu início, recebemos a solicitação de colaborar na organização de documentação jurídica, processual e jornalística, para dar suporte à luta de um grupo formado por mães e pais residentes na cidade de Altamira (PA), cujos filhos foram mortos em uma situação peculiar: meninos entre 8 e 13 anos eram seqüestrados e posteriormente apareciam mortos em lugares ermos, com marcas de tortura, sevícias sexuais e emasculados. Impressionados com estes crimes violentos, dedicamo-nos, sem muito sucesso, a reunir o maior número possível de referências bibliográficas a respeito de casos semelhantes àqueles ocorridos em Altamira. 7

Conseguimos apenas algumas referências relacionadas à área

As questões serão abordadas a partir de um conjunto de documentos especificados mais à frente (p. 30). 8 A discussão sobre “inscritores” encontra-se na p. 34-35.

da Antropologia, cuja temática eram ritos satânicos que envolviam emasculação.

Durante essas buscas, tomei contato com uma série de

publicações relacionadas à temática da violência doméstica e do “abuso” sexual infantil. A análise desse material causou de imediato duas impressões: 1) Havia pouca variação dos autores brasileiros que se dedicavam ao tema (eram geralmente psicólogos ou assistentes sociais e residentes em São Paulo); 2) Havia uma repetição na maneira de abordar a temática do “abuso” sexual infantil nas publicações, prevalecendo a postura que a população deveria ser mobilizada para identificar situações de “abuso” sexual e denunciá-las à polícia ou autoridade judicial competente. De maneira mais elaborada, essas primeiras impressões podem ser apresentadas como: a)

Há um movimento no Brasil bem articulado, cuja origem está na cidade de São Paulo, mais especificamente na USP.

Isso quer

dizer, que as linhas de atuação e de argumentação, tanto das organizações, quanto de intelectuais e profissionais envolvidos, eram muito semelhantes e versavam, basicamente, sobre as mesmas temáticas: critérios de classificação, exames, vigilância, e punição às situações de “abuso” sexual infantil. constituíam

uma

série

de

procedimentos

para

Em síntese, enquadrar,

controlar e medir "abuso” sexual. b)

Foram criadas estratégias as mais diversas, com o intuito de assegurar a apresentação e divulgação de denúncias, bem como proteger a criança e apenar o adulto.

O

“abuso”

sexual

emerge

como um

problema específico,

expondo a família a um intervenção pública, exigindo investimentos grandes em todo mundo, tanto de ordem econômica, quanto de ordem jurídica e ordem política. A academia, especialmente no Brasil, tem um papel importante nessa construção, ao lado da mídia. Abordagem da construção do “abuso” como um tipo está dividida em duas partes:

a emergência do abuso no cenário internacional e no

Brasil (capítulos 5 e 6). Essa análise foi efetivamente favorecida por uma postura teórica prévia, articulada como uma das vertentes da Psicologia Social atual, o construcionismo, bem como por reflexões de autores de outros campos.

Enfoque teórico: A pesquisa fundamenta-se na perspectiva construcionista da Psicologia Social (Ibáñez; Gergen; Spink, entre outros), utiliza a noção de “governamentalidade” desenvolvida por Foucault (1985), a noção de “matriz” (matrix) e “tipos relevantes” (relevant kinds) do filósofo Ian Hacking (1999), bem como, as noções de “dispositivos de inscrição” de Bruno Latour (1997; 2000). Para que esses referenciais possam ficar mais compreensíveis, primeiro irei traçar um quadro de minha postura diante da construção do conhecimento dito científico, para em seguida desenvolver a análise das noções de “matriz”, “tipo” e “dispositivo”.

Optei por traçar um quadro

dessas reflexões teóricas desde a introdução porque permeiam toda a tese funcionando pressupostos para as reflexões que faço sobre a construção de sentidos e práticas discursivas (capítulo 2).

Sobre a construção do conhecimento:

Se os cientistas leram o livro da natureza é somente porque eles primeiro transformaram a natureza em um livro (Nikolas Rose, 1996, p. 107)

As reflexões teóricas sobre os referenciais que adoto constitui-se em uma tarefa que iniciou antes mesmo da definição de um projeto de pesquisa e acompanha cada etapa do trabalho. Indicam que perspectivas me lançam na temática que elegi pesquisar. São premissas conceituais, que funcionam como ligas de toda a tese. No entanto, desde já, indico que não se constituem em uma adesão dogmática que nega a crítica a si. Pelo contrário, o projeto de vida acadêmica que busco trilhar, encontrou no construcionismo o princípio de criticar de modo incessante todo o conhecimento (seja ele acompanhado de qualquer adjetivo). Desde apresentação do que será elaborado neste item, já é possível perceber que a “evidência” de um “objeto”, está inteiramente relacionada, aos olhos de quem o vê.

Portanto, nem cabe falar de

“evidência” ou de “objeto”, como será discutido mais adiante.

A ciência

não decifra, muito menos revela a natureza ou fatos. Os acontecimentos não são uma espécie de “concreto puro” com evidência interna que a ciência, ou melhor, o pesquisador, irá decifrar com o uso da linguagem específica de um campo de estudos. Bastaria assim, procurar, como na Renascença, a regularidade dos objetos pesquisados, expressa pela sua freqüência. Por outro lado, a ciência não é pura “imaginação”, que se origina na “mente” do pesquisador, que, como na Idade Média, se vale de sua autoridade para transformar a sua opinião em verdade (HACKING, 1984).

Tanto em uma postura quanto na outra, a experiência que se

inaugura no encontro do pesquisador com o que pretende pesquisar adquire o status de reveladora de verdades. Como mostra Blanché (1988,

p. 102-103) a “experiência bruta” e seu revés, o “simbólico puro”, estão somente em um plano ideal.

Outros autores, como o italiano Gianni

Vattimo, concordam: ... nem a realidade do mundo se reduz à percepção do sujeito, nem o sujeito que percebe tem, por sua vez, um estado ontológico mais sólido do que aquele das suas pretensas “ilusões” (VATTIMO, 2001, p. 18).

Tomo por base as reflexões de Thomás Ibáñez sobre os empecilhos para a construção do conhecimento desde uma perspectiva construcionista, onde considera o conhecimento como “um produto construído mediante determinadas práticas humanas” (1994, p. 39). São quatro os obstáculos: a)

A crença em uma dicotomia entre sujeito e objeto: Esse debate opõe de um lado “idealistas” ou “racionalistas”, que

consideram que o sujeito é quem “imprime ao conhecimento todas, ou quase todas, suas características” (Ibid., p. 40) e, de outro lado, “empiristas”

ou

“realistas”,

que

consideram

o

objeto

“como

o

determinante em última instância, das características do conhecimento” (Ibid.). Ambos podem até achar que o conhecimento é construído, mas os idealistas ou racionalistas advogam que são construções “determinadas pela nossa mente ou pela lógica do seu funcionamento” (Ibid., p. 40-41). Os empiristas defendem que o conhecimento, para que seja válido, precisa estar em correspondência com a realidade, portanto é ela quem “guia a construção dos conhecimentos” (Ibid., p. 40). Aproximando-se

do

construcionismo,

os

“interacionistas”

também concebem o conhecimento como ativamente construído na interação entre sujeito/objeto e apresentando inevitáveis e inseparáveis características que provêem “tanto do sujeito como do objeto” (Ibid., p. 41).

Mas as semelhanças acabam aí, já que os interacionistas

transformam sujeito e objeto em entidades naturais, ou seja, não

avançam na direção de destruir a noção de sujeito e objeto e assim, também considerar como construídos os “elementos que entrevêem no processo de elaboração do conhecimento” (Ibid.), que além de serem os tais sujeitos e objetos, também incluem os critérios que validam um saber como científico. Optei por não utilizar a palavra “objeto” neste trabalho para me referir à temática estudada.

É fruto de uma tentativa de coerência aos

referenciais teóricos adotados. A palavra “objeto” remete sempre a algo que

é

“pensado” ou

“representado”

por

nós

em

função de

sua

materialidade. Dou exemplo disso através de algumas definições que encontrei no dicionário (FERREIRA, 1986, p. 1208): 

Tudo que é apreendido pelo conhecimento, que não é o sujeito do conhecimento;



Tudo que é manipulável ou manufaturável;



Filo. O que é conhecido, pensado ou representado, em oposição ao ato de conhecer, pensar ou representar;



Filo. O que se apresenta à percepção com um caráter fixo e estável.

A palavra “objeto” está envolta nesta cisão entre alguém que conhece

e

o

que

vai

ser

conhecido.

Deve

ser

criticada

como

completamente inadequada a uma perspectiva construcionista. Não defini convencionalmente nenhum termo específico que retratasse a temática de estudo por ser muito céptico em relação à possibilidade de uma palavra o “definir”.

Tomei a liberdade de adotar

termos como: tema, assunto, matéria, ou ainda a própria descrição do que pretendo pesquisar.

O importante no cuidado com os termos

empregados é, na medida do possível, procurar verificar se o emprego de uma palavra é oportuno em relação ao sentido que se quer dela. Todavia, em relação à palavra “objeto”, não creio que seja possível utilizá-la tal a

sua estabilidade conceitual e incompatibilidade com uma perspectiva construcionista. b)

A concepção representacionista do conhecimento: Essa concepção indica que o conhecimento é válido quando ele

corresponde ou reflete a realidade. concepção construcionista.

É impossível sustentá-la em uma

Ibáñez, esclarece que para saber se duas

coisas correspondem é necessário compará-las, acedendo a cada uma com

total

independência.

O

problema

é

exatamente

este:

como

acedermos a realidade com independência do conhecimento que temos dela, para compará-la com esse mesmo conhecimento?

(Cf. IBÁÑEZ,

1994, p. 43). Não podemos: Quando elaboramos um conhecimento não estamos representando algo que estaria aí fora na realidade, como tampouco estamos traduzindo esses objetos exteriores e enunciados, estamos construindo de par em par um objeto original que não traduz nada e que não representa nenhum objeto da realidade com a qual estaria em correspondência (Ibid., p. 44).

Ibáñez se pergunta porque muitos ainda relutam em abandonar a concepção representacionista e sustenta a hipótese de que é porque têm receio da metáfora de um conhecimento como produto da fantasia de seus criadores. Retruca: ... o conhecimento dista muito de ser ficção desenfreada, obedece a uma série de restrições que condicionam o relato que se pode construir. Quando se afirma que algo está construído, não se está dizendo que o resultado depende exclusivamente dos caprichos do construtor. Com efeito, o que se constrói

tem

determinadas

finalidades,

essas

finalidades

orientam

as

características da construção (Ibid., p. 44).

Percebe-se uma pragmática na concepção construcionista que a aproxima de teóricos como Richard Rorty, especialmente nas suas teses contra qualquer “teoria da representação” e também em relação ao “relativismo” (RORTY, 1994; 1997).

Nesse último caso, é interessante

notar

que

a

pretensão

de

desqualificar

a

postura

construcionista

acusando-a de relativista implica em uma visão do conhecimento que inclui o representacionismo, ou seja se alguém se dispõe a discutir o relativismo é porque acredita na possibilidade de um conhecimento verdadeiro e portanto, fiel à realidade: Até onde posso ver, o relativismo, (...) só poderia inserir-se na mente de alguém que, (...), tivesse sido anteriormente convencido de que algumas de nossas crenças verdadeiras estão relacionadas com o mundo de um modo, segundo o qual, outras não (Rorty,1997, p. 75).

c)

A crença na verdade: Como indica Ibáñez, toda sociedade tem uma certa economia da

verdade, (1994, p. 45), ou seja, todos temos critérios para apostar mais em algo que em outro. Mas o que está sendo criticado aqui é a noção de verdade que apresenta um caráter absoluto e transcendente, sem levar em consideração circunstâncias, pontos de vista, crenças, desejos e decisões particulares (Cf. IBÁÑEZ, 1994, p. 45).

A verdade está para

além da mortalidade humana: ... a partir do momento em que assumimos a crença na verdade, estamos afirmando que esta não depende de nós mesmos e estamos declarando portanto, que existe uma instância não humana que a estabelece e regula, chame-se esta instância de Deus, a Realidade, a Ciência ou a Leis do Universo (Ibid, p. 45).

A postura construcionista requer que nos afastemos da verdade, uma vez que seus critérios são obra nossa e contingentes às nossas práticas. Não há nada verdadeiro no sentido estrito da palavra (Ibid., p. 46). d)

A crença de que o cérebro fabrica o conhecimento e é a sede do pensamento:

Conforme Ibáñez, especialmente em função da relação que existe entre lesões no cérebro e dificuldades de “pensamento”, a tendência é “essencializar os processo cognitivos” (Ibid., p. 46), ou seja, dependem do cérebro os conteúdos e formas de nossos “processos cognitivos”. Ibáñez conclui que o cérebro é condição de possibilidade do “pensamento” assim como o campo social.

Uma concepção diferente

desta leva a três princípios que impedem a postura construcionista: a) o internalismo: que localiza os processos cognitivos no interior do cérebro; b) o essencialismo, que faz os processo cognitivos parecerem naturais e invariantes; c) o universalismo, que apresenta concepções atuais como formas padrões e como modelos válidos a situações semelhantes (Cf., Ibid., p. 48). A lista de empecilhos poderia ainda ser bem maior.

Aqui

acrescento alguns pontos que são incompatíveis com a construção do conhecimento desde uma perspectiva construcionista: 

A noção de progresso da história;



As categorias identitárias consideradas naturais como homem, mulher, criança, etc... (criticada por UBACH, 1998, p. 53);



E ainda, a concepção de “eu” estruturado, com uma “unidade psíquica interior” que precisa ser investigada por uma reflexão introspectiva (Ibid., p. 55), usada para o descobrimento de si, para mostrar a verdade de si (FOUCAULT, 1990, p. 93).

As noções de “tipo”, “matriz” e o “abuso sexual”: Considerado como um tipo, “abuso” pode ser compreendido como uma categorização, ou seja, como organização e seleção de aspectos de um acontecimento que inevitavelmente se constitui em práticas discursivas, que se fundam a partir de vivências diversas tais

como, interação face a face, mediadas pelos meios de comunicação e pelos

processos

históricos

vivenciados

por

cada

pessoa

e

pela

humanidade. Um tipo se constitui em fragmento de um acontecimento, o congelando. É socialmente e cotidianamente elaborado com algum propósito (HACKING, 1999, p. 128). Portanto, emerge no espaço social, entendido como, espaço de “distribuição racional”, “espaço finalizado de convergência ideal”, “espaço coerente”.9

É essa estrutura social que

possibilita a emergência de um tipo. Um tipo é construído a partir de uma matriz10 (HACKING, 1999, p. 10). Aliás, Hacking é enfático, um tipo só funciona dentro de uma matriz (Cf. Ibid., p. 10-11). Assim, ao analisarmos a emergência de um tipo é preciso também examinar a sua matriz (as suas precondições). Hacking dá o exemplo do tipo “mulheres refugiadas”, do qual a matriz é formada por uma série de instituições:

práticas de nacionalidade,

imigração, cidadania e mulheres em fuga pedindo asilo (Ibid., p. 12). É importante notar que o socialmente construído não é, em primeira instância, a pessoa individual, mas uma classificação (Ibid., p. 10). Ao se referir às mulheres refugiadas Hacking diz: “... essa maneira de classificar pessoas é produto de eventos sociais, de legislações, de trabalhadores sociais, de grupos de imigrantes, de ativistas, de advogados e das atividades de mulheres envolvidas” (Ibid.).

9

O que é socialmente

Essa noção de social é desenvolvida por de Jean BAUDRILLARD (1994). Luiz Cláudio FIGUEIREDO (1991), também utiliza o termo “matriz” para analisar as “escolas” e “seitas” psicológicas (p. 12), em uma concepção muito próxima de Hacking: como “modelos” de inteligibilidade e interesses (Cf., p. 11-12). A isso deu o nome de “matrizes do pensamento psicológico”. À primeira vista poderíamos ter a impressão de que se trata de uma noção de matriz cognitivista, em função da natureza do trabalho de Figueiredo. No entanto, os “pressupostos” (p. 12) das teorias que o autor analisa além de serem sustentáculos das práticas de psicólogos (em consultórios, organizações, universidades, etc.), também são por elas produzidos (testados, abandonados, reforçados, ignorados). 10

construído não é uma pessoa específica mas, “a idéia de mulher refugiada” (Ibid.). A partir desse momento Hacking coloca como sinônimos: idéia, conceito e tipo (Ibid.). Não creio ter sido uma associação muito feliz pela dificuldade em utilizar o termo “idéia”, mesmo que o autor justifique seu uso dizendo que não lhe atribui nenhum sentido “mental”, mas como sendo algo construído socialmente.

É compreensível sua opção, mas

preferi adotar o termo “tipo” sem associá-lo a “idéia” exatamente para evitar a sua utilização como uma construção mental. A

noção

de

tipo

foi

originalmente

utilizada

pelo

filósofo

americano Nelson Goodman, como reconhece Hacking (Ibid., p. 128). Um tipo é uma grande classificação que se estabelece socialmente, é compartilhada e pode ser modificada sempre, com a finalidade de construir sentidos sobre o mundo: A seleção e organização de tipos determina, (...) o que nós chamamos de mundo  embora (...) nós estejamos melhores sem um conceito de mundo comum. O mundo está bem perdido ... (Ibid., p. 129).

Os tipos, por nos permitirem uma construção do mundo, têm algumas

características

importantes:

a)

São

“preferencialmente

cotidianos ou desenvolvidos para um propósito" (Ibid., p. 128); b) A sua organização é essencialmente coletiva e social (Ibid., p. 129). Assim, o “abuso” pode ser classificado como um tipo na medida em que toma visibilidade

cotidianamente

(pioneiramente

na

prática

de

médicos

pediatras norte-americanos) e é desenvolvido com o propósito de combater e controlar a atividade sexual entre um adulto e uma criança. O estudo do “abuso” como um tipo foi realizado a partir de documentos diversos.

A

variação de documentos (livros,

artigos

jornalísticos, artigos acadêmicos, artigo em revistas especializadas, relatórios de eventos, comunicados de organizações internacionais, etc...)

teve o intuito de compreender com um tipo se estrutura, para ter a possibilidade de ampliar esse estudo para outros assuntos temáticos. Assim, examinar a eficácia deste referencial em uma pesquisa e avaliar a possibilidade de, em continuidade a prática de pesquisador, fazer o que Hacking acha ser fundamental na análise de tipos, que é compreender um grupo de tipos: Um estudo de um tipo pode iluminar muitos outros. Mas não importa se o exemplo foi bem escolhido, isto servirá unicamente como um guia para compreensão de um grupo de tipos.

Nunca deveria funcionar como um

modelo para todos os tipos. A senha é “variação” (Ibid., p. 131).

É um estudo que analisa alguns aspectos de como, na vida cotidiana, nós selecionamos e organizamos novos tipos, através de práticas discursivas, sem nunca perder de vista que esse processo todo está imerso na construção humana de sentidos. “Abuso” sexual é um tipo que está visível e operando no mundo, permitindo a emergência de atividades profissionais específicas, saberes, organizações, leis e produzindo uma ingerência no âmbito privado da estrutura familiar, na vida de crianças e especialmente na vida de adultos, que passam a re-estruturar seu passado e seu presente em função da emergência desse tipo.

Também, com aponta Hacking, é um tipo que

mantém sob tensão as fronteiras de diversas especialidades (medicina, psiquiatria, sociologia, psicologia, jurisprudência, auto-ajuda), com o intuito de produzir saberes: ... há abundância de especialistas firmemente convencidos que há verdades importantes sobre o abuso de criança.

Pesquisas e experimentos podem

revelá-las. Nós desejamos que causas e efeitos sejam bem compreendidos, de modo que possamos encontrar prognósticos de futuros abusos, que nós possamos explicar isto, que nós possamos prevenir isto, que nós possamos determinar suas conseqüências e combatê-las.

Nós desejamos poder curar

abusadores de crianças e curar as crianças feridas (HACKING, 1999, p. 132).

Empreender uma cartografia do “abuso” infantil como um tipo pressupõe um rápido exame de sua matriz, (também socialmente construídas).

Apontei acima duas instituições fundamentais:11

1)

acrescentando a constituição do “eu” (self); 2) A noção de infância construída como uma etapa do desenvolvimento humano, onde a criança deve ter cuidados especiais em virtude da sua fragilidade e, por isso, devem ser limitados os assuntos e jogos possíveis (excluindo por exemplo, os de cunho sexual explícito); 3) A noção de direitos, onde a criança adquire o status de cidadã. Elas abrem o espaço necessário para que tome visibilidade a prática de relações sexuais entre um adulto e uma criança como abusiva.

Foram necessários séculos para que isso

acontecesse. Antes da noção de “abuso” ligada à prática sexual, primeiro tomou visibilidade a noção de “crueldade” física (HACKING, 1999, p. 133138).

“Nasce” a infância inocente: A emergência do "abuso sexual infantil" foi favorecida pela construção da noção de infância, a partir do advento da escola, da família e do Estado.

É esse lugar atribuído para a criança na sociedade e na

família (com as mudanças destas também), especialmente a partir do século XVI, solidificada no século XVII e com formas imperativas a partir do século XVIII, que permitiu já na metade do século XX, julgar a relação sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente como “abuso sexual”, constituindo-o como um tipo e lhe dando autonomia suficiente para se universalizar e naturalizar. 11

Por considerar que constituição do self será mais bem compreendida na sua relação com o “abuso”, após discussões sobre sentidos apenas a cito. Durante o desenvolvimento do capítulo 5, me deterei mais nas instituições que compõem esta matriz. É possível buscarmos ainda outras instituições, mas essas são fundamentais e imprescindíveis para a constituição do “abuso”.

A noção de infância como demonstrou Ariès (1981) é tardia. não havia na língua francesa, antes do século XIX, uma palavra para designar o recém-nascido (Ibid., p. 45).

Foi no século XX que se

passou a dar dedicação especial a infância (Ibid., p. 48). A relação entre sexualidade-criança-jovem-adulto teve várias construções.

A prevalência da moralidade cristã na constituição e

aplicação das leis favoreceu a ilegalidade de várias atividades sexuais, tais como o adultério, a bigamia, o incesto, a sodomia.

A prática legal de

algumas atividades sexuais somente tornou-se possível no casamento ou através da prostituição.

Mas é importante observar que as atividades

sexuais entre adultos e crianças nem sempre foram consideradas especialmente ilegais. Houve época em que um adulto estava submetido, pelo menos a princípio, as mesmas punições por cometer algum crime sexual com outro adulto ou com uma criança, ou seja, não seria punido somente por causa do seu parceiro(a) ser um(a) “menor” (KILLIAS, 1991). Há um caso que ilustra essa situação: ... um padre, cujo nome era Johann Arbogast Gauch, por dez anos (17351744), quando servia em uma vila como vigário no antigo principado de Fürstenberg (Alemanha), manteve relações sexuais com vários rapazes e algumas meninas.

Os atos sexuais se restringiram a masturbação com os

meninos e com as meninas na exibição das genitálias. Algumas das crianças eram participantes condescendentes; muitos parecem ter resistido a princípio, mas foram compelidos. Parece que toda a vila estava bem consciente do que estava acontecendo, mas por um longo tempo ninguém interferiu. Contudo, após dez anos, e isto após uma mudança no trono de Fürstenberg, Gauch foi finalmente processado e sentenciado à morte.

As crianças foram mantidas

em uma prisão subterrânea por vários meses e os meninos, como cúmplices dos crimes, foram espancados e açoitados. mal escaparam da sentença de morte.

Os meninos mais velhos mal e As meninas apenas receberam

penalidades eclesiásticas por comportamento impuro.

Como as atividades

sexuais nas quais elas foram envolvidas eram heterossexuais, não foram levadas a sério (KILLIAS, 1991, p. 42).

Sem a solidificação da noção de infância, portanto, sem a consolidação de uma fase que requereria cuidado especializadíssimo, os assuntos ou jogos sexuais, atualmente proibidos às crianças, eram comuns a todas as idades e a todas as classes entre o final do séc. XVI e início do séc. XVII.

Ariès, nos fornece alguns exemplos primorosos da

vida de Luis XIII: Luis XIII ainda não tem um ano: “Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis com a ponta dos dedos” (Ibid., p. 125) Durante seus três primeiros anos, ninguém desaprova ou vê algum mal em tocar por brincadeira em suas partes sexuais: “A Marquesa (...) muitas vezes punha a mão embaixo de sua túnica; ele pedia para ser colocado na cama de sua ama, onde ela brincava com ele e punha a mão embaixo de sua túnica” (Ibid., p. 126). Essas brincadeiras não eram restritas à criadagem ou a jovens desmiolados ou a mulheres de costumes levianos, como a amante do Rei. A Rainha, sua mãe, também gostava dessa brincadeira: “A Rainha, pondo a mão em seu pênis, disse: Meu filho, peguei a sua torneira”. O trecho seguinte é ainda mais extraordinário: “Ele e Madame (sua irmã) foram despidos e colocados na cama juntos com o Rei, onde se beijaram, gorjearam e deram muito prazer ao Rei” (Ibid., p. 126). Essa prática familiar de associar crianças às brincadeiras sexuais dos adultos fazia parte do costume da época e não chocava o senso comum (Ibid., p. 128).

Segundo Ariès, esses jogos sexuais começaram a ser proibidos pela grande “... reforma cristã e a seguir leiga, que disciplinou a sociedade aburguesada no séc. XVIII e sobretudo do séc. XIX, na Inglaterra e na França” (Ibid., p. 129). Diz ainda: Não se tratava mais de alguns moralistas isolados (...), e sim de um grande movimento cujos sinais se percebiam em toda parte, tanto numa farta literatura moral e pedagógica como em práticas de devoção e numa nova iconografia religiosa (Ibid., p. 129).

Uma noção essencial se impôs: a da inocência infantil. (Ibid., p. 136; o grifo é meu). Antes, a infância era mais ignorada, considerada um período de transição rapidamente superado e sem importância (Ibid., p. 138).

Uma noção de infância se impõe mas como aponta Dandurand (1994), “surgem gradualmente duas figuras contrastantes da infância”. Uma na burguesia ascendente que centraliza a família na criança para protegê-la do mundo: “... porque a criança é julgada vulnerável e precisa para se desenvolver harmoniosamente, ser colocada à parte do mundo dos adultos” (Ibid., p. 343-344). E outra, entre a população empobrecida onde as crianças são deixadas aos cuidados de instituições beneficentes. Surgem assim, duas formas opostas de proteção à infância uma privada e outra pública (Ibid., p. 343). Ao meu ver ambas as formas prevalecem na constituição dessa noção de infância frágil12 “associada ao primitivismo e ao irracionalismo” (ARIÈS, 1981, p. 146), que surgiu com Rousseau, mas que “pertence a história do séc. XX” (Ibid.), sendo marcada pela preocupação de sempre fazer das crianças “pessoas honradas, probas e (...) racionais” (Ibid, p. 163).

Agora a sua saúde e sua educação devem ser motivo de grande

preocupação (Ibid., p. 164). Não podemos esquecer também que essa “proteção” às crianças “abandonadas” que floresce em abundante literatura a partir do séc. XVII (DONZELOT, 1986, p. 15-16), que passa a ser assumida pelo Estado no final deste século e solidifica-se no séc. XX, tem motivações iniciais que poderíamos hoje julgar como pouco humanitárias:

12

A não ser que focalizássemos a figura de quem “abandona” a criança, mas no contexto social geral, a prática de levar essas crianças “abandonadas” ao orfanato, indica a necessidade de protegê-la.

... mostrar como seria oportuno (...), salvaguardar os bastardos, a fim de destiná-los a tarefas nacionais, como a colonização, a milícia, a marinha, tarefas para as quais eles estariam perfeitamente adaptados, pelo fato de não possuírem vínculos de obrigações familiares (DONZELOT, 1986, p. 16).

A mesma “preocupação” surge no Brasil no final do séc. XIX e início do séc. XX: Empenhados na tarefa social de regeneração física e moral das crianças desamparadas e alarmados com os elevados índices de mortalidade infantil registrados no país, os médicos sanitários discutem a situação da infância carente, interesses

refletem do

sobre as causas do fenômeno e, tendo em vista “os

Estado”,

tentam

encontrar

soluções

para

evitar

o

despovoamento da nação e para formar os futuros cidadãos (RAGO, 1985, p. 120).

A criança como conhecemos hoje foi moldada durante séculos e permanece se deslocando. Mas há uma visibilidade hegemônica que reclama universalidade. Aparentemente, seu ciclo de possibilidades de transformação parece se fechar por um momento, em função da luta por hegemonia, que pretende congelar uma noção como um “fato”. Isso tem implicações de controle: formação de hábitos através de proibições e consentimentos, que geram a institucionalização de modos de ser.

Podemos compreender esta institucionalização como uma

“tipificação recíproca de ações habituais” (BERGER & LUCKMANN, 1985, p. 113).13

Um acontecimento passa a ser esperado através de

indicadores de sua visibilidade, como pode ser visto em relação às estatísticas de “abuso sexual”. Mas apesar do controle e estratégias de regulação a prática sexual entre um adulto e uma criança irrompe. É considerada uma prática abusiva, porque desrespeita os “direitos” da criança.

“Nascem” os direitos da criança:

Estamos ainda vivendo segundo Norberto Bobbio (1992), a “era dos direitos”.

Uma era que teve um grande impulso após a I Guerra

Mundial e cuja motivação não foi tão relacionada com uma atitude “humanitária” em relação à população em geral: Existem autênticas motivações humanitárias presentes no desenvolvimento de "lei humanitária" para mitigar os horrores da guerra por declarar ilegais certas armas, protegendo os doentes, feridos e prisioneiros de guerra, salvaguardando populações civis, mas essa lei humanitária provavelmente derivou de uma preocupação dos Estados por seus próprios soldados e cidadãos, não pela igualdade de direitos humanos (HENKIN, 1990, p. 15).

De todo modo, Bobbio apresenta três aspectos importantes que deram determinada configuração aos direitos nos dias atuais (Ibid., p. 68): a) O aumento de bens considerados merecedores de tutela; b) A extensão de direitos para além do indivíduo;

c) A especificação das

maneiras de ser humano. Conforme Bobbio, primeiro expandiram-se, de forma genérica, os direitos políticos e sociais: direito de religião, opinião, etc.

Em segundo lugar, houve a extensão de

direitos

a

“sujeitos

diferentes do indivíduo”: família, minorias étnicas. E em terceiro lugar, o ser humano se especificou e a essas especificações foram atribuídos direitos: mulher, criança, idosos. As cartas de direitos que se sucederam permitem uma visualização disso: ... em 1952, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher; em 1959, a Declaração da Criança;

em 1971, a Declaração dos Direitos do Deficiente

Mental; em 1975, a primeira Assembléia Mundial, em Viena, sobre os direitos dos anciãos... (BOBBIO, 1992, p. 69).

Mais diretamente interessa a este trabalho a atribuição de direitos à criança, esta que passou a ser uma categoria do ser humano no âmbito das especificações apontadas por Bobbio no item “c”. Um exemplo dessa associação de direitos humanos e “abuso” é o folder distribuído por

13

A semelhança com o conceito de “tipo” proposto por Hacking é grande.

duas psicólogas quando expunham painel durante a “I Mostra Nacional de Práticas em Psicologia: psicologia e compromisso social" (realizada no Centro de Convenções do Anhembi, na cidade de São Paulo, de 5 a 7 de outubro de 2000).

Elas conclamavam os profissionais envolvidos no

atendimento a famílias “incestogênicas” para que fossem “efetivos na proteção dos direitos humanos...” (Anexo 1).14 Após a instituição do Ano internacional da Criança em 1979 e durante toda a década de 80, “firmou-se uma nova valorização da infância” (DANDURAND, 1994, p. 341).

A Convenção Internacional dos

Direitos da Criança (1990), transformou a criança oficialmente em “sujeito de direitos”. Com a “Declaração dos Direitos Sexuais”, pela Assembléia Geral da “World Association for Sexology”, em 1997 durante o XIII Congresso Mundial de Sexologia, em Valência, e ainda mais, com a aprovação de emendas a esta Declaração durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong, em 1999, a relação entre “abuso” e direitos humanos, foi solidificada: Art. 1. O direito à Liberdade Sexual: A liberdade sexual diz respeito à possibilidade dos indivíduos em expressarem seu potencial sexual. No entanto, aqui se excluem todas as formas de coerção, exploração e “abuso” em qualquer época ou situação de vida.

O Estado toma pra si o cuidado das crianças policiando as famílias.

Em última análise, são atribuídas responsabilidades aos pais

e/ou responsável no cumprimento dos direitos das crianças, mas caso eles não sejam capazes de manter seus filhos em dispositivos disciplinares, o Estado, através do inquérito realizado por profissionais (Assistente Social, Policiais e Psicólogos) e julgado por um juiz, exerce a guarda dessas crianças. 14

A título de curiosidade, essas psicólogas se denominavam “Psicólogas especialistas em Violência Doméstica Contra Criança e Adolescente”. Provavelmente, não perceberam a

A atividade sexual praticada no interior da família merece sanção imediata, pois se constitui em forma de “abuso”. Quando começamos a considerar essa prática sexual que desrespeita a fragilidade da criança e seus direitos, como “abuso”?

No

capítulo 3 (p. 85) faço uma localização histórica do relacionamento sexual entre adultos e crianças, e discuto as perspectivas antropológicas e psicanalíticas.

Documentos como mananciais:15 A análise leva em conta que os documentos se constituem em práticas

discursivas,

envolvem

diversos

atores

em

negociações

e

enfrentamentos e ainda, que têm implicações em uma ampla gama de atividades sociais. Alguns autores como Ginzburg, (1987, p. 18) consideram as fontes escritas como “indiretas”, no sentido de que não se tem contato face-a-face com os autores. pesquisa.

Porém,

alguns

É o caso da maioria das fontes desta documentos

caracterizados como duplamente indiretos:

estudados

podem

ser

por exemplo, relatórios de

organizações governamentais ou não, comunicados, leis.

Isso porque

sequer temos um autor determinado (a não ser, muito raramente, quando se trata de um parecer ou comunicado do presidente ou representante da organização).

Assim, o “autor” passa a ser identificado fortemente por

um período de tempo, como por exemplo, o Governo no período de tanto

dubiedade embutida nesta “titulação”. 15 É lamentável que o termo “fonte” esteja tão desgastado, sendo utilizado como material higienizado, puro, que estava à espera de coleta e análise; ponto fixo e original de onde surge o problema de pesquisa e do qual só temos o trabalho de coleta. Fontes não têm origem determinada, o que vemos é apenas o ponto de onde jorra a água, mas desde antes disso e mesmo depois, há um trabalho na terra de espraiamento ao infinito. Permaneço utilizando o termo “fonte” por considerar que “manancial” poderia trazer

a tanto; ou o documento de tal organização lançado em tal ano. Esses documentos duplamente indiretos, apresentam a intenção de estabelecer regras, ordenar e disciplinar a convivência humana.

Até mesmo os

documentos acadêmicos relacionados a temática do “abuso” correm nessa direção; não são desinteressadas reflexões, mas também buscam uma ordenação. Assim, intrafamiliar,

foi

sob

uma a

opção

perspectiva

tratar

o

“abuso”

do

que

sexual

Foucault

infantil

chamou

de

“Governamentalidade” (1985a, p. 277-293). Esta consiste em criar dispositivos de segurança por se considerar a população como um problema a ser governado. Os dispositivos visam, especialmente a partir do séc. XVI: ... estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de uma família (FOUCAULT, 1985a, p. 281).

Nesse sentido, os documentos são instrumentos valiosos para compreender a “governamentalidade”.

Alguns documentos até se

atribuem tacitamente essa função, (como os estatutos, leis) e a exercem com tanta presteza que não há preocupação com tiragens extensas, apenas a disponibilidade para “pessoas chaves” em “cargos chaves”. Quantos recebem documentos produzidos pelos governos em suas casas? Provavelmente só os próprios autores dos textos tiveram esse privilégio e também, muito provavelmente, só durante o período em que o documento estava em discussão, pois a forma final só é disponibilizada para quem for procurá-la

nos

centros

de

documentação

organizados

pelo

Estado

(Bibliotecas, Imprensa Oficial, etc.).

dificuldades de entendimento, mas sob a perspectiva de um “manancial”, ou seja como “fonte” sem fim, abundante, diversificada, dispersa...

Estou procurando estabelecer que existem domínios de produção os

mais

diversos

dependendo

do

material

escolhido

para

análise

(documentos oficiais, reportagens, livros acadêmicos, diários, etc.), indicando que de alguma forma, priorizei o estudo de um domínio: documentos

produzidos

organizações

autores

que

se

atendimento e/ou estudo de crianças e adolescentes.

dedicam

ao

Isso porque,

documentos governamentais como leis são a ponta final de movimentos sociais anteriores.

Mas reafirmo que todos os documentos pesquisados

participam da “arte de governar”, entendida como “... a maneira de gerir corretamente os indivíduos os bens, as riquezas...” (FOUCAULT, 1985a, p. 281). As fontes documentais são um dos produtos necessários à “governamentalidade” dentre outros, mas o produto para o tipo de pesquisa que e propus realizar. Os documentos reproduzem a pedagogia de Governos e organizações, no que se refere à gerência das práticas sociais e individuais. Como citei, são também fragmentos que, sem dúvida, deixam vestígios de possibilidades para alargar a compreensão do acontecimento que está sendo estudado, indicando a necessidade de diálogo com outras fontes (tais como, entrevistas com especialistas, ou “pessoas chave”). A

indeterminação

da

realidade

impede

qualquer

tentativa

convincente de compreensão globalizada do “abuso” sexual infantil intrafamiliar. A análise é realizada a partir de fragmentos e é por isso que também sempre será fragmentada.16

Ela só se torna um empecilho ao

trabalho de pesquisa caso o pesquisador não deixe claro que fragmentos escolheu pesquisar, como e os por quês de sua pesquisa. Desta maneira, fica afastada qualquer possibilidade de uma pesquisa farsesca, uma vez que um dos objetivos de uma discussão metodológica é combater montagens burlescas intencionais ou não.

A análise de documentos para compreender a emergência do “abuso” sexual infantil intrafamiliar como um tipo, não foi obra do acaso, mas de uma postura teórica e uma perspectiva de abordagem do problema que elegi estudar. Em outras palavras, foi uma opção metodológica.17 Os documentos a serem analisados aqui diferentemente por exemplo de uma abordagem jurídica, não são matéria de prova (essa sempre será uma tentativa frustrada), mas matéria de compreensão. É neste momento que emerge a atividade idiossincrática do pesquisador e que torna o seu trabalho relevante; momento que constitui o ponto de partida e chegada da pesquisa. E ainda, é neste momento que se “revela” a mítica da pesquisa: uma narrativa que encarna as forças do eterno devir humano.

Pesquisa compreendida como uma construção passional do

pesquisador, das vozes que conseguiu escutar e que ele transformou em letras e também das vozes que teimaram em se caracterizar como indefensáveis. É essa mítica que mantém a pesquisa em fluxo constante, na aparente imobilidade da letra impressa. As fontes documentais, foram incorporadas ao próprio cotidiano da cultura letrada e são instrumentos que divulgam e debatem

esse

cotidiano e até buscam a sua normalização. Assim, a pesquisa que toma como base de análise fontes documentais, faz com que elas saiam da sombra, deixem de ocupar o lugar de “fontes secundárias”, para serem analisadas em detalhes como recursos de uma sociedade. Os documentos fazem parte da política, entendida sob inspiração de Foucault, como “estética da existência”: a busca de dar um sentido as existências individuais, rechaçando uma política instrumental, que pretende fazer vigorar o espaço público como veiculador e atualizador de ideais A discussão sobre fragmentação será abordada no item seguinte. Neste trabalho busco sobretudo no plano metodológico, abandonar os vícios de posturas interpretativas. Já no plano epistemológico, empreender um contínuo questionamento das práticas de construção de conhecimento buscando me afastar de fundamentalismos ou essencialismos (este tema é discutido por autores como: STEVE, 1993, p. 20-21; IBÁÑEZ, 1998, p. 43; RUEDA, 2000, p. 20). 16 17

universais.18 A medicina, a psiquiatria, a justiça, a polícia, organizações não-governamentais,

as

organizações

de

ensino

e

pesquisa,

etc.,

estabelecem conexões, repercussões, divisões, articulando em torno do “abuso” um modo que de estar sendo.

Os documentos utilizados: O

material

de

consulta

desta

pesquisa

se

constituiu

especialmente de documentos escritos, brasileiros e estrangeiros, de domínio público e classificadas em três tipos: 1) Governamentais, são caracterizados como sendo construídos por Governos e poderes legislativos estaduais, municipais e federal: leis, projetos de leis, medidas provisórias, cartilhas “educativas”; estatutos; códigos; estudos teóricos e levantamentos estatísticos. 2)Organizacionais,

produzidos

por

organizações

não-

governamentais: notas; estudos teóricos e levantamentos estatísticos; cartilhas, boletins e livros. 3)Documentos acadêmicos, incluem publicações em forma de artigos, livros, teses, dissertações, monografias ou apresentações em eventos, cujos autores sejam pesquisadores e/ou profissionais liberais. Essa categorização dos documentos visou localizá-los em seus contextos de produção. Hammersley & Atkison, ao se referirem à utilização de documentos chamados aqui de “acadêmicos” (produzidos para publicação em periódicos especializados ou apresentações em eventos científicos), fazem observação, (que vale para qualquer tipo de documento), que é importante tentar localizá-los em seu contexto de produção: 18

Christian Ruby, aborda essa discussão de modo bem interessante em Introdução à filosofia política, especialmente no capítulo 5.

Ninguém pode acessar a complexa realidade social do trabalho científico e da produção de conhecimento científico, sem dar atenção para como e por que papers científicos são escritos (...).

E a mesma aproximação pode ser

estendida para todas as situações organizacionais e profissionais ( HAMMERSLEY ATKISON,

&

1995, p. 166).

A utilização dos documentos teve motivações variadas. Para construir os quadros de acontecimentos nacionais e internacionais (Anexos II, III, IV), todos os diversos tipos de documentos foram importantes. No entanto, para analisar a construção do “abuso” como um tipo, foram utilizados documentos acadêmicos pela peculiaridade deles terem sido os pioneiros nessa construção. No Brasil isso também é válido, mas livros (teses, dissertações, transformadas em livros) e não artigos foram mais importantes na solidificação do “abuso” como um tipo. Todas as publicações, foram estudadas com o intuito de buscar o momento em que a temática começou a tomar visibilidade e em que situações. Neglect,

De fora do Brasil, The

International

destaco a publicação “Child Abuse &

Journal”,

da

“International

Society

for

Prevention of Child Abuse and Neglect”, artigo de Kempe e colegas (1962), bem como uma circular emitida pela OMS. Do Brasil, destam-se especialmente as publicações em forma de livros e teses, de Azevedo & Guerra (várias datas), mas também artigos publicados em jornais debatendo o “abuso” (às vezes relacionando-o a pedofilia). A

busca

de

fontes

documentais

foi

realizada

sob

duas

perspectivas discutidas por Peter Spink (1999). Uma que o autor chama de “presença ubíqua”, cuja perspectiva foi adotada principalmente para documentos jornalísticos e governamentais: Às vezes não é um documento ou uma série específica de documentos que importa, mas a presença ubíqua de uma temática em documentos distintos que serve como sinal para a desfamiliarização inicial (Ibid., p. 142).

A outra perspectiva apontada por Peter Spink, foi a de utilizar documentos oriundos de organizações não-governamentais e publicações do

meio

acadêmico

onde

a

perspectiva

foi

exatamente

a

sua

especificidade: ... documentos desse tipo, têm uma presença no campo de interesse e são produzidos regularmente e de forma seriada, é um excelente caminho para a compreensão da gradativa emergência, consolidação e reformulações dos saberes e fazeres (Ibid., p. 146).

Não são freqüentes pesquisas em Psicologia Social que utilizam fontes documentais. O uso dessas fontes parece ser reduzido se comparado a outras como entrevistas, questionários e discussão de grupo, como aponta Peter Spink (1999,

p. 123

).

Ainda assim, foram realizadas

algumas pesquisas importantes nesse campo utilizando documentos. Como exemplo, temos o momento no trabalho de Denise Jodelet, “Folies et

représentations

sociales”,

onde

a

autora

utiliza

a

análise

de

documentos para reconstituir a história de um hospital (JODELET, 1989). Alguns documentos

governamentais,

não–governamentais

e

acadêmicos, são semelhantes no sentido de realizarem análises de conjuntura baseadas em “dados” estatísticos e por proporem normas (sejam leis, sejam testes, sejam formas de atendimento, sejam formas de prevenção).

As análises que oferecem não podem ser lidas como “...

valores nominais, como representações precisas da realidade social, mas podem sugerir temas, imagens ou metáforas.” (HAMMERSLEY & ATKINSON, 1995, p. 161

).

São fontes importantes para a análise do uso de noções que

circulam na sociedade e geram debates temáticos. A pesquisa com fontes documentais não pode deixar de estabelecer

algumas

considerações

sobre

os

chamados

“dados

estatísticos”, muitas vezes chamados também de “dados oficiais” (quando aparecem em documentos de organizações governamentais ou nãogovernamentais). Estes números podem ter sérias objeções, na medida

em que, nem sempre têm a sua “coleta” e análise bem explícita. Vale a observação de que nenhum número pode ser tratado como valor nominal absoluto, já que são construções sociais como quaisquer outras, produtos de negociação. Para Hammersley & Atkinson, os “dados” estatísticos “... podem, ser matéria de preconceitos ou distorções ou de interesses práticos da burocracia ...” (Ibid., p. 168).

Neste trabalho as análises

estatísticas são consideradas como “estratégias de inscrição” e como tal serão abordadas mais à frente.

