Memória da passagem por Gashaka

June 1, 2017 | Autor: Susana Garcia | Categoria: Nigeria, Etnography, Field Work
Share Embed


Descrição do Produto

Memória da passagem por Gashaka

Susana Garcia Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas

Aqui tentarei deixar algumas das impressões sobre uma experiência que vivi durante oito semanas numa pequena comunidade nigeriana. O objectivo da viagem era o de fazer trabalho de campo com primatas não-humanos em Kwano (Estado de Taraba, Gashaka) no nordeste da Nigéria, junto à fronteira com os Camarões, ficando integrada no The Gashaka Primate Project fundado em 2000 pela University College London. Apesar de não ser o propósito desta aventura o estudo das comunidades humanas, durante a minha estadia o contacto com os habitantes locais foi constante até porque devido a questões de segurança ia sempre para o terreno acompanhada por um assistente de campo da aldeia de Gashaka. No dia 18 de Março de 2002 cheguei a Lagos, depois de ter estado alguns dias em Londres para preparar a viagem. Passados dois dias segui para Abuja, de avião, note-se, ou teria que enfrentar longas horas nos autocarros locais e daí para Iola numa Toyota Hiace sobrelotada, como é tão típico em África. Ao fim de seis claustrofóbicas horas, cheguei a Serti onde me aguardava um funcionário do Parque Nacional GashakaGumti que me conduziu até à aldeia de Gashaka já às portas do Parque. A ansiedade era enorme, agravada pelo facto de o coordenador do projecto, o Prof. Volker Sommer da University College London, ter feito questão em não me mostrar nenhuma imagem do local ‘para não estragar a surpresa’, segundo as suas palavras. O estatuto de Parque Nacional foi atribuído àquela área em 1991, ainda que seja um dos maiores da Nigéria e decerto um dos parques nacionais com maior diversidade ecológica. Os seus 6600 quilómetros quadrados de área encontram-se cobertos por um mosaico de habitats, desde vegetação ribeirinha, savana arborizada até florestas de alta e baixa altitude, que, por sua vez, albergam grande variedade de espécies animais e vegetais características de cada um destes ambientes. Como cheguei a Gashaka ainda na estação seca, as imediações da aldeia tinham um aspecto desolador devido à prática de queimadas periódicas cujo propósito é o de

Etnografia & Emoções

evitar incêndios de grandes proporções. Todavia, uma única viagem de Gashaka até Kwano foi suficiente para verificar que o potencial do parque era enorme e notório mesmo para quem tinha acabado de aterrar num contexto completamente desconhecido. Além da enorme diversidade de nichos ecológicos e de espécies faunísticas (estima-se que vivam no parque mais de 400 espécies de aves), a generalidade dos animais mostrava grande à-vontade na presença humana, ficando claro pela sua reacção que não havia, de facto, caça. Os colobos quando nos avistavam emitiam vocalizações, assinalando a presença de possíveis predadores, saltavam para a árvore seguinte e daí observavam-nos com tão ou mais curiosidade que nós a eles. Entretanto já outras espécies se lhes tinham juntado nas suas posições de vigia, nomeadamente os macacosmona e os macacos-de-beiço-branco. Nem os pachorrentos macacos-uivadores que estudei no México mostravam uma atitude tão serena, era como se revisitássemos velhos conhecidos. A diversidade étnica também foi notada. Os grupos étnicos mais representados nas imediações do parque são os Fulani e os Haúsa. Ambos os grupos são islâmicos e partilham algumas práticas culturais, contudo, nesta zona, a pastorícia continua a desempenhar um papel central na vida diária dos Fulani e os Haúsa dependem sobretudo de uma agricultura de subsistência. A pertença étnica continua muito vincada na sociedade nigeriana. As crianças ainda pequenas são marcadas com cicatrizes faciais que as acompanharão toda a sua vida e que influenciarão as suas expectativas sociais e o contacto com o outro. Ao meu olhar ocidental estas marcas apresentavam-se enigmáticas, principalmente porque a sua diversidade testemunhava a presença de várias etnias mesmo numa comunidade tão pequena como é a de Gashaka. Algumas destas marcas, discretas e simétricas, são na minha percepção harmoniosas, outras, dada a sua extensão e profundidade, confundem-se com verdadeiras cicatrizes provocadas por acidentes e, outras ainda, quase são caricatas. O antropólogo inglês ‘de serviço’, quando comentei sobre as impressões que algumas destas marcas me provocavam, relembrou-me o conceito de relatividade cultural. Contudo, o antropólogo não é isento de preconceitos culturais e, por vezes, é impossível deixar de tecer impressões, mesmo que não expressas, que outros hábitos culturais nos provocam. Por exemplo, comuns são as uniões com grandes distâncias de idade, revelando talvez alguma dificuldade dos homens em encontrar companheira mais cedo e a sua preferência por raparigas novas que darão mais garantias de ‘pureza’ e fertilidade. 214

