Memética: a invasão das mentes. Filosofia Ciência & Vida, São Paulo, n°51, p. 22-29, Out 2010

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Memética:

a invasão das mentes

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Gustavo Leal Toledo é graduado em Filosofia na UERJ e mestre pela PUC-Rio. Doutorou-se na mesma instituição. Atualmente é professor da Universidade Federal de São João Del-Rei, no Campus Alto Paraopeba

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“ingrediente” fundamen­­ tal da evolução é, se­ gundo o biólogo Richard Dawkins, o que ele cha­ mou de replicador: o re­ plicador é um ente capaz de fazer cópias de si mesmo. Ele é o ser que tem descendentes e é nele que podemos dizer que a seleção natural age. Os primeiros replicadores eram capazes de copiar a si mesmos, sendo assim, seus descendentes herdavam suas características e, portanto, também eram capazes de copiar a si mesmos. A heredita­ riedade é uma característica fundamental dos replicadores. Entretanto, mesmo os replicadores que são capazes de fazer boas cópias de si eventualmente erram no pro­ cesso e criam seres diferentes de si. Esses erros, que foram chamados de mutações, acontecem por acaso, ou seja, eles não são direcionados para nada. Mas, eventualmente, um erro na replicação

pode criar um replicador mais potente. Quando isso acontece, essa mutação é passada aos seus descendentes que even­ tualmente poderão ter novas mutações que também ampliem seus poderes de re­ plicação. Tal processo de acúmulo de mu­ tação é o que pode ser chamado de evo­ lução. Ele se dá pela seleção natural que nada mais é do que o sucesso reprodutivo diferencial, ou seja, aqueles que se repli­ cam mais se tornam mais comuns; os que se replicam menos tornam-se mais raros. No caso do nosso planeta, os princi­ pais replicadores são os genes. São eles que sofrem as mutações e que transmitem as informações da hereditariedade. No en­ tanto, o chamado ultradarwinismo nos mostra que o importante do gene não é o fato de ser uma cadeia de DNA e, sim, de ser um replicador. Deste modo, se ele fosse feito de outra coisa que também pudesse se replicar, também seria alvo da seleção

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Assim como características genéticas são transmitidas hereditariamente, passando por mecanismos de seleção natural e evolução, comportamentos e ideias também seguem o mesmo processo. É o que estuda a Memética

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natural e, por conse­ quência, da evolução. É neste sentido que o ul­ tradarwinismo quer ultrapassar as barreiras do darwinismo. Para o ultradarwinismo, tam­ bém chamado de darwinismo universal, o darwinismo não se restringe a um estudo da Biologia do nosso planeta. Onde houver um replicador capaz de passar suas ca­ racterísticas para seus descenden­ tes e houver um suprimento finito de “nutrientes” necessários para a O replicador é capaz de fazer cópias de si mesmo e de gerar descendentes, de modo semelhante ao que faz o gene no processo de reprodução. É nele que age a seleção natural

replicação, ocorrerá a seleção na­ tural e a evolução. Isto quer dizer que a evolução não depende do substrato biológico aqui da Terra, ela pode se dar em outros plane­ tas, com outros substratos. Como diz o filósofo Daniel Dennett: “As ideias de Darwin sobre os poderes da seleção natural também podem ser retiradas de sua base biológica”. Com isso, Dennett não está que­ rendo dizer que tais ideias possam ser aplicadas só a outros planetas e, sim, aplicadas a qualquer ambiente onde existam outros replicadores. Nas palavras de Richard Dawkins, “o darwinismo é uma teoria gran­ de demais para ser confinada ao contexto limi­tado do gene”.

Conceito de meme Foi justamente para deixar mais intuitivaaideiadequeaevoluçãoindepende do substrato que Dawkins criou, no último capítulo de seu livro O Gene Egoísta (1976), o conceito de meme.