Vale enfatizarmos a necessidade de

compreendermos o contexto de produção dos dados estatísticos, o uso que se faz deles, muito mais do que rechaçá-los como não “fiéis”. Assim, interessa estarmos atentos: quem produziu, que interesses poderiam estar em jogo, que negociações, etc. Por fim, é importante ter sempre presente ao analisar fontes documentais,

as

possibilidades

de

informações

que

veiculam,

exemplificadas abaixo através de vários tópicos: Como são escritos os documentos? Como eles são lidos? Quem os escreve? Quem os lê? Para que propósitos? Em que ocasiões? Com que conseqüências? O que é registrado? O que é omitido? O que o escritor parece ter como certo a respeito do(s) leitor(es)? O que os leitores precisam saber, em regra, para dar sentido aos escritos? (Ibid., p. 173).

Documentos para quê? Tomando como fonte principal de estudos documentos de domínio público, busco entender mais especificamente: a) A adoção privilegiada da expressão “abuso” sexual para falar das relações sexuais entre um adulto e uma criança em face da diversidade de expressões que podem ser utilizadas. Isso foi feito através de análise epistemológica, que gerou um glossário e que possibilitou a análise histórica de documentos. O uso de uma palavra para operar um

conceito ou uma noção, torna possível a emergência de dispositivos que regulam as relações humanas (FOUCAULT, 1985a; ROSE, 1996). b) A consolidação da noção de “abuso” associada à relação sexual entre adulto e criança e sua afirmação como problema. Dois documentos foram importantes como marcos, a saber: primeiro, o documento feito por médicos americanos, publicado no Journal of The American Medical Association, “The battered child syndrome” (KEMPE, et. al., 1962), onde o “abuso” já começa a ser construído como um problema epidêmico (Cf., JANKO, 1984); o segundo documento é um comunicado da Organização Mundial da Saúde - OMS, “WHO reconizes child abuse as a major public health problem” (1999). c) A função das “estratégias de inscrição” (LATOUR & WOOLGAR, 1997), na produção de informação passível de cálculo e portanto, de ação sobre o que se calcula. usada

por

Em outras palavras, a arte do convencimento

pesquisadores

e

organizações

governamentais

ou

não-

governamentais, não se resume às letras impressas em papel de artigos, folders, ou nas palavras expressas verbalmente em entrevistas, palestras. É necessário que todo esse material usado na veiculação e construção de acontecimentos,

utilize

estrategicamente

instrumentos

visuais

como

tabelas, gráficos, o que pressupõem cálculo e mensuração do material analisado e também seu retrato material (também com fotos e exames físicos, Raios X, por exemplo).

Para sustentar uma afirmação como

“verdadeira” são precisos “dispositivos de inscrição” (LATOUR, 2000, p. 112), que possibilitem uma exposição visual do que se analisa: ... sair de um arsenal de recursos retóricos e ir para um conjunto de novos recursos planejados com o objetivo de oferecer à literatura o seu mais poderoso instrumento: a exposição visual (LATOUR, 2000, p. 112).

Da mesma forma Nikolas Rose se refere à tentativa, no caso da atividade

acadêmica

(“ciência”),

de

dar

uma

acontecimento ao relacioná-lo há alguns inscritores:

“identidade”

a

um

A ciência, (...), não somente vincula técnicas que proporcionam fenômenos visíveis, de modo que eles possam formar focos de conceitualização, mas também requerem dispositivos que representem o fenômeno para ser calculado, que transforma esse fenômeno em uma forma apropriada para análise (ROSE, 1996, p. 107).

O “abuso” sexual infantil também toma visibilidade através de recursos de inscrição.

Quais são e a justificativa para usá-los, são

elementos de análise.

Os “dispositivos de inscrição” favorecem

o

desencadeamento de ações em relação ao “abuso” sexual infantil tais como: legislação, associações de direito, proteção e apoio às crianças. Em

suma,

para

entender

a

construção

e

solidificação

sistematização de um “tipo”, é realizada análise documental, focalizando as diversas formulações que são realizadas, desde as noções de “abuso”, suas formas, justificativas e em que contextos institucionais emergem (matriz).

Uma

palavra

inicial

sobre

a

construção de sentidos: A ciência, as artes, a mídia, entre outros, fazem parte de domínios de construção de saberes, que adquirem formas e sentidos constituídos ao longo dos tempos. São práticas discursivas. Ao estudar a emergência do “abuso” sexual infantil como um tipo, este trabalho busca a construção de sentidos veiculados a partir da academia, organizações governamentais e não-governamentais e na mídia.

Há um pressuposto

básico, relacionado a uma postura em relação à linguagem humana, definida como prática discursiva. A linguagem:

... cria a cada momento, (...) várias e infinitas interpretações e indagações (...), é a nossa proteção, pois instituímos nossos pontos de referência, sem os quais enlouqueceríamos (PAIXÃO, 1993, p. 11).

Realizei um estudo etimológico como pressuposto ao mergulho no tema que me propus estudar, mas não me detive unicamente na análise de terminologias específicas empregadas nos dicionários para se referirem a um determinado acontecimento: relação sexual entre um adulto e uma criança no âmbito familiar.

Esse trabalho também uma

construção de sentidos, por mais que sobre o aparente significado congelado nos dicionários.

Desde esse momento, que antecedeu até

mesmo a consolidação de um projeto de pesquisa, busquei a construção de sentidos sob a perspectiva do construcionismo, para não me limitar às descrições ou mesmo sobre a “evolução” no tempo19 de determinado termo ou noção. As

minhas

preocupações

neste

trabalho

de

pesquisa

se

encaminham em direção a um interesse por práticas sociais, na medida em que criam e afetam instituições que se sustentam em formas discursivas, as mais diversas.

Isso faz com que todo estudo sobre

sentidos tenha como pressuposto: nenhuma construção discursiva pode ser tratada como se fosse discurso autônomo, desvinculados de uma cotidianidade humana que é tão diversificada quanto a possibilidade de existirem saberes sobre determinado acontecimento.

A palavra chave

para o mergulho no estudo da construção de sentidos é: negociação. A construção de sentidos como fruto de negociação é apontada por vários autores

(SPINK

&

MEDRADO,

1999;

GERGEN,

1991).

Mesmo

as

“descobertas científicas”, são frutos de uma negociação na comunidade científica (LATOUR & WOOLGAR,1997; LATOUR, 2000).

A discussão sobre a incompatibilidade com a postura construcionista em pesquisar “evoluções” de práticas, encontra-se no próximo capítulo, no item “Construção de Sentidos e Tempo”, p. 56-60. 19

Na análise das práticas discursivas, simpatizo com alguns aspectos de posturas hermenêuticas como as de Ricouer e Gadamer, e pela postura analítica freudiana. A leitura de trabalhos destes autores ao longo de meu percurso acadêmico, foi fundamental para que eu não me deixasse seduzir pela possibilidade (ao meu ver dotada de fracasso), de uma dimensão interpretativa que buscasse sentidos generalizáveis e verdadeiros, que parece algumas vezes ser por eles facilitada.

Assim

sendo, considero uma tarefa inútil a de tentar responder às questões: “Qual o sentido de tal texto?”; “O que o autor está tentando dizer?”. Em sendo assim: ... não há significado profundo, não há “origem escondida” na história ou fora dela, de modo que a tentativa hermenêutica de encontrar um fundamento anterior, por trás ou além da história, enquanto se situa na história, pode ser rejeitada como mais um imperativo humanístico inacabável (RABINOW & DREYFUS, 1995, p. 108).

Nesse trabalho, preferi enveredar por caminhos propostos pelos autores citados quando discuti o referencial teórico, porque claramente adotam uma postura oposta à busca de um sentido oculto a espera de interpretação.20

Inversamente,

é

na

superfície

do

encontro

do

pesquisador com a sua história de vida, seu acervo cultural, suas crenças teórico-metodológicas e com a emergência de acontecimentos, que há um efeito de construção de sentidos. Isso não se coaduna com uma postura de tradução de um “fato”. Sem sucesso em pesquisa etimológica sobre a origem da palavra interpretar em dicionários de língua portuguesa, julgo que uma análise Há um movimento importante que tem questionado as interpretações nos trabalhos de pesquisa. James Clifford, referindo-se ao trabalho etnográfico, faz observações que podem ser ampliados a outros trabalhos de pesquisa: “torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a interpretação de uma ‘outra’ realidade circunscrita, mas sim como uma negociação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais sujeitos (...). Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e polifonia” (1998, p. 43). 20

dessa palavra fragmentando-a, pode ajudar a esclarecer a postura que busco defender neste trabalho. O prefixo inter é derivado do latim e significa “entre”, “no meio de” (CUNHA, 1998, p. 440). É muito utilizado na formação de verbos (interligar, interdição, por exemplo). No exercício da construção do sentido da palavra “interpretar” (construção de um efeito), presumo que a palavra “pretor” possa ter tido um papel fundamental.

A palavra “pretor”, significa, magistrado que na Roma

Antiga distribuía justiça. É uma palavra que pode ser associada à busca de uma verdade última evidenciada como a melhor opção a ser adotada. Inter-pretar seria uma ação entre pretores, pessoas qualificadas como julgadores e distribuidores de justiça. É um exercício que, como indiquei acima, ajuda a esclarecer meu esforço por adotar uma postura que rejeite a interpretação nesses moldes (busca de uma verdade). O exercício da analítica deve abandonar a interpretação como busca de compreensão última de algo (deste modo, a busca de uma interpretação pretoriana), uma vez que o pesquisador sempre “(...) prefigura o campo histórico e o constituí como um domínio no qual é possível aplicar teorias específicas” (WHITE, 1995, p. 12), que utilizará para formar seus problemas, suas análises e suas temporárias conclusões. Seguindo este raciocínio, o objetivo deste trabalho constitui-se no exercício de abordar um acontecimento, que se transformou em um tipo relevante, expressado como um problema, que “apropriado” pelo pesquisador é construído através de estratégias metodológicas. Como um caudaloso rio que corre em direção ao oceano, a argumentação de qualquer pesquisador finaliza (pela defesa de uma tese ou publicação de artigo, ou entrevista, por exemplo), na construção de sentidos ao acontecimento estudado. O compromisso do pesquisador deve ser ético na medida em que permite o acesso aos meandros de sua argumentação e escolha metodológica. O aparente solilóquio do pesquisador durante a pesquisa, transforma-se na tentativa de suscitar interesse e discussão

sobre sua construção argumentativa. Essa suscetibilidade só é possível se o pesquisador compreender o seu trabalho como uma construção dentre outras, uma vez que não há leis universais e objetivas que direcionem as práticas dos seres humanos, situação esta bem referida por Rabinow & Dreyfus como “a perturbadora falta de fundamento da maneira de ser...” (RABINOW & DREYFUS, 1995, p. XVIII). Esta tese também se constitui em uma prática discursiva. Como tal é: “... simultaneamente batalha em arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível” (FOUCAULT, 1987, p. VIII). Sem dualismos, sem verdades, mas num esforço enorme em direção a criatividade.



A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS:

em busca das tramas do cotidiano

O mundo social-histórico é mundo de sentidos — de significações —, e de sentido efetivo, mundo que não pode ser pensado como uma simples “idealidade visada”’ (Cornelius Castoriadis, 1992, p. 55)

1. As práticas discursivas: Dizer é dicção: tempo e gestos dos signos que, vivificados pelo sopro da vida, agora concorrem para o exercício do corpo, para o seu despertar. Transmutação em linguagem. Linguagem que age, linguagem que é ação do corpo, dos órgãos, dos sentidos linguagem intensa, tensa... (Laymert Garcia dos Santos, 1989, p. 23)

Ao analisar a construção de discursos relacionados à situação específica de “abuso” sexual, à primeira vista, nos defrontamos com duas possibilidades de investigação: o discurso e a ação a ele relacionada. Trata-se de uma divisão que para uma postura construcionista só pode desembocar em uma dicotomia que dá uma autonomia aos discursos que eles não tem (de serem precursores de uma ação); ou lhes dá uma subserviência a que lhes tira sua força (são posteriores a uma ação). Discurso-ação são indissociáveis e constituem um mesmo processo, que é a constituição de práticas. Essas permitem a veiculação, criação e negociação de sentidos. Quando se afirma que discurso é prática, não estou me referindo a ação de falar, mas as motivações desse falar e suas conseqüências, em outras palavras, no jogo de posicionamentos e estratégias que estão implicados em qualquer enunciado. Portanto, sempre que falarmos de “discursos”, estaremos nos referindo a “práticas discursivas” (SPINK, 1999; DAVIES & HARRÉ, 1990). Em última análise, esta pesquisa visa portanto, situar uma ação (situ-ação): a emergência de um tipo, ou seja, da categorização de uma prática como “abuso” sexual intrafamiliar, categorização se constitui com a atribuição de determinado sentido.

Discurso é ação que se realiza e se torna presença; presença atuante, presença em movimento promovendo agenciamentos, cuja análise é o objetivo do pesquisador: “um discurso” é um conjunto de práticas lingüísticas que mantém e promovem certas relações sociais.

E a “análise” consiste em estudar como estas práticas atuam no

presente mantendo e promovendo estas relações... (RUEDA & ANTAKI, 1998. p. 63).

O discurso é ação que sempre evoca sentidos que lhe estruturam. Isso se complexifica a tal ponto que, os sentidos que se efetuam na tentativa de apreender um acontecimento e terminam por se tornarem inseparáveis dele. Os sentidos produzidos são formas de experimentar o acontecimento e enunciam a condição em que o acontecimento é vivido. Assim, os enunciados, dinamizam as práticas discursivas (Cf. SPINK & MEDRADO, 1999, p. 45). Uma separação entre o discurso e a ação é completamente injustificável sob a perspectiva construcionista.

Não é possível hierarquizar discurso e ação,

como se indicássemos a dupla natureza de um acontecimento, especialmente quando falamos de construção de sentidos que são veiculados ininterruptamente, como práticas discursivas: Podemos definir, assim, práticas discursivas como linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas (SPINK & MEDRADO, 1999, p. 45).

Ao falarmos de construção de sentidos e de práticas discursivas, inevitavelmente devemos falar de linguagem. Diferentemente do exposto acima, pode-se compreender a linguagem como palavras articuladas em frases, que veiculam significados e como uma categoria que media o pensamento e a ação (LANE & CODO, 1984, p. 32, p. 41, p. 42).

Porém, Guardadas as devidas

diferenças, é possível afirmar que nenhum autor na Psicologia Social “brasileira”, advoga como categoria de análise a linguagem, entendida como língua21 e todos crêem firmemente na importância da contextualização da fala para analisá-la. Adotando como categoria de análise as práticas discursivas, procuro me distanciar de uma teoria da linguagem onde: “a palavra ou frase representem 21

“Conjunto de palavras e expressões usadas por um povo” (FERREIRA, 1986, p. 1034).

diretamente o conceito subjacente”

como nas análises de conteúdo (RUEDA &

ANTAKI, 1998, p. 60) e, ao mesmo tempo, basear-me na proposição que, os deslocamentos que foram implementados nas relações sociais agenciados através da visibilidade do “abuso sexual”, são mantidos e promovidos através da linguagem, entendida como práticas discursivas. Desta maneira, evito transformar o trabalho de análise das práticas discursivas em um mero jogo de deciframentos: ... não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas; ele não é cúmplice do nosso conhecimento; não há providência pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos as coisas, como uma prática que lhe impomos em todo caso; e é nessa prática que os acontecimentos encontram o princípio de sua regularidade (FOUCAULT, 1996, p 53).

Procuro estudar a emergência de uma noção22 (“abuso” sexual). O termo em si só interessa na medida em que é instrumentalizado por sentidos, se constitui como práticas discursivas, institucionalizando-se.

Os sentidos são inerentes a

linguagem humana, estruturados em práticas discursivas que assim, buscam regularidade sob a forma de um acontecimento. Ao refletirmos sobre a análise da construção de sentidos é possível compreender melhor a afirmação de que lidamos com “acontecimentos” e nunca com “fatos”.23 Na análise de um acontecimento perde-se a vontade de verdade e a objetividade e ganha-se a pluralidade da experiência humana.

Como um dado

objetivo puro, os sentidos estão para sempre perdidos, mas se compreendidos como construções em relação, veiculados em práticas discursivas, podem ser ativados em análises. Os resultados serão outros sentidos frutos de encontros, desencontros e negociações levadas a efeito pelo pesquisador: “... não uma invenção subjetiva nem uma descrição objetiva, mas um ato de imaginação, análise e engajamento” (RABINOW & DREYFUS, 1995, p. 279). 22

Para evitar concepções metafísicas, preferi utilizar a palavra “noção”, denotando atividade em construção com poder de embate e negociação. Abandono à utilização das palavras “idéia” e “conceito”, em favor da palavra “noção” que, segundo Lalande (1996, p. 733), pode ter o sentido de se opor ao que é conhecido sob a forma de imagens. É nesse sentido que emprego a palavra “noção”, para opô-la a representações do real, objeto da consciência ou pensamento. “Noção” deixa de ser propriedade exclusiva e inerte da mente ou de uma interioridade e se torna parte do processo da ação humana. 23 Discussão realizada na introdução p. 14-15.

Os sentidos são considerados pelo filósofo Éric Weil como uma “presença” (Cf., PERINE, 1987, p. 190). Mas ao contrário de algumas reflexões de Weil, que apontam para a necessidade de nos afastarmos dessa presença para captar-lhe, (afastamento esse que ele chama de “busca de sentido”), essa presença deve ser entendida de maneira mais dinâmica: não podemos jamais ignorá-la mesmo que não seja formalmente submetida à análise uma vez que sempre está manifesta,

com

e

nas

práticas

discursivas

(como

criação/construção

de

acontecimentos). Talvez pudéssemos afirmar que os sentidos se configuram como uma “apresentação”, palavra que em nossa língua permite compreender o caráter dinâmico dos sentidos já que significa: exibir, colocar à mostra, manifestar. Portanto, os sentidos apresentam a ação (apresentação). Essa uma parece ser uma boa metáfora:

alguém ou a algo passa a fazer24 sentido para nós, quando é

apresentado, torna-se uma presença, dá-se a conhecer (independentemente da sua presença física). Não colocaria os sentidos como categoria, como defende Weil (Cf., PERINE, 1987, p. 187). Caso se compreenda categoria como um predicado do que nos propomos analisar, ela será veiculada como “evidência empírica” de um “fato”, a ponto de se tornar “objeto” de estudo. A tentação ao realismo nos levaria a afirmar que os sentidos são atributos de um acontecimento e assim, teriam existência própria independentemente de suas condições de possibilidade. Os sentidos se tornariam “materialidades” dos acontecimentos.

Ao contrário, o sentidos estão

diretamente relacionados às condições que lhe dão possibilidade (matriz), de determinada apresentação/presença (tipo). Essa concepção só é possível de ser articulada em uma pesquisa, se compreendermos os sentidos como constituídos em interanimação dialógica. Portanto, os sentidos se servem por exemplo, da estrutura de uma língua, por meio do discurso, entendido como “... o uso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo lingüístico ...” (SPINK, 1996, p. 03), para criar estatutos que são

24

Evitei o uso do verbo “ter”, para não dar qualquer conotação de uma presença vinda do nada. O “fazer” está imbuído de uma construção, portanto, de uma negociação.

construídos nos nossos vínculos relacionais. Como afirma Spink “a construção de sentidos é uma prática social essencialmente dialógica” (Ibid.), ou seja , “os enunciados de uma pessoa estão sempre em contato, ou são endereçados a uma outra e estes se interanimam mutuamente...” (Ibid., p. 04). A construção de sentidos não tem “mão única”; uma pessoa, individualmente, isoladamente, não constrói sentidos.25 Isto pode parecer óbvio, mas não é tão simples de ser assumido como postura. É necessário recusar a noção cartesiana e ilusória de identidade, de sujeito e de objeto, que opõem uma pessoa à outra e estas aos objetos, de forma linear, unidimensional. Cada uma das pessoas sob este raciocínio, constituem os “objetos” e “fatos” como uma representação26 singular. A perspectiva que adoto no vale-se da noção apresentada por Bakhtin (1995):

os sentidos são sempre frutos de um

processo dialógico; em um enunciado há várias vozes (as pessoas não são lineares). O que alguém enuncia — um discurso — é “interanimado” por outros, que podem ser uma pessoa, um livro, um filme, uma reflexão do próprio enunciador, etc... Constituem-se vozes que são veiculadas com sentidos.27 Não é suficiente dizer que existem várias “vozes” mesmo que em um enunciado emitido por uma pessoa (por isso ter afirmado acima que não é uma postura simples). É importante enfatizar que não são apenas “vozes” uníssonas e unânimes. Há “gritos e sussurros”, semelhanças e diferenças, que se multiplicam sem uma origem bem determinada.28 Lembro aqui, as críticas de Foucault a: ... redução das práticas discursivas às impressões textuais, elisão dos acontecimentos que aí se produzem a fim de reter apenas marcas para uma leitura; intenções de voz atrás dos textos para não ter de analisar os modos de implicação do sujeito nos discursos; a aceitação do original como dito e não dito no texto para não substituir as

25

Aliás, a concepção de “pessoalidade”, de ser pessoa, com toda carga de individualidade que carrega, admitindo experiências sempre interiorizadas e privadas (ROSE, 1996), pressupõe a interação para a formação do tal sujeito. 26 À frente é discutido o conceito de representação mais detidamente (p. 62-64). 27 Vale observar que a concepção de Bakhtin, deve ser utilizada com cautela porque ainda inclui na “interanimação dialógica”, sujeitos. Mas é extremante válida se as vozes, forem consideradas expressões sem dono. 28 Note-se também que sob todos os aspectos há uma dinâmica nos discursos que só favorecem a adoção do termo “práticas discursivas”.

práticas discursivas no campo das transformações em que elas se efetuam (Apud.: ERIBON, 1990, p. 129; grifo meu).

29

A psicanálise se aproxima dessa concepção de construção de sentidos quando questiona a homogeneização de um discurso e busca sentidos nas “falhas” discursivas, que poderiam ser entendidas como outras vozes de uma mesma pessoa sempre dividida, cindida entre

o dito e o não–dito, a consciência e o inconsciente.30 Também no trabalho de pesquisa os sentidos construídos “a partir” dos “dados” ou “sujeitos” pesquisados, é fruto de um diálogo do pesquisador com várias vozes. É essa perspectiva dialógica que permeia esta pesquisa. Não é suficiente falarmos da relação necessária entre o “sujeito” e a “realidade”, mas deslocar uma ordem de saber e de práticas sobre o “sujeito”, mostrando-o como multifacetado e também construído. A “busca” de sentidos, impõe a “escuta” de vozes, e é momento de atividade, de construção. Escutamos o que queremos e o que não queremos. A construção está nessa qualificação do que escutamos, na ordenação de domínios de saberes. São as práticas discursivas, prenhes de vozes, buscando expressão. Outra conseqüência importante desta abordagem: as práticas discursivas deixam de ser vozes de um “sujeito” autônomo que fala, “pinta e borda”, constrói, etc... São articulações sem sentidos fixos, mas que, em função dos limites próprios da nossa sociedade, da cultura, onde não é permitido expressar tudo que desejamos, há interdição (que também são vozes). Aqui as práticas discursivas se revelam como estratégias de poderes: como ordenamentos crescentes em todas as esferas da vida, para agenciar novas formas do existir humano ou perpetuá-las. Nesse aspecto, Foucault é um dos melhores referenciais: “por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo

29

Este trecho só aparece na edição francesa de “História da loucura”. Fiquei tentado a levar a discussão desta cisão entre consciência e inconsciência à frente. Mas neste espaço é desnecessária. Só noto que não compartilho de um aparelho psíquico cindido entre um fora e um dentro, mas de um “aparelho psíquico” (não sei bem se este termo está adequado), que sempre atua em um fora e por ele é formado. Fora: forças sempre abertas, com as quais nada acaba, criadora de formas de existência e resistência a mesmice. Como define Pelbart: “é o não estratificado, o sem-forma, o reino do devir e das forças...” (In: PELBART, 1989, p. 133). 30

rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder” (FOUCAULT, 1996, p. 10). E assim são construídos dispositivos de “governamentalidade”.31 Esta relação das práticas discursivas com a interdição, é muito útil para refletirmos sobre esta pesquisa, que analisa uma prática cuja nomeação está diretamente ligada ao interdito. As construções discursivas em torno dessa prática sexual (em outras palavras, as vozes), não traduz apenas a cultura hegemônica de uma sociedade, mas também uma luta pelo poder ou hegemonia.

Explicando

melhor, as vozes que envolvem o “abuso sexual infantil intrafamiliar”, por exemplo, lutam por soberania de sentido: há um embate pelo sentido mais “adequado”, mais “verdadeiro”, mais “justo”. Poderíamos supor que a interdição é burlada, exatamente em função desse embate, traduzido em desejos e poderes: entra em jogo, por exemplo, a possibilidade de desejar sexualmente (seja genital ou não), uma criança ou um(a) adolescente. São postas em combate as instituições que compõem a matriz do ”abuso”, como: a noção de eu (self), noção de infância, direitos da criança. Misturadas a outras infindáveis: as noções de adulto (que pode “discernir o que faz” e considerar “correta” a relação sexual com uma criança); noções de gênero, homem (viril, racional) e mulher (dependente, intuitiva), etc... Através das práticas discursivas passamos a localizar as vozes que lutam pelo sentido mais “verdadeiro”, mais “adequado”. Esse embate pode ser entendido como “vontade de verdade” (FOUCAULT, 1996, p. 19). Para Foucault, é em função da vontade de verdade que se dinamizam os jogos de desejo e poder: O importante, (...), é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as estâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1985a, p. 12).

Mesmo que as práticas discursivas articuladas, em torno de uma temática, estão para além dela, não bastando que sejam descritos os conteúdos 31

A noção de “governamentalidade” foi discutida na p. 37.

veiculados, mas é necessário analisar as posições ocupadas pelas pessoas que se manifestam, o estatuto que eles mantém, as técnicas e procedimentos que valorizam. Em outras palavras, importam os modos de implicação dos personagens nos discursos (FOUCAULT, 1996). Por isso, devemos insistir na análise das vozes que, mesmo contraditórias, localizam os jogos de desejo e poder, que, em última instância, são finalidade da construção de sentidos. Poder entendido não como algo propriedade que alguns detém em detrimento de outros mas como: Uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter. (...) poder que se exerce mais do se possui, que não é “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas efeito de conjunto de suas posições estratégicas

— efeito manifestado e às vezes reconduzido pela

posição dos que são dominados (FOUCAULT, 1989, p. 29).

As práticas discursivas buscam se inscrevem em uma ordem, criando estatutos diferenciados de expressão comunicativa (valoriza-se tal fala em detrimento de outra). Por isso que, mesmo quando a análise se localiza nas práticas discursivas expressas por alguém, de um texto específico, de determinada pintura, essa singularidade precisa ser relacionada aos seus “modos de implicação”. Como exemplo cito o relato de Wilkomirski (1998), de sua experiência como sobrevivente do holocausto.32 Ele articula uma narrativa que se embaraça com: a) Lembranças de sua infância fugindo da morte nas mãos do nazismo; b) Sua experiência de ouvir na escola o relato de um professor sobre a libertação dos judeus pelos aliados; c) E suas vivências atuais como militante prestando assistência aos sobreviventes do holocausto. Especialmente, quando se defronta com o documentário apresentado pelo seu professor primário, exaltando os aliados que “libertaram” os judeus do nazismo, podemos acompanhar (pressupor ou propor) o movimento de seu discurso: Pelo portão do campo (de concentração), entra um tanque americano (...). O júbilo parecia indescritível. Abraçavam-nos, consolavam-nos e nos beijavam. Via-se comida

32

Esse exemplo é plenamente válido para o que pretendo discutir, mesmo com a revelação, algum tempo depois do livro lançado, de que se trata de um relato fictício.

sendo distribuída, doentes recebendo cuidados (...). E, por toda parte, sempre e de novo rostos felizes pela libertação que vivenciavam. “Libertação!? Mas isso não é verdade! Não, não foi assim! Isso é um engodo! Não foi assim que aconteceu!” ... Estava estupefato. E, no entanto, não estava vendo senão cenas incorruptíveis de um documentário. ... Onde houve libertação? E onde é que eu estava enquanto os outros estavam sendo libertados? Ora, eu estava lá e não vi nada! Não fomos libertados coisa alguma, e ninguém nos trouxe comida, ninguém cuidou de nós ou nos acariciou como no filme. ... Nós simplesmente fomos embora sem permissão! (...) Fugiram (os soldados nazistas) sem dizer uma palavra. E as pessoas do lado de fora, nos campos, na cidade próxima — elas não se alegraram em nos ver. O que fizeram foi nos xingar e dizer: “Voltem para o lugar de onde vocês vieram! Nós achávamos que Hitler tinha acabado com todos vocês nas câmaras de gás! E agora já estão aí de novo” (WILKOMIRSKI, 1998, p. 200-201).

Nesta narrativa prenhe de sentidos para o autor (e para nós que a lemos), é possível verificarmos o diálogo de múltiplas vozes em “uma”: as dos soldados americanos, dos soldados nazistas, do professor, do autor quando criança e de uma infinidade de vozes que até hoje debatem guerra, intolerância, racismo, etc.. Essas vozes coexistem, ainda que antagônicas, misturam-se as nossas vozes de leitores, judeus ou não e às inúmeras outras instituições (criança, nação, direitos, povo, ditadura, etc.). Vozes que se organizam em torno de desejo e poder. Afinal, qual a versão “verdadeira”? Para um pesquisador com referenciais construcionistas essa não é uma questão. Seria melhor perguntar: que vozes buscam expressão nesta narrativa? Em outras palavras: que possibilidades de sentido são construídas neste discurso? Que negociações estão sendo feitas? Que instituições são questionadas ou reforçadas? Que práticas são combatidas? Que práticas são instituídas? O discurso, entendido como prática discursiva, perde seu caráter acidental e passa a configurar um acontecimento e é sobre ele que recai o trabalho de pesquisa da construção de sentidos. Uma conseqüência importante da relação entre a construção de sentidos e um acontecimento, é que a narrativa deixa de ser analisada como estruturada e focalizada em torno de um autor e de um receptor

estáticos, onde o maior movimento detectado é a articulação da língua e o diálogo entre eles, e onde as análises são centradas em tordo de “sujeitos”. Novamente aqui devemos lembrar que os sentidos jamais são fundados por alguém de maneira isolada, muito menos são fruto de “idéias” articuladas na “cabeça” de alguém. Conforme o poeta argentino, Jorge Luis Borges “... toda palavra pressupõe uma experiência compartida” (In: MELLO, 1992, p. 74). A construção de sentidos não é de exclusiva autoria de um “sujeito” que se manifesta. O próprio Borges considera um absurdo (Cf., Ibid., p. 28), mas essa postura deve ser levada a radicalidade de negar a existência do indivíduo que escreve e inventa . Não basta ficar na afirmativa que há um indivíduos que nunca escreve e inventa do nada sozinho e sempre o faz em forma de diálogo, dialogicamente. A

propósito

da

dialogia,

em

termos

etimológicos,

diálogo

é

preliminarmente “a fala entre duas pessoas”, mas também com acepção extensiva a “conversação entre muitas pessoas” (CUNHA, 1998, p. 261-262). Tomando como mote o que diz o dicionário, a construção de sentidos, realizada a partir de vozes, não pode ser analisada somente a partir do contexto “imediato” de uma prática discursiva (poucos ou muitos “eus” em diálogo). Devemos estender o campo da dialogia no espaço e tempo indefinidamente, para um contexto “mediato” (feito sempre por terceiros indefinidos) já que as vozes se estendem formando um sem número de agenciamentos. A construção de sentidos não se atrela às formações discursivas, por mais que as utilizem como veículos, como meio de expressão. Nenhuma linguagem, discurso, narrativa, opinião ou relato, sob que forma for (texto escrito, retrato, outdoor, pintura, gráfico, desenho, comercial televisivo, etc.), contém em si sentidos desarticulados da especificidade de “contextos”, onde interagem as pessoas que fazem uso desses sentidos em suas interações. Estas incluem as vozes de outros reais

ou

fantasiosos,

significativos

ou

não-significativos,

concordantes

ou

discordantes, vozes da cultura onde eles estão imersos e de outras. Novamente podemos verificar que essa concepção de construção de sentidos, implica em abandonarmos o conceito de representação como um retrato de um sentido essencial, ou último. Esse não existe, a não ser como uma finalidade

específica, como vimos acima, como sendo considerada como “vontade de verdade” (FOUCAULT, 1996, p. 14). O

pressuposto

de

um

trabalho

de

pesquisa

que

busca

uma

“representação”, é que há um sentido a ser revelado e para isso é necessário seguir um determinado caminho, como a busca de um núcleo figurativo (Cf. JODELET, 1986). Isso acaba fixando o sentido ao invés de vê-lo constituindo formas em um acontecimento. O conceito de representação mantém uma função restritiva quando busca o sentido murmurado como “dado”, que cresce e se revela na fala de um “sujeito” ou documento. Cria-se um recorte no discurso, que lhe castra a construção de sentidos como instância fundamentalmente criadora e criativa. Restringe-se o lugar do discurso como se ele representasse o pensamento de quem o articula. Esse procedimento amordaça os sentidos construídos no campo relacional imediato. É necessário deixar de privilegiar o foco proposto pelos teóricos das representações sociais, que utilizam o campo interativo apenas para caracterizar onde as representações se movimentam, com finalidade de que as pessoas os utilizem para ordenarem suas ações: ... designa uma forma de conhecimento específico, a saber de sentido comum, cujos conteúdos manifestam a operação de processos generativos e funcionais socialmente caracterizados. Em sentido mais amplo, designa uma forma de pensamento social” (JODELET, 1986, p. 474; grifos meus).

As representações são como um “espelho” de uma dada cultura, implicando em termos de adotar parâmetros de verdade para que uma representação possa ser aceita. E além disso retiram dos sentidos toda a relação com a ação, reatando-lhes uma configuração ideativa, impossível de ser admitida na concepção construcionista. Extremante grave ainda é a noção de conhecimento que vigora sob o representacionismo, que acaba sendo considerado

“... como uma

questão de representações internas — um espelho da Natureza desanuviado e nãodistorcedor ...” (RORTY, 1994, p. 248). Trabalhando sobre outra perspectiva, através da análise de “práticas discursivas”,

Spink

afirma

que

Moscovici

enfatiza

a

dinamicidade

das

representações sociais, localizando-as na mutabilidade da sociedade, em contraste com a construção que a autora privilegia, onde essa mutabilidade está relacionada a

“multiplicidade de narrativas que podem estar presentes nas práticas discursivas” (SPINK, 1995, p. 7). Por isto não adianta buscar um sentido que espelha uma construção social, que age silencioso, encoberto. Os discursos são práticas que buscam hegemonia: “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (FOUCAULT, 1996, p. 52). Em pesquisas sobre da construção de sentidos, não há espaço para o verdadeiro ou o falso, muito menos para concepções que acreditam que os sentidos podem ser “descobertos” através de uma análise “rigorosa”. Sob esta perspectiva o pesquisador desvenda sentidos que já se encontravam lá esperando apenas que um “intérprete” que o revelasse/interpretasse.

Sontag ao criticar a interpretação

afirma: “compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado” (SONTAG, 1987, p. 15). Como o “equivalente adequado” não existe, o sentido ao ser interpretado passa a ser adequado aquilo que acreditamos ser mais verdadeiro, o que permite lidarmos com “fatos” e exclui a noção de acontecimento: o sobrevir de um campo de interação formado por vozes, que inclui quem pretende interpretar o sentido. Sontag ao refletir sobre os críticos de arte nos diz: hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”

“em vez de uma

(SONTAG, 1987, p. 23).

Podemos aplicar esse princípio à construção de sentidos, uma vez que, ela vai além de um significado, de uma representação e desemboca em uma experiência de investimento afetivo (intensidades, sem separar idéias de afetos, de ações). As intensidades de nossos investimentos impedem que haja há um sentido definitivo e único, fazendo com que os sentidos sejam sempre supostos e é isso que lhes dá o caráter de uma construção: Quanto mais interpretamos, menos encontramos os significado fixo de um texto ou do mundo, e mais encontramos outras interpretações. Estas interpretações foram criadas... (RABINOW & DREYFUS, 1995, p. 119-120).

Relembrando, não importa o sentido verdadeiro33, mas os agenciamentos expressos em vozes múltiplas, cúmplices ou não. 33

Os sentidos não estão

Reafirmo aqui a minha posição de incredulidade em relação a qualquer categoria que se pretenda ontológica.

adormecidos esperando serem descobertos, mas são construídos quando pesquisados (no caso presente). Como afirma Spink: “... conhecer é dar sentido ao mundo. Não se trata, portanto, de mera informação, da adesão a uma teoria ou encadeamento lógico de idéias...” (SPINK, 1995, p. 6).

2. Construção de sentidos e tempo: Tempo, tempo mano velho Vai, vai, vai... Tempo amigo seja legal Conto contigo pela madrugada Só me derrube no final Sobre o tempo (JOHN: Banda Pato Fu)

Pesquisar a construção de determinados acontecimentos torna-se imprescindível quando se estuda a construção de sentidos, já que estes não flutuam fora de contextos históricos, mas são frutos de inúmeras negociações que se fazem ao longo do tempo e que permitem que versões determinadas possam ter visibilidade social. Essas reflexões iniciais já nos permitem abertura para dois aspectos importantíssimos:

1) Negociações existem porque as práticas discursivas são

polissêmicas; 2) Conseqüentemente, a polissemia gera verdadeiros embates, ou lutas pela hegemonia de determinadas versões. Polissemia, como bem definiram Spink e Medrado (1999, p. 48), não se trata de um fenômeno lingüístico, de extensão dos significados de uma palavra (polilexia para a lingüística), mas de um complexo fenômeno que articula práticas e sentidos ao mesmo tempo em que permite a cada um de nós participarmos de "versões" diversas de um fenômeno aparentemente igual. Em outras palavras, as pessoas transitam "... por inúmeros contextos e vivenciam várias situações" (Ibid.). É necessário resgatarmos a força ativa do verbo transitar, desfavorecendo a idéia de uma simples passagem de uma situação à outra.

Ao contrário, impõem-se

atividades de elaboração que envolvem recursos como a observação e a busca de enodamento em algum registro já vivido no processo de socialização. Diz respeito a

práticas que já vinham sendo elaboradas coletivamente e as condições de possibilidade de uma pessoa em se apropriar de determinada "versão", em função da convivência, em diferentes níveis, de identificações e “descontinuidades”, advindas de seu processo de socialização34. Essa descontinuidade é extremamente importante porque rompe definitivamente com a noção de uma socialização sem fraturas ou socialização que supera definitivamente fraturas, em vista de um falso ideal de maturidade que advoga maior estabilidade. As pessoas podem até construir sentidos mais ou menos estáveis; mas as descontinuidades persistem, retornam e obrigam os pesquisadores de práticas discursivas que adotam a postura construcionista à especificidade de sempre procurar movimentos de estrutura descontínua nos acontecimentos. Não basta apontar um acontecimento como fruto de situações históricas. Essa obviedade não ajuda muito, inclusive porque pode provocar reflexões que busquem no passado próximo ou remoto, configurações de acontecimentos no presente, evitando a dimensão instável dos acontecimentos no tempo e a irrecuperabilidade da exatidão de sentidos (passados e/ou presentes).

A

perspectiva construcionista ultrapassa esse problema uma vez que, nos permite balizar operações metodológicas que sempre invoquem o confronto de práticas discursivas quando buscamos, nas tramas da história, as construções do que estamos pesquisando. A busca em um tempo passado (longo o mais recente), de práticas relacionadas à temática que pesquisamos é importante, mas não traduz a dimensão de uma pesquisa inspirada no construcionismo social, caso tais práticas sejam incluídas no tempo a partir de uma lógica evolutiva. Por exemplo: poderíamos dizer que sempre houve “abuso” de crianças e pedófilos no Brasil, tendo em vista o tratamento dado aos chamados grumetes, nas embarcações portuguesas: Em qualquer condição, eram os “miúdos” quem mais sofriam (...). Grumetes e pagens eram obrigados a aceitar abusos sexuais de marujos rudes e violentos.

Crianças,

mesmo acompanhadas eram violadas por pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas

34

A respeito da discussão sobre a “descontinuidade” entre sistemas simbólicos no processo de socialização, ver Figueira (1981) e Nicolaci-da-Costa (1985).

e vigiadas cuidadosamente a fim de manterem-se virgens, pelo menos, até que chegassem à Colônia (RAMOS, 1999, p. 19; o grifo é meu).

Procedendo dessa maneira, tentaríamos identificar em um “tempo longo”, o “tempo curto”35 que funcionaria como petrificante das práticas discursivas e, á semelhança de um espelho, se reconheceria no passado recente ou remoto, o lugar de uma vivência virtual do que encontramos nos dias atuais. Não estamos em busca de “elos perdidos” quando nos lançamos à pesquisa no "tempo longo", mas o objetivo é fazer associações, em busca de dispositivos, das condições de possibilidade, das construções de determinadas práticas discursivas que possibilitaram nos tempos atuais.

O “tempo longo” é

importante na medida em que nos permite articular vicissitudes que produziram no passado a possibilidade de algo apresentar determinadas visibilidades no presente. O “tempo longo” traz indicadores de permanência e de desvio de um acontecimento presente. Nesse confronto de tempos há um paradoxo a fundamental para nós: ir a busca do passado para perder o presente, (no sentido de não buscar um acontecimento presente no passado); mas também, ir a busca do passado para achar o presente (no sentido de verificar as suas condições de possibilidade). De todo modo, ir a cata de práticas na história passada, é encontrar vida e movimento no que podia parecer estar morto, tendo a certeza de que as práticas discursivas construídas são sempre fugazes: no momento seguinte da tentativa de normalização, já estão direcionadas para o caos; nunca se estabelecem definitivamente, são inesperadas. São construções a realizadas em um “tempo” que também é um construto. A cristalização das práticas discursivas e está relacionada à crença em um tempo fixo: Hipoteticamente, o tempo pode ser liso ou áspero, espinhoso ou sedoso, duro ou macio. Mas neste mundo, a textura do tempo parece ser pegajosa. Porções de cidades aderem

35

Esses tempos são parte da divisão temporal utilizada nos trabalhos de pesquisa do Núcleo de Psicologia Social e Saúde da PUC-SP: 1) Tempo longo: “marca os conteúdos culturais, definidos ao longo da história da civilização”; 2) Tempo vivido: “linguagens sociais aprendidas pelos processos de socialização”, “corresponde às experiências da pessoa no curso de sua história pessoal”; 3) Tempo curto: “marcado pelos processos dialógicos”,

à algum momento da história e não soltam. Do mesmo modo, algumas pessoas ficam presas em algum ponto de suas vidas de não se libertam (LIGHTMAN, 1998, p. 60).

O segundo ponto que levantei no início deste item — a luta pela hegemonia de versões — vêm exatamente permitir o que acabei de apontar como um paradoxo essencial. O mito é pesquisar a história como contínua. O que digo parece uma banalidade, contudo marca um investimento do pesquisador que não se esgota na revelação sempre polissêmica do que ele investiga, mas que busca evidenciar a coexistência de ambigüidades, os combates derrisórios, onde a instabilidade das práticas discursivas apareça na análise proposta pelo pesquisador. Assim, cabe ao pesquisador com seu trabalho de investigação, indicando construções (“posições estratégicas”), assinalando momentos de visibilidade social de um acontecimento e seus sentidos (“efeito de conjunto”), com sua prodigalidade, nunca deixar de marcar, que os sentidos que tomam visibilidade na sociedade, se originam em embates por hegemonia (“verdade” de um saber), e são sustentados por construções específicas.

2. Memória e construção de sentidos: ... mesmo que se tratasse do passado, era um passado que mudava à medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado ... (Ítalo Calvino, 1993, p.28.)

É comum pensarmos a temática memória imediatamente relacionando-a com uma experiência íntima e como um momento já vivido e por isso fixo, imutável. Não é essa a proposta sustentada em uma perspectiva construcionista.

“refere-se às interações face-a-face, em que os interlocutores se comunicam diretamente” (Cf., SPINK & MEDRADO,1999, p. 51-53).

Poderemos entender memória como fez Freud, na concepção de Derrida, com a criação do termo facilitação (Bahhnung).36

A memória é completamente

destituída de um valor unicamente psíquico para transformar-se em uma "abertura de caminho" (facilitação) (NASCIMENTO, 1999, p. 168). Deixa de ser um conceito em si para se revelar como uma facilitação ou "abertura de caminho". Desta feita, a memória nunca é a presença plena de uma experiência, entendida como um retorno ao mesmo; é sempre uma re-significação de experiências; sempre essa abertura á possibilidades de sentidos. Uma das conseqüências da investigação freudiana foi a de subtrair a memória do conceito tradicional que a pensaria como um simples ‘reservatório’, onde se depositariam conteúdos substantivos, os quais de modo mais ou menos regular retornariam à consciência. Longe disso, a inscrição psíquica só é compreensível (...), a partir de um campo de forças em tensão” (NASCIMENTO, 1999, p. 168).