Etnografia & Emoções

A gravidez numa idade muito jovem, se associada a um parto difícil, pode deixar sequelas graves, e irreversíveis sem o recurso a intervenção cirúrgica, no corpo feminino imaturo. Uma das mais estigmatizantes é a incontinência urinária que não raramente conduz à sua marginalização social. Alguns assistentes de campo não eram casados, apesar de já ultrapassarem os 40, e isso era motivo de conversa. Normalmente, eles defendiam-se dizendo que já tinham guardado para si uma rapariga nova e que em breve a iam buscar. Perguntavam-me também qual a razão de eu ainda não estar casada e previam que agora só um homem muito velho quereria casar comigo, afinal já tinha 27 anos. De certa forma, também os intrigava a preocupação constante de uma antropóloga inglesa, que tinha estado em Gashaka antes de mim, com o empréstimo bancário contraído para conseguir completar a sua licenciatura e que teria que pagar quando regressasse a Inglaterra. Indagavam se evitar pagamentos também tinha motivado a minha vinda para a Nigéria. Eu dizia-lhes que não tinha dívidas, pois o único bem que possuía era um carro já com mais de 10 anos. Para eles não era evidente o porquê de vir de tão longe e de uma sociedade supostamente abastada para ficar isolada no mato. E, conversando passávamos o curto serão, pois a alvorada era todos os dias por volta das 5 horas da manhã. Outro aspecto que me surpreendeu foi a agressividade da polícia nigeriana. Alguém que seja apanhado a roubar com arma de fogo tem um fim doloroso e rápido, segundo descrições detalhadas dos guardas do parque, destacados esporadicamente para marcar presença na Estação Primatológica de Kwano. Os guardas quando nos visitavam ‘entretinham-nos’ com relatos pormenorizados de episódios recentes não muito agradáveis para a minha sensibilidade ocidental. Entre outros relataram como o exército nigeriano entrou numa aldeia próxima matando indiscriminadamente mais de 200 pessoas e isto porque ao ter sido chamado para apaziguar dois grupos étnicos rivais em conflito foi recebido com tiros. E, descreveram ainda, as torturas infligidas a dois assaltantes das redondezas que no prazo de três semanas foram capturados, torturados e mortos. Estes relatos contrastavam não só com a forma como eu entendo a realidade, mas também com a vida calma em Gashaka e na floresta de Kwano. A harmonia que se pressente em Gashaka não é constante na sociedade nigeriana onde os conflitos inter-étnicos são comuns e por vezes violentos. São mediáticos os que acontecem na zona do delta do Níger, impulsionados e agravados pela exploração petrolífera, controlada por uma elite muitíssimo minoritária. Em Gashaka coexistem 215

Etnografia & Emoções

católicos, protestantes e muçulmanos, e cada um destes credos tem o seu local de oração próprio mesmo sendo apenas uma pequena cabana onde se reúnem os seus membros regularmente. Porém, a maioria da população da região é muçulmana, que, como é conhecido não caça macacos, facilitando a sua conservação. Este aspecto torna o Parque Gashaka-Gumti especial. As boas relações mantidas entre os vários grupos humanos que vivem dentro e junto às fronteiras do parque dão origem a que esta zona se apresente quase como um paraíso perdido para a preservação da vida selvagem e para o desenrolar de projectos de pesquisa nas mais diversas áreas da Biologia e da Antropologia. A vida selvagem pulula em todas as zonas do parque mesmo junto aos terrenos cultivados anexos à aldeia. Alguns grupos de babuínos e também de macacos-verdes faziam nas redondezas a sua vida, assaltando as hortas amiúde. Os habitantes locais tentavam afastá-los, sem grande sucesso. Uma das particularidades destes primatas é a de não temerem os humanos, ou pelo menos não os recearem o suficiente para os evitarem. Se forem mulheres ou crianças a tentar defender as hortas – ignoram-nas, sabem perfeitamente que não são grande ameaça física. Os homens impõem algum respeito, só que os primatas são extremamente ágeis e conseguem descobrir formas de os contornar e de atacar a horta de outro ângulo. Uma das investigações a decorrer no âmbito do Projecto Primatológico de Gashaka tinha como objectivo estudar um grupo de babuínos que se alimentava também das hortas. E, não raras vezes, a investigadora responsável pelo projecto – a Imke, e o respectivo assistente de campo foram alvo de algumas palavras mais crispadas por parte dos habitantes locais. Para além de estarem presentes sempre que o grupo invadia a plantação, como se os conduzissem ou até liderassem (ocasionalmente chegavam primeiro à horta que o próprio grupo de babuínos, porque os movimentos dos primatas após longas horas de observação se tornam previsíveis), limitavam-se a observar os seus movimentos sem nenhuma intenção de os afastarem do local – atitude não facilmente compreendida. Não nos podemos esquecer que este comportamento é análogo ao dos povos pastores quando conduzem os seus animais – seguem-nos na sua procura por novas pastagens ou então indicam-lhes o caminho tomando a dianteira da manada. Neste aspecto, a minha vida estava facilitada, porque tencionava concentrar-me no estudo de um grupo de babuínos a viver exclusivamente dos recursos da floresta. O trabalho de campo decorria nas imediações de Kwano e os objectivos iniciais eram o 216