Um meme pode ser compreendido como uma unidade de cultura, um comportamento ou uma ideia que pode ser passada de pessoa para pessoa pela imitação. Existe uma grande discussão sobre se os memes podem ser passados só por imitação ou se podem ser passados por outras

formas de aprendizado social. Mas o importante é que eles são copiados de indivíduo para indivíduo. Ele é o replicador e, deste modo, o meme é o análogo cultural do gene. Na definição de Susan Blackmore, considerada por Dawkins e Dennett como a principal defensora dos me­ mes, “memes são instruções para realizar comportamentos, armaze­ nado no cérebro (ou em outros ob­ jetos) e passado adiante por imita­ ção”. Deve ser notado que é bastante óbvio que a cultura passa de pessoa para pessoa, de geração para gera­ ção. Também não é nada questioná­ vel que a cultura muda, tendo partes dela desaparecido e outras partes se desenvolvido. Mas o real problema é como essa cultura passa e como ela muda e é isto que a Memética tenta resolver por meio de um pro­ cesso darwiniano. Os exemplos de memes são inú­ meros, os mais comumente citados são: a moda nas roupas e na alimen­ tação, cerimônias e costumes, Arte e arquitetura, engenharia e tecnologia, melodias, músicas, ideias, slogans, a roda, o alfabeto, a religião, etc. Toda a cultura, todos os comportamentos sociais, todas as ideias e teorias, todo comportamento não geneticamente determinado, tudo que uma pessoa

Memética no Brasil Existem no Brasil grupos de pesquisa que estudam a difusão da cultura e do conhecimento, mas sem necessariamente utilizar o termo “Memética”, como o que organiza o Workshop em Modelagem Computacional da Difusão do Conhecimento, que este ano terá

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seu quarto encontro. Tal grupo Multidisciplinar e Multi-Institucional, composto por UFBA, LNCC, UEFS, UNEB, dentre outros, criou um programa de doutorado em Difusão do Conhecimento, com sede na UFBA. Há também o mestrado em Modelagem Computa-

cional de Conhecimento, na UFAL, e a pós-graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento, na UFSC. Na UFSJ está sendo criado um grupo multidisciplinar que visa estudar a Memética a partir das técnicas de modelagem matemática utilizadas na biologia evolutiva.

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Para o filósofo Daniel Dennett: “as ideias de Darwin sobre os poderes da seleção natural também podem ser retiradas de sua base biológica”

pode imitar ou aprender com outra pessoa é um meme. Assim, um nazista, por exemplo, ao defender o nazismo está tentando passar este meme para outras pessoas. Se as mentes destas outras pessoas forem um ambiente propí­ cio para o meme do nazismo se instalar, ele assim o fará e tentará passar destas pessoas para outras. Em uma primeira simplificação, podemos pensar nos memes como “padrões de comportamento”: uma pessoa aprende a dançar imitando certo padrão de compor­ tamento. Esse padrão pode ser bem adaptado ou não a esta pessoa. Por exemplo, será mais bem adaptado se ela tiver um bom desempenho físico, um bom ouvido para seguir o ritmo da música, uma boa estrutura cerebral capaz de traduzir esse ritmo em movimentos do corpo, uma boa memória corporal, um gosto pelo tipo de músi­ ca que está dançando, uma vida social que a leve a luga­ res onde se pode dançar, etc. Tudo isso é o “ambiente” no qual esse meme vai se inserir. Neste caso apresentado, o meme estará bem adaptado a esse ambiente e poderá, então, ser passado para outras pessoas, o que significa somente que essa pessoa tenderá a influenciar outras pessoas a dançar, seja por meio de incentivo verbal, seja