A “abertura de caminho” é produzida por uma correlação de forças, que se constitui em um processo que permite falarmos de memória. Para o ser humano esse é um processo vital que impede o retorno ao não cultural e que afinal lhe desestruturaria por completo e lhe remeteria a uma espécie de “in-consciência natural”. Nos ermos em que estou propondo entender memória, “recordar, elaborar e repetir” (parafraseando Freud), são parte de um processo único, onde recordar e elaborar, já são a memória como um processo de construção de sentidos, e o repetir, significando não o retorno de conteúdos do passado, mas a continuidade do processo de vivenciar as possibilidades humanas da experiência de si com o mundo. Nunca seria um repetir a mesmice da experiência. Os exemplos podem ser bem variados para o uso da memória como repetição, com a função de negar a multiplicidade de sentidos, sendo invocada sempre como uma experiência plena, única, derradeira e fundamental. Um exemplo, é o uso moralista de conceitos, em escolas de ensino “tradicionais” visando a não variabilidade de regras (“isso é assim, porque sempre foi assim”). Em outro caso, o uso da memória na clínica psicológica ou psicanalítica como um lugar de segredos, 36

Utilizo-me aqui das reflexões desenvolvidas por Evando Nascimento, em “Derrida e a literatura.”

ou seja de algo já sabido que apresenta dificuldades para ser elaborado, porque são temidos os sentidos que evoca. Nos dois casos a memória está intocada esperando uma revelação. A discussão sobre a memória abre possibilidades de reflexão as mais diversas.

Em função deste trabalho de pesquisa retomo a discussão agora

procurando estabelecer a correlação entre memória e construção de sentidos. Memória e construção de sentidos se tocam tão intimamente que não nos permite definir suas fronteiras: não temos memória sem construção de sentidos, não temos construção de sentidos sem memória. Isso se aplica á vida humana em geral. Relaciono memória a construção de sentidos para destituí-la da concepção de ser um conteúdo guardado, quase que intocado, a espera de uma descoberta. Como lembra Nascimento, deixamos o campo do “naturalismo” bem como de uma “fenomenologia” ao nos referirmos ao conceito de memória. Abandonamos o "naturalismo", onde a memória é um reservatório de recordações possíveis, e passamos a verificar que é na tensão entre possibilidades de sentidos que a memória “emerge”. Também abandonamos o campo de uma “fenomenologia” da memória, porque perde importância uma possível relação direta com a “consciência” do fenômeno e ganham relevância para a análise, as forças/versões de sentidos que agenciam um acontecimento. Muito mais que o conteúdo em si, importam as forças, se quisermos, as vozes de sentidos que lhe favorecem a “emergência” como um acontecimento que alegra, entristece, dá raiva, etc... Sob este aspecto: Toda interpretação é determinação do sentido de um fenômeno. O sentido consiste precisamente numa relação de segundo a qual algumas agem e outras reagem num conjunto complexo e hierarquizado (DELEUZE, 1985, p. 21). Nunca encontraremos o sentido de alguma coisa (fenômeno humano, biológicos ou até mesmo físico) se não soubermos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou nela se exprime. Fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mais um signo, um sintoma que encontra seu sentido numa força atual. (NIETZSCHE, Apud.: NASCIMENTO,1999, p. 168).

A memória como elaboração das experiências vividas é uma construção de sentidos sempre atemporal, uma vez que se presentifica ou se inscreve em uma cadeia de acontecimentos irredutíveis a um só tempo. O passado é re-significado no

presente. Aí se verifica a impossibilidade de “recuperar”, pela memória, o que foi vivido, mas na relação de forças passado-presente temos acesso aos sentidos incessantemente produzidos e isso pode ser chamado de “vivido” (uma presentificação não atrelada a espaço e tempo, mas com referência a eles). Nenhum acontecimento retorna á elaboração em estado puro, restando “apenas” a tensão entre passado (ausência de uma presença) e presente (presença de uma ausência). De todo modo, os efeitos da construção de sentidos são imprevisíveis. Assemelham-se a viagem de uma garrafa jogada no oceano com uma mensagem cuja imprevisibilidade se dará em função do enfrentamento de inúmeras forças: das correntes marítimas, dos ventos, quiçá do encontro com algum monstro marinho. Interagindo com essas forças, a garrafa encontrará um porto, marcada pela viagem (tempo), com determinada visibilidade. A viagem continuará (ou começará e em outras paragens), no embate de forças já em terra. Já que a metáfora e inclui viagens oceânicas, lembro aqui das palavras de Aronnax (do clássico: Vinte mil léguas submarinas), que diante do encalhe do Nautilus às proximidades de uma praia tropical, resolveu explorar suas riquezas: “Professor, a caçada ainda não acabou; aliás, ainda nem começou. Tenha um pouco de paciência” (VERNE, s.d., p. 89). A viagem-memória não tem espaços demarcados tão claramente (iniciais, intermediários, finais). A viagem-memória só tem espaços virtuais (sentidos-força buscando expressão).

3. As práticas discursivas sempre dispersas, múltiplas: a infinita construção de sentidos O jornalista Damazio, ao discutir sobre a crítica literária, afirma que o discurso sofre de um desgaste em virtude de sua multiplicidade: “Disperso em múltiplos meios, assolado pelos engodos ideológicos e perdido no cipoal do jargão científico o discurso se tornou um clone bastardo. Nem sequer paródia, mas pobre arremedo” (DAMAZIO, 1999, p. 23). Talvez o que esteja ocorrendo (e sempre

ocorreu) é mais do que um desgaste:

uma pluralidade de possibilidades de

expressão. Ao contrário do jornalista e após as discussões a realizadas acima sobre a construção de sentidos, podemos compreender que o discurso sempre será múltiplo, mesmo que aparentemente saia de uma só boca e se constitua em uma só voz. E sempre será assolado, destruído e construído, agonizante e ressuscitado, por quem quer que “queira” lhe dar “um” ou “o” sentido. Que dizer então daqueles que pesquisam a construção de sentidos expressa através do discurso escrito e/ou falado, da imagem? Também multiplicam ao infinito os sentidos e o jogam no “cipoal científico”, pela linguagem e modosmetodologia que empregam. Devem re-inventar metodologias e já aí “assolam” os discursos. Mas o problema não é esse. A linguagem e a metodologia que usam, criam obstáculos quando se cristalizam “ad eternum”. Efetivamente a pesquisa de construção de sentidos, deve levar em conta o confronto incessante com as possibilidades do discurso, da palavra, ao serem expressos no tempo, na história. Pesquisas pertinentes à fugacidade dos sentidos diante das infindáveis interações que proporcionam ao serem construídos, ao se constituírem em uma língua, ao se tornarem produtores de imagens, formadores de conceitos, sons. Vale lembrar a fugacidade dos sentidos quando o pesquisador confronta passado remoto e/ou recente com a visibilidade presente do que está pesquisando, na busca de re-arrumar este material com a sua interpretação, análise, com seu olhar e seus referenciais. No trecho a seguir, Damazio se refere ao trabalho de um poeta, mas poderíamos nos referir ao pesquisador que trabalha explicitamente com a construção de sentidos: O ato solitário do poeta diante da página em branco, o mistério insolúvel da relação entre o verbo e a realidade dos objetos, o princípio ontogenético da significação, a obsessão em traduzir numa imagem concreta e definitiva o instante efêmero de um sentimento, ou a reflexão, o ardor em fazer com que a palavra se torne gesto, ... (DAMAZIO,1999, p. 23). Realizando uma comparação com o trabalho do pesquisador, poderíamos pensar que o mistério da relação entre o verbo e a “realidade” que ele pretende expressar é insolúvel, só repercutida em fragmentos. Mas está longe de ser um ato solitário, a não ser na sua aparência (na medida em que quem escreve e relata é o pesquisador). Com suas reflexões emaranham-se a dos autores de sua referência e aqueles que critica, discorda, pretende “superar”. Atravessa seus escritos essa mais do que obsessão, necessidade e desejo humano de traduzir suas experiências. Nessa tradução o que conta mais

do que uma descrição, é a vivência de um acontecimento que no seu encontro com o pesquisador é singular, ao mesmo tempo em que se torna irredutível a esse encontro quando declarado através de suas comunicações ou publicações. É irradiante ao infinito.

Não há possibilidade de aprisionar sentidos, seja em uma pintura, poesia, foto, artigo, música, filme ou tese; pelo contrário, essas expressões desencadeiam movimentos, ritmos circadianos, próprios da relação de cada um que delas se aproximam para sentí-las pela observação, pela passagem de seus olhos, suas mãos, seus ouvidos, as posturas, “caras e bocas” que são provocados na leitura. A própria palavra se torna gesto para o pesquisador. A construção de sentidos, amiúde, se realiza para além de um método, ainda que, na pesquisa seja por ele marcada. Caso contrário, seguindo o mesmo método sempre encontraríamos as mesmas “interpretações”. A função do método é exercer essa marca, pontuar direções seguidas, caminhos percorridos em detrimento de outros, apontar escolhas de percurso. Isso não é pouco e por isso não se resume a indicar que foi usado lápis, papel ou gravador. É o momento fundamental onde o pesquisador aponta por onde o seu objeto de pesquisa o seduziu, destituindo-se da onipotência de ter sido escolhido. É o momento em que o pesquisador não “fiscaliza” o acontecimento e este se impõe. Isto é muito interessante na medida em que indica: ao nos colocarmos a “apreciar” o que queremos pesquisar como se houvesse uma contemplação primeira do pesquisador, já a fomos apanhados de surpresa pelo aconteceu que nos está seduzindo.

Este momento abriga o acontecimento em práticas discursivas,

ultrapassando sempre a vã tentativa de vê-lo “tal como ele é”.

A partir desse

encontro (pesquisador/acontecimento), haverá fluxos de construções inacabadas, não por serem incompletas, mas pela sua “imensidão íntima”37

que escapa a

análise com minudência.

4. Arqueologia do cotidiano

37

Tema de um capítulo de uma das obras mais importantes de Bachelard, onde ele desenvolve reflexões sobre a imaginação poética: “A poética do espaço”.

A menção ao cotidiano e arqueologia merece uma breve reflexão, que se manteve de alguma forma presente nas discussões desenvolvidas. Começo pelas reflexões sobre o cotidiano. Uma pesquisa sobre a construção de sentidos também é inseparável de uma pesquisa sobre o cotidiano, seja ele remoto ou recente. Entenda-se o cotidiano como o momento de relação e produção de práticas discursivas, portanto são momentos que se efetuam em espaços de criação diversos (academia, bares, dentro de um ônibus, textos e imagens na mídia, galerias de arte, museus, músicas, danças...). Construção de sentidos e cotidiano estão conjugados na medida em que rompermos a noção de cotidiano como o lugar do usual, do habitual, quase como um momento banal e desqualificado: “lugar da rotina e, do hábito, do espontâneo, do desempenho automático de papéis” (SAWAIA, 1996, p. 87). Cotidiano definido em contraposição a um não comum, não organizado, não rotineiro, etc. Ao contrário, devemos definir o cotidiano como espaço de vivência de práticas, lugar de efetuação e construção de sentidos. O que se faz cotidianamente é construir sentidos, mesmo que não seja percebido como um hábito (e nem poderia ser percebido como tal porque vai além de um hábito, algo mecânico, para tornar-se possibilidade de vida humana). O cotidiano é um plural: espaços de argumentação, de negociação de sentidos. Podemos até dizer, como fazem Berger & Luckmann (1985, p. 39), que o cotidiano está organizado em torno do aqui e do agora do nosso presente, o que é bem diferente de dizer que está fixado a presentificações. Nesse aspecto Sawaia, aponta que “o presente traz marcas de diferentes temporalidades” (SAWAIA, 1996, p. 88); a “temporalidade do cotidiano é tridimensional: passado, presente e futuro” (Ibid., p. 89); “O passado está nos instantes do cotidiano” (Ibid., p. 89). Vimos acima (p. 67) que na perspectiva construcionista adotada no Núcleo de Psicologia Social e Saúde da PUC-SP, também cruzam–se tempos. Ora, o fato de estar atravessado por inúmeros tempos já lhe favorece a imprevisibilidade, especialmente se entendermos o cotidiano como espaço vital. Daí, é impossível achar que é o lugar da rotina e que seu processo fundamental é a previsibilidade.

Fazer movimentos repetitivos como os descritos na música de Chico Buarque (“todo dia ela faz tudo sempre igual”), não quer dizer que o cotidiano é mesmice, mas que no cotidiano há sim espaço para o mesmo, para a repetição, para a cristalização e institucionalização de práticas. podemos restringi-lo a isso.

Sublinho entretanto, que não

O cotidiano é o “estar sendo”. E leva também a um estranhamento, que questiona a mesmice: — Então se estranhou a si própria e isso parecia levá-la a uma vertigem. É que ela própria, por estranhar-se, estava sendo. Mesmo arriscando que Ulisses não percebesse, disse-lhe bem baixo: Estou sendo... (...) Ele examinou-a e por um momento estranhou-a, aquele rosto familiar de mulher. Ele se estranhou, e entendeu Lóri: ele estava sendo. Ficaram calados como se os dois pela primeira vez se tivessem encontrado. Estavam sendo (LISPECTOR, 1993, p. 83).

Em relação à arqueologia, a discussão está relacionada à metodologia empregada na análise de práticas discursivas. Assim, é importante que fique claro não se tratar de uma exegese mas da arqueologia do cotidiano. Desta feita, o mais importante não é a emergência de uma palavra em si, mas o seu entorno:

a 38

emergência de regras, profissões, instituições, organizações, que lançam novas práticas discursivas.

Foucault ao se referir ao estudo das práticas discursivas, indica qual o ponto fundamental de seu trabalho arqueológico: não é a estrutura da linguagem, ou a construção de regras formais que o constituem como uma língua, não é a busca de um sentido geral; o que deve ser analisado nas práticas discursivas, são as “condições de existência” de um acontecimento (Cf., FOUCAULT, 1991, p. 5960).

Não interessa capturar um sentido verdadeiro escondido, a intenção não

aparente, obscura, um “sub” alguma coisa, ou seja, não pretende uma exegese, mas uma arqueologia.

Importa sim para o trabalho, verificar que sentidos são

construídos para que isso se constitua necessariamente como uma prática cotidiana, sentidos que são ordenados através de regras práticas, que devem ser pesquisadas: o que se pode e o que não se dizer? Como é posto em circulação? Entre que grupos? Como se registra? Que expressões são consideradas como válidas? Quais os discursos são importados de outras épocas para justificar práticas presentes?... (Cf., FOUCAULT, 1991, p. 59-60).

38

O novo aqui está relacionado com o momento de visibilidade social e não com uma determinada data.

São válidas as críticas, como as de Kendall & Wickham (1999), que vão em direção ao uso dos escritos de Foucault para o estudo da cultura como “estudos de sentidos”. Nesse caso, os autores se opõem ao uso do termo “sentidos”, de forma completamente diferente da que é feita neste trabalho. Criticam os estudos que se propõe a encontrar um sentido profundo, que estava encoberto e também as generalizações

que

não

levam

em

consideração

as

especificidades

dos

acontecimentos estudados (Cf. KENDALL & WICKHAM, 1999, especialmente o quinto capítulo, p. 116-142). Interessa então na análise de práticas discursivas os seus contextos de produção (peculiaridades de uma época e de uma cultura), e os instrumentos e as estratégias que são criadas para lhes dar sustentação e visibilidade social (instituições,

leis,

práticas

profissionais,

sanções,

governos,

organizações,

levantamentos estatísticos, etc). Constituem “dispositivos”, ou seja, mecanismos e instrumentos que revelam uma disposição, uma direção. As formações discursivas, os enunciados, se constituem também em dispositivos. A cartografia do cotidiano permite captar o que se pode dizer/fazer e como se pode dizer/fazer, constituindo instrumentos para um “território discursivo” (FOUCAULT, 1991, p. 59).

Arqueologia do cotidiano A CONSTRUÇÃO DE UM ACONTECIMENTO

Formações lingüísticas de suporte e produção

Organizações de suporte e produção

Discursos, textos, imagens... Mídia, escolas, profissões, eventos científicos...

As

condições

de

existência

de

um

acontecimento

constroem

possibilidades de compreensão, introduzem e retiram temáticas a serem discutidas e, ao mesmo tempo, institucionalizam ações, geram dispositivos de suporte e legitimação.

Por outro lado também, muitas vezes com menos visibilidade,

trabalham movimentos questionadores das institucionalizações, sobre os quais se sustentam negociações. As práticas discursivas, como bem detalhou Foucault, evidenciam um conhecimento guiado por um “olhar”, que é um olhar mutante, não é redutor mas “fundador” (FOUCAULT, 1998, p. XIII), de experiências que se revelam em relação às disposições que apresentam em face de outras tantas experiências. O trabalho arqueológico trata as práticas discursivas: (...) não como núcleos autônomos de significações múltiplas, mas como acontecimentos e segmentos funcionais formando pouco a pouco, um sistema. O sentido de um enunciado não seria definido pelo tesouro de intenções que contivesse, revelando-o e reservando-o alternadamente, mas pela diferença que o articula com os outros enunciados reais e possíveis, que lhe são contemporâneos ou aos quais se opõe à série linear do tempo (FOUCAULT, 1998, p. XVII).



Caminhos e atalhos: possibilidades de investigar o que é disperso

Quem acha vive se perdendo (Noel Rosa/Nadico: Feitio de Oração)

1. Pressupostos metodológicos: No capítulo introdutório refleti sobre os empecilhos à construção do conhecimento a partir da perspectiva construcionista. Esta discussão será retomada para tratar dos caminhos percorridos e dos atalhos que foram abertos na construção da pesquisa.

Os empecilhos podem ser

resumidos a partir de duas conclusões de Ibáñez em relação à tentativa “ingênua” da Psicologia constituir seu campo: Primeira ingenuidade: a crença que existe uma realidade independente de nosso modo de acesso à mesma. Segunda ingenuidade: crer que existe um modo de acesso privilegiado capaz de nos conduzir, graças à objetividade, até a realidade como ela é (IBÁÑEZ, 1993, p. 110).

Completa: Cremos que se podemos representar, nomear, conhecer os objetos do mundo, é porque já estão aí e porque pré-existem a sua representação e ao ato de nomeá-los. Mas isto não é assim. E o que tomamos por objetos naturais não são senão objetivações que resultam de nossas características, de nossas convenções e de nossas práticas. Essas práticas de objetivação incluem, por suposto o conhecimento, científico ou não, as categorias conceituais que temos forjado, as convenções que utilizamos, e a linguagem na qual se faz possível à operação de pensar (Ibid., p. 112).

Ainda caracterizada

sobre como

a

objetividade

“objetivações”),

(questionada Gergen,

afirma

por

Ibáñez

que

é

e

uma

conseqüência retórica de uma determinada maneira de construir o saber científico:

(...) a objetividade não é inerente nem ao funcionamento mental particular do científico, nem a capacidade do científico para retratar a natureza com exatidão; trata-se primeiramente de uma conquista científica que se baseia na metáfora mecanicista do funcionamento humano.

(...) [que] tem uma

enorme força retórica nos fazeres contemporâneos (GERGEN, 1996, p. 209).

Seguindo o enfoque mecanicista do funcionar humano, ser objetivo é “dar conta de uma representação exata ou correta”; trata-se de uma conquista textual (GERGEN, 1996, p. 215). Discutir os aspectos metodológicos da pesquisa, muitas vezes, significa

oferecer

os

parâmetros

sobre

os

quais

se

busca

uma

“objetivação” da “realidade”. Porém, depois das discussões nos capítulos anteriores, já podemos concluir que um dos pressupostos metodológicos fundamentais ao trabalho construcionista é: não há realismo possível de ser representado por nenhum tipo de investigação ou análise, uma vez que todas as relações que mantemos dentro e fora do trabalho de pesquisa

estão

permeadas

por

práticas

de

poder

e

resistência,

negociações ativamente construídas por diversos protagonistas do debate cientifico e por outras expressões de saber. Todas essas discussões foram retomadas para refletir sobre metodologia, porque se abandonamos os empecilhos e ingenuidades advindas de um conhecimento objetivo, também devemos construir metodologias que sigam este caminho. abandonar perguntas como: objetivar a realidade?

Assim, primeiro teremos de

Quais os procedimentos escolhidos para

Não vamos “objetivar” a “realidade”, pois essa

perspectiva recairia em um conhecimento que espelha o mundo. Mas não escapamos de oferecer uma versão aos acontecimentos, cujo predicado “científico” é tornar públicos os critérios utilizados para as caracterizações do que é pesquisado e para o desenvolvimento de determinadas afirmações;

possibilitar o conhecimento público das atividades que

constituíram o trabalho de pesquisa: convenções retóricas e atividades de

busca e escolha do material sobre o qual nos debruçamos para oferecer uma versão da circulação e agenciamentos do que foi escolhido como assunto-problema. Sendo assim, a lida com documentos, por exemplo, não é um trabalho de interpretação de textos, exegese, mas de construção das negociações realizadas em torno do material que está sendo utilizado. Segundo Gergen, é “reduzir o impacto totalizador da voz singular” do pesquisador, ampliando “o número de diálogos” nos quais o leitor e pesquisador podem participar (GERGEN, 1996, p. 228). Quando da discussão no capítulo anterior da construção de sentidos,

concluímos

que

não



práticas

discursivas

retilíneas

e

homogêneas, sem vozes contraditórias, sem jogos de negociação. Portanto, a metodologia deve favorecer a emergência das condições de possibilidades e os agenciamentos dessas práticas discursivas. Eis o problema: como fazer isso? E como fazer isso se levando em conta o material específico que será “fonte”39 da pesquisa? Recolocando essa última pergunta, fundamental para as reflexões metodológicas com base na concepção construcionista: Como desenvolver pesquisa sobre práticas discursivas se elas envolvem discursos sempre dispersos? Como afirmou Foucault: “os discursos40 devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” (1996, p. 52-53). Um tema pode se encontrado em diferentes práticas discursivas, do mesmo modo que uma única prática discursiva produz temas variados. Elas não têm princípio de unidade. Daí

39

Ver observação à p. 36.

40 Foucault utiliza a palavra “discurso”,

mas não há contradição com o uso de “práticas discursivas”. Pelo contrário, mesmo utilizando a palavra “discurso” como FOUCAULT, 2000, p. 135) não a dissocia de práticas. Podemos verificar isso em vários trechos de “A arqueologia do saber” (p. ex., p. 151, 159, 193). Roberto Machado inclui uma citação de Foucault bem esclarecedora: “... a arqueologia não faz análise de palavras, signos (...), nem uma análise das próprias coisas, objetos da experiência, designados pelas palavras. O discurso é um conjunto de regras dado como sistema de relações. Essas relações constituem o discurso em seu volume próprio, em sua espessura, isto é, caracterizam no conjunto de enunciados (

como prática. Considerar o discurso como prática, ‘prática discursiva’, significa defini-lo como ‘(...) um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram

(...) as condições de existência da função enunciativa” (Apud., MACHADO, 1982, p. 171); grifos meus).

analisá-las como pura dispersão (FOUCAULT, 2000, p. 140; MACHADO, 1982, p. 162). A dispersão das práticas discursivas favoreceu a construção de métodos que se mantiveram em contraposição com a antiga dualidade entre pesquisa qualitativa e pesquisa quantitativa.41 Buscam mais do que uma análise simplesmente metódica-monista (onde a relevância de um tema é avaliado pela sua freqüência ou sua suposta importância e visibilidade no contexto social), procurando o que Foucault chamou de “regras de formação”: “... devem explicar como os discursos aparecem e se distribuem no interior do conjunto” (MACHADO, 1982., p. 163). Esse posicionamento metodológico, pode ser apresentado por intermédio

de

duas

expressões

importantes:

a

“construcionismo” e a “arqueologia” foucaultiana.

perspectiva

do

São posicionamentos

convergentes como fora mostrado no capítulo introdutório e no capítulo sobre a construção de sentidos. Nesse momento, a discussão se guiará pela possibilidade de fazê-las convergir no trabalho de escolha do material a ser pesquisado e sua análise. Da “arqueologia” foucaultiana, importa especialmente, a postura de

buscar

descontinuidades,

rupturas

e

resistências

nas

práticas

discursivas, que neste trabalho são buscadas em documentos. Também, a

tentativa

constante

em

mostrar

que

os

saberes

produzidos

e

reproduzidos nas práticas discursivas sempre estão articulados e interrelacionados e também são veiculados cotidianamente.

Não devem ser

analisados com se estivessem sendo submetidos a um julgamento como saberes superiores ou inferiores do ponto de vista moral.

E por fim,

importa a crítica de progresso na construção dos saberes, sem a qual o pesquisador pode ser levado a tarefa sempre impossível de buscar as exatas origens de um acontecimento. Esta crítica impulsiona a pesquisa

41

Discutidos por: BOGDAN & BIKLEN (1994) e também por ALVES-MAZZOTTI & GEWANDSZNAJDER (1998).

na busca de práticas discursivas que funcionem como dispositivos políticos de poder.

Dito de outra forma, em vez de buscar as origens últimas,

buscar a emergência de condições que possibilitaram tais ou quais práticas discursivas: ... é, em última análise, explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, (...) imanentes a eles

 pois não se trata de considerá-los como efeito ou

resultante  [mas de situá-los] (...) como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente política (MACHADO, 1982, p. 187).

A “arqueologia” favorece uma postura “construcionista”, uma vez que, para esta última, as práticas discursivas não são possessão de um indivíduo, mas fruto de negociações sociais.

Nesse caso, o trabalho de

pesquisa referente às práticas discursivas se relaciona principalmente com a construção do processo pelo qual pessoas descrevem, expõem ou avaliam o mundo.

Esse processo de compreensão e posicionamento no

mundo, “... é resultado da atividade, de iniciativas de cooperação de pessoas em relação” (GERGEN, 1985, p. 267). Desta forma, é inevitável que as pesquisas inspiradas na perspectiva construcionista mergulhem em bases culturais e históricas buscando as mais variadas formas de construção do mundo (Ibid.,

p. 267

). Por isso, são rechaçadas pesquisas que busquem na

história somente repetições. Pelo contrário, são incentivadas a procura de lacunas: o que difere, situações que se encontrem “à margem” do que é mais aceito ou comum.

São estas situações que fazem parte de um

mesmo contexto em disputa. Para o trabalho de pesquisa desenvolvido aqui, a aliança entre as perspectivas construcionistas e foucaultianas é valorosíssimas, pois os documentos pesquisados, são tratados como concernentes a um contexto histórico de disputas e por isso agenciam, posturas de governo de si e de outros, posturas que se debatem em busca de expressão e hegemonia. Interessam: “... as formas de linguagem que atravessam a sociedade, os

meios pelos quais são negociadas e suas implicações para outras classes de atividade social” (GERGEN, 1985,

p. 270

).

Além das possibilidades que o trabalho de pesquisa tem, a metodologia indica seus limites, ou seja, foram realizadas escolhas teórico-metodológicas que fornecem as guias para as análises.

Toda

escolha limita, mas abre possibilidade para a caminhada prosseguir. Sem as escolhas, só resta a in-decisão, que surge como indicativo que existem multiplicidades, que origina o testemunho precioso de uma escolha ou desemboca na procura de indícios do mesmo, peculiar aos testemunhos verdadeiros, inoportunos a qualquer pesquisador.

Os “atalhos” usados

para chegar aos documentos também não foram fortuitos:

foram

percorridos caminhos já abertos por bibliotecas (algumas virtuais), retraçados pelo pesquisador, conforme suas perspectivas e interação com o material pesquisado.

E por fim, o tratamento dado aos documentos

selecionados também que impõe limites de escolha e, nesse caso, alinhase ao procedimento desenvolvido por Spink,42

que consiste em

desmapear práticas discursivas a partir da escolha de temas (abordado à frente no item “As análises”).

2. Os mananciais: A pesquisa sobre as condições de possibilidade do “abuso” como um tipo, foi construída especialmente sobre documentos escritos, mas também

houve

entrevistas

fotográfico e filmográfico.

com

especialistas,

análise

de

material

A caracterização dos documentos foi feita no

capítulo introdutório (p. 40-45), como documentos de domínio público e de três tipos: governamentais, organizacionais e acadêmicos.

42

Passo a

Adotado por mim em outra pesquisa: PIMENTEL MÉLLO, Ricardo. A representação social dos direitos de exploração e uso do solo: um estudo

psicossocial da violência na região sul do Pará. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1994.

caracterização dos especialistas entrevistados e depois a localização dos locais onde os documentos foram obtidos. 2.1. Entrevistas: Foram realizadas entrevistas com pessoas que se constituem como referência na discussão da problemática do “abuso” sexual infantil intrafamiliar no Brasil: pelas publicações a respeito; por estarem à frente de organizações que também se tornaram referência, já que mantêm cursos

de

formação

de

outros

profissionais

e/ou

atividades

de

acompanhamento social e clínico e ainda, por manterem eventos periódicos onde é discutida a temática do “abuso” e onde são debatidos os trabalhos que desenvolvem.

Visou uma maior contextualização das

condições de possibilidade da emergência do “abuso” no Brasil, os debates que favoreceram isso e suas perspectivas.

Também para enriquecer o

quadro de acontecimentos nacionais em relação ao “abuso” (Anexo ?). Os antropólogos geralmente caracterizam esses especialistas como “informantes”.

Latour & Woolgar lembram que esses informantes

devem ser “... certamente informantes privilegiados, mas de quem sempre se duvida”

(LATOUR

& WOOLGAR,

1997,

p. 19-20

).

Essa perspectiva foi

adotada: a informações colhidas, não são tomadas como verdades factuais, mas como versões de acontecimentos. Foram realizadas duas entrevistas, com dois “informantes”. Todas individuais, realizadas através de perguntas abertas com a temática do “abuso”, com o foco em acontecimentos brasileiros: quais a primeiras reuniões científicas, as motivações, o que/quem estimulou a realização; quais

os

primeiros

profissionais

a

se

interessarem

organizações que surgiram; serviços que surgiram.

no

assunto;

Foram registradas

com o auxilio de gravador e fita cassete, bem como, anotações auxiliares realizadas no decorrer da entrevista. Não foram transcritas porque o uso delas foi apenas informativo ou seja, não foram utilizadas para “análise de

discursos”.

Os “informantes” não foram identificados, primeiro porque

pediram isso e também porque não havia motivo para tal. As informações colhidas nortearam um pouco que organizações buscar documentos e que documentos

ainda

poderiam

pesquisados.

Facilitaram

muito

a

identificação dos eventos nacionais relacionados à discussão do “abuso” infantil. 2.2. Localização dos documentos: Os documentos foram escolhidos após inúmeras consultas diretas (pessoalmente) e via on-line, em bibliotecas especializadas, banco de dados, organizações governamentais e não–governamentais e também a partir das entrevistas com especialistas. a) Consulta direta realizada em Bibliotecas: 

Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.



Bibliotecas da Universidade do Estado de São Paulo: do Instituto de Psicologia, de História, de Educação, Filosofia, Faculdade de Medicina, Faculdade de Saúde Pública.



Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ (Rio de Janeiro/RJ)

b) Consulta on-line realizada em Bibliotecas: 

Biblioteca da Câmara Federal em Brasília.



Biblioteca do Senado Federal em Brasília.



Biblioteca da Universidade de Brasília.



Biblioteca da Universidade Federal do Rio de Janeiro



Biblioteca da Universidade Estadual do Rio de Janeiro



Biblioteca da Universidade Federal da Bahia



Biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

c) Consulta on-line realizada em órgãos governamentais: 43 

Ministério da Justiça (Brasília/DF).



Conselho

Nacional

da

Criança

e

do

Adolescente



CONANDA

(Brasília/DF). 

Rede Nacional de Informações sobre Violência Exploração e Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes – RECRIA (Brasília/DF).



Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes CECRIA (Brasília/DF).

c) Consulta direta realizada em órgãos não-governamentais: 

Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF (São Paulo/SP).



Organização Mundial da Saúde – OMS (São Paulo/SP).



BIREME (São Paulo/SP).



Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual – CEARAS (São Paulo/SP).



Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae – CRVV (São Paulo/SP).



Programa de Atenção às Vítimas de Abuso Sexual – PAVAS (São Paulo/SP).



Centro de Documentação da Infância da Coordenação de Estudos e Pesquisas sobre a Infância – CESP, da Universidade de Santa Úrsula (Rio de Janeiro/RJ). Pesquisa em documentos e Cd-Rom.

d) Consulta on-line realizada em Bancos de dados e organizações nãogovernamentais: 

PsycLIT

43 Não é possível realizar consultas on-line para acessar encontradas apenas as referências

conteúdo de documentos governamentais brasileiros porque eles não estão disponíveis. Podem ser ao tipo de documento (lei, projeto de lei, etc...) e algum resumo (especialmente nos



MedLine



Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).



Organização Mundial da Saúde (OMS).



Agência de Notícias dos Direitos da Criança – ANDI (Brasília/DF).



Associação Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência ABRAPIA (Rio de Janeiro/RJ).



International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect – ISPCAN.



End Child Prostitution, Child Pornography and the Trafficking Children for Sexual Purposes – ECPAT.



Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECA (Salvador/BA)

d) Consulta on-line realizada na mídia:44 

Folha de São Paulo



CD-Rom Folha:45 1994-1998 (São Paulo/SP).



O Estado de São Paulo



Jornal do Brasil (Rio de Janeiro/RJ)



Jornal O Liberal (Belém/PA)



Revista Veja



Revista Época

3. As análises:

documentos do Congresso). 44 Este jorna is e revistas foram incluídos pela sua grande circulação no território nacional, na tentativa de encontrar matérias jornalísticas sobre documentos governamentais e não-governamentais e assim, tentar localizá-los. Tamb ém foram importantes na construção da tabela nacional de acontecimentos relativos ao “abuso”. O jornal “O Liberal”, foi incluído porque é o jornal de maior circulação na região Norte, onde ocorreu decisão judicial importante em relação a atividades sexuais envolvendo adulto e adolescente (abordadas no capítulo 6).

Toda análise sempre se realiza sobre um fragmento e se constitui também como um fragmento elaborado. A análise inicia desde a escolha de qual fragmento o pesquisador pretende trabalhar e elaborar alguma reflexão.

Portanto, ela também deve ser incluída em uma

discussão metodológica, pois, metodologia longe de ser unicamente uma técnica de coleta de dados, é todo o caminho percorrido pelo pesquisador ao eleger e analisar algo para investigar; a revelação pública das escolhas realizadas na pesquisa. Neste item procurarei esclarecer como pretendo analisar as fontes documentais. As fontes documentais, se constituem em discursos estruturados e foram analisadas como fazendo parte de “de um sistema complexo de relações” de onde são, simultaneamente, “condições e efeitos” (GONÇALVES, In: CLIFFORD, 1998, p.

10

).

Uma das estratégias de visualização foi a construção de quadros de acontecimentos (Anexos I, II, II IV). A partir desses quadros foram escolhidos documentos considerados fundamentais para a emergência do “abuso” como um tipo e sua solidificação. A análise o levou em conta três aspectos citados por Spink:46 “ a variação, ou seja, as versões contraditórias que emergem no discurso e que são indicadores valiosos sobre a forma como um discurso se orienta para a ação;  os detalhes sutis  como (...) hesitações, lapsos  pistas importantes quanto ao investimento afetivo presente;  a retórica, ou a organização do discurso de modo a argumentar contra ou a favor de uma versão dos fatos.”

45 Trata-se

de Cd-Rom que reúne matérias jornalísticas da Folha de São Paulo

46 Mary Jane P. SPINK, Desvendando as teorias implícitas uma metodologia de análise das representações sociais , p. 130





S. Textos em representações sociais, p. 117-148 .

)

(In: GUARESCHI, P. & JOVECHELOVITH,

Houve “desmapeamentos”47 dos posicionamentos encontrados nos documentos relacionados ao tema estudado. Exemplificando, posições sobre “denúncia” (o que é matéria de denúncia, porque denunciar, as conseqüências relacionadas à denúncia, etc.), são categorizadas para análise. Em resumo: 

Fora construídas tabelas sobre os acontecimentos relacionados ao “abuso” (nacionais e internacionais). A classificação incluiu: período e origem do acontecimento; quando possível, personagens envolvidos; fonte (onde foi encontrada referência).



Nos documentos escolhidos foram desenvolvidos “desmapeamentos” dos posicionamentos emergentes em relação ao “abuso”.



Um dos critérios para escolha eram documentos com perspectiva histórica e/ou estudos que faziam revisões temáticas (por exemplo, o diagnóstico médico nas últimas duas décadas).



Identificados

os

principais

autores

internacionais

e

nacionais

e

responsáveis pela construção do abuso como um tipo, buscou-se as obras principais.

No caso internacional, o artigo Kempe

colaboradores (1962).

e seus

No caso brasileiro, as obras de Azevedo &

Guerra. 

Ainda foi escolhido um documento marco de uma organização reconhecido internacionalmente e com grande penetração nas políticas governamentais e não-governamentais.

Trata-se de um texto da

Organização Mundial de Saúde. 

Identificada também a principal publicação sobre a temática, foi realizada uma análise minuciosa texto a texto, identificando os artigos

47

Mais à frente, na página 99, há o esclarecimento deste termo na pesquisa.

que poderiam ajudar na compreensão da emergência e solidificação do “abuso” como um tipo. No caso, trata-se da Child Abuse & Negelct. 

Sempre presente à tentativa de identificar Serão identificadas as formas de “governamentalidade” veiculadas nos documentos. (Ver: p. 37) e ainda as “estratégias de inscrição” utilizadas (Ver: p. 43-44). No decorrer dos capítulos 5,6 e 7 serão identificados os autores e

os textos de maneira mais detalhada.

Também, as formas de

“governamentalidade” e as “estratégias de inscrição” constam destes capítulos imiscuídas nas análises.

Foco de Estudo: Como possibilidade

uma

da

das

estratégias

emergência

e

para

solidificação

obter do

as

condições

abuso

como

de tipo

(nomeação da prática sexual entre adulto e crianças como “abuso” e criação de organizações que assegurem isto, leis, profissões, etc...), não foi delimitado, de antemão, um período para realizar o levantamento do material a ser pesquisado.

Porém, aos poucos, a partir da análise de

textos históricos especialmente, foi possível identificar a década de 60 como o momento de visibilidade social do abuso. Aí sim, os documentos foram classificados a partir de uma perspectiva temporal em busca do que poderia ser caracterizado como “balizadores” da emergência do “abuso” e classificados nos quadros de acontecimentos. Mas desde o início a busca era por sinais indicativos de mudança na concepção de uma prática sexual. Lembro novamente que as buscas nunca foram realizadas no sentido de identificar origens do “abuso”, mas se constituíram, como indica a perspectiva construcionista, em “... um esforço de desconstrução de noções profundamente arraigadas na nossa cultura” (SPINK & FREZZA, 1999,

p. 27

). Portanto, o período inicial marcado pela década de 60 assinala um

momento em que um tipo começou a ter “regularidade enunciativa” (FOUCAULT, 2000, p.166).

Em outras palavras isso quer dizer que,

começou a ter uma certa regularidade, os enunciados veiculados em diferentes meios (academia e mídia, por exemplo), estabelecendo (claro que não de maneira definitiva), uma noção relacionada uma prática (“abuso”, relacionado ao prática sexual), e uma estrutura que favorece essa noção (verdades acadêmicas, leis, estatísticas, profissões, órgãos e serviços). A

partir

“homogeneidade

da

década

enunciativa”

de em

60

especialmente

torno

do

uma

espécie

“abuso” sexual

infantil

intrafamiliar. Os

“sinais”

categorização

ou

temporal

“balizadores” não

foram

advindos “descobertas

do

trabalho

de

casuais”.48

As

“descobertas” nunca são casuais no sentido que, o pesquisador pode até não configurar, no início da pesquisa, o que vai encontrar a partir da sua análise, mas sempre ao construir suas análises, o fará em função do tema que escolheu, dos seus pressupostos teóricos e do caminho que traçou para estudá-lo.

5. Concluindo: A exposição da metodologia empregada na pesquisa, iniciada no capítulo introdutório e mais detalhada neste capítulo, visa contestar a docilidade imposta pelo pensamento único e pelo dogmatismo. contestação parece ser uma espécie de “derrota vitoriosa”

49

Esta

da pesquisa

48

HAMMERSLEY & ATKINSON , advogam que as “descobertas” ou “conclusões” do trabalho de pesquisa são casuais, por isso é necessário “estabelecer as condições corretas para essas descobertas” (1995, p. 162). Essa expressão (“derrota vitoriosa”) e reflexões que seguem, me foram inspiradas pelo mito “Eros e Psiqué”, analisado por eterna beleza divina e encontra o sono estígio. Mas é a partir que retoma sua união com Eros, torna-se r Encontra punição por isso (aparente derrota). desta derrota 49

Brandão (In: Junito de Souza BRANDÃO, Mitologia Grega, vol. II, p. 209-251), onde Psiqué sede à tentação de abrir uma caixa pensando obter a

científica, ou seja, percebemos que é vã a tentativa de controle completo, objetividade e, como conseqüência, a busca da interpretação verdadeira sobre um acontecimento pesquisado. Esses mitos foram guardados para sempre em uma caixinha mágica localizada no final do arco-íris.

Isso

pode parecer derrota à “vontade de saber”, mas ao contrário, a postura de busca contínua da sabedoria, permite que a ciência participe do banquete com os deuses e, com uma taça de ambrosia, comemore o lugar de sempre devir do conhecimento, ou se quisermos, a volúpia do saber.



imortal e tem uma filha chamada Volúpia.

Fazendo um paralelo com o trabalho científico: sua eterna derrota na tentativa de completo controle, lhe permite a imortalidade criativa da busca (volúpia). È uma derrota vitoriosa.

Formatado

“Abuso Sexual”:

as redes de força em negociação de sentidos

Em 1978, quando as pessoas me perguntavam sobre o que eu escrevia, eu dizia “incesto”. E elas, freqüentemente perguntavam: “Você é feminista?”. Agora quando eu digo (com alguma reticência), que eu tenho escrito sobre incesto, as pessoas perguntam: “Você é psicóloga?” (Louise Armstrong, 1996, p. 331)

O “abuso sexual” infantil, que trato neste trabalho, refere-se exclusivamente aquele ocorrido e praticado por membros de uma mesma família, tendo um adulto e uma criança ou adolescente como personagens e geralmente incluído por estudiosos do tema como “violência doméstica” (Ver: GUERRA, 1995, p. 23). No entanto, para discutir aspectos teóricos, lanço mão de autores que fazem reflexões sobre o “abuso” sexual sem se deterem sobre o espaço onde ocorreu.

Em alguns momentos, amplio a

discussão para reflexões sobre a institucionalização da sexualidade humana em geral, com o objetivo de compreender melhor a situação do “abuso” sexual como uma construção do século XX. A perspectiva deste capítulo é permitir compreender a dinâmica de uma noção como a de "abuso”, que se forma como um tipo a partir da negociação de “redes de força e fatores que constituem regimes de verdade e controle” (LEVETT, p. 235, 1996).

Nessa perspectiva, é

importante mostrar as descontinuidades e mudanças que ocorreram nessa negociação em que a prática sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente, tornou-se visível socialmente através da noção de “abuso” sexual. Daí a importância de “... retomar também a linha da história, de modo a entender a construção social dos conceitos que utilizamos...” (SPINK & MEDRADO, 1999, p. 49). Isso permite que ao investigarmos a linha da história possamos identificar acontecimentos que favoreceram ou inibam a emergência de outros. Assim, a investigação da temporalidade é realizada para problematizar “contextos de sentidos” (Ibid., 1999, p. 49) e favorecer a construção de diálogos entre contextos variados.

Neste

capítulo,

se

entrelaçam

vários

tempos:

os

mais

longínquos da emergência50 da proibição do incesto; tempos menos longínquos, se comparados aos anteriores, da emergência da infância; tempos recentes da emergência do “abuso” sexual infantil. Inicialmente as reflexões são sobre o termo “abuso” sexual. A sua utilização neste trabalho está relacionada à sua adoção, tanto por estudiosos estrangeiros como brasileiros, para se para referirem a prática sexual genital entre um adulto e uma criança ou adolescente.51

Isso

facilita o enquadramento do tema em discussão em um campo de pesquisa específico e, o que é mais importante, localiza a noção de “abuso” sexual como uma construção que envolve vários personagens, noção52 aqui compreendida como uma construção humana, produto de convenções passíveis de serem localizadas historicamente e que se constitui em regras que regulam e ordenam práticas. A nomeação “abuso sexual”, para se referir a prática sexual entre adultos-crianças-adolescentes é bem complexa.

São grandes as

dificuldades advindas da utilização desse termo, já que muitas vezes ele é carregado de uma conotação maniqueísta, colocando o adulto que mantém relações sexuais com criança ou com adolescente como alguém que merece o completo desprezo da sociedade.

As crianças ou

adolescentes por outro lado, são envoltas em uma redoma de ingenuidade que os colocam em posição de vítimas e, por isso, merecedores de cuidados muitas vezes motivados pelo sentimento, dentre outros, de piedade para com eles. De imediato, deixo claro que rechaço qualquer prática sexual, genital ou não, que envolva a transgressão violenta do desejo do outro, ou

seja,

quando

uma

das

partes

envolvidas

é

induzida

por

50 Sobre a utilização dessa palavra ver nota 04, na p. 15. 51 Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a faixa de idade que caracteriza essa população é: criança até 12 anos de idade e adolescente, entre 12 e 18 anos de idade. (1990, p. 05).

constrangimento físico ou moral.

Isso configura prática violenta em

qualquer situação de convívio humano, em especial naquela onde a sociedade ocidental depositou relevância tal que permitiu ser um tema tratado com tanto cuidado a ponto de ser considerado “tabu”.

A

explicitação de minha posição se faz necessária porque “não há escolha arbitrária entre opções tidas como equivalentes, mas a opção refletida a partir de nossos posicionamentos políticos e éticos" (SPINK & FREZZA, 1999, p. 32-33). A adoção do termo nesta pesquisa foi precedida de uma particular viagem por dicionários, cujos “desmapeamentos”, (inclusos nos anexos), proporcionaram interessantes quadros de significados e sentidos, que permitiram alguns posicionamentos que resumo a seguir. ainda uma observação sobre “desmapeamento”.

Antes

Este conceito foi

desenvolvido pelo psicanalista Sérvulo Figueira (1985). Ele utiliza este conceito para caracterizar a convivência, em planos diferentes, de conjunto de valores “internalizados” pelo sujeito em diversos momentos de seu processo de socialização. Aqui utilizo o termo “desmapeamento” para caracterizar a convivência em uma cultura, em diferentes níveis, de sentidos que circulam, tomam visibilidade e se deslocam em intervalos situados historicamente. Assim, um mesmo acontecimento toma sentidos diversos ao longo do tempo e em espaços culturais diferentes.

2.1. Afinal (do) que trato ? A literatura sobre a prática sexual entre membros de uma mesma família, especialmente entre pai e filha, utiliza para caracterizar esta ação dentre outras, as palavras “incesto” (incest/inceste) e “abuso sexual” (sexual abuse/abus sexuel).

Mais raramente se encontra

“estupro” (rape/strupe), “assalto”/”ataque” (assault/attaque). 52 Novamente aponto as dificuldades de usar algumas palavras, no caso, a palavra “noção”. A discussão do seu emprego encontra-se na p. 53, nota 02.

Isso me levou a procurar quais as relações que essas palavras mantinham e se apresentavam significados específicos ainda que se referissem ao mesmo acontecimento. Quando ainda estava elaborando o projeto de tese, surgiu a dúvida sobre qual palavra utilizar no meu trabalho53. Dúvida que não pode se resumida a escolher a palavra mais “contemporânea” ou “científica”, porque, já se trata de um trabalho sobre construção

de

sentidos,

não

se

deve

empregar

palavras

sem

contextualizar o(s) sentido(s) que se deseja com elas. Estava procurando definir sobre o que versava a minha pesquisa, e como qualificar ou conceituar isso, diante de tantas publicações a respeito. O interesse geral permanecia sendo o de pesquisar a relação sexual mantida por um adulto com uma criança ou adolescente no seio da estrutura familiar. Sob a inspiração da investigação construcionista que "... se preocupa sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em que vivem" (GERGEN, 1985, p. 266), defini que deveria me dedicar ao objetivo de analisar as condições de possibilidade para que aquele tipo (espécie, classe) de relação sexual fosse definida como "abuso". Isso criou um problema interessante, pois desde o início me obrigou a me colocar muito de frente com a temática que pretendia investigar já proporcionando o necessário trabalho de reflexão sobre as construções conceituais que permitiam a familiarização da prática sexual de um adulto com uma criança ou adolescente como “abuso”:

Que

sentidos foram atribuídos àquela relação sexual específica? Que situações ou contextos permitiram a sua visibilidade como tal?

53 Inicialmente a intenção era estudar os sentidos da prática sexual entre adultos, crianças e adolescentes para os personagens envolvidos (familiares, vizinhos, profissionais). Posteriormente, percebi que precederia uma pesquisa anterior sobre a construção do abuso como um tipo para a sociedade em geral. Em outras palavras, houve maior motivação para investigar a emergência da classificação de tal prática sexual como “abusiva”.

Naquele

momento,

quando

da

elaboração

do

projeto

de

pesquisa, ponderei que um título “descritivo” simplesmente, sem maiores reflexões, me deixaria com um outro problema que é a velha crença na neutralidade do pesquisador e na elaboração de uma pesquisa muito higienizada.

Desse equívoco procuro manter distância.

Por outro lado,

essas reflexões também vieram me obrigar a pensar em que posturas acredito

e

adoto

sobremaneira

na

como

pesquisador,

definição

do

meu

o

que

problema

também de

me

pesquisa

ajudou e

no

aprofundamento de referenciais. Então, retornando, de que trato?

É uma pergunta dúbia, pois

pode estar se referindo a busca de um trato, no sentido de um acordo, pacto contrato ou tratado (FERREIRA, 1986, p. 1706). Assim, poderia ser a busca do acordo social feito em torno da palavra “abuso” para uma universalização de seu uso e sentidos empregados. De outra maneira, a palavra "trato" pode estar se referindo a “um espaço de terreno, região” (Ibid.), que no presente seria, a busca de uma demarcação do tema de pesquisa.

São essas duas coisas ao mesmo tempo: defini o tema de

pesquisa em torno desse processo de transformação do “abuso” em uma palavra que indica um sentido majoritário que foi socialmente construído e que, como apontou Ian Hacking (1999), tornou-se um “tipo”.54 Mas aquela altura, já me preocupavam, como um iniciante no construcionismo, às minhas escolhas em relação às palavras que seriam empregadas para evidenciar o que pretendia pesquisar:

em relação à

“abuso” e “incesto”, ao tratar da temática com uma destas palavras, deveria destratar uma, ou poderia “coabitar” com ambas? Os textos acadêmicos não foram suficientes para me ajudar na resolução do meu primeiro problema, uma vez que utilizam os termos aparentemente sem nenhum critério. Assim, preferi partir da “superfície” 54 A discussão sobre “tipo”, foi realizada no capítulo introdutório (p. 26-29).

da

língua,

os

dicionários,55

pois

os

textos

acadêmicos

têm

uma

profundidade digamos, abusiva. Como na aventura de, Alice na “Casa do Espelho” (CARROLL, 1980) que, segundo Deleuze se constitui na “... sua ascensão à superfície, sua desmistificação da falsa profundidade, sua descoberta de que tudo se passa na fronteira” (DELEUZE, 1998, p. 10), mergulhei na caça de palavras, como quem caça um tesouro, com a diferença que é no processo de caça, que surge o mapa que em si já é também um desmapeamento.

Fui caçando e desmapeando palavras a

partir de duas palavras-chave: abuso e incesto. Mais tarde ampliei para duas outras, em função das construções que forma feitas: violência e obsceno. Desta forma, fui (des) mapear (palavra do séc. XX), buscando na fronteira de significados e sentidos, respostas para questões básicas: Que palavras usar? Por que usar? Como usar? Ainda uma observação sobre significado e sentido. Entendo que o significado está relacionado à ordem, a organização de uma língua. O sentido escapa a ordem, se embaraça com o significado previamente conhecido, mas o sentido está no campo da possibilidade, nunca é, sempre está sendo, porque não se constitui em uma verdade, mas em um emaranhado de vozes, em um jogo sem regras definidas previamente. O significado é “prendido” (ligado, unido), por exemplo, através do dicionário. O sentido é “a-prendido” (não-prendido), uma vez que quando se chega nele, ele já está escapando, porque as vozes se ampliam ou se reorganizam em torno dele. Assim, aprende-se uma palavra e a-prendese a usá-la. Sempre lembrando que o sentido dá-se em fronteiras, na superfície de práticas. Usei “aprender” propositadamente como exemplo de sentido, pois desliga essa palavra de seu significado, “adquirir conhecimento”. 55 Também porque os dicionários são um poderoso instrumento de “governamentalidade”, uma vez que “democratizam” o significado “correto”. Estabelecem também práticas.

Nesse caso,a letra “a” tem a função de restringir uma palavra a um único acontecimento de maneira quase definitiva, pois enfatiza uma ligação estreita entre ambos. No caso do “a” seguido de trema em “a-prendido”, procurei enfatizar a negação a uma afirmação, ou seja, conheço e logo posso desconhecer. Como vimos no capítulo II não há um sentido único. Localizando o tema nos dicionários concluí que o incesto relaciona-se a um tema proibido, no sentido de ser contrário aos costumes e leis

— portanto um crime —

mas também, relaciona-se muito

intensamente a moral, sendo então uma “mancha”, uma “mácula” concernente a um grau de relacionamento sexual só permitido no casamento. Assim, o incesto associa-se a um casamento proibido, porque entre parentes, consangüíneos e/ou agregados; porque entre um adulto e uma criança/adolescente.

E por isso, é mais “obsceno”, “repugnante”,

“asqueroso”, “nojento”, que violento. Ao contrário, o “abuso” tem um amplo sentido que acaba por incluir o incesto, mas associa-se mais a uma “violação”, “maldade” ou “transgressão”, de caráter violento, seja pelo uso da força física, seja pelo uso da força da “influência”, da “sedução”. Trata-se de um “ir além” (do possível, do esperado, dos limites impostos pela Lei, pela natureza, ou pelos costumes). Mesmo quando se refere ao uso da língua ou quando se refere mais especificamente, a sexualidade, o “abuso” é muito mais um crime social (entendido como um desrespeito à convivência em sociedade), do que i-moral. A medida em que o incesto passa a ser considerado um problema social de violência contra a criança (na cultura ocidental “civilizada”), é incluído como “abuso” e não se restringe somente a um problema moral de ordem privada familiar, e sim, como um problema de ordem pública, de saúde pública, um problema político (relativo ou próprio

da Pólis), porque, como veremos, desrespeita a criança (um sujeito, frágil e com direitos). Localizar o tema em relação aos dicionários é bem mais simples que à literatura corrente. Em geral, as publicações referentes ao assunto, utilizam sem muito critério ambos os termos. Através de consulta a base de dados PsycLIT (usando como palavra chave “incest” e “abuse”), é possível se verificar que, em geral, quando se trata de artigo em que se busca

uma

reflexão

teórico-clínica,

especialmente

ligada

a

teoria

psicanalítica do complexo de Édipo, medo da castração ou inveja do pênis, o termo preferido pelos teóricos é “incesto”. Já quando se trata de artigo onde se busca uma explicação sociológica ou reflexões jurídicas, o termo preferido é “abuso sexual”.

Porém, em revista especializada como a

“Child Abuse and Neglect”, o direcionamento é para o uso preponderante da palavra “abuse” independentemente da abordagem (conceitual, clínica, sociológica, jurídica). Em relação especialmente a abordagem clínica, a classificação da prática sexual entre um adulto e uma criança, como “abuso” e como “traumática”, nem sempre é assim considerada por teóricos da clínica psicológica especialmente os de linha psicanalítica.

Mesmo com as

exceções que já surgem no uso exclusivo do termo incesto no campo

psicanalítico,56 ainda há reflexões sobre a relação incesto/trauma. Para Leclaire, o termo incesto significa “gozar sexualmente com a mãe” (LECLAIRE, 1992, p. 120.), seja menino ou menina. Mas, não é possível que uma criança de três a cinco anos signifique o incesto como um adulto. Por isso, o sentido psicanalítico para este autor é o da criança possuir a

56 Um exemplo disso é o artigo publicado pela psicanalista Maria Flávia Ferreira GOLDFEDER (1987), em revista psicanalítica de referência nacional, onde não usa o termo incesto, mas “abuso sexual”. Também, o uso “casado” de “incesto” e “abuso”, pela psicóloga e psicanalista Renata Udler CROMBERG (2001), no seu livro Cena incestuosa: abuso e violência sexual, constituindo o termo “abuso sexual incestuoso”.

mãe de maneira a mais ampla, não se limitando a uma relação genital. Assim, a relação incestuosa é uma forma de posse da mãe. O filósofo Eduardo Subirats, vai ainda mais longe e afirma que se trata de uma transgressão que se torna lei “interiorizada” e ordem moral: ... Não é a transgressão real, cuja representação torna necessária a lei, a codificação repressiva do corpo, mas, pelo contrário, é a transgressão e ilusória, de cuja culpabilização efetiva emana a organização repressiva do corpo como ordem moral, como lei interiorizada. Édipo não existe. O crime ancestral dos irmãos parricidas é um fantasma. E no entanto é a realidade, a verdade constantemente promovida como a legitimação moral da ordem social repressiva (...).

Onde subsistir uma ordem social coercitiva, fundada

na sujeição e no domínio do desejo, haverá também um Édipo, crime original, sempre disposto a alimentar o remorso, a culpa, a aceitação, como uma ordem moral interna daquelas proibições culturais. ... Édipo se revela então (...), princípio de uma codificação repressiva do corpo.

Édipo é o crime originário que engendra a culpa, que por sua vez

suscita a obediência, que por sua vez instaura a lei — lei que sujeita a ordem polimorfa do desejo e do inconsciente a um princípio de organização hierárquica, aos requisitos da “formação cultural” (SUBIRATS, 1985, p. 43).

Já o incesto criminoso ou médico-legal, se inscreve como um interdito infracional de um adulto e envolve especificamente a dimensão genital.

A psicanálise coloca como temática o que poderia ser chamado

de “interdito infantil”, que tem a função de estruturar o futuro adulto, através da chamada tríade edípica (pai-mãe-filho).

Possui a função de

impor limites ao gozo das pessoas, para mostrar que na cultura não é possível realizar tudo que se deseja, sob pena de tornar a convivência impossível. O sentido é completamente diverso do médico-legal. Para complicar ainda mais, ou para mostrar o movimento da construção de sentidos, o incesto pode ser definido como “abuso”: O que é incesto? Incesto é abuso sexual dentro da família extensa ou imediata.

(VANCOUVER POLICE CHARITABLE FOUNDATION, 1994, p. 39)

Percebe-se que o termo incesto tem já o emprego associado ao “abuso”.

Aproxima

incesto

de

uma

caracterização

médico-legal,

importante para esta pesquisa, porque, ao que tudo indica, foi a partir dessa conotação que foi possível a emergência do “abuso” nos moldes atuais. É importante ressaltar que neste trabalho o termo “abuso” adquire uma forma classificatória para operacionalizar a pesquisa. Não se trata de estudar nem os aspectos clínicos, nem jurídicos ou mesmo sociológicos para efeito de uma intervenção específica, mas de pesquisar a emergência do “abuso” como um tipo, portanto pesquisar os sentidos que são construídos nesse trabalho de identificar suas condições de possibilidade.

Aspectos clínicos, jurídicos ou mesmo sociológicos são

utilizados na medida em que permitam buscar a construção do “abuso” como um acontecimento que gera a mobilização da sociedade a ponto de criar estruturas de “governamentalidade” (FOUCAULT, 1985a).57 O termo “incesto” localiza de imediato a temática em discussão,

ou seja, relações sexuais familiares entre pais e filhos, e também indica a sua inserção na ordem da interdição moral e legal na nossa sociedade. Já o termo “abuso sexual”, geralmente está relacionado à prática sexual entre adulto e criança ou adolescente, mas não caracteriza o grau de parentesco das pessoas envolvidas.

Sua adoção na literatura mais

recente (últimos 40 anos) indica uma nova tipificação da prática sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente que vai além do uso de uma nova palavra. Associa uma prática sexual como traumática, (sendo necessário estudá-la do ponto de vista psicológico) e como imoral e ilegal (localizando-a no campo jurídico, considerando-a como uma transgressão 57 Esta noção foi discutido no capítulo introdutório (p. 37).

criminosa).

De todo modo, o que se observa nas discussões sobre o

“abuso sexual” é uma tendência a que todo o mundo (literalmente), deve envidar esforços para que a prática seja exposta (propagada) e punida (exorcizada). Tanto “abuso” quanto “incesto” estão prenhe de sentidos e desejos. Mas, como vimos acima, o termo “incesto” evoca geralmente a especificidade do trabalho psicológico-clínico, enquanto o termo “abuso sexual”, pressupõe a priori, além de um olhar clínico (diagnosticador), uma postura punitiva. Diante dos objetivos da pesquisa em verificar as condições de possibilidade da relação sexual entre adulto, criança ou adolescente na família, ser caracterizada como “abuso” constituindo um tipo, preferi colocar o termo entre aspas, para dar ênfase que não se pode, tomandose como referência a postura construcionista, simplesmente sair utilizando termos só para acompanhar a nomenclatura dos trabalhos sobre o assunto. Muitas vezes adoto termos que são aparentemente mais “operacionais”58 (como: prática sexual entre pai e filha; relação sexual intrafamiliar), ciente da reflexão que fiz na página 101, quando afirmei que evitei adotar, de imediato, tais termos. Foi essa recusa que me levou à pesquisa nos dicionários e a ter maior compreensão do uso dos termos “abuso” e “incesto”. Ao utilizar a partir de então “termos operacionais”, que se referem mais claramente à prática sexual, caracterizada como “abuso”, tenho o intuito de, em posicionamentos pessoais, estar mais aberto às construções de sentidos em torno dessa prática, que são frutos de negociações, embates, de “seus” personagens, aí inclusos adultos, crianças, adolescentes, organizações, polícias, a mídia, profissionais liberais, o meio acadêmico, os pesquisadores (incluindo-me). Todos estão 58 Apesar de saber que todo e qualquer termo opera sobre um contexto, evitei adotar a palavra “descritivo”. Estaria contradizendo todo o conhecimento construído a partir da concepção construcionista se acreditasse que há termos que descrevem a realidade. Mas não encontrei termo mais adequado para substituí-lo. Por hora “operacional”.

envolvidos diretamente na construção dessa prática como sendo de um determinado “tipo”. Cabe notar ainda, que procurei não usar o termo “ato”, exceto quando me reporto à literatura jurídica.

Preferencialmente utilizo a

palavra “prática”, pois já nos leva ao âmbito da ação cotidiana e assim nos remete a não separar sentido de ação, evitando alguma armadilha metafísica ou idealista e favorecendo a análise do processo de construção de sentidos como práticas de posicionamento no mundo. Assim, busco: 1) Evitar que o discurso seja remetido a uma “interioridade silenciosa da consciência de si” (FOUCAULT, 1996, p. 49); 2) Por conseqüência, compreender o discurso como prática (práticas discursivas) e dessa maneira sempre restituir o seu caráter de acontecimento (Ibid., p. 51).

2.2. As conseqüências do trato ou da “governamentalidade”: Faço agora apontamentos gerais sobre a prática sexual mantida por adulto com criança ou adolescente como estratégia para traçar um quadro da emergência do abuso como um tipo. A intenção é estabelecer uma “historicidade” desta prática sexual, indicando temporalidades dessa problemática, ou seja, vendo se surgem novos contornos, que formatos adquire, enfim, o que mudou nesse processo.

É um trabalho que inicia

neste item mais com a intenção de abordar pontos de vistas culturais diversos sobre uma mesma prática (permissões e proibições) e assim, abrir espaço para as discussões subseqüentes desenvolvidas nos próximos capítulos (com discussões mais direcionadas ao “abuso”). Parto de pontos de vistas culturais diversos sobre essa prática, que durante muito tempo foi reconhecida e nomeada como incesto.

Começando pelo Brasil.

O “abuso” sexual infantil intrafamiliar

em relação à legislação brasileira, verificarmos que o Código Penal, aprovado em

1940, não trata especificamente do “abuso sexual”

doméstico, nem mesmo no Título “Dos crimes Contra a Família”.

Mas

considera-se que está incluso no Título VI “dos Crimes Contra os Costumes”.

O capítulo I desse título, “Dos crimes Contra a Liberdade

Sexual”, contém artigos sobre o estupro59, atentado violento ao pudor60 e posse sexual mediante fraude61. Todos esses artigos prevêem pena para quem pratica esses atos com menores de 14 anos. Importa também observar que nestes crimes, a ação penal só procede mediante queixa.62 A exceção se faz por intermédio de ação pública, caso a vítima não possa prover as despesas do processo ou “se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador”.63 De toda maneira, as crianças ou adolescentes que foram submetidos ao “abuso”, têm poucas possibilidades de realizarem essa denúncia, uma vez que dependerão de um adulto que lhes dê credibilidade e os acompanhem para prestar queixa. Ainda há outro aspecto que merece observação. A Lei explicita o que significa a “presumida violência dos crimes contra a liberdade sexual”, no Art. 224: “a) Quando a vítima não é maior de quatorze anos; b) Alienada ou débil; c) Não pode oferecer resistência.”

Considera portanto,

que mesmo quando há o “consentimento” da criança ou do adolescente, a eles não pode ser imputada culpa,64 como insidiadores, já que são considerados ingênuos, o que reduz, nesse caso, a possibilidade de defesa do agente (adulto). A pena chega a ser aumentada da quarta parte, dentre outros motivos, caso o “agente seja ascendente, pai adotivo, 59 Art. 213: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (p. 98). 60 Art. 214: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (p. 98-99). 61 Art. 215: “Ter conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude” (p. 99). 62 Art. 225 (p. 100). 63 Art. 225 (p. 100). 64 Já há precedentes contrários. Isso será discutido no capítulo 06.

padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”.65 Assim, a pena é ampliada em caso de “abuso sexual intrafamiliar”, por exemplo. O Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em 1990, no Título “Das Medidas Pertinentes aos Pais ou Responsável”, no Art. 130, prevê claramente medidas contra o “abuso” sexual intrafamiliar. Inclusive faculta a separação da criança de seus pais ou responsável, como medida cautelar, caso seja avaliado risco potencial para a criança.66 O que descrevemos acima é “fato” para a sociedade brasileira. A literatura especializada mostra que as violências físicas sexuais, devem ser tratadas de maneira específica.

e

Deve-se levar em

consideração no julgamento da chamada violência sexual, por exemplo, “a cultura sexual vigente nos grupos sociais a que a família pertence.” (GUERRA, 1992, p. 400). Esse lembrete é importantíssimo, ainda que esquecido com freqüência em discussões especializadas, já que não é incluso no temário. Há sociedades onde os jogos sexuais entre parentes, fazem parte da sua cultura e é até moralmente aceitável, e são considerados necessários para a estruturação daquela criança já que se configuram como condição para que a criança possa se sentir parte daquela sociedade e construir sua pertença. Entre os Kubeo da América do Sul, o menino marca o início de sua vida sexual mantendo relações com sua mãe (GREGERSEN, 1983, p. 131).

Esse seria um caso raro de incesto mãe-

filho, institucionalizado, pois a forma mais comum é pai-filha: o faraó egípcio Amenhotep III, por exemplo, casou-se com várias filhas (Ibid., p. 133). Também a história registra casos lendários de incesto irmão-irmã: ainda que proibido pelas leis romanas, esse tipo de incesto foi praticado

65 Art. 226 (p. 101).

pelo imperador Calígula (37-41), que manteve relações sexuais com suas três irmãs e casou-se com uma delas (Ibid.). As punições para o incesto muitas vezes são severas: entre os Capaya (Equador), o acusado era “suspenso sobre uma mesa coberta com velas acesas e lentamente assado até a morte” (Ibid., 1983, p. 143). Na sociedade brasileira há até mesmo códigos particularizados para punir incesto ou qualquer tipo de ato sexual cometido contra crianças, como por exemplo, entre os detentos que executam quem é aprisionado por esse motivo. Em função de aspectos culturais diversos, nem sempre o ato sexual genital praticado por membros de uma mesma família é tomado como “abuso” ou proibitivo, já que pode ter conotação de ludicidade ou rito de passagem. Mesmo em nossa sociedade há que se ter cautela na caracterização de carícias entre um adulto e uma criança ou adolescente, sejam ou não da mesma família.

Como afirma o psicanalista Jurandir

Freire Costa: “a intensidade da ‘ternura’ erótica infantil pode ser grande e nem por isso deixa de ser lúdica” (In: PINHEIRO, 1995, p. 15). Ussel, relata que já no século XV, há registros de contato “íntimos” entre adultos e crianças na sociedade ocidental: “... havia o hábito dos pais e criados de palparem, acariciarem e excitarem o corpo ou o sexo da criança” (USSEL, 1980, p. 135).

Essas atitudes eram toleradas sem nenhuma conotação

proibitiva, já que a sexualidade era geralmente associada à procriação e como as crianças não exerciam essa função sexual, seus órgãos genitais eram como qualquer parte do corpo (Ibid., p. 137). Foi especialmente a partir do século XIX, que médicos, higienistas, pedagogos, entre outros, intensificaram uma moralidade cientificista, que vigiava e propunha a educação dos corpos (Ver: COSTA, 1979). Recentemente, a sexualidade tornou-se foco de estudos ainda mais intensos nas ciências humanas, por 66 Art. 130: “Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”.

conta do surgimento da AIDS, especialmente a partir da década de 1980, quando “... esses estudos focalizaram, principalmente, o comportamento e as práticas sexuais, sendo estas geralmente delimitadas pela noção de risco no sentido epidemiológico do termo” (LOYOLA, 1999 , p. 31). Não é simples a análise longínqua da emergência de restrições sexuais ou proibições.

Sabe-se que o “homem de Neanderthal”, já

enterrava seus mortos, revelando que as proibições relacionadas a atitudes para com os mortos são bem antigas, mas as restrições sexuais impostas aos homens primitivos não são descritas com tanta precisão assim, porque seus vestígios não são tão aparentes (Cf., BATAILLE, 1982, p. 166). De todo modo, há incontáveis estudos que se localizam no campo da sexualidade, alguns já disponíveis no mercado editorial brasileiro. Vários autores se debruçam no tempo em busca da construção de práticas sexuais e nos brindam com “casos” que seriam impensáveis moralmente nos nossos dias. Dentre eles, : Cuatrecasas, 1997; Laqueur, 2001; Malinowski 1983, 2000; Richards, 1993; Ariès & Béjin, 1986; Ussel, 1980; Lévi-Strauss, 1982; Rousseau & Porter, 1999; Foucault, 1980, 1984, 1985; entre outros. A leitura desses estudos evidencia o que Alfonso Cuatrecasas indica quando aborda a concepção romana da sexualidade:

“... os

critérios morais pelos quais a sociedade tem se pautado não têm sido imutáveis e absolutos, senão que evoluíram, modificando-se no decorrer do tempo” (CUATRECASAS, 1997, p. 67). Essas modificações vão desde a “tolerância” e “permissividade sexual“ quase absolutas no Império Romano (Ibid., p. 68) e chegam às proibições especialmente prescritas pela Igreja Católica na Idade Média. Nessa época o penitencial do séc. XI de Burchard de Worms, por exemplo, já classificava os pecados sexuais pela sua gravidade:

Burchard, ponderava que qualquer ato que conduzisse à excitação sexual ou ao prazer sexual era pecaminoso e os enumerava, indicando (...) aquilo que era capaz de excitar as pessoas. Os atos provocantes que destacou incluíam contar ou rir de piadas sujas, cantar ou ouvir canções sugestivas, participar ou assistir a diversões lascivas, tomar banho em companhia de várias pessoas e tocar, acariciar ou beijar seios e órgãos genitais. ... Em ordem decrescente de gravidade, havia o incesto, a sodomia e a bestialidade, o adultério, a fornicação e a masturbação (RICHARDS, 1993, p. 41).

Contemporaneamente a Igreja Católica não parece ter mudado muito sua postura, (pelo menos nas vozes oficiais), pois a prática sexual para ela continua a ser uma atividade cujos propósitos são a procriação e quando é desvirtuada desse objetivo torna-se pecado, especialmente porque se põe contra a ordem natural das coisas.

As “devassidões

contrárias à natureza“, como pregava Sto. Agostinho, “... sempre se deve detestar e punir, como o foram os pecados de Sodoma.”

E continua

ainda mais enfático: “Efetivamente, viola-se a própria união que deve existir entre Deus e nós, quando a natureza, de quem Deus é autor, se mancha pelas paixões depravadas” (Sto. AGOSTINHO, 1980, Cap. III., item 8, p. 48-49).

O maior exemplo dessa concepção são as recentes

campanhas da Igreja Católica contra o uso de preservativos e qualquer método contraceptivo que não os “naturais”. Mas a proibição do incesto não era apenas uma imposição da Igreja Católica na Idade Média.

Como aponta professora de história

Mayke de Jong a interdição do incesto, na alta Idade Média especialmente, eram seculares e eclesiásticas, e “... o termo [incesto] tinha abrangência muito maior” (JONG, 1995, p. 51). A proibição incidia sobre as “relações espirituais” (derivadas do batismo ou crisma), em um momento que a cerimônia religiosa não era imprescindível no casamento cristão (Ibid., p. 52) e o que ainda é mais instigante, a legislação laica proibindo o incesto

teve grande amplitude “... não no Império Romano cristianizado, mas (...) no interior dos reinos germânicos” (Ibid., p. 53). Essa “conjunção entre valores eclesiásticos e seculares”, era sustentada pelo temor de rupturas, “tanto da ordem social como da ordem religiosa” (Ibid., p. 53). Até metade do século IX, o casamento entre parentes era proibido pela Igreja até a sétima geração ou “até onde a memória pudesse remontar” (Ibid., p. 63). Em 1215, a extensão da proibição foi reduzida para a quarta geração. Tanta

rigidez

eclesial

não

casamento cristão fosse abalada.

impedia

que

a

estabilidade

do

Aponto duas situações curiosas

narradas por Jong, indicando que havia a possibilidade de pessoas se beneficiarem da proibição do casamento quando havia “parentescos espirituais” (considerado portanto, incesto).

A primeira: mulheres que

desejavam se ver livres dos seus maridos, começaram a ser madrinhas de crisma de seus próprios filhos. “parentesco espiritual”:

Outro caso curioso relacionado ao

a concubina do rei francês Chilperic (727),

tornou-se sua esposa, convencendo a rainha Audovera a tornar-se madrinha da própria filha recém-nascida (Cf., JONG, 1995, p. 56). Para Jong, a legislação eclesial e leiga sobre o incesto desde a Alta Idade Média, “... parece ter sido vinculada a uma noção de ‘ordem’ destinada a controlar as funções corporais humanas, em geral, e as atividades sexuais, em particular”, (Ibid., p. 74; o grifo é meu). Havia a associação de que determinada prática sexual “violava limites”67 (Ibid., p. 73). Um dos pressuposto para isso “era” a relação muita bem articulada, em reflexões religiosas das práticas sexuais em geral, que a “esfera sexual e a sagrada não podiam se unir” (Ibid., p. 73):

67 Neste sentido incesto se aproxima do “abuso”, em relação a pesquisa realizada nos dicionários, já descrita acima (p. 100-103).

A idéia básica era a de que a sexualidade humana é, por definição, perigosa e perturbadora, em comparação com a sua contrapartida paradisíaca. (...) Em outras palavras, a sexualidade humana só pode ser “ordenada” se o aspecto perigoso do desejo é refreado o máximo possível (Ibid., p. 74). Quanto mais forte o ímpeto em “domar” a sexualidade, mais amplo o círculo de relações ilícitas, chegando-se ao ponto em que este ultrapassa os limites do parentesco — ou alcança até a sétima geração (Ibid., p. 76).

Algo importante que talvez seja a matriz do “denuncionismo” atual em relação ao “abuso”, é que se acreditava que a impureza do incesto praticada por uma pessoa, contaminaria toda a comunidade: “... era necessário destruir a raiz e o tronco do incesto, uma vez que a ira divina se abateria não apenas sobre os próprios culpados, mas, também, sobre a comunidade que tolerasse o mal em seu meio” (JONG., 1995, p. 77). E por isso era necessário isolar os culpados, conforme regulamento de Carlos Magno: “... o imperador exigia, (...), que aqueles que teimosamente insistissem em uniões incestuosas deveriam aguardar julgamento em isolamento, ‘de sorte que não inflijam impurezas às demais pessoas’” (Ibid., p. 76). E a penitência, tal a gravidade do ato e possivelmente para manter a ordem, era pública.

Esse era um dos

motivos que dificultava a manutenção do incesto em segredo, acrescido de pelo menos mais um:

em função da extensão dos relacionamentos

proibidos e por força de regulamentos, os casamentos só eram permitidos depois que os representantes da Igreja e a comunidade faziam uma investigação para determinar se havia algum grau de parentesco (Cf., Ibid., p. 77).68 De tudo isso há o importante registro que a categorização de um ato como incestuoso, sua punição/penitência tinha um caráter coletivo (Ibid., p. 78), e fazia parte de um “sistema moral dominado pela poluição” (Ibid., p. 79), um estado de impureza.

68 Quem sabe daí não venha a famosa pergunta em cerimônias religiosas, sobre se há alguém entre os presentes que se opõe ao casamento?

Os estudos de Jong, apontam reflexões importantes às origens da proibição do ato sexual entre parentes, indicado por Malinowski como um dos temas mais debatidos na Antropologia (MALINOWSKI, 2000, p. 201). Talvez esse debate em torno do incesto seja tão evidente hoje em dia pela própria diversificação temática da Antropologia, que tem em Malinowski e Lévi-Strauss expoentes no que se refere, especialmente, a pesquisas sobre a sexualidade humana. Para alguns autores, o marco da entrada do ser humano na ordem cultural é realizado com a interdição das uniões “incestuosas”. Tanto Malinowski quanto Lévi-Strauss, afirmam que essa proibição é peculiar a todas as sociedades (já vimos acima que não é bem assim). Lévi-Strauss, assegura que o ser humano só pode ser caracterizado como tal após esta proibição: “... com ela [a proibição do incesto] a Natureza deixa de existir no homem como um reino soberano” 1982, p. 63; grifo meu).

(LÉVI-STRAUSS,

Malinowski advoga algo semelhante:

“a

tentação do incesto (...) foi introduzida pela cultura, pela necessidade de estabelecer atitudes organizadas permanentes” (MALINOWSKI, 2000, p. 207).

Ambos concordam que uma regra ou lei, se impõe aos instintos

sexuais. E Malinowski vai ainda mais longe ao prever que a cultura não subsistiria à liberação do incesto: “O incesto, enquanto modo normal de comportamento, não pode existir na humanidade porque é incompatível com a vida da família e desorganizaria os fundamentos desta” (Ibid.). Parece um paradoxo que uma prática “natural” passe a ser interditada por uma regra imposta culturalmente e que prediz punições geralmente

intensas

(prisões,

linchamentos,

etc.),

para

quem

é

descoberto burlando-a.

Presumidamente, quem burla a lei está indo ao

encontro da natureza.

Até mesmo caso pensássemos nos termos

propostos por Sto. Agostinho, o natural seria o incesto. Mas essa reflexão indicaria que qualquer atividade que dissocie o ser humano da sua condição natural seria violência.

Ora, essa já é uma reflexão cultural,

uma vez que pressupõe afirmar que a natureza não é violenta e não pode ser transformada. Alguém voltaria a habitar as cavernas evitando morar em prédios ou casas, para não violentar a “natureza humana”? E nessa atitude não se poderia encontrar algum aspecto da ordem cultural, mesmo durante a experiência?69

O ser humano perdeu o seu “estado natural”,

sendo impossível se separar do seu “estado cultural”: “Não há no domínio humano ato ‘natural’ que não seja ‘cultural’ ”

(SIMONIS, 1968, p. 35-

36). Freud parece concordar com essa “natureza” incestuosa, uma vez que a psicanálise, construída por ele, ensina que a primeira escolha de objeto para amar feita pelo bebê é a mãe, portanto, uma escolha incestuosa.70

Essa atitude torna-se um tabu que, segundo Freud, é um

termo Polinésio com dois sentidos: “sagrado” e “consagrado” por um lado e “perigoso”, “proibido” por outro (FREUD, 1974a, p. 38). Em referência ao incesto, parece que a prevalência de sentido recai sobre o proibido, por isso é tabu. O significado etimológico do termo tabu é: “... aquilo que por convenção ético-religiosa, é proibido ou invulnerável” (CUNHA, 1998, p. 748). O termo em Português deriva do inglês taboo, que por sua vez deriva, como já vimos, do Polinésio. Na psicanálise, às reflexões sobre o tabu do incesto estão muito relacionadas às discussões sobre o Complexo de Édipo.

Malinowski ao

comentar essa relação afirma: Descobrimos que o complexo é um inevitável subproduto da cultura, que surge quando a família se desenvolve passando de um grupo ligado por instintos a um grupo que é unido por laços culturais.

Psicologicamente

falando, esta modificação significa que uma coesão devida a uma cadeia de impulsos ligados transformam-se em um sistema de sentimentos organizados.

69 A experiência Hippie dos anos 60 e 70 era baseada em um naturalismo e sua defesa já poderia ser considerada como uma construção retórica baseada em uma determinada maneira de estruturar a vida em comunidades. Nada natural... 70 Freud afirma que se houvessem barreiras naturais ao incesto, não seriam necessárias “severas proibições”. Como não existem tais barreiras a primeira escolha objetal do ser humano “é regularmente incestuosa”. In: Conferências introdutórias sobre psicanálise (Conferência XXI), ESB, p. 391.

(...) Verificamos o mecanismo atuante e a influência do ambiente social, que age por meio da estrutura cultural e pelos contatos pessoais diretos. Assim, a constituição dos sentimentos, os conflitos e desajustes que estes implicam, dependem largamente do mecanismo sociológico que atua em determinada sociedade. Os principais aspectos deste mecanismo são a regulação da sexualidade infantil, os tabus do incesto, a exogamia, a distribuição da autoridade e o tipo de organização da família (MALINOWSKI, 2000, p. 224-225).

Que poderia ter ocorrido para que o incesto fosse instituído na maioria das sociedades humanas? possibilidades de explicação.

Simonis (1968, p. 38) indica várias

Uma primeira teoria sustenta que a

proibição teria a função de “impedir os resultados nefastos das uniões consangüíneas” (SIMONIS, 1968, p. 38).

Para ele, essa teoria é pouco

provável, uma vez que pressupõe conhecimentos científicos tais, que também deveriam ter indicado quais as relações mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana. Outra teoria, indica que o contato familiar quotidiano teria “reduzido a excitabilidade erótica”, criando uma espécie de “horror psicológico” às relações sexuais entre parentes próximos (Ibid., p. 39-40). Esta teoria também é difícil de ser demonstrada, porque, conforme Simoni, paira a dúvida se seria causa ou conseqüência do tabu do incesto. Ele lembra que dentre as teorias que se opõem a aceitar este “horror” está a psicanálise. É possível verificar isso nos escritos de Freud: ... as descobertas da psicanálise tornam a hipótese de uma aversão

inata

à

relação

sexual

incestuosa

totalmente

insustentável. Demonstram, pelo contrário, que as mais precoces excitações

sexuais

dos

seres

humanos

muito

novos

são

invariavelmente de caráter incestuoso e que tais impulsos, quando reprimidos, desempenham um papel que pode ser seguramente considerado — sem que isso implique uma superestima — como forças motivadoras de neuroses, na vida posterior.

Dessa maneira, o ponto de vista que explica o horror ao incesto como sendo um instinto inato deve ser abandonado

(FREUD, 1974a , p. 150-151).

Também poderíamos concluir que se houvesse uma repugnância natural não haveria necessidade de proibí-lo. Por fim, o incesto é visto como

“... uma regra de origem

puramente social...” (SIMONIS, 1968, p. 40). Essa corrente liderada por Lévi-Strauss, indica que a proibição do incesto mistura fatores culturais e naturais, constituindo-se na passagem da natureza à cultura. Como nos diz Simonis:

“A proibição do incesto,

(...),

é verdadeiramente a

encruzilhada, a emergência mesmo de uma nova ordem” (Ibid., p. 41). Essa nova ordem cultural se organiza em torno de uma aliança entre o homem e a mulher que se difere da aliança proposta pela natureza. Essa reflexão é liderada por Lévi-Strauss. A natureza impõe á reprodução da espécie humana a aliança entre um macho e uma fêmea. Mas não indica nenhuma regra que organize essa união de uma determinada maneira. A regra é de ordem cultural, tanto que apresenta variações conforme o grupo social. Até aí não se “explicou” o incesto, mas foi demonstrada a importância de sua existência para instituir uma ordem.

Segundo Lévi-

Strauss essa regra foi criada para que as mulheres pudessem ser repartidas (Lévi-Strauss, 1967, p. 39). medida

em

que se

proíbe

O incesto funda uma troca na

determinada mulher

de se

unir

com

determinado homem e, ao mesmo tempo, eles se tornam disponíveis para outros (Ibid., p. 64-65).

Foi criado um sistema de parentesco que tem

uma função de troca. Está implícito neste sistema uma possibilidade de dar para também poder receber:

“... uma regra que proíbe desposar

mãe, irmã ou filha, é uma regra que obriga a dar mãe, irmã ou filha a outrem” (Ibid., p. 56). Em outras palavras, Lévi-Strauss defende que o incesto garante uma troca e surge quando se estrutura uma relação sócio-

cultural.

Ele destitui a proibição do incesto de uma caracterização

negativa, quando afirma que sem ela o ser humano não poderia entrar em uma determinada ordem cultural interagindo com diversos grupos. A reflexões de Bataille (1982) sobre as conclusões de LéviStrauss, são bastante interessantes. Bataille retoma um pouco a relação dos seres humanos com o trabalho, para se aproximar de uma comparação com a sexualidade.

O mundo humano passou a se definir

desde tempos imemoriais, como mundo do trabalho. São conhecidas as argumentações de Marx em torno do trabalho como a via de possibilidade do ser humano escapar da animalidade e se inscrever no campo da consciência: Antes de tudo, o trabalho é um processo entre um homem e a Natureza, um processo em que um homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. natural como uma força natural.

Ele mesmo se defronta com a matéria

Ele põe em movimento as forças naturais

pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida.

Ao

atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (...) pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. (...) o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera (MARX, 1988, p. 142-143).

Retomando Bataille, o mundo humano é considerado como mundo do trabalho, portanto um mundo reduzido.

O trabalho nos

aproxima da consciência na medida em que, como podemos observar na citação acima, transformamos a natureza naquilo que idealizamos. Já a sexualidade nos afasta da consciência e embota o nosso discernimento. De alguma forma, renunciamos à atividade sexual porque, “enquanto impulso imediato, pode perturbar o trabalho: uma coletividade laboriosa não pode, no momento do trabalho, estar à mercê dela

[sexualidade]” (BATAILLE, 1982, p. 169). Dito de outra maneira: quanto mais o ser humano se ocupa com o trabalho, menos possibilidade tem de se dedicar à sexualidade e vice-versa. Definimo-nos pelo trabalho, logo pela consciência. Devemos então, moderar ou até ignorar a sexualidade. Conseqüentemente, o ser humano conseguiu obter “consciência do mundo”, mas desconheceu a si próprio.

Os sentidos e sensações

precisam estar ordenados ao mundo do trabalho. Daí, como a ordenação não impede manifestações que se opõem a ela, são necessárias vigilância e a punição (diria Foucault).

O mais

interessante é que a ordenação/proibição termina por sublinhar “o valor sedutor do seu objeto” (BATAILLE, 1982, p. 172). Por fim, Bataille concorda com Lévi-Strauss, quando ambos se referem à proibição do incesto como essencial à constituição do ser humano que conhecemos nos dias de hoje.

Bataille se refere a essa

renúncia sexual de um parente próximo, como possibilidade de se contrapor à voracidade animal e portanto, como uma tentativa de ordenação que evitaria a violência.

71

Essa perspectiva positiva é também compartilhada por outras vertentes teóricas.

A psicanálise, como vimos acima, pressupõe que a

proibição do incesto estrutura o indivíduo.

Trata-se da primeira relação

objetal da criança e é um marco fundamental em sua vida. Também por isso, por outro lado, há conseqüências que podem não ser tão positivas: “Chegamos a ponto de considerar a relação de uma criança com os pais, dominada como é por desejos incestuosos, como o complexo nuclear das neuroses” (FREUD, 1974a, p. 37). Tudo isso demonstra dificuldades em conceituar rigorosamente o “abuso” sexual. Dentro da literatura psicanalítica, por exemplo, ao meu ver, não seria conveniente empregar o termo “abuso”, pois o ato sexual

só seria redefinido como um acontecimento com o sentido de “abuso” caso configurasse previamente e sempre como uma situação traumática. Em outras palavras, a prática sexual genital em si praticada por membros de uma mesma família, nem sempre adquire a característica de um trauma. Charles Malamaud indica que “no processo de análise, o alvo da interpretação é atingido quando traz à luz o trauma, a conjunção de eventos psíquicos que determinou o destino neurótico do analisando” (In: KAUFMANN et. al., 1996, p. 588).

Quer dizer que é necessária uma

conjunção de eventos psíquicos, ou seja, situações, dotadas de um sentido determinado, para que “surja” o trauma.

Seria mais correto,

sempre nos referirmos a uma situação traumática ao invés de um trauma, para deixar bastante evidente a necessidade de um contexto dotado de um sentido.

Assim, o trauma não surge de maneira inexplicável, mas

fruto das relações de alguém com situações que lhe geram angústias. Conforme o editor inglês da ESB, James Strachey ao introduzir o texto de Freud “Inibições, sintomas e ansiedade” (FREUD, 1974c, p. 95-105), a concepção freudiana de uma situação traumática envolve a experiência de uma vivência de desamparo, ou seja, há impossibilidade de lidar com alguma situação, surgindo ansiedade em face de eminente ameaça de perda.

Diante da situação em questão, o ato sexual genital entre um

adulto e uma criança da mesma família será traumático, em face de uma conjunção de “eventos”. O oposto dessa concepção de trauma é uma universalização de acontecimentos sempre considerados traumáticos (“psicologicamente”). Sem o devido cuidado, isso pode levar, a maniqueísmos militantes, que terminam por julgar moralmente os personagens envolvidos em atos sexuais proibitivos e por impor a denúncia deste ato como princípio ético. Trata-se de um assunto polêmico entre os psicólogos, que vem sendo

71 Mais uma vez se vê que a temática da violência está presente na normalização da sexualidade humana. Observe-se que Bataille é um homem do séc. XX, onde essa temática já está presente.

debatido, especialmente no âmbito do Estado de São Paulo, pelo Conselho Regional

de

Psicologia,

por

estímulo

do

LACRI

(Laboratório

da

Criança/USP) e também por teóricos que propugnam não só uma maior atenção da imprensa, mas um tratamento mais adequado a situações de “abuso” (Ver: GUERRA, 1995). São estes paradoxos que vão dando início a uma mudança não só na nomenclatura para caracterizar a relação sexual de um adulto com criança e adolescente. A denúncia esteve presente nos momentos iniciais de visibilidade da construção do “abuso” como um tipo como veremos a partir do próximo capítulo. Envolve polêmica e gera debates interessantes. Alguns se posicionam contra o que chamo de “denuncionismo”, (a denúncia a qualquer momento e destituída de qualquer análise), pois isso poderia gerar até injustiças, como foi o caso da denúncia oferecida por pais contra os donos da Escola Base na cidade de São Paulo,72 onde, após estes terem sido expostos como pornográficos e abusadores de crianças por toda a imprensa nacional, a polícia concluiu que a “ocorrência” foi fruto da “imaginação fértil” de algumas crianças da escola, estimuladas por seus pais. Mas esse “denuncionismo” agrada uma boa parte da imprensa que constrói uma notícia de “abuso” em moldes a torná-la ainda mais vendável

e

faz

circular

os

sentidos

mais

pejorativos

sobre

este

acontecimento. Um outro exemplo mais recente ainda, foi divulgado no jornal de maior circulação da região Norte

“O Liberal” (Ver: DE PAULA,

72 No dia 29 de março de 1994, mães de duas crianças denunciaram que os donos da Escola de Educação Infantil Base, (localizada na zona sul da cidade de São Paulo), cometeram “abuso” sexual contra seus filhos. A partir da denúncia foi aberto inquérito sendo que os exames realizados pelo Instituto Médico Legal foram inconclusivos. Depois desta primeira denúncia outros pais que mantinham seus filhos nesta escola comparecem à Delegacia para prestarem queixa sob as mesmas alegações. A escola foi depredada por moradores vizinhos e pais de alunos. Os donos da escola sempre sustentaram que as acusações eram fantasias das crianças. Além dos donos da escola, um casal de pais também foi preso sob a acusação de tomarem parte do “abuso”. Quase três meses após a denúncia é que laudos do IML e de uma psicóloga negaram a possibilidade de ter havido “abuso sexual”. Mas a escola não teve mais condições de manter-se em funcionamento.