Cadeia de DNA, responsável por formar os genes que transmitem as informações hereditárias. Os genes são os principais replicadores em nosso mundo

dançando com elas, seja as ensinando a dançar ou mes­ mo somente sendo observada e admirada. Esses exemplos do que é ver a cultura pela visão dos memes normalmente causam um desconforto, pois ne­ les são os memes que se replicam e não nós que os repli­ camos. Pensemos no caso de cultos que fazem “lavagem cerebral” e chegam até mesmo a levar ao suicídio coleti­ vo. Pensemos também no processo de criação artística em que um personagem de um romance ou um quadro ou uma música parecem ter uma vida própria. A própria ideia de propaganda, por exemplo, vem da ideia de que um comportamento pode se propagar de pessoa para pessoa. Os memes se propagam de pessoa em pessoa de manei­ ra semelhante à propagação de uma doença contagiosa. Pessoas “infectam” as outras com os seus memes e alguns memes são mais contagiosos do que outros, mas também algumas pessoas são mais suscetíveis do que outras. Esses são casos em que sentimos claramente que quem coman­ da são os memes, são eles que querem ser passados. O principal ambiente dos memes são as mentes hu­ manas, e é por elas que eles competem, nas palavras de Dennett: “O estoque de mentes é limitado, e cada mente tem uma capacidade limitada de memes, portanto, há uma forte competição entre os memes para entrar no maior número de mentes possíveis. Esta competição é a principal força seletiva na memosfera”. Essa é a origem da visão de um meme como um vírus que invade nossa mente. No entanto, essa visão não está perfeitamente correta se levarmos em consideração que a “nossa mente” é, ela mesma, um complexo de memes, por isso não poderia haver essa dicotomia entre um “nós” que somos invadidos por um “eles”. Duas são as principais diferenças entre os memes e as outras abordagens da cultura: em primeiro lugar, uma ciência do estudo dos memes, a Memética, poderia se ba­ sear na genética, na biologia populacional e na epidemio­ logia para desenvolver um verdadeiro programa de pes­ quisa da cultura humana. Em segundo lugar, a Memética www.portalcienciaevida.com.br •

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Um meme pode ser compreendido como uma unidade de cultura, um comportamento ou uma ideia passada de pessoa para pessoa pela imitação

nos permite estudar o desenvolvimento da cultura sem um questionável “sujeito da escolha” capaz de decidir que comporta­ mento seguir ou que ideia adotar. Tal sujei­ to seria, na melhor das hipóteses, só mais uma parte do ambiente dos memes. A Me­ mética traria, assim, a chamada perspecti­ va do meme, ou seja, são os memes, assim como os genes, que “querem” ser passados e não as pessoas que os querem passar. Essa perspectiva do meme é semelhan­ te às narrativas históricas adaptacionistas comuns na Biologia. Ao estudar um meme deve-se mostrar o que o torna um bom re­ plicador, ou seja, por que ele tem sucesso re­ plicativo. É nisto que a Memética se diferen­

Críticas

Muitas são as críticas à Memética, mas a grande maioria delas se aplica também à genética e à biologia populacional e só poderiam ser propostas por pessoas que desconhecem os debates existentes sobre a questão do que é o gene ou que desco­ nhecem a história do darwinismo. Como aqui não é possível tratar de todas, será

Literatura sobre os memes Há pouca coisa em português sobre Memética. Pode-se encontrar facilmente O Gene Egoísta (1976), de Richard Dawkins, em que o conceito de meme aparece pela primeira vez. Deste mesmo autor, há um capítulo na obra O Capelão do Diabo (2005), onde está traduzido para o português o prefácio que ele fez para o livro The Meme Machine, de Susan Blackmore (que pode ser encontrado em espanhol). Outros livros recentes dele, como o Deus, um delírio (2007), analisam rapidamente esse tema. Do filósofo Daniel Dennett tem-se o livro A Perigosa