2001). A matéria tinha lugar privilegiado, pois se encontrava na contracapa do caderno de esportes. Tinha como título: "Ameaças dentro do lar”.

E como subtítulo: "Terror: em Belém, pais e parentes são

acusados de abusos sexuais contra crianças e adolescentes”. A matéria fala da rotina do “abuso” em “dezenas de famílias”. Cita como exemplo um pai que teve relações sexuais com sua filha e a engravidou. O pai na reportagem, afirma de seu arrependimento e em outro momento, afirma que "não consegue olhar para ela (filha) sem se sentir sexualmente atraído.”

Parece óbvio,

circunstâncias.

que

o

seu

arrependimento

é

fruto das

As citações da reportagem não são gratuitas e tem tão

somente o intuito de solidificar uma versão que busca somente a condenação deste pai, que também é chamado na mesma matéria de estuprador.

São ações da mídia que tem um alcance limitado na

ampliação do debate. Mas

a

especificamente.

pesquisa

não

visa

adentrar

nesses

debates

Está em pauta a construção do “abuso” apoiada em

discursos estruturados fomentados por uma a rede composta pela mídia, pesquisadores, profissionais liberais, organizações policiais, jurídicas e de proteção à criança e adolescente e também de membros da família onde ocorreu o “abuso”. organizações

que

Em torno dessa articulação foram criadas diversas oferecem

serviços

variados

(terapia,

advogados,

médicos, etc) No Brasil as entidades de direitos humanos, passaram a criar projetos para denunciar a chamada “exploração sexual” de crianças e adolescentes, incluindo especialmente o combate ao “turismo sexual” e ao “abuso”

sexual.

Inúmeras

organizações

não-governamentais

comprometem-se com essa ação como por exemplo:

“Centro de

Referência para Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes” (Brasília, DF); “Projeto Ser Menina” (Campo Grande, RJ); “Movimento Nacional de Meninos e Meninas

de Rua” (Brasília,

DF);

“Associação

Brasileira

Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência” (Rio de Janeiro, RJ); “Centro de Defesa da Criança e do Adolescente” (Salvador, BA); “Centro de Defesa da Criança e do Adolescente” (Belém, PA); “Clinica da Violência da Formação Freudiana” (Rio de Janeiro, RJ); “Projeto Axé” (Salvador, BA); “Centro de Referência ás Vítimas de Violência” (São Paulo, SP); “Programa de Atenção à Vítimas de Abuso Sexual” (São Paulo, SP); “Casa de Passagem” (Recife, PE); Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (São Paulo, SP). Há também projetos governamentais direcionados ao combate ao “abuso” sexual e prostituição infanto-juvenil: como o da Prefeitura de Santos (SP) “Meninas de Santos”; o “SOS Criança” mantido pelo Governo do Estado de São Paulo e do Governo de Brasília; o “Programa de Prevenção e Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes” (DF). São inúmeros espalhados por todo o país. O próprio Governo Federal, diante de denúncias de turismo sexual, especialmente em cidades do Nordeste, divulgadas até em jornais europeus, organizou o “I Seminário Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas América”, (realizado em Brasília, entre os dias 16 e 20 de abril de 1997). Também institui o “Dia Nacional de combate ao Abuso Sexual e á Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (em 1999). São entidades que visam garantir os direitos de crianças e adolescentes que denunciam mundialmente a situação em que elas vivem no Brasil; situações graves de risco de morte e em situações de trabalho no mínimo perigosas (como o emprego de mão de obra infantil em trabalho como nas carvoarias, colheita da cana, plantação de mate, madeireiras, etc.).

Buscam aliados em outros países para que sejam

adotadas convenções internacionais e criadas políticas e legislação que assegurem o desenvolvimento “sadio” de crianças e jovens.

Assim emergência e solidificação do ”abuso” como um tipo, está relacionada, dentre outras coisas, com a construção de uma sociedade de direitos.Em continuidade a esta historização os próximos capítulos buscam mostrar

como

esse

cenário

foi

sendo

constituído

internacional

nacionalmente, utilizando para isso documentos de domínio público.



e

Do estranhamento a familiaridade:

o “abuso” se solidifica como um tipo

Crianças abusadas sofrem uma variedade vasta de problemas físicos, emocionais e de desenvolvimento (...). Além das conseqüências para a saúde, a criança abusada tem dificuldades na escola, problemas com o abuso de drogas e problemas com a lei. Essas são questões de saúde pública de importância vital para a OMS e representa uma mudança para o próximo milênio. (Dr. Bjorn Thylefors, Diretor da OMS, 1999)

O

“abuso”

aparece

intrinsecamente

ligado

a

um

amplo

quadro

de

transformações (políticas) importantes, que buscam produzir modos de existência para essa criatura que conhecemos como “ser humano”. Daí então, as nossas práticas são associadas à solidificação de uma subjetividade individualizada, ou seja, à construção de um “eu” autônomo, um “sujeito”. A nomeação, categorização e construção de saberes, ao mesmo tempo, formalizam tudo isso em diversas práticas, permitindo agenciamentos do que seja ser um humano: um ser que constitui a si mesmo como um sujeito. 73 Constituimo-nos a nós mesmos na busca de modos de existência que se pretendem sempre ser o mais próximo do ser humano que inventamos.

O resultado é esse ser

humano individualizado, dotado de subjetividade, de memória e consciência.74

Tendo esse caminho sido aberto, é possível falar em direitos individuais e universais do “ser humano”, ser humano este, que se constitui em etapas de desenvolvimento que vão da infância à vida adulta.

Infância que, como já vimos no capítulo introdutório, é

associada à fragilidade, docilidade e pureza, irracionalidade, prélogicismo, em oposição a vida adulta que é relacionada a possibilidades de escolhas, sob a crença de que o ser humano, nesta fase, já está com as suas capacidades “físicas” e “mentais” desenvolvidas. Retomo agora as discussões já realizadas sobre a infância para avançarmos na construção do “abuso” como um “tipo” no cenário internacional. Foi a partir do séc. XVII que ocorreram mudanças significativas em relação ao trato de crianças, criando-se regras de conduta que as separavam da vida dos adultos. Tornaram-se seres que deveriam ser

73

A construção de um “eu” através de tecnologias fomentadas pelas áreas “psi” intrinsecamente ligada a transformações no poder político em democracias liberais contemporâneas, é a tese central do trabalho de Nikolas Rose (1996). Suas reflexões influenciaram-me no estudo da emergência do “abuso”.

tratados por especialistas que estudavam suas peculiaridades.

As

observações começavam “em casa”: Pestalozzi publicou em 1774 anotações que extraiu de observações realizadas com seu filho de 3 anos; Darwin

também publicou em 1877, um diário com as

observações que realizou com seu filho. De uma forma ou de outra, especialmente no final do séc. XIX e nas três primeiras décadas do séc. XX, as crianças tornaram-se sujeitos para estudos, muito influenciados pela obra de Darwin sobre a origem das espécies.

Teóricos da área

“psi” se detiveram na descrição de “etapas” do desenvolvimento humano (Hall, Freud, Werner, Piaget, por exemplo), enfatizando o cuidado que deveria se ter nos primeiros estágios relacionados à infância. Constituída como um sujeito com características peculiares a um estágio do desenvolvimento humano, a criança pode ser objeto de investigação científica e de proteção já que é frágil.

A APA (American Psychological Association) inspirada no seu

código de ética para pesquisas com humanos (Ethical Standards for Research With Human Subjects) publicou em 1972, um código específico para pesquisas com crianças enfatizando no primeiro artigo seus direitos: As crianças, enquanto sujeitos de pesquisa, apresentam ao investigador problemas éticos diferentes dos trazidos por sujeitos adultos.

As crianças não são somente

consideradas mais vulneráveis à tensão como também, por seu menor conhecimento e experiência, são menos capazes de avaliar o significado de sua participação na pesquisa. Deve ser obtido o consentimento dos pais para o estudo do seu filho, além do da criança. Estas são algumas das principais diferenças entre a pesquisa com crianças e a com adultos. 1. Não importa quão jovem seja a criança, ela tem direitos que transcendem os do investigador. Este deveria medir cada operação proposta em termos dos direitos da criança e, antes de prosseguir, obter a aprovação de um comitê de profissionais. estudo,

dever-se-iam

Em qualquer situação e crianças como sujeitos de estabelecer

comitês

de

avaliação

formados

por

profissionais (Apud., MUSSEN, CONGER, KAGAN, 1977, p. 19-20; o grifo é meu).

74

Quiçá possamos um dia “... descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos —

Assim, temos um “ser” com particularidades e por isso objeto de investigação e objeto de direitos específicos. Um ser que merece cuidados especiais, organizações e profissionais que zelem por sua vida, o que favorece as condições de possibilidade para que relações sexuais entre adultos e crianças ou adolescentes possam ser classificadas como “abuso”,

com registros que lhe dão visibilidade.

Isso

tudo

a

partir de um

determinado momento/tempo, em determinado lugar/espaço.

Temporalidades75 do “abuso”

O “abuso” tomou visibilidade como uma classificação relacionada ąs relações sexuais praticadas entre adultos crianças e/ou adolescentes, especialmente a partir de 1960, nos EUA.

No entanto, os movimentos

reivindicatórios relacionados aos maus-tratos na família vieram depois de outros movimentos como a abolição da escravidão, legislações sobre o trabalho infantil, a implantação do sufrágio universal, vivissecção e crueldade contra os animais (HACKING, 1999, p. 134). Antes do “abuso” ter visibilidade como temos nos dias de hoje,

o que se

designava como proteção à criança no início do século XIX, na Europa, especialmente na Inglaterra e França, na legislação que se referia aos serviços sociais e de saúde, estava relacionada ao combate a crueldade:

“A expressão ‘abuso sexual’

— essa expressão

exata — é muito rara antes de 1960; o que se dizia antes era ‘crueldade com crianças’ ” (HACKING, 2000, p. 67).

Diferentemente do “abuso”, a “crueldade” não se referia a

transgressões sexuais. Neste sentido, tratava-se de elaborar normas, leis e providenciar medidas para proteger as crianças em situações de trabalho, já que elas eram, em diversas ocasiões, submetidas a situações perigosas para melhorar as condições de trabalho de adultos. No combate a crueldade propunha-se: limitar as horas de trabalho dos aprendizes, garantir condições sanitárias mais adequadas e providenciar o mínimo de

não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 1984b, p. 21). 75 “Temporalidades” é um termo utilizado por Latour (2000, p. 67), para caracterizar o retorno ou a presença continuada de acontecimentos que são situados em relação a sua intensidade, freqüência e datas, característicos da modernidade. É importante enfatizar que neste trabalho a “temporalidade” é instável, descontínua, porque não se compreende o tempo como sendo constituído de momentos que passam, mas como momentos que se presentificam e se negociam para dar visibilidade aos acontecimentos. Sob essa perspectiva não há como fugir de alguma inscrição. A preocupação é a de não constituir algo como irrompendo miraculosamente, muito menos realizar uma volta ao passado para reconstituí-lo. Aqui valem as considerações sobre memória e tempo realizadas no capítulo 2 (p. 65-72).

educação

(WATKIN, 1975).

Eram medidas que visavam atingir crianças pobres que

trabalhavam. No processo desse movimento foi fundada em 1884 a primeira organização inglesa para combater a crueldade, The National Society for the Prevention of Cruelty to Children (Ibid., p. 414).

No entanto, a primeira organização formal a combater a

crueldade sofrida por crianças foi fundada em 1874, The New York Society for the Prevention of Cruelty Children, derivada de uma organização que se dedicava a lutar contra a crueldade sofrida por animais, The New York Society for Prevention Cruelty to Animals (HACKING, 1998, 1999; LAZORITZ, 1990; LAZORITZ & SHELMAN, 1996).

Geralmente se reconhece que o início dos movimentos de proteção a crianças maltratadas em suas famílias, está relacionado ao episódio de uma pequena garota de 9 anos chamada Mary Ellen (foto abaixo), que era espancada por seu padrasto (LAZORITZ, 1990; LAZORITZ & SHELMAN, 1996).

Mary Ellen wearing tattered clothes and bearing scars form her abuse (Keens, 1876a) Fonte: LAZORITZ, 1990, p. 145.

Ela foi removida de sua casa em 1874 por intermédio da New York Society for the Prevention of Cruelty to Animals, fundada em abril de 1866, por Henry Bergh (LAZORITZ & SHELMAN, 1996).

Ele quem

recebeu carta de uma senhora que lhe pedia uma intervenção em favor de Emily Thompson, justificando:

“um homem que apresenta tanta

misericórdia com os animais, não pode deixar de fazê-lo igualmente com a espécie humana” (Ibid., p. 236). O que passou a ser conhecido como “o caso Mary Ellen”, resultou na fundação da New York Society for the Prevention of Cruelty to Children, em 1874, e na remoção de Mary Ellen de sua casa através de um habeas-corpus. Esta

sociedade

investigou

abuso

físico

e

negligência

infantil

primeiramente entre imigrantes pobres americanos de famílias de classes trabalhadoras (OLAFSON et. al., 1993, p. 09), revelando preconceito que passou a ser quebrado a partir do final do século XIX na Inglaterra e nos EUA, especialmente em função da luta de feministas e de mulheres religiosas que, ao reivindicarem condições mais igualitárias entre mulheres e homens também afirmavam que o “abuso” sexual e físico eram crimes chocantes que ocorriam em todas as classes sociais (Ibid.). Hacking (1998) aponta esse aspecto do “abuso” como uma diferença em relação a noção de crueldade, já que neste último caso se tratava de um “vício” das classes baixas. Um das hipóteses para essa crença segundo Hacking, está relacionada a união de setores “conservadores” e mais “avançados” da sociedade norte americana no combate ao “abuso”, uns por medo da desestruturação da família e outros por acreditarem que o “abuso” é fruto do domínio masculino (Ibid.).

Desta forma, uniram-se várias classes, ainda que

com objetivos diversos, para combater o “abuso”. No entanto, “o caso Mary Ellen”, não foi o primeiro episódio de maus-tratos ocorridos na família que resultou na remoção da criança de sua casa.

Lazoritz & Shelman (1996), descrevem o caso Emily

Thompson, como tendo sido a primeira intervenção da New York Society for the Prevention of Cruelty to Animals (NYSPC), realizada também através do mesmo instrumento legal, ou seja, um habeascorpus (Ibid., p. 236).

O jovem advogado Elbridge T. Gerry, foi

ovacionado pela genialidade da aplicação de um habeas-corpus para

retirar Mary Ellen de sua família, mais já havia adotado esse procedimento com os mesmos objetivos no caso Emily Thompson. A diferença foi que Emily, negou veementemente ter sido agredida por sua “protetora”, a Sra. Larkin, apesar de sua face e seu pescoço estarem severamente feridos, apesar do testemunho de vizinhos afirmando que ela era agredida quase diariamente e ainda, apesar do juiz ter considerado a sua “protetora” culpada, a sentença foi suspensa e Emily devolvida à Sra. Larkin, “presumivelmente porque não havia parentes vivos” (Ibid., p. 236).

Porem, a imprensa da época, ao

divulgar o caso, favoreceu a pequena Emily: sua avó leu um artigo em um jornal sobre o caso, procurou o Sr. Bergh, e se identificou. Novamente, foi utilizado um habeas-corpus para retirar Emily da casa onde morava e o juiz entregou a guarda da menina para a sua avó. Percebe-se, em ambos os casos, que as situações em que houve intervenção da NYSPC, da Justiça e mesmo de vizinhos, ainda não eram identificadas como “abuso” e sim como “crueldade” e as “denúncias” estavam mais restritas a circunstâncias em que as crianças eram criadas por pessoas que não eram seus parentes “naturais”. A descrição desses casos-modelo quase sugere o nascimento espontâneo da ISPCAN. Algo que aconteceu “sem querer”. Parecia que por obra de uma “força” vinda dos próprios casos, houve uma articulação de médicos de vários países e a necessidade emergente de fomentar a criação de um campo. Mas um pequeno trecho do relato de um dos médicos participantes daquele movimento e o título do artigo que abriga a descrição, “Nurturing a journal, fostering a field”, indicam o oposto: Em 1975, Henry Kempe deu a Pierre Ferrier a missão de organizar o “First International Congress on Child Abuse and Neglect” em Genebra.

Henry

juntou um grupo de profissionais (principalmente seus amigos e colegas) da Europa, Austrália e dos Estados Unidos em Bellagio, na Itália. Durante o encontro de Bellagio nasceu a International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect.76 Henry foi o primeiro presidente e se voltou para Pierre 76

Observe-se ainda que mesmo grupo de Bellagio propôs o jornal da Sociedade (KRUGMAN & FERRIER, 1988, p. V).

Ferrier e disse: "Pierre, você podia organizar nosso primeiro congresso internacional em Genebra no próximo ano, você não pode." Isto não era uma pergunta. (KRUGMAN & FERRIER, 1988, p. V). O primeiro estudo considerado científico sobre “crueldade” em crianças realizado "por aqueles que exercem uma autoridade mais ou menos direta sobre elas" (WOLFF, Apud., GUERRA, 1995, p. 61) foi feito na França, em 1857, pelo Dr. Ambroise Tardieu, presidente da Academia de Medicina de Paris.

Seu trabalho, que tinha como

título Étude médico-légale sur lês attentats aux moeurs (CUNNINGHAM, 1988, p. 346), era um estudo de 32 casos de crianças que haviam sofrido diversas lesões (fraturas, queimaduras, hematomas, equimoses, etc.), que por suas características estavam em desacordo com as causas oferecidas pelos seus acompanhantes (WOLFF, Apud., GUERRA, 1995, p. 60). É importante localizar este trabalho observando que na França, no final do século XIX, começaram a se multiplicar as sociedades preocupadas com o que Donzelot chamou de "infância em perigo" e "infância perigosa" (DONZELOT, 1986, p. 79). Em 1888, é promulgada lei decidindo que será possível “… decretar a perda dos direitos de pais e mães que, por sua embriaguez habitual, maus procedimentos notórios e escandalosos, maus-tratos, comprometam tanto a segurança como a saúde de seus filhos” (Ibid., p. 80, o grifo é meu). Portanto, estão sendo organizadas as condições para que possa emergir o “abuso” referindo-se também a práticas sexuais. O “abuso” infantil, começou a emergir como um tipo a partir de 1962 com a publicação do artigo “The battered child syndrome”, por uma equipe de pediatras (KEMPE, SILVERMAN, STEELE, DROGMUELLER & SILVER). Sob a liderança de Kempe foi fundada a International Society for Prevention and Treatment of Child Abuse and Neglect (ISPCAN)77 em 1977 e posteriormente, criaram uma revista científica: “Child Abuse & Neglect: The International Journal”, que se tornou a revista de maior circulação mundial tratando especificamente desse tema.

Nos fascículos desta revista há um pequeno

resumo dos objetivos da ISPCAN, que é uma transposição de um trecho do Estatuto da Sociedade (artigo primeiro, seção 1) : A Sociedade Internacional foi fundada em 1977 para prevenir a crueldade em crianças em todas as nações

— se a crueldade ocorre na forma de abuso,

negligência ou exploração — e assim possibilitar às crianças de todo mundo

77

A ISPCAN é a maior e mais conhecida organização com o objetivo específico de prevenir e tratar do “abuso” infantil. Há uma outra organização internacional chamada de “Movimento ECPAT” (End Child Prostitution, Child Pornography and the Trafficking Children for Sexual Purposes), com sede em Bangkok, que está começando sua inserção no Brasil e as informações que foram levantadas ainda são insuficientes para uma análise mais detida. Algumas informações adicionais foram incluídas no capítulo seguinte.

desenvolverem-se fisicamente, mentalmente e socialmente com saúde e de modo normal. (...). A Sociedade fundou “Child Abuse & Neglect, The International Journal” como uma publicação oficial. (...) A revista promove um fórum multidisciplinar internacional para prevenção e tratamento do abuso infantil e negligência, incluindo abuso sexual... Claramente nesta citação podemos perceber que a Sociedade foi fundada sob o combate à “crueldade” e posteriormente, (isso fica explícito nos objetivos da revista), o “abuso” passa a ter maior visibilidade, especialmente o “abuso sexual”.

Hacking ao comparar a “crueldade” com o ”abuso sexual” aponta um aspecto bastante importante: ... a crueldade com crianças não foi um problema médico, enquanto o abuso infantil foi objeto da medicina desde o princípio. A idéia foi proposta pelos pediatras.

Os acusadores infantis foram qualificados como enfermos.

A

medicina não teve meios de manter um controle uniforme (...) do abuso infantil, mas quem quer que pretenda controlá-lo deve tratá-lo dentro de alguma ciência.

Em contraste, a crueldade não foi objeto da ciência.

Os

homens que batiam em seus filhos não eram submetidos a exame médico como um tipo especial de pessoa enferma.

Uma grande parte do que

Donzelot (1979) chamou de “a polícia das famílias” fez uso de teorias médicas, mas crueldade seguiu outra rota. Pessoas não tentaram controlá-la por meio de um conhecimento especial sobre o cruel.

Eles nunca deram a

conhecer que pais cruéis eram um “tipo” de ser humano sobre o qual era possível um conhecimento especializado (HACKING, 1999, p. 135). Segundo Hacking (1999, p. 135-136) o uso do termo “crueldade” relacionado a crianças começou a perder notoriedade em torno de 1910, problemas como “mortalidade infantil” e “delinqüência juvenil”.

dando lugar para Estes temas tiveram

maior relevância até pouco mais da metade do século XX. A partir daí, entre 1961-1962 o “abuso” infantil emerge tendo como espaço social os EUA, mais especificamente a cidade de Denver e sob as mãos de médicos pediatras. 78

78

A exposição sobre a emergência do “abuso” internacionalmente foi realizada a partir das referências: Hacking (1999); Guerra (1995); Furlotti (1999) e de vários artigos publicados na revista Child Abuse & Neglect (cujos autores, vão sendo citados no decorrer deste capítulo).

Inicialmente o "abuso" referia-se a maus-tratos em geral.

Assim, sob a

direção do Dr. C. H. Kempe, pediatras começaram a observar com mais cuidado, quer dizer, com um certo estranhamento, lesões e fraturas em crianças pequenas. 79 Com o auxílio de raios X, eles passaram a obter os indícios ou sinais de maus-tratos80.

Isso

permitiu que esses pediatras batizados como o “grupo de Denver”, pudessem indicar uma nova síndrome 81: “the battered child syndrome” (síndrome da criança espancada). Publicaram artigo em 1962 sobre o tema com apoio da American Medical Association (HACKING, 1999, p. 138). Em 1965, o Index Medicus incluiu “abuso infantil” na sua lista de categorias médicas a serem catalogadas, assim como o New York Times passou a arquivar as histórias sobre “abuso” e “crueldade” sob o título de “abuso infantil” (Ibid.).

Logo começou a construção de conhecimento de cunho científico nas análises e explicações sobre o “abuso infantil”. O artigo citado, que se tornou um marco de referência em estudos sobre “abuso”, Kempe e outros colaboradores defendem uma postura de hereditariedade, ou seja, os pais que “abusaram” de seus filhos podem está repetindo o tratamento que lhes foi dado quando crianças (KEMPE et. al., 1962, p. 23).

Esta hipótese como afirma Hacking, está de acordo com as

crenças no século XX que as experiências vividas na infância formam o adulto (HACKING, 1999, p. 37).

Para sustentar tal afirmação são

realizados estudos estatísticos com riqueza de dados que favorece, a partir de então, (Ibid., p. 138), a classificação de crianças como “abusadas” e pais como "abusadores”. Também no mesmo artigo, Kempe e seus colaboradores defendem a separação dos bebês de seus pais como medida para evitar a continuidade do “abuso” e atribuem aos médicos essa competência:

79

No artigo de Kempe e colaboradores, consta das referências bibliográficas um artigo que pode ter influenciado esses pediatras na proposição da “síndrome da criança espancada” e na noção de “abuso físico” (ELMER, E. Abused yonung children seen in hospitals.Soc. Work (nº.04) 5: 98-105 (oct.), 1960). Infelizmente não pude obter antes de terminar este trabalho, muito em função dos problemas ocasionados pela disseminação da substância “antrax”, nos correios norte-americanos (os remetentes desistiram do envio). 80 Já no artigo de Kempe e seus colaboradores, analisado a seguir, há uma série de fotos de radiografias, como exemplos de “abusos” cometidos contra crianças. 81 É interessante observar o significado no dicionário da palavra “síndrome”, pois permite uma melhor localização do que tomava visibilidade como “abuso” nos EUA: “1. (Med.) Estado mórbido caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas, e que pode ser produzido por mais de uma causa; 2. (Fig.) Conjunto de

“Os médicos não deveriam estar satisfeitos com o retorno de crianças a um ambiente onde ainda houvesse um risco moderado de repetição” (KEMPE et. al., p. 24). aspectos importantes:

Este atrelamento ao saber médico tem dois a) Faz com que se considere que quem pode

ter, como lembra Hacking, o “conhecimento real” sobre situações de “abuso” infantil são os médicos;

b) As pessoas diagnosticadas como

“abusadoras” são consideradas doentes e portanto, o “abuso” é uma enfermidade (HACKING, 1999, p. 137-138). Um bom exemplo da “medicinalização” do “abuso” está na Child Abuse & Neglect: The International Journal: os fundadores eram médicos e a maioria dos autores de artigos e do conselho editorial também. Como vimos acima, esta revista é mantida pela International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (IPSCAN), também fundada por médicos, cuja história é crucial para a construção do “abuso” como um tipo (abordaremos isso mais à frente). Os objetivos desta revista, à disposição no sítio 82 da IPSCAN na Internet, são: circular informações sobre

“… a prática clínica e pesquisa

acadêmica em torno da prevenção e tratamento de todas as formas de abuso e negligência infantil”.83 Por esses objetivos fica clara a perspectiva da revista e portanto da organização que a mantém, que é a de compreender o “abuso” como uma doença. A identificação do “abuso”, especialmente associado com agressão física, era realizada através de um exame clínico com o auxílio de raios X que, juntamente com a fotografia, transformou-se em instrumento de prova.

Porém, o “abuso” desde o seu

início foi caracterizado como uma agressão motivada por problemas psíquicos.

A

diferença dos escritos de Kempe em relação às teorias atuais se restringe, quase que exclusivamente, às conseqüências do “abuso” caracterizadas como “traumas” que vão além de aspectos físicos.84

Algumas afirmações como, dizer que o “abuso” pode ser

encontrado em todas as camadas sociais; que crianças “abusadas” se tornam provavelmente pais “abusadores” e também afirmar que os fatores desencadeantes

características ou de sinais associados a uma condição crítica, susceptíveis de despertar reações de temor e insegurança” (Houaiss, 2001, p. 2578). As duas definições são aplicáveis a “síndrome da criança espancada”. 82 Acato aqui a sugestão do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que propõe o uso da palavra “sítio” no lugar da palavra de origem inglesa “site”, quando esta se referir a um local ou um nome de domínio na Internet. 83 Informação foi colhida no domínio da ISPCAN na Internet, no dia 23 de outubro de 2000. 84 Kempe e colegas ao se referirem a “trauma” neste texto, o associam exclusivamente a problemas físicos.

podem estar relacionados à por exemplo, alcoolismo e famílias desestruturadas, já eram apontados por Kempe e seus colegas: Bater em crianças, entretanto, não é uma ação restrita a pessoas com uma personalidade psicopática ou com condição sócio-econômica borderline. Isto também ocorre dentre pessoas com boa educação, estabilidade financeira e background social.

Entretanto a partir dos dados restritos que estão

disponíveis, poderia-se mostrar que nestes casos, também, há um defeito na estrutura de caráter que permite que impulsos agressivos sejam expressos livremente. Há também a sugestão que parente agressivo foi objeto de abuso similar na infância. Isto indicaria que um dos fatores mais importantes a ser encontrados em famílias onde ocorre estupro parental é, “faça aos outros, o que foi feito para você." Isto não é surpreendente: tem sido reconhecido por psicólogos e antropólogos sociais que modelos de criação de criança, sejam bons ou

ruins, são passados de uma geração a outra, relativamente

inalterados. Psicologicamente, pode-se descrever este fenômeno como uma identificação com o pai agressivo e esta identificação ocorre a despeito de fortes desejos da pessoa ser diferente (KEMPE, et. al., 1962, p.106; o grifo é meu). É interessante verificar ainda alguns aspectos que hoje são relatados quando a temática é o “abuso”. O artigo já se referia a agressão física como “abuso”, mas não relaciona essa palavra diretamente a sexualidade.

Também reconhece “aspectos

psiquiátricos” pertencentes ao problema de agressão a crianças tais como, psicose, psicopatia ou sociopatia (p. 106).

Alcoolismo promiscuidade sexual, instabilidade no

casamento, pequenas atividades criminais e gravidez “indesejável”, também são relatadas como comuns entre os pais que agridem crianças, aliadas a algumas características

psicológicas:

imaturidade,

impulsividade,

“self-centrado”,

hipersensitividade e reações rápidas com pouco controle da agressão (Ibid.). Reforçando a tese de que na emergência do abuso como um tipo, os aspectos “psi” estavam relacionados aos perpetradores, ainda há dois trechos importantes no texto de Kempe e colaboradores, um sobre “repressão psicológica” e outro sobre “testes psicológicos”: A negação por pais de algum envolvimento em episódio abusivo pode (...), ser um consciente dispositivo de proteção, mas em outras circunstâncias pode ser uma negação baseada em uma repressão psicológica. Assim, uma mãe

que parecia ter sido aquela que injuriou seu bebe, teve amnésia completa aos episódios em que sua agressão irrompe... Em alguns casos os testes psicológicos podem revelar tendências agressivas fortes, comportamento impulsivo e carência de mecanismos adequados de controle de comportamento impulsivo. Em outros casos somente um contato prolongado em um ambiente psicoterápico pode conduzir a uma compreensão completa do background e circunstâncias que envolveram o ataque ... Inicialmente relacionado aos maus-tratos (violência física) e com a indicação que pais e professores deveriam ser vigiados para que isso fosse evitado, o “abuso” foi sendo gradativamente também associado à violência sexual.

Hacking aponta as

“feministas” como as responsáveis por essa inclusão no arco de situações “abusivas” e dois acontecimentos fundamentais: a) A explanação de Florence Rush sobre o tema do “abuso” sexual na New York Radical Femenist Conference, em 1971; b) A publicação de um artigo na revista MS como o título “Incest: Child Abuse Begins at Home”, em maio de 1977 (HACKING, 1999, p. 139). O “abuso” passa a se referir não só a relações sexuais em seu sentido restrito (relações genitais), mas também a carícias, exposição de crianças a intimidade de casais, jogos sexuais com irmãos

(Ibid., p. 140).

A inclusão de várias práticas como sendo

“abuso”, permitiu que homens e mulheres passassem a “recordar” e revelar experiências sexuais vividas com parentes consideradas "abusivas" (Ibid., p. 140).

Também

favoreceu a concepção de que o incesto e “abuso” sexual infantil são epidêmicos, reforçando a teoria da “memória reprimida” já que, por se tratarem de experiências doloridas e traumáticas, não poderiam ser lembradas com facilidade porque ativam defesas e mecanismos inconscientes de repressão e por isso precisavam ser revividas com ajuda de especialistas em ambiente terapêutico (LOFTUS & KETCHAN, 1994). Esse quadro permite inclusive que se indique vários sintomas vividos por adultos que são indícios de “abuso” sofrido na infância: a ansiedade, pânico, depressão, disfunções sexuais,

dificuldades

de

relacionamento,

comportamentos

abusivos,

desordens

alimentares, solidão, tentativa de suicídio (Ibid., p. 140). Ou seja, o “abuso” se constitui em uma doença com as seguintes características: "... é epidêmico, a repressão é feroz, é possível recordar, a terapia pode ajudar" (Ibid., p. 141). A situação é tal que, segundo Hacking, o “abuso” infantil sucessivo é considerado como a causa do “Distúrbio de Múltipla Personalidade” (DMP), e deve ser tratado “recuperando” o sofrimento ocorrido através memória (HACKING, 1998). Tanto Hacking quanto Loftus & Ketchan, relatam problemas que surgem ao se considerar como

verdades literais os relatos de adultos que são submetidos à terapia e assim estimulados a recordar seus traumas proporcionados por “abuso” sofrido na infância.

Hacking

compara essa situação à confissão cristã, sendo que, em vez de confessar os próprios pecados, se confessam os pecados do pai levando a exageros tais como comparar o "abusador” com o “... diabo encarnado, unindo assim algumas versões extremas do cristianismo radical e do feminismo radical em uma aliança ímpia” (HACKING, 1999, p. 142).

Loftus & Ketchan posicionam-se em relação à memória que se busca às vezes

levianamente nos processos terapêuticos: as autoras não duvidam das experiências de homens e mulheres que sofrem silenciosamente com memórias de “abuso” que nunca conseguiram esquecer,85 mas questionam processos terapêuticos que relacionam memória com

"(...) ‘repressão’

— memórias que não existem até alguém tê-las

mostrado” (LOFTUS & KETCHAM, p. 141). O que as autoras apontam como um problema pode ser estendido a uma compreensão geral da sociedade que acredita na memória reprimida (popularmente compreendida como um esquecimento), causada por trauma “emocional”.

A década de 1980 foi importante para a caracterização do abuso sexual como “um evento traumático” (FILKELHOR & BROWNEW, 1985). Muito mais que as conseqüências físicas, o trauma severo é de dimensão psicológica e pode acarretar: “confusão de sexo com amor, aumento

do

manifestações

aparecimento

de

comportamentais,

questões tais

como,

sexuais

e

preocupação

diversas com

a

sexualidade, agressão sexual e a inapropriada sexualização de pais” (FRIEDRICH, 1993, p. 59). Com a preocupação de verificar a extensão do trauma, foram construídos, em períodos diferentes, alguns testes. O Child Behavior Checklist (CBC) criado em 1983, é o mais comum deles, ainda que não tenha sido feito especificamente para avaliar o “abuso” sexual. Dentre os testes mais específicos três parecem ter sido muito importantes: a)

O “Observational Rating Scale for Sexually Abused Children”, construído em 1985, por Friedrich e Lui, desenvolvido para através de observação, avaliar de forma “mais precisa” o comportamento sexual de crianças (FRIEDRICH, 1993, p. 64).

85

Hacking também afirma seu repudio ao “abuso” infantil: “Não tem sentido estar a favor do abuso sexual. Só os monstros podem gostar disso” (1999, p. 141).

b)

O Trauma Symptom Checklist for Children (TSC-C), construído por Briere, em 1989, avalia a partir do relato da própria criança vítima “de abuso”. Foi desenvolvido a partir de estudos com pessoas entre 8 e 15 anos, “mede” 54 itens que incluíam dentre outras coisas, depressão, ansiedade, problemas no sono, problemas sexuais, dissociação (FRIEDRICH, 1993, p. 63);

c)

O construído por Friedrich e colegas, The Child Behavior Inventory (CSBI), em 1991, utilizado para avaliar mais especificamente comportamento sexual em crianças sexualmente “abusadas”, utilizando o relato de pais (FRIEDRICH, 1993). Variando o tipo de escala ou os instrumentos utilizados na aplicação do teste

(desenhos por exemplo), há uma pressuposição generalizada de que o “comportamento sexual” de crianças que sofreram “abuso” é mais “exaltado” (elevated): “em conclusão, o comportamento sexual exaltado em crianças abusadas sexualmente é uma descoberta consistentemente identificada. Sua importância, tratamento e implicações a longo prazo, asseguram outras investigações” (FRIEDRICH, 1993, p. 64).

Ainda na metade dos anos 80, iniciaram-se estudos comparativos "rigorosos" sobre os “persistentes e prejudiciais” efeitos do "abuso" em crianças (BEICHMAN et. al, 1991; OLAFSON et. al. 1993). Utilizavamse questionários rápidos. publicações

de

relatos

Os resultados desses estudos, bem como, clínicos,

de

adultos

sobreviventes

e

de

feministas, se tornaram abundantes a partir da década de 70 e colaboraram ainda mais para a "consciência" do “abuso” (Ibid.).

No

entanto, Cunningham (1988) e Masson (1984) apontam que já na metade do século XIX havia autores franceses que exploravam as “conseqüências psicológicas do abuso sexual” (CUNNINGHAM, 1988, p. 346). O Dr. Ambroise Tardieu (1818-1879) que já vimos ter publicado o primeiro livro sobre o assunto, é apontado como um dos autores principais. A quarta edição de seu livro (1862), apresentava o relato de 515 casos de “ofensas sexuais”. Dessas, 420 foram cometidas em crianças com idade abaixo de 15 anos. Segundo Tardieu, os casos de ataque sexual contra crianças não tinham segmento na corte judicial

porque precisavam apresentar sinais legais de evidência de violência, que incluíam, por exemplo, o rompimento do hímen (Ibid., p. 345). No fim da metade do século XIX houve interesse na psicopatologia do acusado (Ibid., p.347) em 1882, Jean Martin Charcot (1826-1893) criticou os “oficiais da lei” por considerarem os “infratores sexuais” como essencialmente “viciados”, mas do que “mentalmente doentes” (Ibid., p. 347). Um dos sucessores de Tardieu, Paul Brouardel (18371906), dizia ter sido muito influenciado pela visão de Charcot no que se referem a necessidade de compreender a patologia dos acusados de infrações sexuais. Brouardel é apontado por Cunningham como tendo favorecido a proteção desses infratores na medida em que os identificava como sendo “homens de família honesta” e minimizava a incidência de crimes sexuais, uma vez que estimava que 80% dos casos eram falsas acusações e que portanto, a corte deveria estar atenta e ser cuidadosa para não se deixarem influenciar pela “falsidade das crianças” (p. 347). O caso é que sob influência de Charcot psiquiatras franceses “estavam predispostos a atribuir fatores hereditários as doenças mentais” (Ibid.), a ponto de pederastia ser considerada “degeneração mental hereditária” (Ibid.).

Alfred Binet (1857-1911), foi uma das

vozes que se levantou buscando limitar a influência da hereditariedade em relação a “desvios sexuais” (Ibid.).

Em

Études de psychologie

expérimentale: le fétichisme dans lámour, defende que os fatores fundamentais na etnologia de desordens envolvendo a sexualidade, tem efeitos a longo prazo nas experiências sexuais de crianças. Para exemplificar sua teoria, Binet se refere a uma situação que Jean-Jaques Rousseau (1712-1778) viveu: quando tinha 8 anos de idade, foi forçado a partilhar a cama de sua professora e dormir com ela (Ibid., p. 348).

O Próprio Rousseau relatou as conseqüências do ocorrido em

seu livro “Confissões” (1764):

foi responsável pela sua timidez, pelo

seu celibato até a idade de 30 anos e pela sua obsessiva necessidade de humilhar as mulheres para obter satisfação sexual (Ibid.). Binet, sustenta a hipótese das amplas conseqüências de uma danosa experiência sexual na infância, dando total credibilidade ao relato de Rousseau. A confiabilidade ou descrédito do relato de experiências sexuais na infância, também é um tema que tem gerado inúmeras discussões em torno do “abuso”.

Uma das posições mais

discutidas até hoje, é a de Freud. Ao contrário de Binet, Freud tomou contato com os estudos de Charcot sobre a etiologia da histeria e inicialmente lhe foi muito simpático. Foi mais longe ainda e relacionou a etiologia das neuroses não a fatores hereditários mas, a experiências sexuais vividas na infância, portanto prematuras e traumáticas.

Tanto em “Etiologia da

histeria” (1896), quanto em cartas endereçadas a Fliess (1897), Freud deu grande importância a "teoria da sedução", afirmando que o incesto era mais comum que se suspeitava, acontecia em famílias respeitáveis e inclusive dava origem as neuroses e até a algumas psicoses.86 Freud depois “abandonou” a “teoria da sedução” e por isso, alguns autores

o

criticam severamente (por exemplo: OLAFSON et. al. 1993; MASSON, 1984). Segundo Olafson et, al (1993) depois que ele “abandonou” a teoria da sedução e passou a incluir em suas reflexões o conceito de "fantasia", considerou a maioria dos relatos de seus pacientes relacionados

a

relações

sexuais

na

infância

como

“produto

da

imaginação”. Em função dessa mudança de perspectiva teórica, Freud é acusada então, de favorecer o encobrimento do "abuso sexual", retardando a consciência de profissionais e da população em geral para esse problema. 86

Sobre a teoria da sedução e sua relação com o “abuso” sexual escrevi outro trabalho, “Teoria da sedução e abuso sexual” (PIMENTEL MÉLLO, 1999).

No entanto, Peter Gay (1989) observa: O colapso dessa teoria não o levou a abandonar sua crença na etiologia sexual das neuroses e tão pouco, sob esse aspecto, a convicção de que pelo menos alguns neuróticos tinham sofrido abusos sexuais por parte dos pais. Como outros médicos, ele conhecia casos assim. É significativo que, em dezembro de 1897, cerca de três meses depois de ter provavelmente abandonado a teoria da sedução, ele ainda escrevesse que sua “confiança na etiologia paterna aumentou bastante”.

Menos de quinze dias depois, ele

contou a Fliess que uma de suas pacientes lhe fizera um relato pavoroso em que ele estava disposto a acreditar: aos 2 anos de idade, ela tinha sido brutalmente estuprada por seu pai, um pervertido que precisava infligir ferimentos sangrentos para obter satisfação sexual.

De fato, durante dois

anos, Freud não se afastou em definitivo da teoria da sedução, e depois disso passaram-se mais seis anos antes que anunciasse publicamente alteração de suas idéias. Ainda em 1924, quase três decênios após ter se distanciado do que contritamente chamou de “um erro que repetidamente reconheci e desde então corrigi”, Freud insistia que nem tudo o que escrevera nos meados dos anos 1890 sobre o abuso sexual das crianças merecia ser rejeitado: “a sedução

conservou

uma

certa

importância

para

etiologia”.

Observou

explicitamente que dois de seus primeiros casos, Katharina e “Fraülein Rosalia H.", tinham sido molestadas por seus pais. Freud não tinha a menor intenção de substituir um tipo de incredulidade por outro.

O fato de deixar de

acreditar em tudo que seus pacientes lhe contavam não significava que tivesse que cair na armadilha sentimental de considerar o moderado burguês de casaca incapaz de revoltantes agressões sexuais. O que Freud rejeitou foi a teoria da sedução como uma explicação geral da origem a neuroses. (GAY, 1989, p. 101-102).

Raciocínio semelhante é utilizado por Schimer: (...) Meu principal argumento será que a conclusão de Freud que a histeria sempre requer uma ocorrência de abuso sexual na primeira infância não era baseada diretamente nas falas dos pacientes e memória consciente, mas envolve muitas interpretações seletivas e reconstruções.

As reconstruções

pressupõem um complexo conjunto de hipóteses e suposições e são baseadas em uma ampla variedade de dados não claramente especificados, vindos de pensamentos, imagens, exposição de afetos e gestos, para especificar

memórias vindas depois da infância. Ao mudar a teoria da sedução original, Freud não suprimiu tal clara e ambígua evidência, somente alterou alguns aspectos de sua interpretação dos dados — a saber, sua origem última em uma fantasia interna mais do que em um trauma externo (SCHIMER, 1987, p. 938-939). Outro personagem importante relacionado psicanálise, Sandor Ferenczi (1873-1933),

advogava

memória/consciência,

que

mais

os

traumas

poderiam

ser

sexuais

recuperados

foram (Ibid.,

p.

afastados 12).

da

Também

argumentou claramente sobre as conseqüências dos traumas sexuais que incluíam “fragmentação da personalidade e adultos pervertidos” (Ibid., p. 12).

Publicou suas

objeções em relação a Freud e a seus colegas por não darem a devida importância aos relatos de seus pacientes sobre ataques sexuais sofridos na infância.

Segundo

Roudinesco e Plon: Do ponto de vista clínico, foi Sandor Ferenczi quem levou mais longe a discussão psicanalítica dessa questão, ao apresentar ao congresso da International Psychoanalytical association (IPA) realizado em Wiesbaden, em 1932, uma intervenção que seria publicada sob o título “Confusão de língua entre os adultos e a criança”. corporação

analítica

e

suas

Nele, Ferenczi instigou a hipocrisia da atitudes

de

“neutralidade

benevolente”,

mostrando que ela repetia a hipocrisia parental... Sem abolir a dimensão da fantasia, Ferenczi reivindicou que se levasse em conta, na e através da psicanálise, a existência de sedução (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 698). Karl Abraham também é outro personagem da história do movimento psicanalítico que se preocupou em investigar mais detidamente traumas sexuais infantis e a teoria da sedução.

Em 1907, publicou seu primeiro texto psicanalítico.

On the

significance of sexual trauma in childhood for the symptomatology of dementia praecox, onde examinava traumas promovidos por elementos de sedução (GOOD, 1995, p. 1138). Esse texto não questionava a veracidade das seduções relatadas pelas pessoas, mas centralizava-se na questão: “por que tantos indivíduos neuróticos e psicóticos relatavam traumas sexuais em suas histórias” (Ibid., p. 1139). Propôs a controversa noção de que, em alguns casos, a criança “inconscientemente deseja o trauma” e, em função de uma predisposição constitucional para mais tarde apresentarem neuroses ou psicoses, o fato de ter experimentado um trauma sexual, explicaria a correlação de tal trauma com desordens mentais em períodos posteriores de sua vida (Ibid., p. 1140).

Em outras

palavras, pelo que se pode deduzir do texto de Michael Good, Abraham afirmava que as experiências sexuais na infância tornavam-se traumáticas na medida em que a criança apresentasse uma predisposição para desenvolver uma neurose ou psicose. É interessante notar o desfecho contemporâneo da teoria da sedução: A história da teoria da sedução transformou-se num verdadeiro escândalo no início da década de 1980, quando Kurt Eissler e Anna Freud decidiram confiar a publicação integral das cartas de Freud a Fliess para um acadêmico norteamericano, devidamente formado no serralho da ortodoxia.

Nascido em

Chicago em 1941, Jeffrey Moussaïef Masson pôs-se a ler os arquivos interpretando-os de maneira selvagem, com a idéia de que eles esconderiam uma verdade oculta, afirmou que Freud renunciara, por covardia, a teoria da sedução. Não se atrevendo a revelar ao mundo as atrocidades cometidas pelos adultos com as crianças, Freud teria inventado a fantasia para mascarar uma realidade; seria, portanto, pura e simplesmente, um falsário. Em 1984, Masson publicou o livro sobre o assunto, “O real escamoteado”, que foi um dos maiores best-sellers psicanalíticos norte-americanos da segunda metade do século. (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 698). Deixando a discussão da teoria propriamente dita de lado, se percebe que Freud, para uma parte dos psicanalistas norte-americanos, tornou-se um pervertido a semelhança do que aconteceu com Lewis Carrol, (Charles Dogson, autor de “Alice no país das maravilhas”) que teve sua obra atrelada a uma operação policial em Nova York denominada de Project Looking-Glass, (em referência a obra ”Através do espelho, e o que Alice encontrou lá”), que tinha a finalidade de investigar e prender pedófilos (Ver: HACKING, 1999).

No caso de Carrol, a “evidencia” de sua tendência pedófila foi o seu

gosto por fotografar meninas. Uma das fotos usada para esta “comprovação” é a de sua sobrinha Alice Liddell, que lhe inspirou “Alice nos país das maravilhas”. Aqui posa com um vestido em farrapos:

Alice Liddell Fonte: CARROL, 1980, p. 273.

De todo modo, as discussões sobre a “teoria da sedução” ou sobre os

efeitos

traumáticos

permaneceram. "efeitos

de

de

experiências

sexuais

na

infância

Foi a partir da Segunda Guerra Mundial que os

traumas

psicológicos"

tomaram

o

lugar

central

na

psiquiatria ocasionando estudos de “choques proporcionados por bombas, neuroses de guerra e efeitos do holocausto” (OLAFSON et. al. 1993, p. 11).

Com esses estudos também cresceu o interesse para

analisar a relação entre trauma e memória (Ibid.).

Como afirma

Hacking, “o trauma pulou do corpo para mente (...) na época em que as ciências da memória estavam entrando em cena” (HACKING, 2000, p. 201). Também

podemos

perceber

que

o

início

do

século

XX,



trazia,

especialmente em função do alargamento das fronteiras da psicanálise, discussões acadêmicas direcionadas a análise de “traumas psicológicos” ocasionados pela prática sexual de adultos com crianças. Um exemplo disto está no primeiro artigo catalogado na base de dados PsycLIT sobre “abuso sexual”.87 Trata-se do artigo de L..E. Emerson, “A psychoanalytic study of a severe case of hysteria”, publicado no Journal-of-Abnormal87

Esta pesquisa foi feita na base de dados a partir do verbete “sexual abuse” como palavra solta.

Psychology, em 1913 (May; Vol. 08: 180-207).

O resumo que descreve o artigo no

banco de dados diz: Apresenta um caso de histeria severa e seu tratamento com a psicanálise. A paciente foi sexualmente abusada por seu pai quando tinha a idade de 7 anos, depois foi repetidamente sexualmente violentada e teve relações incestuosas com seu irmão. Os sintomas histéricos serviam como gratificação sexual, resultado de um compromisso entre dois impulsos opostos, um que foi a tendência de tornar conscientes memórias reprimidas, enquanto o outro lutava para suprimi-las.

A consciência/ego defende-se reprimindo idéias

intoleráveis que foram então manifestadas como desmaios histéricos e cegueira. Algumas vezes a repressão pode levar a dissociação da mente. Os sonhos do histérico são formações de compromisso psíquica que expressam a censura do ego. Devido a forte resistência, o método da associação-livre não foi bem sucedido na análise.

Finalmente, a atitude emocional do analista é

importante na técnica psicanalítica.88 A primeira obra catalogada na base de dados PsycLIT com o termo “abuso sexual” no título, é um artigo, “Adult sexual abuse of children: the man and circumstances”, publicado em Diseases-of-the-Nervous-System, em 1968 (29 (10): 677683), por David W. Swanson. Do resumo do artigo consta simplesmente:

“Revisão

psicológica do conceito de pedofilia”.

A familiaridade e expansão: estratégias que dão visibilidade ao “abuso” Para dar maior visibilidade ao “abuso" infantil, que após 1962 tornou-se um problema público, foram feitos há alguns levantamentos estatísticos. Os estudos apresentavam números díspares uma vez que as porcentagens se referiam a coisas diferentes. Alguns incluíam além da agressão sexual, toda espécie de agressão física, outros incluíam além da agressão física o abandono (HACKING, 1999, p. 144-145). Por isso, "(...) se contamos coisas diferentes iremos obter diferentes respostas, visto que o que contamos depende da teoria em relação a qual contamos” (Ibid., p. 145).

A preocupação com o “abuso” sexual infantil, e a familiarização com esse tipo ultrapassou as fronteiras norte-americanas globalizando se: Um dos epifenômenos que são mais impressionantes no abuso infantil é seu elemento missionário, o desejo de transportar más notícias para outras nações (Ibid., p. 145-146). O tipo “abuso” infantil se tornou mais um produto de exportação norteamericano. Os ativistas que buscavam combater o “abuso” acreditavam que ele estava ocorrendo “na maioria das culturas em quase todas as épocas” (Ibid., p. 146).

Sem

dúvida que a expansão foi articulada e teve como instrumentos a criação da ISPCAN e da revista especializada Child Abuse na Neglect: the international journal.

A partir daí

expandiram-se os Congressos, Seminários e Oficinas patrocinados pela ISPCAN e por outros organismos internacionais tais como o UNICEF, governos locais. Essas reuniões começaram a ser realizadas em vários países, abrangendo todos os continentes.

A

coroação desse processo consistiu na fundação de associações afiliadas à sociedade internacional e na busca de pessoas que desejassem se filiar a elas. 89 afirmava o presidente da ISPCAN em 1986:

Afinal, como

“O abuso de crianças é um fenômeno

universal: as diferenças são em relação a prevalência e a natureza do abuso” (FERRIER, 1986, p. 281). A ISPCAN ampliava seus horizontes em busca de identificar e combater o “abuso” infantil no mundo todo.

Há um diálogo que ocorreu quando da “Primeira

Conferência Européia sobre Abuso de Criança e Negligência” em Rhodes, do editor chefe da Child Abuse & Neglect e um ministro romeno que estava chocado com o elevado número de crianças “abusadas” e negligenciadas nos EUA, Europa Ocidental e “outras partes do mundo livre”: Eu perguntei a ele se havia abuso de criança na Romênia. "Não,” ele disse, “nós não temos.” “Realmente?" Eu surpreso perguntei por que isso. “Na Romênia,” ele me respondeu, “nós não temos abuso de criança porque é contra a lei”.

88

Provavelmente o conteúdo do artigo não veicula a expressão “sexualmente abusada”, uma vez que o resumo do banco de dados é bem posterior a data do artigo (o PsycLIT é editado desde 1974). 89 O quadro de “Acontecimentos Internacionais”, Anexo ? permite uma melhor visualização desses eventos.

Suprimido

um

refletíssemos

impulso

sobre

para

isso.” Eu

exclamar

disse,

insisti. “Você

"Eu

gostaria

que

nós

não tem problemas com

prostituição? Homicídios?” “Sim”, ele admitiu. “Nós temos alguns, mas não tanto quanto no seu país.” “Bem, você deve ter abuso então.” Eu disse. “Em nossa experiência, quase todas as prostitutas foram abusadas sexualmente quando crianças e quase todos os nossos assassinos foram freqüentemente abusados fisicamente e sexualmente também.” Ele ficou em silêncio por um momento e então disse, “todas as nossas prostitutas e assassinos são ciganos. Nenhum deles é romeno.” Talvez agora que aquele muro veio abaixo, possamos aprender mais mutuamente. E gostaria de saber se a declaração do ministro romeno foi verdadeira, ou se seu dogma impede sua visão. Nós daremos alta prioridade para as cartas, comunicações breves e papers vindos de nossos colegas da Europa Oriental, esperando encontrá-los no IX Congresso em 1992, ou em Denver a qualquer momento (KRUGMAN, 1990, p. 299).

Por esse diálogo é possível vermos, de um lado o ministro tentando mostrar que em seu país, se há “abuso” ele está localizado em um grupo errante, sequer considerado romeno.

Por outro lado, o

presidente da ISPCAN, defendendo a concepção de que o “abuso” infantil tem ocorrência mundial. Mas, também revela que, apesar da revista que edita, apresentar inúmeros artigos dizendo o contrário, o “abuso” infantil também se localiza em camadas da população bem localizadas (prostitutas e assassinos, por exemplo). Até mesmo pelo título do artigo de Krugman “Returning to Europe: expanding horizons”, os objetivos da ISPCAN são os de identificar e tratar do “abuso” em cada canto do mundo.

Por isso importa criar

estratégias para cada país. Um exemplo disso, é a inovação proposta pelo “grupo latino-americano” no Congresso do Rio de Janeiro (1998) e aprovada pelo Conselho Executivo da ISPCAN durante a “Primeira Conferência Caribenha sobre Abuso e Negligência”, realizada em Trinidad (outubro de 1989): a constituição de “grupos de estudos”

formados por profissionais selecionados com habilidades em liderar e trabalhar em rede.

Conforme Kim Oates, presidente da ISPCAN na

época, com o aumento de peritos na área, os esforços na identificação e tratamento do “abuso” infantil e problemas familiares seriam ampliados, bem como se daria maior difusão a esses “problemas sociais” (OATES, 1990; o grifo é meu). De

imediato

surgem

problemas

para

identificar

as

práticas

classificadas como “abuso” sexual infantil. Criam-se técnicas para isso. Uma

delas

foi

difundida

na Inglaterra



catorze

anos

atrás.

Denominada de dilatação anal: consiste em observar se há alguma anormalidade no ânus observando-o visualmente, separando as faces das nádegas.

Esse exame tornou uma prática forense habitual que

depois foi transferida por alguns pediatras para clínica médica desenvolvida em hospitais (Ibid., p. 148).

O resultado foi um

crescente número de casos reconhecidos como “abuso sexual”, com inúmeras crianças sendo separadas de suas famílias sem qualquer explicação. Ao contrário do acolhimento e implemento de mais ações de investigação e punição do “abuso” sexual infantil como nos EUA, na Inglaterra houve reação pública contrária, mesmo com alguns políticos ainda

manifestando-se

a

favor

dos

pediatras

e

citando

dados

estatísticos (oriundos de trabalhos norte-americanos), que mostravam a alta incidência de “abuso” sexual infantil (Ibid., p. 149). Permaneciam

as

dificuldades

para

comprovar

o

“abuso”

infantil

e

a

concepção, (em voga desde 1962, quando dos estudos sobre maus-tratos), que era necessário separar a criança de sua família.

Esse preceito era sustentado por duas

teorias: a) "... uma teoria terapêutica segundo a qual é essencial que a criança assuma, expressando-se, o abuso e suas próprias reações emocionais.” (Ibid., p. 151); b) "... a confissão somente ocorre quando criança é capaz de ficar longe do abusador por um certo tempo” (Ibid.). Não é simples classificar pessoas e situações sob a justificativa que os métodos de diagnóstico são objetivos e a partir deles podemos tomar decisões “diretas e

simples” (Ibid.). Mas, por outro lado, a potente metáfora implicada no "abuso" infantil não permite tantas hesitações na identificação do “abuso”: "Abuso infantil" é uma potente metáfora porque tem a propriedade de instantaneamente ocultar seu uso como metáfora.

Uma vez que algo é

rotulado como abuso infantil, você não supõe dizer: espera um minuto, isso é estender demais as coisas. O que suporta o rótulo depende menos de seus méritos intrínsecos que da rede de partes interessadas que desejem colar esses rótulos (HACKING, 1999, p. 152). O tipo abuso estabeleceu-se como uma potente metáfora. A rede que se formou em torno do "abuso" sexual iniciou nos EUA e expandiuse por todo o mundo. Que interesses teriam levado a substituir a palavra “incesto”, que também se referia a relações sexuais entre adultos e crianças como proibitivas, pela palavra “abuso” que expande enfaticamente a proibição de relações sexuais ou jogos sexuais para qualquer relação de parentesco, maus-tratos e “pressão psicológica” exercida sob a criança? Parece que a proibição imposta pelo "abuso" tem as mesmas motivações da proibição imposta pelo “incesto”:

motivações de cunho religioso, moral, político e

econômico, que visam impedir a reprodução consangüínea ou reprodução baseada na propinqϋidade do parentesco, para impedir o fim da organização familiar.90 Em outras palavras, a proibição do incesto/abuso auxilia a organização social que temos atualmente, ou seja, as sanções que cercaram o incesto e que também cercam o “abuso” se desenvolveram como práticas para manter uma estrutura social. Mas não só isso, se pensarmos mais detidamente no “abuso” (aí surge a diferença). O “abuso” se relaciona muito fortemente como uma doença e como violência. A matriz do “abuso” lhe dá essas feições. Essa matriz, já referida algumas vezes neste trabalho,

agora

pode

ser

melhor

compreendida

pelo

menos

através

de

três

institucionalizações (instituir-ações) ou “dispositivos” que foram fundamentais: 1) A crença na singularidade do ser humano ou, em outras palavras, a invenção do "Eu" (self) lhe dando a qualidade de "Pessoa" (pessoalidade) e uma subjetividade.91 Isso proporciona a institucionalização de regimes de conduta e propriedades intrínsecas ao ser humano que vão agenciando corpos, vocabulários, julgamentos, técnicas, práticas diversas (ROSE, 1996, p. 26). Constituem “tecnologias 90

Malinowisk (2000), defendia que a objeção ao incesto surgiu por ser um elemento de ruptura da família Com a construção do eu (self) foram instituídos valores como autonomia, identidade, individualidade, liberdade e escolha (ROSE, 1996). 91

de si” (FOUCAULT, 1985a) que ao serem analisadas indicam um ser humano construído historicamente e, “(...) ao mesmo tempo, que a subjetividade não é nem um dado nem tão pouco o ponto de partida, mas algo da ordem da produção” (BIRMAN, 2000. p. 80). Precisamos então, produzir um corpus mais próximo possível do que é considerado como ser humano construindo as possibilidades concretas para isso. 2) Atribuir a esse “eu” direitos. Todos os direitos são para "aperfeiçoar" os humanos, até mesmo os “direitos” dos não humanos (das plantas, animais, enfim da natureza e do universo como um todo), têm o fim de permitir que futuras gerações humanas sobrevivam, que tenham o direito de viver.

Tratam-se de direitos cuja

concepção subjacente — desde a "Declaração da Virgínia”, em 12 de junho de 1776, e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da Assembléia Nacional francesa, em 1789, até a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 1948 — é individualista.92 Está em pauta a tradição humanista que constrói um “eu” (self) como entidade naturalmente autônoma, com consciência, com valores básicos que se constituem em direitos sagrados válidos para todos em qualquer tempo e em qualquer lugar.93 3) A teoria que há um período do desenvolvimento humano — a infância — onde o “eu” é muito frágil, precisa de maior proteção, de direitos especiais e de especialistas e organizações que lhe dê os cuidados e a atenção devida e ainda que lhe proteja de outros humanos que queiram lhe causar algum dano. Essa concepção, (que já foi abordada mais intensamente no capítulo introdutório e na introdução deste capítulo), chega ao seu ápice com a "Convenção Relativa aos Direitos da Criança", realizada em Nova York, em 26 de janeiro de 1990 que já previa, no artigo 19, proteção contra maustratos “físicos e mentais”, incluindo a criação de programas sociais: 1.

Os

Estados

integrantes

tomam

todas

as

medidas

legislativas,

administrativas, sociais e educativas adequadas para proteger a criança contra todas as formas de violência, de ataque ou de brutalidades físicas ou mentais, de abandono ou de negligência, de maus-tratos ou de exploração, inclusive a violência sexual, enquanto estiver sob a guarda de seus pais ou de

92

Neste sentido são importantes as reflexões de Marx realizadas no texto “A questão judaica”, criticando a concepção individualista que estava embutida nas declarações de direitos norte-americana e francesa, como observa Dorneles (1989, p. 25). 93 Podemos considerar estas características como expressões da “lei da totalização social” (SCHURMANN, Apud. MAY, 1996, p. 185). O sentido aqui é o de tornar a pulsante massa disforme, em uma espécie unificada pela consciência; dar objetividade ao conceito de social, assim formado por vários “eu”, com os mesmos direitos e deveres.

um deles, de seu ou seus representantes legais ou de qualquer outra pessoa a quem estiver confiada. 2. Essas medidas de proteção abrangerão, (...), procedimentos eficazes para estabelecimento de programas sociais que visam fornecer o apoio necessário à criança e àqueles a quem ela foi confiada, assim como a outras formas de prevenção, e para a identificação, comunicação, investigação, tratamento e acompanhamento dos casos de maus-tratos da criança mencionados acima, e abrangendo também, (...), o procedimento de intervenção judiciária. (In: BRANDÃO, 2001, p. 182-183).

A emergência e expansão do "abuso" infantil como um tipo, foi historicamente constituída (como um modo de existência), em função dessa matriz, expressa especialmente nos três itens anteriores.

As

relações sexuais entre um adulto e uma criança deixaram de ser um problema de consangüinidade ou propinqüidade de parentesco para ser um problema de “direitos humanos”.

E mais ainda, com uma

peculiaridade em relação ao outros problemas de direitos humanos: sua ocorrência acarreta problemas de saúde “física” e “mental” e é um “retrato” da violência que se expande no mundo. O “abuso” foi associado a maus-tratos e também a males psíquicos. Como isso foi feito: dando-lhe visibilidade através de textos e eventos acadêmicos, matérias jornalísticas, levantamentos estatísticos, material fotográfico, vídeo-tape, tecnologias de exame clínico, testes, etc. Todas estratégias para documentar e para “preservar evidencias do abuso” (CAROLE, 1997, p. 285). A utilização de textos acadêmicos como estratégia de visibilidade, está presente há muito tempo, antes mesmo do texto de Kempe e sua equipe. Já a tradicional medicina forense na França documentou dezenas de milhares de casos hoje catalogados como “abuso sexual infantil e estupro” (OLAFSON, et. al., 1993, p. 09-10). Temos em 1856 artigo publicado em jornal francês sobre saúde pública por Toulmouche, seguido por outros trabalhos feitos por médicos (Tardieu, Bernard, Lacassagne), que argumentavam que os atos sexuais praticados contra crianças eram muito

freqüentes, que eram geralmente verdadeiros os relatos de crianças, que pais e irmãos eram freqüentemente os molestadores e que nem mesmo o nível educacional alto impedia os homens de cometerem tais atos (Ibid.). Vários estudos e pesquisas conduzidos na metade do século XX davam visibilidade ao "abuso", dando continuidade a pesquisas de grande porte desenvolvidas anteriormente, como a realizada em 1953 por Kinsey e equipe, que inclusive são acusados de “minimizar” os resultados estatísticos obtidos. Relatam: É difícil compreender porque uma criança, exceto por suas condições culturais, poderia estar perturbada por ter sido tocada em sua genitália, ou estar perturbada por ter visto a genitália de outras pessoas, ou perturbada até mesmo com contatos sexuais mais específicos... Algum dos mais, experimentados estudantes de problemas juvenis têm acreditado que as reações emocionais dos pais, oficiais de polícia e outros adultos que descobrem que a criança tem tais contatos, pode perturbar a criança mais seriamente que os contatos sexuais... (KINSEY, 1953, p. 121; Apud., OLAFSON et. al., 1993, p. 15). Na época, Kinsey não classificou o relato de adultos sobre contatos sexuais que tiveram na infância como "abuso”. Antes de acusá-lo de “menosprezar”, “minimizar” seus “dados”, ou de “expressar pouca simpatia por crianças vítimas de “abuso”, como o faz OLAFSON et. al. (1993, p. 15), é importante dizer que o “abuso” não estava ainda sedimentado como um tipo94. Kinsey não desprezou as entrevistas que relatavam algum contato sexual de adultos na infância e sim, as interpretou de outra maneira, mas não só ele e sua equipe não deram visibilidade ao “abuso”: a revelação de relações sexuais extra e pré-maritais causaram maior sensação que as revelações de incesto e “abuso” sexual, que foram quase completamente ignoradas (CREWDSON, 1998. Apud. OLAFSON et. al., Ibid.). Mas podemos perceber, que na metade do século XX iniciava-se uma espécie de estranhamento ou não-familiaridade nos relatos de contato sexual entre adultos e crianças.

94

Há autores que, com a perspectiva de buscar no passado acontecimentos construídos mais recentemente, consideram que o “abuso” infantil, é um “fenômeno social há séculos” (BELSEY, 1993; LYNCH, 1985). Até mesmo a estória bíblica de Lot serve de exemplo para demonstrar o quanto o “abuso” sexual é antigo (Ver: CAROLE, 1997).

Kerns (1998), médico pediatra, realizou um levantamento sobre publicações da área médica desde 1970, que abordassem o “abuso” sexual infantil. 95 A partir da metade dos anos 70 surgiram várias publicações abordando o “abuso” sexual infantil em um contexto médico: estudos epidemiológicos (freqüência, modo de distribuição, especialmente) e alerta a pediatras.

Tratava-se ainda de dar maior visibilidade e

caracterizar essa prática sexual como um problema. Na década de 80 foram publicadas numerosas revisões de aspectos médicos do “abuso” sexual infantil, que já começavam a incluir técnicas de exame que abrangiam atlas fotográfico da anatomia genital de crianças que haviam sido “abusadas” e em estado “normal” e também, conduta a ser seguida pelo médico no exame de crianças que sofreram “abuso”. Vários estudos “... providenciaram o conhecimento básico da anatomia normal da genitália e do ânus de crianças. (...) pediatras descreviam acuradamente os efeitos físicos do abuso em crianças” (CAROLE, 1997, p. 285). Contudo, também já havia quem apontasse dificuldades na identificação do “abuso” através de exame médico: ... A cada estágio do desenvolvimento do conhecimento deste novo campo de prática e estudo, os conflitos entre as partes envolvidas nestes casos, as polaridades do sistema legal e a cobertura da mídia, têm servido para ampliar a discórdia. (KERNS, 1998, p. 454). Até por essas dificuldades, o número de estudos descritivos que se dedicavam a aspectos técnicos de exame médico para identificar o “abuso” continuaram sendo realizados por toda a década de 80 até a metade da década 90. As técnicas incluíam: colposcopia,96 especialmente para exame forense (CAROLE, 1997, p. 285); mudanças na anatomia

do

hímen;

teste

sorológico

para

identificar

doenças

sexualmente

transmissíveis; posições para exame ginecológico; numerosos estudos indicando o aspecto da anatomia anogenital “normal” como esclarecedor dos casos de “abuso”; descrição de casos de descoberta de “abuso” através do exame anatômico; numerosos estudos e comentários dirigidos a relacionar a Aids e “abuso” sexual infantil; estudos examinando questões relativas a medicina forense.

No entanto, nos vinte anos que se seguiram ao artigo de Kempe, a maior mudança que ocorreu no exame “científico” visando validar os

95

As reflexões que se seguem foram realizadas a partir das análises de Kerns (1998) e do exame dos títulos das publicações listadas por ele (178 ao todo). 96 Colposcopia constitui-se no exame da vagina e do colo do útero através de um colposcópio: um aparelho de uma lente binocular fixada sobre um espéculo (Houaiss, 2001, p. 764).

relatos de criança e parentes sobre o “abuso sexual”, foi a colposcopia. Este instrumento foi muito importante, ao lado da fotografia: No

campo97

do

abuso

sexual

infantil,

nós

podemos

comparar

o

desenvolvimento do colposcópio ao desenvolvimento do microscópio ou estetoscópio em outros campos (CAROLE, 1997, p. 285). O maior benefício do exame com colposcópio não é tão óbvio, mas o benefício mais importante para as crianças foi à aceitação do colposcópio como uma ferramenta de diagnóstico válido e a fotografia como um substituto da repetição dos exames. O uso da fotografia no lugar da repetição de exames foi validado pelo sistema legal e resistiu ao escrutínio da Corte de Apelação (...).

Em 1990, os benefícios do colposcópio foram mais aceitos e foram

usados para compreender melhor o diagnóstico médico de abuso sexual, para fornecer revisão a colegas, alcançar consenso, e proteger a criança (HEGER, 1996, p. 894-895). Ainda na década de 90 a supervalorização do exame colposcópico começou a ser questionada.

A quantidade de pesquisas relacionadas à anatomia anogenital

indicavam que algumas variações associadas a situações de “abuso” sexual poderiam não ser corretas.

Não se propunha o abandono dos exames anatômicos, contudo vozes

alertavam: “... as descobertas médicas assumiram grande importância e a história das crianças foi freqüentemente esquecida” (HEGER, 1996, p. 895). Aqui aparece a velha questão do relacionamento médico-paciente não se restringir ao exame físico. É também na década de 90, que foi criada nos EUA uma organização que buscava articular uma agenda médica de pesquisa sobre o “abuso” infantil:

CRESAC

(Collaboration for Research on the Sexual Abuse of Children). Financiados pelo Center for the Future of Children of the David and Lucile Packard Foundation (Los Altos, California), pela Intermountain Health Foundation/Primary Children´s Medical Center Foundation (Salt Lake City, Utah) e

pela Valley Medical Center Foundation (San Jose,

California), organizaram em maio de 1997, em Solitude (Utah), a Conferência: “Establishing a Medical Research Agenda for Child Sexual Abuse”. A lista de prioridades ou recomendações inspirada em artigos encontrados na revista Child Abuse & Neglect: the international journal, incluiu: epidemiologia, técnicas de conduta e exame médico, conseqüências médicas do “abuso”, manifestações comportamentais provenientes do “abuso”, triagem, local para exame médico, anatomia anogenital, tratamento de traumas

anogenitais, doenças sexualmente transmissíveis e o impacto das descobertas e do conhecimento médico nas organizações forenses. (KERNS, 1998). Também se pode concluir que foi a partir da metade da década de 80 e por toda a década de 90, que houve uma grande preocupação em relatar que as situações de “abuso” ocorrem em todos os cantos do mundo. Expandiram-se reuniões, conferências, congressos em todos os continentes.

A

International Society for Prevention of Child

Abuse and Neglect, conduziu pesquisa descrevendo situações de “abuso” infantil em 30 continentes (NATIONAL COMMITTEE FOR PREVENTION OF CHILD ABUSE, 1992).

A

Organização Mundial de Saúde, em 1992, padronizou um questionário para avaliar situações suspeitas de “abuso” infantil e negligência:

Table 2 The Montreal Children’s Hospital Accident-SCAN

Tableau 2 Enquête sur les accidents à l´hôpital des enfants de Montréal

Has the patient: Reported that she/he has been physically ill-treated? Shown evidence of neglect? Shown evidence of repeated injury?

Est-ce que le patient/la patiente: a signalé qu´il/elle avait été victime de sérvices? présentait des signes d´une absence de soins? présentait des signes de traumatismes répétés?

Has the parent/caretaker: Reported that the child has been abused or neglect?

Est-ce que le parent/l´accompagnateur; a signalé que l´enfant était victime de mauvais traitements ou d´une absence de soins? a trop attendu avant de demander des soins médicaux? s´est montré indifférent ou hostile? a présenté une anamnèse cnatradictoire et/ou des explications peu satisfaisantes pour le traumatisme? a été réticent au cours de l´interrogatoire ou a refusé de donner son accord pour des examens plus approfondis?

Delayed unduly in seeking medical attention for treatment? Shown detachment or hostility? Presented contradictory history and/or unsatisfactory explanation of the injury? Been reluctant to give information or refused consent for further studies? Is there any other reason to suspect that this incident was non-accidental? Was a skeletal survey required?

A-t-on d´autre raisons de soupçonner que cet incident ait pu ne pas être accidentel? A-t-il fallu procéder à une radiographie du squelette?

Source: Ref. (6)

Fonte: BELSEY, 1993, p. 70.

97

Observe-se que se trata de artigo recente e que define o abuso sexual infantil como um campo de atuação médico.

Mas as dificuldades em realizar a mensuração da incidência do “abuso” sexual infantil, permanecem até hoje:

“... O abuso sexual é

definido com base em relatos de criança ou vítimas adultos e geralmente não é confirmado pelo exame físico” (BELSEY, 1993, p. 72).

Por outro lado, as estimativas da prevalência ou incidência do

“abuso” sexual infantil mostram números díspares, já que algumas incluem pesquisas com população adulta (que se lembram de terem sofrido

“abuso”

na

infância).

Portanto,

os

“dados”

variam

enormemente de acordo com a metodologia usada, a maneira de formular as questões da entrevista e também, a definição operacional do que seja "abuso” sexual (Ibid.). Ao final da década de 90 o que se percebe é a ampliação dos estudos e debates em torno de temáticas relacionadas ao “abuso” sexual infantil nos EUA, mais ainda demonstrando a prevalência nesse país

da

área

profissionais

médica:

a

uma

grande

preocupação

em

treinar

(médicos, profissionais forenses, trabalhadores sociais)

em relação aspectos médicos do “abuso” sexual infantil, tais como, identificar

traumas

físicos,

identificar

sintomas

físicos,

doenças

sexualmente transmissíveis, exames que utilizam a imagem digital, etc. Não se trata mais de dar visibilidade ao “abuso” ou de demonstrar que ele existe, mas sim de buscar os melhores métodos para investigar e identificá-lo com precisão. A prevalência da área médica em relação ao “abuso” é tal que a Academy of Pediatrics tem um Committee on Child Abuse que oferece cursos para que pediatras possam identificar e tratar “abuso” físico e sexual (CAROLE, 1997, p. 285). A pediatra Jenny Carole (1997, p. 285), defendeu em artigo publicado no Pediatric Annals a inserção nos currículos das escolas médicas e nos programas de residência pediátrica, programas educacionais que discutam a violência familiar e que treinem “líderes no campo do abuso infantil”.

Costin et. al.(1996), se referiram ao período após o artigo de Kempe e colegas em 1962, em que o “abuso” infantil começou a tomar a linha

de frente dos problemas sociais norte-americanos, como “paradigma médico”.

Não me parece que esse paradigma tenha sido superado

nesses 40 anos de ciclo de construção e interesse pela temática (nos EUA).

Esse ciclo compreende basicamente então duas fases que,

obviamente, não são estanques: 1) As décadas de 60 e 70 foram centradas no “abuso” físico, em atender crianças que eram espancadas. Dentre as medidas principais de intervenção estava a remoção da criança de sua casa.

As discussões em geral, estavam mais

voltadas aos cuidados da criação infantil (KRUGMAN, 1999; COSTIN et. al., 1996).

As políticas sociais governamentais ainda não se dedicavam

intensamente ao “abuso” (seja de que maneira fosse categorizado), uma vez que o foco era o “welfare system” (saúde, habitação, emprego), (Ibid.). 2) As décadas de 80 e 90 foram caracterizadas por um grande aumento no “reconhecimento”, na familiarização do “abuso” sexual e “reação” fomentada em

vários

segmentos

da

sociedade.

Incremento

de

programas

governamentais e implantação de serviços especializados (Ibid.).

A mídia

nacional e local encontrou “notícia” em relação a situações de violência familiar (KRUGMAN, 1999, p. 965; LEVEY, 1999). Também multiplicaram-se os profissionais que se dedicam a atuar no que passou a se constituir como um campo de trabalho.

Esse crescimento foi tamanho que há uma

reivindicação das organizações nacionais que representam esses profissionais (médicos,

trabalhadores

sociais,

advogados,

promotores

e

outros

profissionais como os policiais), para que efetivamente homogeneízem ações que “reduzam significativamente” o “abuso” (KRUGMAN, 1999, p. 965).

Atualmente a palavra de ordem do momento é prevenção e tratamento. A metáfora do “abuso” é tão forte que no país dos direitos individuais e da inviolabilidade da vida privada, cresce a discussão sobre prevenção: "vigilância” preventiva das famílias por assistentes sociais, psicólogos, educadores, por exemplo. Além disso, a prevenção é geralmente associada a medidas jurídicas punitivas, ou com a ampliação da exposição na mídia do “problema” para a sociedade como um todo. Garbarino (1996), compara a prevenção do “abuso” infantil com a proibição do uso de cigarros em aeronaves. Foi uma proibição

gradativa e completa que requereu um “ataque coordenado” a determinados valores, crenças e a que se assumisse que pessoas possuem direitos; também estudos demonstrando os malefícios do cigarro

para

a

saúde;

campanhas

“persistentes

e

inflexíveis”;

advogados preparados nos “salões” de governos locais, estaduais, e nacionais (GARBARINO, 1996., p. 157). Como o “abuso” é por alguns considerado como fruto de uma “deterioração social generalizada” (Ibid., p. 158), são necessárias ações em vários campos.

Dentre elas, a que também desperta

atenção, é a sugestão de intervir na “língua” (Ibid., p. 158-159), por tratar-se de algo com o “poder de interferir na consciência das pessoas empurrando-as na direção que queremos” (Ibid.): Eu penso que um dos caminhos para prevenir o abuso infantil é insistir contra o uso de termos que descrevem a punição física como se não fosse algo além disso. Nós já fizemos progresso na reforma de dicionários em relação a expressões sobre violência (GARBARINO, 1996., p. 157).

Sobre este aspecto Garbarino, se refere ao termo “assault”, para que não seja relacionado simplesmente a punição ou disciplina. Assim sendo,

muitas

“pessoas

desorientadas”

podem

utilizar

confortavelmente a expressão “uma boa surra” e por conseguinte também a expressão: “I favor assaulting children

— for their own

good, of course” (Ibid., p. 159). Portanto, a definição das palavras utilizadas para expressar violência contra crianças ou para expressar o que não deve ser feito com elas, deve ser realizada com o objetivo de não acolher algo nocivo como um “comportamento normal”. Em outras palavras: é preciso “minar” “assault physical” como normal para prevenir o abuso infantil (Ibid., p.159). Garbarino ainda afirma que o problema maior em “minar” palavras, está relacionado as palavras que definem “abuso” sexual, em função da dificuldade em definir qual contato sexual é considerado inapropriado

(Ibid.). Não aponta soluções para isso, mas defende uma maior flexibilidade na “privacidade” da família em relação a criação de seus filhos porque “toda criança é assunto social e ser pai e mãe é um ato social” (Ibid., p. 160). Interessante notar que mesmo com as exigências de nosso tempo de satisfação imediata de desejos sempre renovados, (inclusive no campo da sexualidade),

com

a satisfação dos desejos sexuais

integrados à cultura geral do aumento do consumo, com a cultura de performance e realização (KILLIAS, 1991, p.45) e com a avaliação geral da eficiência dos contraceptivos, nada disso enfraqueceu a relação sexualidade-criança-jovem-adulto. O que parece ter ocorrido, é o relaxamento maior em relação ao início da atividade sexual entre jovens, mas, geralmente lhes negando o “direito” de procriação e casamento (Ibid.) sob a alegação de imaturidade física e emocional.

O abuso se consolida como um problema de saúde É na década de 90 que o “abuso” de crianças é considerado um problema de “saúde pública” (WHO, 1999) e um problema epidêmico comparado a doenças como Aids, câncer e doenças do coração (SADLER et. al., 1999, p. 1016-1017).

O adjetivo

“público” atrelado a palavra “saúde”, está mais no sentido de “atingir simultaneamente um grande número de indivíduos” (HOUAISS, 2001, p.1177).

Neste sentido, foi

realizada uma pesquisa comparativa por intermédio do National Institute of Mental Health (EUA) que conclui: a taxa de incidência do “abuso” e negligência de crianças é 10 vezes maior que a de todas as formas de câncer e ainda assim, as verbas federais para tratamento e pesquisa não correspondem a gravidade do problema (SADLER et. al., 1999). Adler (1996), também compara o “abuso” com outras doenças reivindicando mais recursos para pesquisas: Ainda continuamos a investir desproporcionalmente somas de dólares em pesquisas e clínica de problemas de adultos tais como câncer, doenças coronárias e na epidemia do envelhecimento e demência. Talvez isto

esteja acontecendo em parte porque os responsáveis pela alocação de recursos são inevitavelmente adultos e não necessariamente adultos que se vêem como advogados de crianças (p. 476). Avaliar a incidência em relação ao “abuso” sexual infantil permanece sendo uma preocupação inclusive para os profissionais que ligados a ISPCAN.

Em pesquisa

recente (OATES, et, al. 2000), foi realizada uma revisão de todos os expedientes de notificação de casos de “abuso” infantil ocorridos durante um ano no Denver Department of Social Services.98 Os casos foram classificados em quatro grupos: relatos confirmados, relatos não confirmados, relatos inconclusos ou errôneos.

Dos 551 casos que foram

revistos, 43% foram confirmados; 21% estavam inconclusivos; 34% não foram consideradas como casos de “abuso” sexual. Portanto, 55% dos casos não se tratavam de “abuso” ou havia algum problema para estabelecer essa confirmação.

Dentre os

casos que foram descartados como sendo “abuso” sexual infantil, eram acusações realizadas em cumplicidade com um dos pais, acontecimentos “inocentes” que foram mal interpretados como “abuso” sexual e 1,5% eram falsas acusações.

Em relação aos

relatos de crianças os autores concluem que “as alegações errôneas sobre abuso sexual são incomuns” (Ibid., p. 150). E aqui aparece um aspecto interessante: por mais que as crianças estejam em uma fase do desenvolvimento humano (infância), que como vimos apresenta características como irracionalidade e o pré-logicismo, a pesquisa conclui que, geralmente, quando alegam “abuso” sexual estão falando a “verdade”.

A

média de idade dos casos investigados varia entre 6,9 e 9,6 anos. O “geralmente” é a única ressalva para os 55% dos casos que não se tratavam de “abuso” A partir do final da década de 90, o ”abuso” sexual infantil, já considerado um problema de proporções mundiais, consolida-se como problema relacionado ao específico campo da saúde (“física e mental”). A Organização Mundial e Saúde (OMS), em 8 de abril de 1999, através de um comunicado oficial, que tem como título “WHO Recognizes Child Abuse as a Major Public Health Problem”, decisivamente, por ser um órgão de prestígio internacional e legitimador do saber acadêmico produzido a respeito, providencia a compreensão do “abuso” como um problema de saúde pública e não só, mas como um grande problema de saúde pública em todo o mundo.

Portanto, se trata do reconhecimento oficial daquilo que vários profissionais, organizações de proteção a criança, mídia, estatísticas governamentais, etc. vinham procurando demonstrar: que o “abuso”

ocorre mundialmente e é um grave problema.

A posição da OMS

solidifica o alargamento da projeção do problema que começou como sendo de ordem privada e finda como sendo de ordem pública. Neste sentido, a análise de Guiddens, parece se confirmar: “... as instituições

modernas,

tornaram-se

cada

vez

mais

sujeitas

à

intervenção social” (GUIDDENS, 1993, p. 192). O documento se baseia em dados estatísticos produzidos pela própria OMS, dados que se referem tanto ao número de crianças vítimas de “abuso” sexual, quanto ao custo financeiro do problema.

A estratégia é mostrar o tamanho do problema.

É

importante combater o “abuso” não só pelo prejuízo financeiro que ele acarreta como também pela “variedade de problemas emocionais e físicos” que incapacitam as crianças de terem uma vida “saudável e produtiva”. Agora quem assegura a tese de inevitáveis conseqüências do “abuso”, são especialistas do mundo inteiro que falam em nome da OMS. E qual a solução? Em primeiro lugar intervir no espaço privado da família e treinar os pais no cuidado de seus filhos: Programas executados em alguns aos países têm mostrado que é possível reduzir a prevalência de abuso de crianças, quando pais são providos de treinamento em habilidades relacionadas ao cuidado de seus filhos, antes e depois de o nascimento... (Ibid.). E sob que fundamento essa intervenção é justificada? Sob o pressuposto de que as crianças têm direitos: ... Seja na área do abuso de criança, na prevenção de abuso de drogas, na promoção de saúde mental, a OMS afirmou o valor da convenção das nações unidas sobre os direitos da criança como um fundamento que a comunidade internacional pode fornecer contra o abuso de crianças em todo mundo. (Ibid.). Este documento sintetiza bem os argumentos que venho levantando desde o início deste trabalho: o “abuso” se solidifica como o tipo sob uma matriz ramificada em três importantes dispositivos que são a construção do “eu” (self) individualizado, a construção da infância e a construção dos direitos da criança. 98

Observe-se que foi a partir de Denver que o movimento de denúncia, prevenção e tratamento do “abuso” infantil se desenvolveu.

A visibilidade do tipo “abuso” é realizada através de encontros científicos, publicação de artigos e livros, publicação de quadros estatísticos, publicação de fotos. Sob um aspecto geral, a prática sexual entre membros de uma mesma família (exceto é claro, entre pai e mãe, porque não são originalmente da mesma família) e entre adultos e crianças, perde qualquer referência possível de concordância, porque antes mesmo de ter alguma relação direta com a violência, ocasiona doenças que repercutem durante um longo tempo. O adulto que se propõe esta prática é um doente e, em relação a criança, mesmo se reconhecendo que há crueldade no “abuso” ou seja, mesmo se reconhecendo a violência física (em função da visibilidade de cortes, fraturas, hematomas),

a

ênfase

recai

nas

“fraturas

emocionais”

que

afetam

o

seu

desenvolvimento. As conseqüências do “abuso” são muitas como indica o documento da OMS: dificuldade da escola, abuso de drogas e infrações. Também podemos ver na definição do “abuso” como problema de “saúde pública”, uma tendência mundial a retirar a ênfase na violência física, enfatizando as conseqüências emocionalmente traumáticas. Isso se compreendermos a “saúde pública” sob a metáfora do social, como parece ser a tendência dominante (SCLIAR, 1987). Esta metáfora está diretamente relacionada ao “que diz respeito ao bem estar das massas, especialmente as menos favorecidas” (HOUAISS, 2001, p. 2595). Há uma grande ênfase nas conseqüências emocionais, mas o movimento em torno do “abuso” sexual infantil internacionalmente tem uma grande participação de médicos.

A sua emergência sob as mãos da medicina é compreensível porque o

movimento começou como um combate à “crueldade” física imposta as crianças.

E

depois, a identificação do “abuso sexual” começa pelo exame físico (clínico). Esta participação da área médica no movimento internacional de combate ao “abuso” está diretamente ligada ao espaço de construção das várias formas de “abuso”. Explicando melhor, o “abuso” emerge nos EUA sob a liderança de médicos porque começou como um combate à violência física. Os médicos não cederam essa liderança para profissionais da área “psi”.

O que não significa que tenham restringido a visão

sobre as conseqüências emocionais do “abuso”, apenas o trabalho de identificação, denúncia e tratamento de crianças que sofreram abuso sexual passou a incorporar várias áreas profissionais (sob a liderança dos médicos).

Ao contrário dos EUA e da Inglaterra, no Brasil a liderança do movimento foi e continua sendo de psicólogos, assistentes sociais e advogados (profissionais das chamadas Ciências Humanas).

Esses

profissionais, no Brasil parece que têm maior tradição no envolvimento de “problemas sociais”.

Mantendo a família higienizada Finalmente, uma reflexão sobre os fatores “desencadeantes” do “abuso. As palavras de Richard Krugman, então presidente da ISPCAN, durante o 10th International Congress on Child Abuse and Neglet, em 1994, na Malásia, caracterizam e resumem a concepção de qual é o principal fator desencadeante do “abuso”, negligência e exploração de crianças e as estratégias de prevenção: ..., se existe uma estratégia futura para prevenção de abuso infantil, isso irá requerer algumas partes componentes: profissionais e outras pessoas competentes

que

reconheçam

as

limitações

de

seus

conhecimentos

trabalhando em equipes multidisciplinares; clara direção política de líderes políticos informados que irão evitar a soluções provisórias de problemas (“quick-fixes”);

uma

imprensa

investigativa

e

educativa

que

evite

a

abordagem superficial e eduque o público para a complexidade do problema; e

programas

que

sejam

baseados

em

pesquisas

idôneas

e

tenham

componentes de progressiva avaliação. (...) Seja em países desenvolvidos ou em desenvolvimento, o abuso, a negligência e exploração de crianças é de longe o melhor indicador da deterioração das famílias.