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Ideia de Darwin (1998), com um ótimo capítulo sobre Memética. No mais recente, Quebrando o Encanto (2006), também há referências sobre o tema. Embora não fale especificamente sobre Memética, os livros de Cavalli-Sforza, em especial o Genes, Povos e Línguas (2003), são leituras essenciais para os interessados em estudar a coevolução entre genes e memes. Fora isso, a bibliografia essencial está toda em inglês: há o livro de Blackmore já citado; no livro Sense and NonSense, evolutionary perspectives on human behaviour (2004), de Gillian Brown e Kevin Laland,

há um interessante capítulo sobre o tema; existe também uma boa coletânea de artigos organizada por Robert Aunger intitulada Darwinizing Culture: The Status of Memetics as a Science (2000), de onde o restante da bibliografia pode ser encontrado. No doutorado do autor do artigo, Gustavo Leal de Toledo, intitulado Controvérsias Meméticas: a ciência dos memes e o darwinismo universal em Dawkins, Dennett e Blackmore (2009), é possível encontrar um detalhado estudo sobre as principais questões que envolvem a Memética.

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A memética é confundida com outros estudos, um deles é conhecido como “efeito Baldwin”. Segundo a teoria de James Baldwin, os mais aptos a aprender teriam maior taxa de sobrevivência e de descendentes

cia de outras teorias que normalmente são confundidas com ela, a saber, o Darwinis­ mo Social, a Sociobiologia, a Psicologia Evo­ lutiva e o chamado efeito Baldwin. A única relação que a Memética tem com essas teo­ rias é o fato de que todas elas estão incluídas dentro do panorama geral do ultradarwi­ nismo. Mas em muitos casos, a Memética é até mesmo oposta a essas teorias.

Há discussão sobre se os memes podem ser passados só por imitação ou por outras formas de aprendizado social

levantada apenas a crítica mais comum: falta de conhecimento do que seria de fato um meme, de que ele é feito, qual a sua ontologia. Essa crítica fala que a definição de meme como um pedaço de in­ formação cultural seria demasiada­ mente vaga para ser utilizada por uma ciência, precisaríamos saber exatamente o que é um meme, do que ele é feito. No entanto, ignora-se que a definição de gene também não está tão bem estabelecida como se imagina. A propósito, uma das mais de 20 definições utilizadas para explicar o que é um gene é pratica­ mente idêntica à definição de meme, pois se definem genes como pedaços de informação passadas pelas ge­ rações dentro de uma determina­ da população. Essa definição, que tem como seu principal ex­ poente George Williams, é bastante utiliza­ da dentro da biologia evolutiva, pois a definição física de gene como um determinado pedaço de DNA que codifica uma proteína algumas ve­ zes não é útil, já que um gene pode ser passado por infinitas gerações, mas um pedaço de DNA não. Nas

palavras do biólogo Mark Ridley, “o que importa é a informação do gene, não sua continuidade física”. Mesmo assim, podemos consi­ derar que a crítica permanece, pois mesmo um gene sendo definido como um pedaço de informação, sabemos que tipo de substrato o car­ rega, o que não seria verdade para o meme. Neste caso, teríamos de lembrar que Darwin desconhecia completamente o conceito de gene e advogava uma teoria da heredita­ riedade por mistura completamente errada (pangênese). Mas isso não im­ pediu que o darwinismo fosse larga­ mente aceito como um grande passo dentro da Biologia. Aliás, quando o conceito de gene retornou do seu esquecimento para a Biologia, em 1900, ele foi utilizado por Hugo de Vries e outros como um refutador do darwinismo, pois provaria que a evolução se dá aos saltos. Foi só em 1920 que R. A. Fisher finalmente conseguiu explicar o gradualismo darwinista por meio de pequenas mudanças genéticas e, só em 1940, com a nova síntese, que os estudos das pequenas mudanças genéticas de Fisher se uniram aos estudos das grandes mudanças evolutivas e foi criado o que hoje chamamos teoria evolutiva de Darwin. Isso sem con­ tar que só em 1953 Watson e Crick descobriram que os genes eram co­ dificados no DNA. Ou seja, passa­ ram-se quase cem anos desde o sur­ gimento do darwinismo para que se soubesse exatamente o que é um gene e qual seu substrato. Mas a pa­ lavra “exatamente” deve ficar entre aspas, pois depois do surgimento da biologia molecular se instaurou uma larga discussão sobre o que de fato seria um gene, sendo que os genes no sentindo mendeliano – que deu www.portalcienciaevida.com.br •

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cola conceitual da cultura

Um dos grandes benefícios da Memética é justamente o fato de que ela talvez possa fazer o mesmo para as di­ versas abordagens da cultura que hoje se encontram se­ paradas, sendo consideradas ciências distintas: Antro­ pologia, Linguística, Sociologia, História, Economia, Marketing, Design, Pedagogia, Pu­blicidade e Propa­ ganda são só alguns exemplos de áreas que vêm, em al­ guns casos, há séculos trabalhando o desenvolvimento e a transmissão da cultura e devem todas ser respeita­ das em sua individualidade, mas que poderão ser com­ preendidas dentro de um mesmo conjunto conceitual originário da Memética. Esta deve encontrar a unidade dentro da multiplicidade, mostrando, por exemplo, que dentro do aparato conceitual memético aquilo que um publicitário faz está diretamente relacionado ao que um pedagogo e um linguista fazem. É justamente esta habilidade da Memética de unir áreas díspares a sua maior força e um dos principais mo­ 28 •

Há inúmeros exemplos de memes: o nazismo é um deles. As ideias nazistas foram transmitidas infecciosamente de pessoa a pessoa até se instalarem na mente da população de quase um país inteiro

tivos pelo qual devemos tentar desenvolver tal ciência. A Memética poderia criar um aparato concei­tual comum capaz de unir essas diversas áreas que, do contrário, manteriam a sua disparidade e não seriam capazes de descobrir o quão poderosa pode ser uma abordagem conjunta da cultura. Como exemplo, podemos ver que as mudanças lin­ guísticas se dão de maneira lenta e gradual, passando por uma série de fases intermediárias, ação em tudo semelhan­ te ao processo evolutivo na Biologia: um lento e contínuo processo de mudança que transforma variações internas em espécies (tipos), transformando variações dialetais em línguas não compreensíveis entre si. O ambiente no qual esta variação se dá é tanto social quanto mental e pode ser estudado pela Antropologia, pela Sociologia, pela História e pela Psicologia. A partir do estudo dessas relações pode surgir uma espécie de “ecologia dos memes”. Algumas variações linguísticas (alguns memes) podem ser mais adaptadas a uma determinada cultura do que a outra e, por isso, ser selecionadas se tornando mais comum. Um exemplo muito comum de regularidade é a transformação do latim /kl-/ e /pl-/ que, quando estavam no início das palavras, se transformaram em /λ-/ do espanhol, escrita

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origem ao que chamamos de gene no nosso senso comum biológico – talvez sequer existam. Do mesmo modo que foi possível fazer biologia evolu­ tiva sem uma definição exata de gene e sem saber qual era o seu substrato, ou até mesmo com uma definição errada do princípio da hereditariedade, pode ser possível fazer Memética sem uma definição final do que é um meme e do que ele é feito. De certo modo, a Memética já vem sendo feita assim. Uma análise apressada da Memética a considera como uma ciência ainda totalmente por fazer, mas uma análise memética das ciências humanas pode mostrar que isso não é necessariamente verdade. Um olhar mais cauteloso é capaz de observar que muitas ou­ tras áreas desenvolveram estudos que podem interessar à Memética e alguns que podem, até mesmo, ser reclassifi­ cados como estudos propriamente meméticos. Como nos indicou Theodosius Dobzhansky ao di­ zer que “nada na Biologia faz sentido a não ser à luz da evolução”, o que Darwin fez foi em grande parte jun­ tar as diferentes áreas da Biologia dentro de uma com­ preensão unificada. Mais do que uma simples teoria, a evolução por seleção natural seria um tipo de “cola con­ ceitual” capaz de unir diversas áreas da Biologia. Em­ bora essas fossem obviamente relacionadas, pois todas tratavam do mundo vivo de um modo ou de outro, não eram consideradas todas como fazendo parte de um mesmo arcabouço teórico.