Assim, qualquer estratégia para prevenir maus-

tratos deveria estar centrada na criança — respeitando os direitos individuas das crianças — e focada na família, reconhecendo que as crianças crescem melhor em famílias que são capazes de amar e cuidar delas de uma maneira que lhes permita crescer com todo seu potencial. Essas famílias necessitam de uma sociedade que lhes dê auxílio e cuidado e que lhes forneça políticas, programas e recursos que suportarão os esforços dessas famílias para crescerem e desenvolverem também o seu potencial. Nada disso será fácil. Mas considerando que somente há 33 anos atrás que espancamento de crianças despertou a nossa atenção, nós temos feito extraordinário progresso.

(...)

a maioria das mudanças feitas em grande

parte de nossas sociedades tem sido para melhor.

Isto não tem sido sem

complicações e desafios, mas isto também nos trouxe muitas oportunidades. As mudanças políticas na última década no leste europeu, a formação da

União Soviética, a Ásia e África do Sul, mostram-me serem as precursoras em todo o mundo do desejo de paz. A última fronteira para paz é a família. Nós podemos alcançar isto em breve. (KRUGMAN, 1995, p. 278-279). Assim, o discurso se centra ainda na “polícia das famílias”. Deve-se respeitar o direito da criança, para preservar a família de percalços:

“o estigma da família

desestruturada permaneceu atuante...” (PASSETTI, 1999, p.09). Velho debate: a família como o “... único modelo possível de socialização, ao mesmo tempo de todas as insatisfações” (DONZELOT, 1986, p. 206).

Agora com novas técnicas de regulação

(Conselhos tutelares, organizações de proteção às crianças, programas de atendimento), novas e velhas profissões atuando “multidisciplinarmente” no “novo campo” (“Abuso” sexual infantil). As discussões sobre o “abuso” têm estimulado uma “cultura de adultos”: que “... vê seus filhos como continuadores da vida familiar presente, num ponto ascendente onde estiverem na estrutura social” (PASSETTI, 1999, p. 84). A literatura epidemiológica sobre “abuso” sexual infantil, como se percebe no trabalho de Finkelhor (1993), indica como sua principal “descoberta”, que não existem características familiares e demográficas que podem se utilizadas para excluir a possibilidade de que uma criança tenha sido sexualmente abusada.

Mesmo assim

geralmente são listadas algumas características como de maior risco: meninos mais que meninas, pré-adolescentes e jovens adolescentes, ter um padrasto, viver sem um parente biológico, ter uma mãe fraca, ser submetido a falta de afeto e atenção por parte de seus pais e ser testemunha de conflitos familiares. Em resumo, são características associadas a estrutura de famílias como um todo e dos pais especificamente. O “abuso” infantil envolve debates difíceis e inquietantes. Ao mesmo tempo em que deve se exercer a crítica em relação a cristalização de relações familiares, intervenções

preconceituosas

da

filantropia

governamental

e

não-governamental,

também não podemos simplesmente ignorar violências cometidas por famílias e pelo Estado contra crianças. Assim sendo, não basta diante das situações de violência retirar do baú (da felicidade utópica) as explicações de praxe, como por exemplo, a pobreza e desagregação da família.

O resultado disso, é continuidade da construção de leis e

normas que aliviam a “consciência” dos “nossos governantes” e de seus especialíssimos assessores (psicólogos, sociólogos, assistentes sócias, pedagogos, juizes, advogados, policiais,

pesquisadores

acadêmicos,

etc.)

e

também,

as

sempre

lembradas

argumentações jurídicas em torno de uma melhor caracterização das infrações e ampliação das penas correspondentes. As discussões acabam sendo direcionadas pelos “homens bons e justos” (lembrando Nietzsche), “especialistas” na higienização da moral e dos costumes.



esquecemos, que podemos combater a violência sofrida por qualquer criatura sem render às instituições oferendas em ritos que visam, em última instância lhes atribuir a sagrada imutabilidade.



O movimento no Brasil:

do abusado ao “abusado”

O tipo “abuso” toma visibilidade no Brasil sob forte influência norte-americana e sob a mesma matriz, mas com peculiaridades em relação aos profissionais que lideram as discussões e mesmo em relação a algumas intervenções da Justiça. Refletir sobre algumas dessas peculiaridades e esboçar a emergência do “abuso” como um “tipo” no Brasil, são os objetivos deste capítulo. Ressalte-se que há imensas dificuldades para realizar essas tarefas tendo em vista a vastidão desse país aliada

a

rudimentar

organização

de

bancos

de

dados

específicos

ao

tema, 99

especialmente em relação a documentos governamentais (legislação). A peculiaridade começa com os sentidos da palavra “abusado”. remonta ao século XIX, 1816 (HOUAISS, 2001, p. 33).

A palavra

Na região Norte e Nordeste

“abusado” ainda é uma palavra bastante empregada para se referir a que alguém “passa dos limites”, sendo “atrevido”, “malcriado”, “intrometido”, “confiado” ou “saliente”.

A

expressão “deixa de ser abusado!”, por exemplo, identifica bem o sentido que aponto. Nem mesmo os dicionários Aurélio e Houaiss se referem a “abusado” significando alguém que tenha sofrido maus-tratos ou submetido a práticas sexuais consideradas violentas.100 O uso da palavra “abusado” para se referir a alguém que sofreu algum tipo de violência sexual, quase se limita a alguns textos acadêmicos e matérias jornalísticas. Ainda assim, o emprego da palavra “abusado” não é tão freqüente. A preferência é por uma frase mais operativa: “crianças vítimas de abuso”.

Também é comum,

especialmente nos escritos de Azevedo & Guerra encontrarmos o termo “crianças vitimizadas”, para se referindo a violência doméstica em geral, incluindo maus-tratos, assédio sexual, estupro.101

É também comum, no meio acadêmico falar de “família

abusiva” como em Azevedo & Guerra (1989; 1994).

99

Exceção se faça a três iniciativas importantes: 1) Realizada pelo Laboratório de Estudos da Criança (USP); 2) Realizada pela Coordenação de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (Universidade Santa Ùrsula); 3) Realizada pela Rede de Informações sobre Violência, Exploração e Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes - RECRIA, vinculada a Secretaria dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. 100 Em relação a palavra “abuso” os dicionários indicam ligações com práticas sexuais, como já foi abordado à p. 100-103 . Ver anexos p. ???? 101 Há uma ampla discussão sobre o uso do termo “vitimizado” em Azevedo & Guerra (1988; 1989), que será retomada mais à frente.

Em relação aos profissionais que tomaram a frente do processo de dar visibilidade ao “abuso”, no Brasil acontece o inverso dos EUA: não foram os médicos que exclusivamente, tomaram a dianteira das pesquisas e discussões sobre o “abuso”, mas profissionais de outras áreas, sabidamente, advogados, assistentes sociais psicólogos, juízes. Parece que tanto nos EUA como no Brasil, o emprego da palavra “abuso” selou a construção de um tipo que permitiu a inserção de vários profissionais na discussão. Ressalte-se porém, que como nos EUA, antes do “abuso” se solidificar, ainda com preocupações relacionadas à crueldade contra crianças, também no Brasil os pioneiros foram os médicos, como veremos a seguir.

Temporalidades do “abuso”: Como nos EUA, a desfamiliarização em relação a agressões cometidas contra crianças no Brasil iniciou com casos de espancamento e por profissionais da área médica102. São publicados trabalhos acadêmicos relacionados a casos de crianças submetidas a espancamento ou castigo físico precedendo estudos sobre “abuso”. Vários autores citam que a primeira publicação no Brasil que analisa mais detidamente um caso de espancamento, data de 1973, sendo de professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FURLOTTI, 1999, p. 07; GUERRA, 1985, p. 41; COATES et. al., 1973, p. 265). Tratra-se de um caso de espancamento de uma criança de aproximadamente um ano e três meses. Furlotti, afirma que há trabalhos publicados anteriormente sobre o tema mas com apenas “... certo vislumbre de preocupação quanto ao fenômeno” (Ibid.). Esta autora e os demais citados no parágrafo anterior, incluem os trabalhos iniciais da área médica sobre maus-tratos e crueldade como estudos sobre “abuso”, mas ainda não eram assim explicitamente classificados. Há trabalhos anteriores cadastrados no banco de dados da Coordenação de

Estudos e Pesquisas sobre a Infância — CESPI, da Universidade Santa Úrsula. O mais antigo é

????????.

Só confirma a iniciativa da área médica nos estudos sobre

crueldade contra crianças aqui no Brasil.

A explicação para o “pioneirismo” de trabalhos na área médica parece ser óbvia: a “evidência” de sinais clínicos (fraturas, hematomas, ferimentos). Esses trabalhos continuam a ser publicados na mesma perspectiva, mas incluindo contribuições de outras áreas. Em especial há o reconhecimento de conseqüências “emocionais” para as crianças envolvidas em situações de “abuso”, com alguns autores 102

Conforme Guerra (1995b, p. 79) a hegemonia do saber médico entra em declínio nos EUA na década de 70.

defendendo inclusive a ampliação do conhecimento médico, como no estudo de Drezett et. al.: “o médico deve estar preparado para o manejo clínico e psicológico dessas vítimas. O atendimento exige além de treinamento e capacitação, paciência e experiência” (DREZETT et. al, 2001, p. 416; o grifo é meu). Os médicos psiquiatras, pela especificidade de seu campo de atuação, são mais claros quanto as repercussões “mentais” e especificam ainda mais as repercussões “físicas”, como no artigo de Kerr-Corrêa et. al. (2000), em que se pode encontrar quadros detalhados que identificam as conseqüências de uma situação de “abuso” (transtornos alimentares, transtornos psicóticos, transtornos afetivos, doenças gastroenterológicas, dor crônica). A conclusão a que chega a ”terapeuta sexual” citada abaixo, a respeito das conseqüências “psíquicas” do “abuso”, abrange a totalidade dos diversos trabalhos a que tive acesso: “Qualquer que seja o tipo de violência sexual incestuosa não há dúvida de que nelas são encontrados os maiores danos psicológicos. (...) mesmo na ausência de emprego de força física, a repercussão psicotraumática pode ser grave e indelével” (CAVALCANTI, 1993, p. 28).103 A partir da década de 80 surge com maior intensidade trabalhos que se propõem a analisar pormenorizadamente o que passou a ser conhecido como “violência doméstica”.

Inicialmente este rótulo abrigava violências diversas praticadas contra

mulheres e crianças: violência sexual, violência física, violência emocional e negligência. O primeiro livro de expressão nacional, que aborda e especificamente maus-tratos cometidos contra crianças no interior da família, parece ser “Violência de pais contra filhos: procuram se vítimas”, publicado em 1985 pela assistente social, Viviane Nogueira de Azevedo Guerra, originalmente uma dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A autora já nomeava este tipo de violência como sendo “violência doméstica”

(Ibid., p. 108). Viviane Guerra e a advogada Maria Amélia Azevedo, são as primeiras a publicarem no Brasil estudos com levantamentos histórico-literários e estudos de caso referindo-se claramente a situações de “abuso” contra crianças.

São estabelecidos

quadros com estatísticas internacionais, formas de tratamento e iniciam também a discussão sobre o que deve ser classificado como “abuso”, ou seja, definem os tipos de “abuso”. Percebe-se que utilizam fartamente literatura internacional de origens diversas (especialmente, dos EUA, Inglaterra e França).

Helio Santos, em 1987 publica o primeiro livro com fotos de crianças vítimas de agressões físicas (algumas mortas): “Crianças 103

As discordâncias estão relacionadas a ênfase dos profissionais na “veracidade” do que é relatado. Para a psicanálise, por exemplo, isso não faz muita diferença (verdade ou/e fantasia) na medida em que alguém vive o que relata como “realidade”.

espancadas”. E ainda no mesmo ano Stanislau Krynski (1987) organiza um livro sobre o mesmo tema: “A criança maltratada”. Em 1989, Azevedo & Guerra organizam e fazem publicar, o primeiro livro com artigo de profissionais de áreas e especialidades as mais diversas (assistente social, advogado, psicólogo, sociólogo, pediatra, ginecologista, jurista, psicanalista, psiquiatra). O prefácio feito pelo atual Secretário Nacional dos Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, resume o conteúdo do livro : Várias contribuições do livro, como as pesquisas de Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira de Azevedo Guerra, põem abaixo inúmeros estereótipos e noções equivocadas do senso comum a respeito dos algozes e das vítimas. Os artigos sobre a identificação do fenômeno, as conseqüências orgânicas e psicológicas, assim como conduta médica, conferem extraordinária substância e concreção ao debate (AZEVEDO & GUERRA, 1989, p. 10-11). Trata-se ainda de dar visibilidade ao “abuso”, demonstrando a necessidade de identificá-lo em função dos “danos orgânicos e psicológicos” que proporciona (ibid., p. 101) e de quais os procedimentos a se adotar diante dessas situações. Neste trabalho, estão reunidos muito dos aspectos apontados no capítulo anterior: busca se definir o que são maus-tratos, o que é “abuso”, suas conseqüências físicas e emocionais, como identificar lesões que podem estar relacionadas ao “abuso”, a necessidade de montar serviços específicos para atender a situações, quais as características desses serviços. Já neste livro se caracteriza o que as autoras chamam de “abuso sexual propriamente dito”: estupro e a prática de atos libidinosos, sejam incestuosos ou não (Ibid., p. 181). Note-se que também já está constituído um serviço de atendimento para as situações de violência física e sexual cometidas contra crianças.

Trata-se da “Rede

Criança”, montada pelo Governo do Estado de São Paulo e vinculada à Secretaria de Estado do Menor.

Foi criada no dia 12 de outubro de 1987.

A rede incluía hospitais,

postos de saúde, clínicas de psicologia e o Serviço de Advocacia da Criança (SAC), criado em 8 de fevereiro de 1988 através de convênio firmado entre as Secretarias de Estado do Menor, da Justiça, Procuradoria Geral do Estado e Ordem dos Advogados do Brasil Seção de São Paulo (Ibid. p. 183) Outro aspecto importante deste livro é a caracterização da violência contra criança como “síndrome do pequeno poder”.

Diferentemente da “síndrome da criança

espancada” descrita por médicos americanos, a “síndrome do pequeno poder” tem a peculiaridade de atribuir características sócio-políticas às situações de violência cometida contra crianças.

A socióloga Heleieth Saffioti a define assim: “O objetivo nuclear (..)

consiste em mostrar que, tal processo de vitimação, o de vitimização tem suas raízes

numa ordem social iníqua, na qual as relações sociais são permeadas pelo poder” 104 (Ibid., p. 14). Para Saffioti o poder “define-se como macho, branco e rico” e tem “caráter adultocêntrico” (Ibid., p. 16): ..., não será difícil verificar que as categorias sociais subalternas são, no Brasil, constituídas por mulheres, negros, pobres e crianças.

Nesta

hierarquia, o último lugar é ocupado pela mulher negra, pobre e criança. No topo desta escala de poder está o macho branco, rico e adulto. Exatamente em virtude da alta concentração de renda em poucas mãos, são pouco numerosos os homens a desfrutar deste poder que denominada lei de grande poder ou macro poder. Os detentores deste grande poder podem submeter qualquer pessoa menos bem situada nesta hierarquia. Mas se a vitimização de crianças dependesse apenas do exercício do macropoder o número de vítimas seria, certamente, menor.

A vitimização de crianças constitui fenômeno

extremamente disseminado exatamente porque o agressor detém pequenas parcelas de poder, sem deixar de aspirar ao grande poder. Então não se contentando com sua pequena fatia de poder e sentindo necessidade de se treinar para o exercício do grande poder, que continua a almejar, exorbita de sua autoridade, ou seja, apresenta a síndrome do pequeno poder (Ibid., p. 17). Portanto, a tese defendida no livro foge de uma centralização no aspecto sexual, corporal, ou até mesmo instintual (necessidade natural), focando-se na hierarquização favorecida e estimulada pelo sistema capitalista.

Saffioti, por mais que

afirme que a situações de violência cometidas contra crianças não seja um problema específico de uma classe, termina por reforçar uma posição distinta, na medida em que em seus exemplos cita: o funcionário público de baixo salário, porteiro, o trabalhador que, com raiva de obedecer às ordens de seus superiores hierárquicos maltrata a mulher e os filhos quando volta para casa, e jovens assaltantes (Ibid., p. 18). Retomando então, a tônica ainda era a de afirmar que o abuso sexual de crianças existe no Brasil, ocorre dentro da própria família, precisa ser identificado e denunciado, para que o “agressor” seja punido e a criança “vitimizada” seja encaminhada para acompanhamento social e psicológico.

104

Poder no sentido de domínio (econômico e político) e força física.

Ainda sob essa tônica Azevedo& Guerra lançam 1988, “Pele de asno não é só história...”.

Retomam a discussão do abuso sexual infantil no Brasil a partir do conto

“Pele de asno” de Charles Perrault.

Buscam construir “um marco referencial para

abordar a vitimização sexual da infância e da adolescência em família” (Ibid, p. 3), discutindo o conceito de vitimização sexual e identificando situações que caracterizam esse tipo de violência e apresentando “um caso verídico”. Outro aspecto importante deste livro é a descrição minuciosa da pesquisa desenvolvida pelas autoras investigando a “vitimização sexual da infância e adolescência em famílias do município de São Paulo” (Ibid., p. 37).

Parece que esta foi a primeira

pesquisa acadêmica focalizada na temática do “abuso” sexual infantil.

Foram

consultados entre dezembro de 1982 e dezembro de 1984, o “Boletins de Ocorrência Policial, laudos do Instituto Médico Legal, processos das Varas de Menores e prontuário da Febem” (Ibid., p. 47). A partir de então caracterizaram as vítimas (na sua maioria do sexo feminino, tendo em média dez anos de idade); os agressores (na maioria do sexo masculino, pais, situados na faixa de 30-39 anos); cor, naturalidade e ocupação (paulistas de cor branca e trabalhadores da produção industrial, operadores de máquinas, condutores de veículos e trabalhadores assemelhados); residência (as três maiores concentrações ocorrem nas Administrações Regionais de Santo Amaro, Campo Limpo e Freguesia do Ó); por fim o “o uso de álcool e/ ou drogas pelo agressor” (em 90,3 % dos casos os documentos consultados não mencionavam essa informação). Tudo indica que essas pesquisas propagaram-se rapidamente, não se limitando a cidade e estado de São Paulo.

Pelo menos a divulgação de estudos se

ampliou, pois há um artigo na revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, sob o título, “Breve estudo de crianças com abuso sexual” que foi publicado em 1985, cujos autores são Zaslavsky & Nunes. Observe-se o emprego no título do artigo da preposição “com”, muito usada em Português para se referir a um “estado”, (FERREIRA, 1986, p. 433-434) ou conjunto de condições físicas, como ao se referir a uma doença contraída (“fulano está com malária”). Assim, o “abuso”, ainda sob forte influência da área médica, como nos EUA, é tratado como uma doença. Na segunda metade da década de 80 são criadas organizações que visam o atendimento de crianças submetidas a situações de “abuso”. Destaca-se em São Paulo:105

o

Centro

Regional

de

Atenção

aos

Maus

Tratos

na

Infância

(CRAMI/Campinas/ABCD-1988), o Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso

105

Não se trata de um levantamento histórico, mas de apontar alguns atores que exercem influência na construção do “abuso” como um tipo no Brasil.

Sexual (CEARAS/USP-1993), o Laboratório de Estudos da Criança (LACRI/USP), 106 o Programa de Atendimento às Vítimas de Abuso Sexual (PAVAS/USP-1996) e o SOS Criança (Governo do Estado-1986). Violência

(C.N.R.V.V./Instituto

Também o Centro de Referência às Vítimas de

Sedes

Sapientiae-1988),

que

não

se

dedica

exclusivamente a situações de abuso, mas as prioriza. O LACRI, C.N.R.V.V., CEARAS e PAVAS mantêm cursos destinados a preparar profissionais no atendimento e prevenção da violência doméstica contra crianças e adolescentes.

O curso promovido pelo

C.N.R.V.V., corresponde a uma especialização. Dentre

as

organizações

fora

do

estado

de

São

Paulo

que

também

contribuíram para a solidificação do “abuso” como um tipo no Brasil, por se proporem a um

trabalho

de

abrangência

nacional,

destacam-se:

a

Associação

Brasileira

Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA/RJ-1988); Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA/BA-1991); Centro de Referência para Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA/DF-1993). Observa-se de imediato que três organizações de destaque nascem na Universidade de São Paulo, ou seja, no Brasil a emergência do “abuso” como um tipo, inicia na academia. A área médica também se faz presente, já o CEARAS e o PAVAS, são coordenados por médicos, respectivamente psiquiatra e ginecologista. Na década de 90 se consolidam os serviços de atendimento e proteção à criança que se espalham por todo o Brasil, geralmente ligados aos governos municipais ou estaduais. (Vide lista à p.31). A maior iniciativa de combate ao “abuso” reunindo Governos municipais, estaduais

e

federal,

além

de

diversas

organizações

governamentais

e

não

governamentais, ocorreu em um Encontro na cidade de Natal (RN), no período de 15 a 17 de junho de 2000 para discussão e elaboração do “Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes”.107 Contou com participantes governamentais do Executivo federal, estadual e municipal; do poder Legislativo federal e estadual, do poder Judiciário, especialmente da Justiça da Infância e Adolescência; do Ministério Público federal e estadual, da Defensoria Pública; das Polícias Federal, Civil e Militar; dos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, dos Conselhos Tutelares; de organismos internacionais de cooperação 106

Nem mesmo nos livros e teses das fundadoras do LACRI, Azevedo & Guerra, nem nos folders, e nem no domínio do LACRI na internet, há qualquer indicação da data de fundação desta organização. 107 O relatório final ainda não estava disponível até a finalização da tese no domínio do CECRIA, onde foram colhidas estas informações.

técnica e financeira; do ECPAT – Brasil;

das organizações da sociedade civil e de

representantes de jovens. Foram cerca de 160 representantes. Dentre as organizações internacionais: Cáritas Brasileira Escritório Regional/PE, Fundo das Nações Unidas para Infância - UNICEF/DF, Organização Internacional do Trabalho - OIT/DF, Save The Children/PE, UNESCO/FORÉTICA. Este plano foi preparado durante o “III Encontro ECPAT – Brasil”. O ECPAT (End Child Prostitution, Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes), é uma organização internacional, com sede em Bangkok na Tailândia, que ao contrário da ISPCAN, vem tendo uma penetração importante no movimento de combate ao “abuso” sexual no Brasil. A secretaria executiva, pelo menos até 2000, estava sob a responsabilidade do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente - CEDECA/BA. Constitui-se em uma “rede de organizações e pessoas trabalhando juntos na eliminação da prostituição de crianças, pornografia infantil e tráfego de crianças para propósitos sexuais”.108

O ECPAT, originou-se de uma campanha contra o turismo sexual na Ásia

(End Children Prostitution in Asian Tourism), crescendo a tal ponto que em conjunto com o governo da Suécia promoveu o “I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual e Comercial de Crianças”, realizado em Estocolmo, em 1996. 109 Mantém em sua sede um centro de pesquisa onde reúne documentos, vídeos, CD ROMs, sobre o comércio sexual e exploração de crianças, além de legislação internacional de proteção à criança explorada sexualmente. Mantêm também, banco de dados sobre a situação da prostituição infantil, pornografia infantil e tráfico de crianças com objetivos sexuais, bem

como, das

organizações que combatem esses problemas. Em março de 1991 o ECPAT produziu sua primeira circular sobre seu trabalho internacional e em setembro de 1999, realizou sua primeira Assembléia Internacional, na Tailândia, onde definiu a sua atual composição (participaram representantes do CEDECA/BA, Coletivo Mulher Vida/PE e Fórum Nacional DCA/DF). Ao que parece, a sua estrutura mais participativa facilitou sua entrada no Brasil. Veja-se que seu escritório funciona nas instalações de uma organização já existente e com trabalho reconhecido nacionalmente.

Já realizou três encontros

nacionais. Durante o segundo encontro brasileiro realizado em dezembro de 1998 (Salvador/BA), o então presidente da ECPAT internacional, Ron O’Grady, mandou uma mensagem, ressaltando a sua preocupação “com o crescimento do abuso sexual de

108

Informações colhidas no domínio da organização na Internet, em 06/09/2001. Foi o único congresso mundial com esse fim específico, com participação de 1.200 representantes de 130 países, inclusive representantes brasileiros. A partir desse evento o ECPAT tornou-se uma ONG e já conta com representação em 46 países. 109

crianças e adolescentes por todo o mundo” e também com o Brasil e América Latina, por causa de “recentes pesquisas” feitas alertando para a “seriedade do problema”. Nesta mensagem também, alerta para o uso da Internet como um “poderoso instrumento nas mãos ”daqueles que querem abusar de crianças” Conforme

documento

(Anexo II, p. ?).110

do ECPAT/CEDECA-BA, (enviado às

organizações

participantes e circulado no III Encontro realizado em Natal/RN, em junho de 2000), e conforme o documento final do II Encontro (realizado em dezembro de 1998 em Salvador/BA), o Movimento ECPAT visitou o Brasil pela primeira vez, realizando visitas “a vários Estados e entidades”, em 1995.

O Movimento convidou o CEDECA/BA para

participar da Assembléia Geral realizada em Tóquio, em 1996, “... para que apresentasse uma avaliação das políticas públicas no Brasil e na América Latina sobre infância e juventude” (II Enc. Nac. do ECPAT no Brasil, 1998, p. 09). Após esse evento o CEDECA, foi indicado pelo ECPAT internacional para participar de um painel durante o “I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual e Comercial de Crianças”.

Em 1997, deu-se

efetivamente o início do processo para criar uma representação do ECPAT no Brasil, através da visita da sua secretária executiva, Sra. Amihan Abueva, que outorgou ao CEDECA a função de organizar o I Encontro do ECPAT no Brasil, “... para identificação de ações e coalizão de futuros membros afiliados” (Ibid., p. 09). Em 1997, foi realizado o I Encontro do ECPAT/Brasil em Salvador/BA, onde se formaram os primeiros grupos regionais e foram traçadas diretrizes para uma maior articulação nacional. Em janeiro de 1998, o CEDECA participou de uma Assembléia Geral do ECPAT/Internacional em San Salvador, apresentando as conclusões do I Encontro realizado no Brasil. Depois enviou as decisões do Encontro para a direção do ECPAT para serem apreciadas pelo

“Comitê de Credenciamento”.

No dia 12 de maio de 1998, o

presidente do ECPAT Internacional, Ron O’Grady, “enviou mensagem ao CEDECA reconhecendo-lhe como representante oficial do grupo nacional ECPAT/Brasil, na condição de membro pleno, com direito de usar o nome e a logomarca do ECPAT e desenvolver ações de seu interesse no Brasil” (Ibid., p. 10).

Também nessa época o

ECPAT/Internacional passou a ser uma ONG com personalidade jurídica (Ibid.).

110

A atual presidente do ECPAT é uma inglesa, Jo de Linde, que trabalhou como voluntária na Índia (professora de inglês), também como voluntária nas obras assistenciais de Madre Tereza de Calcutá, depois se mudou para Hong Kong onde também atuou como professora de inglês. Desde 1977 reside em Paris, onde trabalhou para a UNESCO como tradutora e no escritório francês da Financial Times. Participa do Comitê Executivo do ECPAT desde 1996 e foi eleita para presidí-lo por três anos, em setembro de 1999.

O CEDECA assumiu em 1998 a Secretaria Executiva do ECPAT/Brasil e organizou o II Encontro, em dezembro de 1998, em Salvador/BA, com o objetivo de “reunir o maior número possível de ações de prevenção e combate ao abuso sexual e à exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes” (Ibid., p. 09). Uma da decisões do Encontro foi a elaboração do “Plano Nacional de combate ao Abuso e Exploração Sexual infanto-juvenil” (Relatório ECPAT/Brasil, 2000, s/p.). Uma Comissão fez um esboço do Plano que foi apresentado e discutido no III Encontro ECPAT/Brasil, realizado em junho de 2000 (Ibid.,). Nesse Encontro também os afiliados discutiram a regulamentação do Estatuto do ECPAT no Brasil e sua estruturação. Trata-se portanto, da mais recente parceria de organizações brasileiras com uma organização internacional visando o combate ao “abuso” sexual de crianças e adolescentes.

O

ECPAT/Internacional

também

é

uma

organização

disponibliza em seu domínio na Internet um histórico de sua criação.

nova,

e

não

Somente em

assembléia internacional realizada em 1999 foram estabelecidas a estrutura e as regras de funcionamento da organização. No Estado de São Paulo, também houve um movimento visando reunir diversas organizações para combater o “abuso” e a violência cometida contra crianças e adolescentes.

Sob a coordenação do CRAMI-ABCD, Visão Mundial e do Conselho

Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONDECA, iniciou-se a articulação de um Plano Estadual, “tendo como referência” o Plano Nacional Contra Violência Sexual Infanto-Juvenil, denominado “Pacto São Paulo: contra a violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes” (2000).

Os objetivos: construir um trabalho em

Rede; pesquisar a violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes no Estado; potencializar as ações já existentes no combate ao problema; “fomentar a consciência pública na mobilização” para “enfrentar” o problema; capacitar profissionais para “identificarem” e “intervirem” no “fenômeno”. A intenção era reunir organizações governamentais e não governamentais, inclusive articulando-se com organizações fora do Estado de São Paulo (como o CECRIA, CEDCA, ABRAPIA) e internacionais, (como ECPAT, UNICEF).

Esse movimento culminou com a realização em abril de 2001, no

SESC- Vila Mariana, na cidade de São Paulo, o “I seminário Estadual Pacto São Paulo, Contra a violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes”, com a presença

de autoridades governamentais, (federais, estaduais e municipais). 111

Um problema de saúde: Um aspecto importante que também parece estar intimamente relacionado com o movimento internacional da construção do “abuso” como um tipo: antes mesmo da Organização Mundial de Saúde estabelecer oficial e publicamente que o “abuso” de crianças é um problema de saúde pública, já havia artigo no Brasil afirmando esta posição. Zavaschi e colaboradores (1991), incluindo o “abuso” na categoria de maustratos, afirmam enfaticamente que se trata de um problema de saúde pública e que se trata de uma campo de pesquisa: Os maus tratos na infância são atualmente considerados como uma das principais causas de morte de crianças e, portanto, um problema de Saúde Pública. A proliferação do abuso e negligência na infância deve ter alguma relação com o aumento alarmante da violência contemporânea, demonstrada pela incidência maior de crimes violentos, delinqüência, suicídio e acidentes fatais. Nos últimos 20 anos, o abuso infantil tem se tornado um dos mais emergentes campos de pesquisa e em vários países já existem programas em desenvolvimento para estudo prevenção e tratamento deste tipo de abuso (ZAVASCHI et., al., 1991, p.136)

Maior parte (73,2%) de suas referências bibliográficas são estrangeiras (norte-americanas), do que se deduz que essas discussões já circulavam pelo menos nos EUA. E ainda surgem em seu texto dois aspectos que vem sendo discutidos neste trabalho: 1) O “abuso” emerge atrelado a uma noção de que se trata de um “fenômeno” violento; 2) Solidificando-se como um tipo, consolida um campo de trabalho (pesquisas, estatísticas, profissionais qualificados, formulação de leis, etc.).

Aspectos da legislação brasileira: Uma breve investigação indica que também no Brasil, o “abuso” passa a figurar em normas reguladoras. Na década de 90, a legislação brasileira também passa a se tornar mais de “atenta” as situações descritas como “abuso”. Especialmente com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, 111

Conforme o folder contendo a programação, o evento foi organizado pelo CRAMI/ABCD, Visão Mundial, CONDECA, UNICEF. Houve a participação também de palestrantes de outros estados (Santa Catarina: Fórum Catarinenses pelo fim da Violência Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes), Bahia (CEDECA) Belém (Movimento EMAUS) e Minas Gerais (CHEGA).

em 1990, os governos passam a regulamentar alguns dispositivos, como a criação de Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente municipais, estaduais e nacional, e Conselhos Tutelares municipais. A Constituição Federal (em voga desde 1988) no artigo 27, parágrafo 4, reza: “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Até então nenhum código de leis federal, nem mesmo o Código Penal, se referia ao “abuso” de forma explicita. A referência era a “conjunção carnal e atos libidinosos” (Hazeu, 1996, p. 12). Anteriormente em relação a crianças e adolescentes, era o “Código de Menores” (1979) que legislava sobre o que na época se caracterizava como “situação irregular”: privações relacionadas a saúde, instrução; impossibilidade dos pais provê-las; vítima de castigos e maustratos “imoderados”; em perigo por encontrar-se em ambientes contrários aos “bons costumes”; com “desvio de conduta” (In: Azevedo & Guerra, 1993, p. 316). O Código não abordava situações de “abuso”. Nem mesmo o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH (1996) se refere ao “abuso” sexual intrafamiliar diretamente, mas prevê no capítulo “Propostas de Ações Governamentais”, medidas que podem ser relacionadas ao “abuso”:

“Propor

alterações na legislação penal com o objetivo de limitar a incidência da violência doméstica contra crianças e adolescentes”; “Promover (...) campanhas educativas relacionadas a situações de risco (...), como violência doméstica e sexual, prostituição, exploração no trabalho e uso de drogas...” (p.25). As medidas do Governo Federal na área dos direitos humanos, estão bem mais direcionadas a prostituição sexual e o trabalho infantil, já que para esses problemas há 06 medidas no PNDH. Talvez porque sejam problemas com maior visibilidade na imprensa internacional. Direcionada a combater esse problema, em 1997 a Empresa Brasileira de Turismo

(Embratur),

prostituição infantil.

desencadeou

nacionalmente

campanha

para

combater

a

Em parceria com o Ministério da Justiça e a ABRAPIA, criou o

“Disque - Denúncia Prostituição Infantil”.

A diretora de marketing da Embratur, Anna

Karen, justificou esta iniciativa: "O papel da Embratur foi assumir o problema antes que a imagem do nosso país ficasse como a de países da Ásia. Turismo deste tipo não traz nada para o Brasil”.112 A maior parte das denúncias envolviam brasileiros.

Um ano antes, em 1996, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, organizam o “Programa Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e Sexual” com o objetivo de “articular ações interministeriais de combate à violência doméstica e sexual”. Trata-se de um plano voltado para mulheres adultas que sofrem violência em casa. 112

Matéria publicada no Jornal do Brasil em jornal.(JB On line) na mesma data.

21/04/1997, colhida no domínio do

Uma das medidas importantes do Governo Federal e do Parlamento, institucionalizando o “abuso” como um tipo, foi a promulgação em 1999, da Lei 9.970, que criou o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, de autoria da Deputada Rita Camata (PMDB/ES), presidente da Frente Parlamentar pela Criança e Adolescente do Congresso Nacional. Foi sancionada com vetos parciais. Foram vetados o parágrafo que atribuía aos governos federal e estadual a coordenação das ações e o artigo 2º que previa a alocação de recursos orçamentários para custear as despesas decorrentes do Dia Nacional.113

O abuso na TV:114 Na década de 90 também, o “abuso” tomou visibilidade na TV, não mais através de notícias de situações específicas, mas através de documentários. O primeiro documentário exibido nacionalmente e especificamente dedicado ao “abuso” sexual de crianças e adolescentes, foi realizado pela TV Cultura de São Paulo, em 1997. Em 1998, a TV Globo exibiu documentário sobre “abuso” sexual no programa “Globo Repórter” e em 1999, o programa ”Linha Direta”, apresentou matéria sobre o “abuso” sexual infantil. Porém, “no país do futebol, do samba, e da novela”, a temática de práticas sexuais intrafamiliares, teve seu espaço na década anterior sob a forma de novela. Em 1988, a rede Globo apresentou em horário nobre (20h.) a novela “Mandala”, cuja trama versava sobre um triângulo amoroso entre pai, mãe e filho (Perry Sales, Vera Fischer e Felipe Camargo), cujos personagens principais, chamavam-se Laio, Jocasta e Édipo, inspirados no mito grego.

O tipo “abuso” em ação: importantes

peculiaridades brasileiras

No Brasil percebe-se que a temática em torno do “abuso” ainda hoje é diversificada: apontando a sua existência e 113

A proposta do dia Nacional, foi feita pelos participantes do II Encontro do ECPATBrasil, realizado em Dezembro de 1998 em Salvador/BA, e enviada a Dep. Rita Camata. Registre-se também que a pessoa para assumir a direção do Departamento da Criança e do Adolescente - DCA, órgão do Executivo Federal responsável pela coordenação nacional da política de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, vinculado à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Justiça, foi articulada e proposta pelo “Grupo ECPAT”. O Plano Nacional, tem o apoio do DCA, onde houve várias reuniões para a organização do III Encontro do ECPAT. 114 Trata-se de indicar alguns programas televisivos que debateram o assunto e que tiveram exibição nacional. Uma pesquisa na imprensa demandaria um estudo mais profundo, pelo volume de material, especialmente entrevistas e matérias sobre o assunto. Chego a essa conclusão após ter tido acesso ao arquivo de apenas uma ONG sobre a participação de seus membros em matérias jornalísticas em geral.

conseqüências físicas e emocionais. Ou seja, algo acontece no Brasil, (provavelmente a recente construção do “campo”) para que trabalhos acadêmicos e jornalísticos ainda permaneçam tentando caracterizar o “abuso”, sempre reafirmando que “não ocorre apenas entre os pobres, sujos ou malvados” (CHAGAS & CAMPOS, 1997, p. 19) ou “ é um fenômeno que ocorre em todas as classes sociais, em todas as etnias, em todos os credos religiosos, políticos” (AZEVEDO & GUERRA, 2000, p. 03). As autoras Viviane Guerra e Maria Amélia Azevedo, em trabalho recente (2000) publicado sobre violência doméstica, mesmo quando se referem a práticas sexuais no interior da família utilizam o título “Infância e Violência Sexual Doméstica” (p. 11), ou “Violência Sexual por outros Familiares” (p. 13). Em nenhum momento se referem a essa situação como “abuso” sexual ocorrido na infância. Outras palavras aparecem com mais freqüência: jogo sexual, estupro, violentar sexualmente, violência sexual, iniciação sexual. Exceções se fazem quando no relato de um caso elas reproduzem o diagnóstico fornecido pelo hospital (“abuso sexual com a aceleração...”; p. 13), e em um caso apresentado sob o título “Depoimento de Vítimas Adultas” (“o pai abusava sexualmente...”; p. 17). Por outro lado, utilizam a palavra “abuso”, quando se referem a “Violência Física Contra a Mulher (Conjugal)”, referindo-se ao “ato de abuso de autoridade do chefe de família” (p. 18). Há também algures, uma referência ao “abuso de drogas”.115 Em trabalho anterior, as autoras, ao analisarem os vários termos empregados para caracterizar a prática sexual entre adultos e crianças, concluem: ... com exceção de abuso-vitimização sexual, todos os demais temas referemse a facetas específicas, porém complementares, do mesmo fenômeno. Abuso-vitimização expressa o fenômeno em sua totalidade de processo de causar dano à criança através de sua participação “forçada” em práticas ou atos eróticos. A diferença reside no fato de que quando se emprega ABUSO, a ênfase é posta no pólo adulto, isto é, naquele que impõe “força”, que coercitivamente domina o processo. Quando se emprega VITIMIZAÇÃO, a ênfase é posta no pólo criança isto é, naquele que sofre a coação, que recebe a injúria e o dano. No contexto do presente trabalho optamos por adotar o termo VITIMIZAÇÃO SEXUAL para designar o fenômeno que estamos estudando, ou seja, a participação de uma criança em práticas eróticas mediante coerção (física ou psicológica) de um adulto (AZEVEDO & GUERRA, 1988, p. 12). 115

Poderia-se alegar que se trata de um trabalho com farto material de casos e que o termo “abuso” não é empregado pela população em geral, mas os casos foram trazidos às autoras por alunos seus (coletados em todo o Brasil) e a descrição final coube a elas.

Trata-se da utilização de uma palavra em substituição a palavra “abuso”, não por uma discordância em termos da qualificação de práticas sexuais entre adultos e crianças ou adolescentes como “abuso”. O emprego da palavra “vitimização” é indicativo de uma discordância em termos da ênfase na abordagem das situações de práticas sexuais entre adultos e crianças (no adulto e não na criança). Porém, como indicam as referências utilizadas pelas autoras, não há uma incompatibilidade significativa entre o trabalho delas e os trabalhos desenvolvidos internacionalmente.

Mas há uma certa

discordância, que parece estar ligada à abordagem do problema pouco relacionada ao contexto político e econômico, mesmo que reconhecida essa relação, especialmente nos EUA. Azevedo

(1993),

deixa

claro

que

se

opõe

ao

modelo

utilizado

internacionalmente, chamado por ela de “modelo interativo”, no estudo da violência familiar contra crianças e adolescentes.

Critica esse modelo ainda que ele atribua

multicausalidade a violência doméstica: fatores macro (sistema sócio-econômicopolítico), fatores micro (história de vida dos pais e estrutura e funcionamento familiar) (AZEVEDO, & GUERRA, 1993, p. 43). Ela propõe a construção “de uma Teoria e Crítica na área da violência familiar contra crianças e adolescentes” (Ibid.).

Resume: uma

teoria “emancipatória e contra–ideológica; que permita combater o fenômeno de forma eficaz” (Ibid.). A própria autora reconhece que se trata de um texto “em processo de elaboração” (ibid., p. 46).

Portanto, ainda não há possibilidade de uma reflexão mais

intensa. Porém, o que se percebe é uma inspiração marxista, favorecendo uma análise do “abuso” que inclua uma crítica a “objetalização” da criança, que é oriunda de uma “violência estrutural”, que coexiste ao lado da “violência interpessoal” (AZEVEDO & GUERRA, 1989, p. 35).

Essa crítica não está presente nos textos de autores norte-

americanos, por exemplo. As autoras esclarecem: A violência estrutural, inerente ao modo de produção das sociedades desiguais em geral e da sociedade capitalista em particular, não é a única forma de “fabricar crianças-vítimas”.

A seu lado

necessariamente em interseção com ela —

— e por vezes, mas não

coexiste a violência inerente às

relações interpessoais adulto-criança. Como a história social da infância têm sido incumbido de mostrar, essas relações

são

de

natureza

assimétrica.

São

relações

hierárquicas,

adultocêntricas, porque assentadas no pressuposto do poder do adulto (maior de idade) sobre a criança (menor de idade).

A vitimização

— enquanto

violência interpessoal — constitui uma exacerbação desse padrão. Pressupõe necessariamente o abuso (grifo meu), enquanto a ação (ou omissão) de um adulto, capaz de criar dano físico ou psicológico à criança. Por essa razão costuma se considerar a abuso-vitimização como as duas faces da mesma moeda de violência. Enquanto violência interpessoal, a vitimização é uma forma de aprisionar a vontade de o desejo da criança, de submetê-la, portanto ao poder do adulto, a fim de coagi-la satisfazer os interesses, as expectativas ou as paixões deste. (...) O abuso-vitimização de crianças consiste, pois, no processo de completa objetalização destas, isto é, que sua redução a condição de objeto de maustratos.

Tal como no caso da vitimização, há várias maneiras de maltratar

uma criança, de vitimizá-la, de abusar de sua condição, de domesticá-la... A literatura registra três formas privilegiadas de abuso-vitimização: a física, a psicológica e a sexual. Cada uma delas envolve problemas conceituais específicos... (AZEVEDO & GUERRA, 1989, p. 35-36) A partir deste ponto as autoras descrevem as formas de “abuso-vitimização” nomeando-as como: “abuso-vitimização física”, “abuso-vitimização psicológica” e “abusovitimização sexual”. Uma nota em outro livro Azevedo & Guerra fornecem novo esclarecimento: A literatura estrangeira reserva a expressão Violência Doméstica, para designar o abuso familiar dirigido à MULHER, optando por adotar MAUS-TRATOS e ABUSO no caso de agressões familiares dirigidas a crianças e adolescentes. Nós, porém, preferimos a expressão VIOLÊNCIA DOMÉSTICA como forma de tornar a face do fenômeno, assentada numa assimetria de poder nas relações intergeracionais de pais e filhos (Azevedo & Guerra, 1998, p. 70). A questão que fica é se o “abuso”, se consolidou como o tipo no Brasil.

A

resposta é afirmativa. Por mais que Azevedo & Guerra — duas autoras importantes — discordem do emprego isolado da palavra “abuso”, elas ainda a empregam ou não se opõem ao uso nos livros que organizam.

Um exemplo está no artigo de Luís Mott,

“Abuso sexual ritualístico”, publicado no mesmo livro que as autoras iniciam suas reflexões sobre uma “Teoria Crítica da violência familiar contra crianças e adolescentes” (AZEVEDO, & GUERRA, 1993, p. 119-132). Há de se observar também, que não são as únicas no Brasil a desenvolverem um trabalho de porte nacional.

Inúmeros outros trabalhos publicados, bem como as

organizações citadas acima, permanecem adotando o termo “abuso” sexual, para se referirem a situações de práticas sexuais entre adultos e crianças. Em outras palavras, a internacionalização/globalização do “abuso” foi frutífera em terras brasileiras.