É justamente esta habilidade da memética de unir áreas díspares sua maior força e um dos principais motivos pelo qual devemos tentar desenvolvê-la

ll, e em /š-/ do português, escrita ch-. Assim, clamare, clave, plenu e plicare, todas do latim, viraram no espanhol llamar, llave, lleno e llegar, e no por­ tuguês “chamar”, “chave”, “cheio”, “chegar”, respectivamente.

Fundo mêmico

imagem: john collier

(1850-1934)/wikimedia

commons

Outras variações podem ser mais bem adaptadas à própria estrutura do cérebro humano e ao seu funcio­ namento. Isso significa que as neu­ rociências e a Psicologia devem ser o melhor lugar para mostrar quais são as forças seletivas atuando nes­ ta mudança. Estudos da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia

Charles Darwin (1809-1882), criador da teoria da evolução das espécies

Evolutiva mostram que a mente não é uma tábula rasa, tendo já certas pre­ ferências inatas. Memes que se adap­ tam a estas preferências teriam mais possibilidade de se tornarem comuns no “fundo mêmico”. Experiências psicológicas mostram, por exemplo, que pessoas têm maior probabilida­ de de ser influenciadas e persuadidas por pessoas de quem gostam, mesmo que os argumentos delas não sejam os melhores, fato esse que é cotidia­ namente utilizado no marketing, na publicidade e na propaganda. Uma propaganda qualquer, co­mo as que estão presentes na televisão ou em revistas, normalmente tem atrás de si todo um aparato teórico-­ -conceitual que indica como levar o consumidor a comprar tal produto e que pode ser testada simplesmente vendo se essa propaganda teve o efei­ to desejado. A Memética já poderia encontrar aí uma primeira base em­ pírica de suas previsões com a qual trabalhar. Publicitários precisam saber como vender e, para isso, pre­ cisam entender como afetar o com­ portamento de alguém de maneira direcionada e previsível. Muito do que eles fazem é justamente basea­ do no tipo de pesquisa que interessa à Memética. Experimentos, que no futuro poderão ser considerados ex­ perimentos em Memética, já foram realizados dentro da Psicologia e são utilizados por publicitários, e outros surgem a todo o momento.

Se as pesquisas e “experimen­ tos” em publicidade e propaganda podem nos dizer qual produto irá vender, ou qual música será escu­ tada, pode ser também que nos digam, por exemplo, qual varian­ te linguística terá maior sucesso, ou qual novo hábito se propagará com mais rapidez, ou qual méto­ do pedagógico é mais eficaz. Em todos esses casos a questão é qual meme é mais bem adaptado a um determinado ambiente e será assim selecionado. Tal ambiente seria es­ tudado pela Psicologia, Sociologia, Neurociência, etc. Dentro de uma perspectiva memética, todas essas áreas estão falando a mesma língua e devem trabalhar juntas para estu­ dar o desenvolvimento da cultura. As técnicas utilizadas nestas áreas poderiam ser reaproveitadas den­ tro da Memética. Se a Memética for percebida deste modo, ficará claro que ela não é apenas uma ciência por fazer. Seu valor está, antes de tudo, na sua capacidade de unir diversas áreas que não se encontram no momento dentro de uma estrutura conceitual comum. Há, sim, um longo cami­ nho que ela deve percorrer, mas já há um caminho percorrido por ou­ tras ciências correlatas e não é pre­ ciso percorrê-lo de novo. Podemos, deste modo, ver a Memética não só como uma promessa, mas como uma realidade em construção.

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