A Rede Amazônica de Conselhos Estaduais – RECA, formada pelos conselhos de direitos da criança e do adolescente na região, com sede em Manaus, por exemplo, disponibiliza no seu domínio na Internet a definição do que é “abuso sexual”, como também fornece informações sobre como identificar o “abuso”, as conseqüências, providências a tomar e suas formas: Abuso sexual sem contato físico: 1. Abuso sexual verbal - conversas abertas sobre atividades sexuais destinadas a despertar o interesse da criança ou do adolescente ou chocá-los. 2. Telefonemas obscenos - a maioria é feita por adultos, especialmente do sexo masculino, podendo gerar ansiedade na criança, no adolescente e na família. 3. Exibicionismo - a intenção, neste caso, é chocar a vítima. O exibicionista é, em parte, motivado por esta reação. A experiência pode ser assustadora para as vítimas. 4. Voyeurismo - o voyeur obtém sua gratificação através da observação de atos ou órgãos sexuais de outras pessoas, estando normalmente em local onde não seja percebido pelos demais. A experiência pode perturbar e assustar a criança ou adolescente. Abuso sexual com contato físico: 1. Atos físico-genitais - incluem relações sexuais com penetração vaginal, tentativas de relações sexuais, carícias nos órgãos genitais, masturbação, sexo oral e penetração anal. 2. Sadismo - abuso sexual incluindo flagelação, torturas e surras. 3. Pornografia e prostituição de crianças e adolescentes - são essencialmente casos de exploração sexual visando fins econômicos. 116 O que se verifica é que o “abuso” como um tipo é a referência para classificar diversas modalidades de violência contra crianças e adolescentes. Essa diversidade de classificação favorece a constante mudança dos aspectos a enfocar em relação à violência cometida contra crianças, pelo menos no Brasil. Por exemplo, as duas maiores pesquisadoras da temática, Azevedo & Guerra, lançam campanha nacional contra a palmada, ou o “psicotapa” (Anexo III e IV, p. ?). Ou seja, é um aparente “retorno” a

116

Informações colhidas no domínio do RECA, em 30/04/1999.

temática dos maus-tratos, que deu início tanto nos EUA quanto aqui, a uma sensibilização às situações de violência cometidas contra crianças. É interessante notar que essa “campanha por uma pedagogia não violenta” inclui uma petição solicitando “... o empenho dos líderes e das nações do mundo no sentido de que a Assembléia Geral das Nações Unidas se manifeste publicamente condenando todas as formas de violência na educação das novas gerações.” Portanto, em relação a esse problema específico, aqui vemos uma inversão, tendo o Brasil, através da iniciativa do LACRI, propondo ao resto do mundo um modelo de educação em família: “esta campanha objetiva proibir todo e qualquer bater em crianças e adolescentes como uma forma de educá-los em família”.117 Em 1996, a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, sob a presidência do deputado do PT, Marcos Rolim, publicou vários textos de um seminário realizado em Londres, em 1992, promovido pelo Epoch-Worldwide (End Phisical Punishment of Children Worldwide) 118 e pelo Räda Barnen,

119

com o objetivo de discutir e implementar medidas legais contra os

castigos físicos às crianças na Europa, bem como esclarecimento para a população em geral sobre as consqüências dos castigos físicos. Segundo o Relatório, a Suécia foi o primeiro país a tornar ilegal os castigos físicos (1979), seguida da Finlândia (1984), Dinamarca (1986), Noruega (1987) e Áustria (1989).

De modo genérico, a tônica das

várias intervenções de especialistas de diversos países lá reunidos, pode ser resumida no título da participação do representante norte-americano: “Como o sucesso da Suécia pode ser aplicado nos Estados Unidos”. Ou seja, como ampliar para o mundo todo a experiência sueca. Vê-se que no Brasil o LACRI, está tomando a frente das discussões em termos nacionais.

Fragmentos do inviolável? 117

No texto “Exploração sexual de crianças”, incluído no livro organizado por Azevedo & Guerra “Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder” (1989), Saffioti, aquela altura, manifestava opinião distinta em relação a palmada: “Embora algumas palmadas no momento certo possam aumentar o amor entre mãe e filho, pois a criança sente o interesse que nela tem sua genitora, o exagero nos castigos físicos constitui uma violação dos direitos da criança. Cada vez menos se aconselham castigos físicos pesados, em virtude de seus efeitos negativos” (Ibid., p. 56). 118 O EPOCH é uma organização semelhante ao ECPAT, uma vez que congrega outras organizações que têm em comum o objetivo de acabar com punições físicas de crianças. Sua sede é em Londres. Em 1989, lançou e coordenou campanha no Reino Unido com estes objetivos. 119 O Rädda Barnen (em sueco: Salve as Crianças), é uma organização sueca financiada por contribuições da população em geral, fundada em Estocolmo em 1919.

Um aspecto muito importante de vários trabalhos brasileiros que discutem o “abuso” e/ou a “violência doméstica” em geral, é a busca da desmistificação da família como uma espaço exclusivamente privado. Essa postura passa a dominar, favorecendo por exemplo, o trabalho de denúncia de vizinhos, como também a intervenção de diversos segmentos (Justiça, polícia, psicólogos, assistentes sociais, etc): Através deste trabalho, tentamos mostrar que a violência na família brasileira existe, que esta família não é sagrada, nem intocável, e que pode em alguns momentos oferecer grandes riscos à integridade física de uma criança. (Guerra, 1985, p. 110) Essa posição revela uma contradição: a família não é intocável nem sagrada, mas de certa forma, permanece intocável e sagrada.

Explicando melhor, é possível

intervir nas relações familiares em função de uma situação de violência cometida contra a criança (do ponto de vista da preservação da vida da criança é inquestionável); por outro lado, não há qualquer questionamento em relação à manutenção dessa instituição e sob este aspecto, ela permanece sagrada e intocável. A própria lei do incesto instaura uma contradição: ao mesmo tempo em que devemos "honrar pai e mãe" é necessário abandoná-los para fundar outra família.

O

psicanalista Philippe Julien (2000) estudando como modernamente se estrutura uma nova família, afirma que para isso é necessária uma nova lei fundada no desejo de romper com a geração anterior. Em outras palavras, “abandonar pai e mãe”. Com o desenvolvimento da modernidade industrializada e das reivindicações de movimentos de mulheres, (levando a inserção da mulher no mercado de trabalho, garantindo-lhe renda, afastando-lhe dos serviços domésticos, adiando muitas vezes a maternidade), com mudanças até mesmo na legislação em relação a casais de mesmo sexo biológico (a procriação sendo colocada em xeque), aparentemente, há indícios que a constituição de uma nova família não está garantida apenas pela lei do incesto. Mas como a situação não é tão simples é importante verificarmos se ao mesmo tempo em que se instiga o abandono de “pai e mãe” (tão caros a uma família tradicional), não estaríamos apenas fundando outras maneiras de se perpetuar uma estrutura de relações fundada no parentesco consangüíneo.120 Os trabalhos acadêmicos, as matérias jornalísticas, os livros autobiográficos, enfim, o que se publica em relação ao “abuso” sexual infantil corre na direção de proteção dos direitos da criança o que não é em si questionável. No entanto, ainda não se avança nas discussões em relação à estrutura familiar, mesmo com a divulgação cada 120

Assim, o conceito de comunidade vai continuar sendo a reunião momentânea de células familiares e o selo indicativo de que um lugar é “freqüentável” estará na placa sempre afixada em lugar de destaque: “ambiente familiar”.

vez maior de pessoas do mesmo sexo biológico que passam a viver juntas e até criar filhos.121 Um exemplo de trabalho acadêmico brasileiro que favorece a ligação entre combater a violência cometida contra crianças e preservar a família.

Cohen (1993),

apresenta um trecho em seu trabalho que é bem característico da inquestionabilidade da estrutura familiar em relação a situações de “abuso” e o “incesto”: A Declaração Universal de Direitos Humanos, no artigo 16, parágrafo 3º reza: “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e têm direito à proteção da sociedade e do Estado.” Portanto essa é uma aceitação universal. Podemos dizer que a família tem pelo menos duas funções específicas, a de proteção psicossocial de cada um de seus membros e a de adaptação à cultura e a sua transmissão (COHEN, 1993, p. 160). O autor considera a família natural e universal, tomando a cultura ocidental judaico-cristã como modelo.

A partir dessa concepção pode então afirmar:

“...não

existe prazer ou amor no ato incestuoso, existe apenas ódio (destruir a família) ou então existe uma mente muito primitiva movida apenas pelo princípio do prazer...” (Ibid., p. 162). Abuso/incesto é fruto de mentes desadaptadas, está relacionado à doença mental. Daí pode-se concluir que o intercurso sexual intrafamiliar entre um adulto e uma criança, ocorre apenas em ambientes familiares ditos desestruturados ou anormais. 122 Não se deva padronizar as tentativas “humanas” de viver em sociedade. Não é mais possível vivermos sob o dogma de que sem a estrutura familiar tradicional, a criatura humana não consegue “entrar” no mundo simbólico. A padronização impede os vários olhares.

Os acontecimentos exigem posturas antropofágicas; posturas que

mergulhem, mastiguem e degustem; posturas de experimentação. O olhar padrão, vê a situação de intercurso sexual entre pessoas de uma mesma família somente como um caso de violência e/ou de doença mental. O desenrolar disso acabar sendo a solução de consenso: a prisão e/ou terapia. Cabem aos médicos e vizinhos identificar o problema dando o passo inicial e a atuação final caberá aos policiais e profissionais “psi”. Temos um tabu dentro do tabu. O que fazer em relação a isso? Não tenho fórmulas prontas e nenhum de nós as terá. universalizar

121

os problemas; tratá-los cada

O melhor é compartilhar e nunca

um como acontecimentos peculiares.

Vide a grande divulgação que teve a decisão de um juiz em dar a guarda do filho da cantora Cássia Eller a sua companheira. 122 Nesse sentido ver: Brenda VANDER & Ronald NEFF. Incest as child abuse: research and aplications. Nova Iorque, Praeger, 1986.

Universalizar é prejulgar que todos os problemas são iguais, acontecem pelos mesmos motivos e devem ser tratados da mesma maneira. Aí sim, todos serão casos de polícia e não precisarão dos estudiosos da academia dos assistentes sociais, muito menos dos psicólogos, para lhes dar algum rótulo ou indicar as suas conseqüências.

O Estado

poderá “economizar” dinheiro despedindo a todos e apenas construindo mais cadeias. Acontece que essa solução tem se mostrado inútil. Mas o assunto pode ser debatido sob duas perspectivas: 1) Relações sexuais entre adultos e bebês/crianças (comumente julgado como pedofilia); 2) Relações sexuais entre adultos e jovens/adolescentes (comumente julgado como estupro, sedução de menor). Note-se que ambos asseguram o “abuso” como um tipo e formam mais do que um ato localizadamente proibido, uma erótica proibida. 123

A pedofilia, além de freqüente desde o Brasil-Colônia, não era “(...) conduta das mais condenadas pela Teologia Moral, pois mesmo quando realizada com violência, a pedofilia em si nunca chegou a ser considerado um crime específico por parte da Inquisição” (MOTT, 1996, p. 46). Com a sacralização do sexo tornando-o restrito ao casamento e com o objetivo da reprodução, “... a dessexualização da infância e adolescência impuseram-se como valor humano fundamental de nossa civilização judaica-cristã” (Ibid.,p. 44). A pedofilia é um tema recorrente na mídia, geralmente abordando alguma denúncia. De todo modo, mudando-se ou não a estrutura familiar, a prática sexual entre adultos e bebês/criança é inadmissível. Não sob o aspecto de uma assimetria de poderes, porque o poder sempre será assimétrico: poderíamos devanear sobre a violência de uma simples sedução adulta. Também não pelo “consenso” de que há inocência na infância: já vimos neste trabalho à fragilidade de sua construção. Ainda em um raciocínio de negação, não proponho um aumento do debate em torno de um domínio moral das práticas sexuais: o que é permitido, o que é proibido, o que é recomendado o que desaconselhável (Ver: FOUCAULT, 1984). As reflexões podem seguir o rumo de uma “erótica”, no sentido de discutirmos nossos mais recônditos desejos. É possível desejar uma criança ou ser pedófilo, na acepção de ser “aquele que gosta de crianças”? Sim (até o mais moralistas admitem isso!). O problema é até onde se impõem limites. Então é possível nos erotizarmos com nossos filhos. Sim. Por que negar isso? Mas isso impõe uma renúncia que acabou sendo transformada em lei perene. Os bebês, e as crianças no 123

Quem sabe algumas pessoas espancam crianças e adolescentes porque os ignoram eroticamente, ou porque é a única maneira que encontraram de tê-los? É claro que não é uma única hipótese.

mundo animal desenvolvem-se para terem a capacidade de procriar. As criaturas humanas, romperam (ainda bem!), com essa ordem natural e agora estão às voltas com uma desorganização erótica que em si não é problemática, mas que impõe limites. Esses limites foram levados a extremos tais que também se tornaram “ilógicos”. Ou seja, tratamos toda erótica sob o prisma moral do que pode e do que não pode. O debate inexiste para grande parcela da população, só há Lei. Discutir a sexualidade entre adultos e crianças isolada da tal erótica só tem como conseqüência à reafirmação de papéis, reafirmação de instituições, do bom e do mau. Claramente, relações sexuais entre adultos e crianças/bebês, são no mínimo falta de criatividade.124 No Brasil recentemente, a temática da pedofilia relacionada a crianças e

adolescentes, acrescida de um certo voyeurismo, esteve presente nas manchetes dos principais jornais e revistas de circulação nacional.

O fotógrafo Fábio Cabral teve seu

livro de fotografias, “Anjos Proibidos”, com fotos de garotas, recolhido pela Justiça em 1991.

Foi aberto inquérito policial e o fotógrafo acusado pelo então coordenador das

Curadorias da Infância e da Juventude, Munir Cury, de estar infringindo o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Cabral estava em Las Leñas em férias quando soube que

estava sob ameaça de prisão. Policiais invadiram seu estúdio e confiscaram os negativos das fotos.

O processo durou dois anos, mas o fotógrafo acabou sendo absolvido “por

falta de consistência de provas”. fotografias.

Foi o primeiro caso de censura de um livro de

125

No processo que teve fim em 10 de setembro de 1993, o despacho do juiz Osvaldo José de Oliveira, da 22a Vara Criminal de São Paulo, com a decisão de absorver o fotógrafo iniciava assim: Fábio Gonçalves Maria Cabral qualificado nos autos, está sendo processado como incurso no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente em crimes continuado, segundo o artigo 71, “caput”!, do Código Penal. Porque segundo a denúncia de fls. 02/06, fotografou e fez publicar pela “Itamaraty Gráfica Ltda,” no seu livro denominado “Anjos Proibidos”, as crianças e adolescentes Priscila, Taiz, Licia, Talita, Kassandra, Priscila, Luciana, Cristiane, Lucila,

Lady,

Milena,

Roberta,

Aleska,

Adriana,

Maria

e

uma

menor

desconhecida, em cenas que revelam conteúdo erótico ou sensual, o que na interpretação dos dispositivos inseridos no

124

Estatuto da Criança e do

A discussão é dificílima. Informações colhidas no domínio fotógrafo na Internet em 13/02/2002 e no domínio do jornal O Estado de São Paulo, em matéria publicada em 30/9/2001. 125

Adolescente tipifica a conduta de fotografar criança ou adolescente em cena pornográfica (artigo 241), posto que se deve levar em conta a condição peculiar da criança e do adolescente.126 Esse foi o primeiro livro publicado por Cabral. Continha 25 fotos de garotas entre 10 e 17 anos, teve tiragem única de 500 volumes

— quase metade deles

apreendidos pela Justiça poucos dias depois do lançamento.

Originou-se de uma

exposição que o fotógrafo realizou em 1985, quando fez sua primeira “mostra exibindo imagens focadas na sensualidade do nu feminino, levando seu trabalho às galerias de arte.”

As imagens retratam meninas de calcinhas, ou enroladas em um pano, algumas

com os seios à mostra, fotografadas entre 1985 e 1991. Em 1997, a revista “Paparazzi”, especializada em fotografia, publicou algumas dessas fotos reabrindo a polêmica. Abaixo, a capa da revista e algumas fotos colhidas no domínio do fotógrafo, (incluídas em sua galeria sob o título de “Anjos”) e no domínio da Revista Paparazzi”:127

126

Trecho foi colhido no domínio da Revista Trip, em 13/02/2002. Procurei saber com o fotógrafo, através de mensagem eletrônica, se seriam as mesmas fotos de seu livro, mas não obtive resposta até o fechamento da tese. Tudo indica que sim, uma vez que algumas delas também podem ser encontradas no domínio da revista Paparazzi acompanhando matéria que tem o mesmo título do livro. 127

O jornalista Marcelo Coelho descreve as fotos publicadas na revista Paparazzi assim: Vejo agora as fotos de Fábio Cabral. Garotas de uns treze anos, ou menos, mostram-se com carinhas mal-humoradas, arabescos de pernas e esboços de seios nas páginas da revista.

Escândalo?

Exploração da criança e do

adolescente? Não sei. As fotos não são pornográficas, longe disso. Claro que as meninas são lindas. Mas até que ponto a qualidade estética de uma foto, de um desenho, absolve um autor da acusação de ser perverso?

(...) Fábio Cabral poderia ter tirado fotos de velhinhos ou de mendigos, assim como Sebastião Salgado tira fotos de trabalhadores ou de migrantes, e só importaria, ao crítico, notar a simetria, o agenciamento das luzes e dos contornos, a angulação, a regularidade plástica, o “olhar” se cristaliza em cada negativo revelado. Falar em “estética”, aqui, seria mais do que nunca fugir do assunto.

Do

mesmo modo que Sebastião Salgado, Fábio Cabral está interessado em evidenciar “conteúdos”

— assuntos,temas, vivências, fantasias —

simplesmente formas bonitas.

e não

Suas fotos em “Anjos Proibidos” querem

mostrar ninfetas deliciosas, com corpinhos sensacionais, não há dúvida quanto a isso. Há pedofilia em “Anjos Proibidos”? Certamente. Seria hipócrita, e ao mesmo tempo verdadeiro, falar de valor estético nas fotos que a revista “Paparazzi” está publicando. Ninguém vai negar que a infância e adolescência constituem a idade de ouro da beleza humana. Tem-se, entretanto, uma ambigüidade entre a beleza que é enternecimento e encanto, e a beleza que é o desejo sexual. Nas fotos das ninfetas de revista, vejo ao mesmo tempo um gesto de sedução e uma aparência de pureza; misto de casualidade e provocação, de inocência e de pecado. (COELHO, 1997, p. 07).

Marcelo Coelho realiza uma discussão aparentemente inédita na mídia brasileira. A discussão proposta relaciona-se a proibição até mesmo do desejo sexual dirigido a “ninfetas” ou adolescentes. Aqui podemos verificar que há um movimento ainda com pouquíssima visibilidade por se tratar de uma postura delicada diante de instituições tão na firmemente solidificadas: “sexo requer maturidade física e emocional”. Porém, é só reconstituirmos algumas poucas árvores genealógicas para percebermos que nossos avós, não poucas vezes, casaram-se e geraram filhos, na adolescência. Como afirma Marcelo Coelho: (...) Durante muitos séculos, uma menina de 14 anos era considerada pronta para o casamento. De uma hora para outra, decidiu-se que só depois de dezoito anos uma mulher pode ser legitimamente desejável por um homem. Se ela tiver 15, e o homem 40, o homem é um monstro, e a mulher uma vítima. (...) toda a voga de antipedofilia é contemporânea de uma extrema sexualização das crianças. Meninas de sete anos usam os bustiês e as botinhas da Xuxa.

Nos

programas infantis, ensina-se a rebolar com shortinhos de couro preto. A dança da garrafa é um patrimônio cultural da infância brasileira. Paquitas, marazinhas e angélicas, explodem de sensualidade inocente (inocente?) ...

Minha opinião é que a censura à pedofilia é um sintoma dessa própria sexualização da infância. Censura-se o que se deseja.

128

Reprime-se o que não se quer ver reprimido.

(...) se alguém disser que fotos de crianças estimulam o abuso sexual contra menores, posso responder que fotos de mulheres adultas na “Playboy” estimulam o estupro... (...) claro que nada há de mais horrível do que a prostituição infantil na Tailândia, ou na Amazônia... (...) ninguém é inocente neste jogo; nem quem proíbe, nem quem fotografa, nem quem comenta, nem as próprias ninfetas, que em geral sabem muito bem o que estão fazendo (Ibid.). Não podemos esquecer a que até o século XVIII, a literatura médica construía a sexualidade feminina marcando-a pela insaciabilidade (GRONEMAN, 2001), e até hoje circula no mundo ocidental judaico-cristão a marca da culpa original da mulher relacionada à sedução de Adão descrita no livro Gênesis. As fotos dividiam opiniões entre a beleza das “fotografias” e um certo repúdio considerando as garotas muito novas para se exporem de tal maneira.

Ora, e as

crianças que dançam em mergulho anal e/ou pubiano à boca de uma garrafa?

A

diferença está no aspecto físico das crianças que ainda não desenvolveram seus órgãos genitais a ponto de indicar alguma sedução sexual? As adolescentes já estariam sendo julgadas pelo pecado de sedução/insaciabilidade original?

Calligaris (2000) desenvolve reflexões que, em alguns momentos, asemelham-se às de Marcelo Coelho. Assim como a infância, a adolescência é uma construção que busca identificar uma fase do crescimento humano: A adolescência é o prisma pelo qual os adultos olham os adolescentes e pelo qual os próprios adolescentes se contemplam.

Ela é uma das formações

culturais mais poderosas de nossa época. Objeto de inveja e de medo, ela dá forma aos sonhos de liberdade ou de evasão dos adultos e, ao mesmo tempo a seus pesadelos de violência e desordem” (Ibid., p. 09). Em relação especificamente ao corpo e a sexualidade de um bom número de adolescentes, parece que a sua beleza e sedução, oferecem liberdade e desordem. Liberdade pela “meio desligada” fomentação de fantasias e desejos; desordem, porque desestabilizam a moral que lhes reserva um momento de preparação para que na fase adulta possam usufruir sexualmente de seu corpo, assim como aos velhos é reservado o

128

Essa é a hipótese freudiana sobre o incesto.

momento de preparação para não mais usufruírem eroticamente de seu corpo que deteriora e aguarda conformado a sua imiscuição com a terra. Tanto para mulheres quanto para homens na nossa sociedade ocidental capitalista, “é necessário ser desejável e invejável” (Ibid., p. 13).

Esse treino começa

muito cedo e pode ser observado por exemplo, na “dança da garra” executada por crianças; na disputa pela atenção da professora ou dos pais. Na adolescência garotos e garotas estão prontos para o jogo: ... Seus corpos, que se tornaram desejantes e desejáveis, poderiam lhes permitir amar, copular e gozar, assim como se reproduzir. Suas forças poderiam assumir qualquer tarefa de trabalho e começar a levá-los na direção de invejáveis sucessos sociais. Ora, logo nesse instante, lhes é comunicado que não está bem na hora ainda” (Ibid., p. 13-14). Eles precisam concluir um curso (secundário, técnico, universitário), obter um emprego e após isso construir uma nova família.

Essa é uma seqüência sagrada e

inviolável, que lhes nega a erotização, ao mesmo tempo que também lhes apela para isso (vide a atual caça das agências de modelo por adolescentes).129 podem ser queimadas.

130

As etapas não

Se isso ocorre é por imprudência (falta de experiência, falta de

informação) ou por maledicência (“abuso”, estupro, prostituição). Quase nunca se cogita que foi por desejo. Mas há um movimento de “inconformidade” e “desordem” em relação à sexualidade adolescente e a erotização de seus corpos. Não se pode afirmar que é um movimento especificamente brasileiro, mas é inegável que há uma “agitação” no que “se percebia imóvel, uma fragmentação do que se pensava unido, heterogeneidade no que se imaginava em conformidade consigo mesmo”

(FOUCAULT, 1985b, p. 21).

O tipo

“abuso” ao mesmo tempo em que se “solidificou” globalmente, ainda permite balanços em sua estrutura a partir de uma discussão sobre a “beleza”. A tendência parece ser a de deixar inquestionável o combate a violência seja ela cometida contra crianças ou adolescentes, seja de ordem sexual ou maus-tratos. Mas, a inocência da adolescência especialmente, já começa a ser questionada.

Um

exemplo disso são reivindicações que circulam na mídia para rebaixar a idade de responsabilidade legal para 16 anos (especialmente quando alguns adolescentes

129

Seriam seus donos, pedófilos? Mas estas adolescentes estão liberadas pelos órgãos de proteção de crianças e adolescentes para trabalhar, até fora do país e sem a companhia dos pais, como “modelos” (de que?, para quem?). 130

cometem um crime, como assassinato).131 Fugiria muito da temática proposta caso me detivesse nesse assunto, apenas o cito para mostra a amplitude das questões que envolvem o “abuso”. Há porém, exemplos bem mais próximos.

Segundo o artigo 213 do Código Penal, manter relações sexuais com uma adolescente “menor de 14 anos de idade”, sob o consentimento dela, é crime, caracterizado como o estupro. Mais em Belém do Pará a desembargadora Lúcia Seguin Dias, retificou a pena que a juíza Gleide Pereira de Moura havia imposto a um rapaz de 25 anos de idade que manteve relações sexuais com sua namorada de 13 anos de idade. Conforme reportagem do jornal de maior circulação na região: a desembargadora “... ao analisar o processo, percebeu que a menina se entregou ao réu. Em razão disso, ele não praticou nenhuma violência ao ter relação sexual com ela.”132 Uma das situações que teve ampla divulgação na mídia brasileira, e causou grande polêmica, foi a decisão do ministro do Supremo Marco Aurélio Mello de absolver um homem do crime de estupro.

Em abril de 1996, o Ministro inocentou o namorado

adulto (35 anos) de uma menina de 12 anos, acusado de estupro e sedução. O Ministro chegou a este veredicto porque a menina há tempos mantinha relações sexuais com o homem (ISTO É, 26/09/2001).

Entendeu que não houve violência porque a menina

concordara em fazer sexo. “Nos dias de hoje, não há crianças, mas moças de 12 anos”, justificou. (ÉPOCA on-line).

O Ministro desconsiderou, com esse argumento, a

circunstância da lei de presumir violência quando a vítima for menor de 14 anos.

Em entrevista concedida para a Revista Isto É, o Ministro justifica seu voto.: ISTOÉ - No caso do julgamento do estupro, quais foram os seus critérios?

Marco Aurélio - Sempre que me defronto com um caso controverso, eu não procuro de imediato o dogma da lei. Tento idealizar, dentro da minha formação humanística, a solução mais adequada. A partir deste ponto é que vou à ordem jurídica buscar o indispensável apoio que viabilize a solução. (...). Neste caso, havia um contexto paradoxal. Além da concordância da vítima, o suposto agressor teve a nítida impressão de que a moça tinha mais de 14 anos.

131

A sentença só foi aplicada cinco anos depois do incidente,

Por mais que aparentemente não tenha nenhuma relação direta com as campanhas nacionais contra o “abuso”, registre-se que no ano de 2000, foi desencadeada uma campanha na cidade de São Paulo “Contra a Redução da Idade Penal”. A motivação foi novamente os índices de criminalidade envolvendo crianças e adolescentes, e a proposta de alguns deputados federais em retomar essa discussão. No dia 06 de outubro, houve um ato público, realizado no Palácio das Convenções Anhembi, que teve como um dos patrocinadores logísticos o Conselho Regional de Psicologia.

quando o rapaz já havia se casado e tido um filho. Condená-lo por um crime hediondo e prendê-lo em regime fechado se mostrou outro paradoxo. Por que ele e não qualquer dos outros rapazes que haviam mantido relações antes com a moça? Pesquisei e encontrei em juristas de renome apoio à absolvição do acusado, com base na relatividade da violência presumida pela lei. A questão passava a ser: a presunção de violência quando a vítima tem menos de 14 anos é relativa ou absoluta? A corrente mais conservadora acha que é absoluta, pouco importando a aparência física da vítima. Já a outra, mais próxima da realidade, leva em conta esses aspectos relativos, como o consentimento e a própria aparência física da suposta vítima. ISTOÉ - A que o sr. atribui as críticas que a decisão sofreu? Marco Aurélio - A uma visão conservadora dissociada não só da ordem jurídica como também da realidade. Essa visão dá desmesurada importância à idade que a vítima tinha, sem procurar esclarecer as circunstâncias do suposto estupro... ISTOÉ - Muitos acreditam que sua sentença vai afetar o combate à prostituição infantil. Marco Aurélio - Quando alguém diz isso, está fechando os olhos às causas da prostituição infantil. Essa visão conservadora busca a punição pura e simples de quem mantém relações sexuais com menores. Na verdade, o que temos de pesquisar são as causas. Chegar aos problemas sociais. (ISTO É, em 05/04/1996).

133

O assunto ainda promete gerar muita polêmica entre os profissionais do Direito. Posição antagônica a do Ministro foi veiculada no jornal “Subjudice-On line”, que publicou nota com o seguinte conteúdo: Consentimento da vítima não afasta presunção de estupro contra menores de 14 anos: A relação sexual mantida com menor de 14 anos, mesmo com o consentimento da vítima, corresponde à conduta criminosa prevista nos artigos 213 e 224 do Código Penal (CP) que, interpretados em conjunto, correspondem à figura do estupro presumido. Este entendimento do Superior Tribunal de Justiça foi confirmado, recentemente, durante o julgamento de um recurso especial negado por sua Sexta

132 133

Trecho colhido no domínio do Jornal O Liberal na internet, em, 27/09/1998. Entrevista colhida no domínio da revista na mesma data.

Turma e cujo relator foi o ministro Vicente Leal Dezembro/2001 - nº 20)

(SUBJUDICE-ONLINE,

134

Portanto, a unanimidade nessa questão está longe da decisão dos juristas brasileiros.

Por um outro lado, temos jurisprudência originada no Acórdão proferido no Processo Comum nº 1/98, 4º Juízo Criminal, Nº de Círculo 25/98, do Tribunal de Círculo de Matosinhos, pelo Juiz Relator Vítor Simões. Trata-se do caso de um jardineiro de 44 anos, a quem foi importada a prática, “em autoria material, de um crime de abuso sexual de menores, pelo artigo 172, nº 1, do Código Penal”. Segundo o processo, o jardineiro convidou duas meninas uma com sete anos e outra com 10 anos para a sala de um clube que, sob alegação de lhes dar de presente alguns pratos. Lá chegando trancou a porta mostrou-lhe algumas revistas pornográficas de depois “... meteu as mãos por dentro das calças (...) que a D.S. trazia vestidas, acariciando-a na zona anterior do tórax e no púbis, sem lhe causar qualquer traumatismo.” A situação foi interrompida pelo chamamento da mãe de uma das meninas que relataram o ocorrido. Em seu arrazoado o juiz descreve a lei do Código Penal que foi infringida, e inicia uma discussão sobre o conceito de “ato sexual” a que se refere a lei. Cita trecho de um estudo de dois juristas: repescando o sentido legislativo imanente ao preceito correspondente do Código anterior - onde se considerou que nem todo o acto ofensivo do pudor cabia na previsão da norma, mas apenas os que ofendiam gravemente os sentimentos gerais de moralidade sexual, com exclusão, portanto, das «atitudes anódinas como, por exemplo, um simples beijo, que não têm dignidade criminal» (Actas da respectiva Comissão Revisora, 12ª Sessão, BMJ, 287-94)

Em seguida fundamenta o seu parecer: ... somos do mesmo modo a entender que não é qualquer acto de natureza sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o patrimônio íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. Estão nesta situação, por exemplo, o coito oral ou bucal, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc. Parece-nos que também deve incluir-se no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o

134

Colhido no domínio do jornal na internet em 04/03/2002.

constragimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente. (...) Sem perdermos de vista as opiniões doutamente expressas pelos ilustres Magistrados acima citados, importa referir que, no nº 1 do artº 172º, o legislador, no conceito que formula de «acto sexual de relevo», exclui a cópula ou coito anal, dada a redacção do nº 2 do mesmo preceito (onde se pune tais condutas com maior severidade) e os actos de carácter exibicionista ou a actuação por meio de conversa obscena ou de escrito, espectáculo ou objecto pornográfico, ou a utilização do mesmo em fotografia, filme ou gravação pornográfica, atento o estatuido no nº 3 do referido normativo.

Por fim, o juiz afirma que o ato cometido pelo jardineiro é grave por se tratar de envolvimento de uma “menor”, “pelas possíveis conseqüências psicológicas” da menina. Considera que o ato, é um ato sexual contemplado no artigo do Código Penal em questão, e ainda “pela elevada intensidade do dolo”, “pelo fato do argüido não demonstrar qualquer arrependimento”, “pelas eventuais conseqüências ao nível psicológico que tal conduta poderá produzir no futuro na vítima”, “para prevenção geral e especial que o caso merece”, resolve condená-lo a três anos de prisão, com a execução suspensa pelo período de cinco anos, desde que o jardineiro nesse período, “não pratique qualquer ilícito de natureza sexual”. O que parece estar em jogo é a inocência das duas meninas, que são duas pessoas que precisam ter seus direitos assegurados. Vemos em plena atividade o funcionamento da matriz que constitue o abuso como um tipo também aqui no Brasil. Em relação ao “abuso” sexual envolvendo adolescentes, parece que um dos pilares da matriz, a inocência, inicia um processo de desgaste.

O que está em questão não são

situações que envolvem explicitamente violência, mas, a afirmação generalizada (que o Código Penal retrata), de que adolescentes não têm “maturidade física e mental” para dispor de seu próprio corpo.

Assim, permanece a instituição de um self individual e

prevalência de direitos. Postman (1999), afirma categoricamente que isso vem acontecendo nos Estados Unidos em relação a infância, atribuindo especial responsabilidade a mídia: “... a nossa nova e revolucionária mídia vem causando a expulsão da infância depois de sua longa permanência na civilização ocidental” (POSTMAN, 1999, p. 134).

A sua tese é

sustentada sobre uma série de exemplos especialmente da televisão e do cinema, onde crianças são expostas como adultas: vestimentas, posturas, linguagem, etc.

A

“adultificação” de crianças também acontece na mídia brasileira, se tomamos como referência a infância inocente. Para esse trabalho é mais relevante, constatarmos, que apesar do “abuso” ter se

solidificado

também

como

um

tipo

no

Brasil,



diálogo

incessante

entre

permanências e rupturas construindo práticas, a agenciando corpos, produzido versões do mundo: o moleque abusado deu espaço à criança “abusada”, mas nem tanto. Impedir que uma criança sofra violência, sim. Impedir que não possa mais ficar nas ruas, aguçar sua curiosidade, inclusive a sexual; impedir que transformemos as nossas tradicionais organizações sociais; e impedir que repensemos as tão naturalizadas categorias humanas, não. Nada mais consoante com a postura construcionista: A compreensão das práticas discursivas deve levar em conta tanto as permanências como, principalmente, as rupturas históricas, pela identificação do velho no novo e vice-versa, o que possibilita a explicitação da dinâmica das transformações históricas de impulsiona sua transformação constante. Por meio dessa abordagem, buscamos construir um modo de observar os fenômenos sociais que tenha como foco a tensão entre a universalidade e a particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma ferramenta útil para transformações da ordem social. 1999, p. 61).



(SPINK & MEDRADO,

À GUISA DE CONCLUIR?

Só me resta a interrogar os filósofos. Entrei na grande biblioteca, perdime entre as estantes que despencavam sob o peso de pergaminhos encadernados, segui a ordem alfabética de alfabetos extintos, para cima e para baixo pelos corredores, escadas e pontes. Na mais remota sala de papiros, numa nuvem de fumaça, percebi os olhos imbecilizados de um adolescente deitado numa esteira, que não tirava os lábios de um cachimbo de ópio. — Onde está o sábio? — o fumador apontou para o lado de fora da janela. Era um jardim com brinquedos para crianças: os pinos, a gangorra, o pião. O filósofo estava sentado na grama. E disse: — Os símbolos formam uma língua, mas não aquela que você imagina conhecer. Compreendi que devia me liberar das imagens que até ali haviam anunciado as coisas que procurava... Não existe a linguagem sem engano. (Ítalo Calvino, 1993, p. 47-48)

1. Os movimentos na construção de um tipo:

Influenciada por Nicholas Rose e Michel Foucault, a pesquisa foi calcada na noção de que é possível verificarmos na história humana períodos

em

que



um

nítido

“aglomerado”

de

instituições

compartilhando a construção hegemônica de sentidos atribuídos a uma ação/atividade/prática, específica.

A esse conjunto ou aglomerado de

instituições Hacking denominou matriz (1999, p. 10), entendida também como um “espaço social” (Ibid.) onde “funciona uma classificação” (Ibid., p. 11) ou a nomeação de determinados sentidos. Buscou-se a localização desse espaço social indicando a matriz do “abuso” e as sua estratégias de visibilidade e solidificação como um tipo. Procurou-se ainda mostrar como afirma Spink & Medrado (1999, p. 46, 47, 55), que a construção de sentidos é sempre o confronto entre inúmeras vozes, que a linguagem é ação e produz conseqüências e que tudo isso se faz em um processo constante de negociação.

Essas

nomeações ou construções de sentidos são negociadas em um espaço social, são coletivas (Latour, 2000, p. 53) e são talhadas durante vários anos, imprimindo mudanças que se “naturalizam”. Assim, é muito comum hoje que ao lermos, em uma manchete de um jornal, os dizeres "Pai abusa de filha”, imediatamente estabeleçamos relações com um ato sexual genital proibido e violento. O termo “abuso” significa uso incorreto ou excessivo, mas a partir de

determinado momento passou a ter um sentido mais amplo relacionado ao ato sexual entre um adulto com uma criança e/ou adolescente. O "abuso" se tornou objeto do conhecimento científico passando a ser "registrado" sob várias formas: câmeras fotográficas, exames clínicos com ou sem o uso de aparelhos (Raios X, colposcópio,por exemplo) e quadros estatísticos.

Os registros serviram

para "representar" o “abuso”

sexual infantil, dando-lhe objetividade, visibilidade e “materialidade inquestionáveis”.

Concomitante,

foi

classificado

como

doença

e

relacionado a um “trauma”, no sentido de que suas conseqüências não se limitam ao aspecto físico, (uma lesão impressa no corpo), mas se referem também a uma lesão “espiritual”, “sofrimento psíquico” (impressa na mente/lembrança). Em decorrência disto, passa a ser opinião geral que a pessoa submetida ao “abuso” precisa de tratamento psicoterápico centrado na memória, já que são as lembranças doloridas de um acontecimento que trazem sofrimento Eis um quadro geral da emergência do “abuso” sexual infantil. Deixou-se de lado a exploração das teorias explicativas do “abuso" e se priorizou os caminhos ou estratégias que foram utilizadas para dar visibilidade a este acontecimento, mostrando como foram criadas as condições de possibilidade para a solidificação do que Hacking (1999) chama de um “tipo”. São construções características do gênero humano “... de preferência habituais ou arquitetadas para algum propósito” (Ibid., p. 128). Em outras palavras, são qualificações que se constituem no que Bourdieu (2000, p. 61) chamou de habitus: conhecimento adquirido e também um haver, no sentido de experimentar, ser afetado por. Portanto, são qualificações que se fazem podem, em alguns momentos,

continuamente

e

que

até

constituírem uma “arrumação” que se institucionaliza, uma “atualização da história”, “sínteses passivas”, “estruturas estruturadas”

(Ibid., p.82-

83) mas, ao contrário, são unicamente movimentos. Quais foram os movimentos do “abuso” ? Chegaram em que “onda”? Onde desaguaram? Como foram estruturados? Que estratégias de visibilidade usaram? São questões que nortearam este trabalho de pesquisa. O “abuso” infantil desenvolve-se no movimento de combate a crueldade cometida contra crianças e o ultrapassa incluindo o aspecto sexual e negligência e a humilhação (“abuso psicológico”). Permite que o Estado e

organizações

não-governamentais

(ambas

organizações

de

“governamentalidade”), interfiram na vida doméstica familiar, com o intuito de preservar a integridade da criança e a própria estrutura familiar. Diferentemente do incesto, o “abuso” não se vincula apenas a um problema moral (relações entre pares consangüíneos), mais a uma violação de direitos, a uma violência. Mas há um debate recente e ainda pouco visível especialmente relacionado à sexualidade adolescente. A violência é condenada, porém se reconhece a erotização presente no corpo adolescente, que é valorizada socialmente, veiculada em telenovelas, revistas direcionadas a mulheres e adolescentes. Esse parece ser um debate que irá tomar maior corpo, relacionando-se à gravidez na adolescência e inimputabilidade aos menores de 18 anos.

2. Os movimentos para “continuidade” da pesquisa: Ao “terminar” o trabalho de tese já se esboça um programa de

novos estudos. Nesse sentido, o vinculo com o Núcleo de Psicologia Social e Saúde (PUC-SP), compartilhando dúvidas e elaborações é fundamental. Algumas questões de estudo já começaram a tomar corpo. Por exemplo: —

A relação sentido/acontecimento.

acontecimento sem atrelá-lo ao termo “sentido”,

É possível adotar o termo

para escapar da “ditadura

humana dos significados e interpretações”? —

A noção de “matriz”, pode ser substituída pela expressão

“condições de possibilidade”, e assim abandonar de vez um certo resquício de determinismo? —

A noção de “tipo” é a melhor expressão para indicar “as

instituições de um tempo”?

2.

Os

movimentos

desencadeados

na

vida

do

pesquisador: Depois de ter percorrido durante os últimos quatro anos dezenas de textos em livros, revistas, jornais, banco de dados, Internet, em uma jornada dubiamente cansativa e prazerosa, a sensação é de estar, como cantava Gonzaguinha, “de volta ao começo”. O construcionismo e os escritos de Foucault, Spink, Hacking, Ibáñez, Latour mudaram minha postura diante da vida.

Durante a

pesquisa sobre a construção de um “tipo” (“abuso” sexual infantil intrafamiliar), percebi a volatilidade das construções humanas e mais ainda, a delícia do estar sendo.

Dois grandes poetas (só eles conseguiriam colocar letras no que me afeta neste momento), sempre estrangeiros, finalizam um novo começo. Primeiro Fernando Pessoa: Não só eu quem escrevo. Eu sou a tela E oculta mão colora alguém em mim. Pus a alma no nexo de perdê-la E o meu princípio floresceu em Fim. (...) E, abrindo-se as asas sobre Renovar, A erma sombra de vôo começado Pestaneja no campo abandonado... Fernando Pessoa, 1991, p. 90

E agora o velho Chico: Tantas palavras Que eu conhecia Só por ouvir falar, falar (...) Não tinham tradução Mas combinavam bem (...) Tantas palavras Que eu conhecia E já não falo mais, jamais Quantas palavras Que ela adorava Saíram de cartaz Nós aprendemos Palavras duras Como dizer perdi, perdi Palavras tontas Nossas palavras Quem falou não está mais aqui. Letra gravada no LP Chico Buarque, 1984



Anexos

ANEXO I

ANEXO II

ANEXO III

ANEXO IV

ANEXO V

ANEXO VI

ANEXO VII

ANEXO VIII

ANEXO IX

ANEXO X

ANEXO XI

ANEXO XII

ANEXO XIII

ANEXO XIV

ANEXO XV

ANEXO XVI

ANEXO XVII

ANEXO XVIII

ANEXO XIX ————————————————————————————————————————————— —— tabela de acontecimentos internacionais

ANEXO XX ————————————————————————————————————————————— —— tabela de acontecimentos nacionais

ANEXO XXI ————————————————————————————————————————————— —— tabela de acontecimentos nacionais e internacionais

ANEXO XXII ————————————————————————————————————————————— —— tabela de acontecimentos nacionais relacionados a legislação e normalização

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In: Revista de

SOBRE O AUTOR:

É professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal doRicardo CearáPimentel (Graduação Pós-Graduação). Pós-graduação: Méllo ée professor do Departamento de Psicologia PósSocial e doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012 Escolar, na Universidade Federal do Pará (UFPA) e participa do Núcleo de Pesquisa em Teoria Ator-Rede); Doutorado emdePsicologia Social pelaemPontifícia Psicologia Social e Saúde do Programa Estudos Pós-Graduados Psicologia Social da Universidade Católica de São Paulo (2002 Tese: Abuso Sexual PUC-SP. Nasceu em 1962, em Belém (PA) . Graduou-se em Psicologia na UFPAInfantil); em 1986. Mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de Especializou-se em teoria psicanalítica em curso interinstitucional UFPA/UFRJ, realizado São Paulo (1994 Dissertação: Violência Agrária); Formação em em Belém, em 1992, apresentando o trabalho de monografia “Pulsão de morte e psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (2000); violência: uma articulação possível?”. Na Universidade Católica de São Paulo, em 1994, Especialização em Psicologia Clínica e Teoria Psicanalítica pela apresentou seu mestrado, defendendo a dissertação “A representação social dos direitos Universidade Federal do Pará (1992 – Monografia: Pulsão de Morte). de exploração e uso do solo: um estudo psicossocial da violência na região sul do Pará”. Graduação: Formação de Psicólogo pela Universidade Federal do Pará No Centro de Estudos Psicanalíticos, em São Paulo, fez Formação em Psicanálise, (1986 - TCC: Relações Sexistas); Bacharelado em Psicologia pela concluída em 2000. Universidade Federal do Pará (1985). Realiza estudos e pesquisas que envolvam a temática e abuso de drogas e/ou ilícitas: Seus estudosdoe uso pesquisas atuais situam-selícitas no âmbito da produção de práticas de cuidado e promotoras de saúde; estudos clínicos, redução de sentidos. danos, consultório na rua e clínica itinerante; políticas de drogas, biopoder e governamentalidade; drogas e gênero; drogas como actantes (Teoria Ator-Rede).Coordena o Núcleo de Estudos sobre Drogas (UFC) e Para contato: colabora com: Núcleo de Estudos sobre Práticas Discursivas e Produção Fone: (91)272-53-78 / 272-50-01 de Sentidos (PUC-SP); Núcleo de Lógicas Institucionais e Coletivas [email protected] (PUC-SP); Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Drogas (UFCG). Na ANPEPP participa do G.T. Cotidiano e Práticas Sociais. Endereço eletrônico: [email protected]

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