Etnografia & Emoções

estudo comportamental de babuínos e colaborar na recolha de dados sobre a ecologia de chimpanzés. Embora as condições na Estação Primatológica de Kwano fossem rudimentares e a sensação de que tinha regressado ao passado ser persistente, a vida aí não deixava de ser agradável. Com a água que era obtida no rio mais próximo (quando chovia aproveitávamos a própria água da chuva) e de algum arroz que cozinhávamos com ramos colhidos na floresta, as necessidades básicas estavam satisfeitas. Este retorno a um estilo de vida primitivo serviu para lembrar que o ser humano não precisa de muito para viver e que por vezes aspiramos e lutamos por bens perfeitamente dispensáveis. Estar longe dos inúmeros compromissos e distracções a que estou sujeita no dia-a-dia, permitiu-me um olhar atento do outro e do eu. Em Kwano tinha, inclusive, acesso a alguns luxos. O banho no rio, após longas horas atrás dos babuínos ou a percorrer largos quilómetros por terrenos irregulares, com o objectivo de estudar a ecologia alimentar dos chimpanzés, era um verdadeiro prazer. Outro luxo era a existência no acampamento de um ‘cozinheiro’ que nos confeccionava as refeições diárias. Mesmo frugais e monótonas o facto de não nos termos que preocupar em recolher lenha nem em cozinhar era um verdadeiro luxo. A dieta diária resumia-se a arroz condimentado com óleo de Palma, concentrado de tomate e um dos seguintes ingredientes: mandioca, inhame, feijão-frade, rabo de vaca ou cavala em conserva. À noite, o cozinheiro preparava arroz branco que comíamos fazendo com a mão uma pequena bola que ia sendo molhada num caldo confeccionado igualmente à base de óleo de Palma, concentrado de tomate e ervas secas locais. A intensidade do sabor do óleo de Palma, presente em todas as refeições, é inesquecível e ainda hoje o recordo de forma nítida. Após a curta ambientação ao ritmo de vida de Kwano iniciei o trabalho de campo. A agressividade não esperada dos babuínos marcou esta etapa. Quase todos os dias nos ameaçavam em grupo, experimentando ao vivo o que tantas vezes tinha lido na literatura primatológica sobre babuínos – o chamado mobbing behaviour. Este comportamento é normalmente adoptado contra predadores, mas neste caso era usado como manobra de diversão. Indivíduos subordinados viram uma forma de desviar deles intenções pouco amistosas, bastando-lhes ‘gritar’ como se estivessem a ser atacados para mobilizar todo o grupo contra nós. Agora já gracejo com a recordação de termos pegado em ramos completamente podres (a renovação orgânica na floresta é muito rápida), numa tentativa vã de não estarmos completamente indefesos se o grupo 217

Etnografia & Emoções

resolvesse atacar, mas na altura não me pareceu uma situação cómica. A Imke tentava convencer-me que eles ainda nos temiam mais do que nós a eles e, dadas as circunstâncias, reagia bastante bem. Ela estava habituada ao à-vontade dos grupos de babuínos da aldeia e o mobbing behaviour quase que já fazia parte da sua rotina diária. Entretanto, já me começava a interrogar se tinha tomado a decisão certa ao vir até tão longe para estudar criaturas tão agrestes. A seu favor contava o stresse que evidenciavam na procura de comida, pois sem chuva os alimentos não abundam. O animal focal chegava a caminhar durante 10 horas, fazendo apenas curtas pausas para recolher algum tubérculo ou planta, numa procura incessante por comida. Os investigadores que o seguiam também se mantinham em andamento durante este tempo, e, tínhamos inclusive que almoçar e caminhar ao mesmo tempo. Uma coisa é certa estava em melhor forma do que pensava, a frequência do ginásio durante alguns meses antes de ir para a Nigéria afinal não tinha sido em vão. Pode-se dizer que as estrelas do parque são os chimpanzés e, tal como se verifica em relação às outras espécies, também não temem o Homem. Como iria estar no Parque durante pouco tempo, resolvi pedir ao assistente de campo mais familiarizado com os chimpanzés que, excepcionalmente, fosse comigo à sua procura. Sabíamos que estavam perto do acampamento porque ouvíamo-los ao entardecer e ao amanhecer, mas os investigadores ainda estavam concentrados no estudo dos seus ninhos e hábitos alimentares, estando a sua habituação planeada para uma etapa posterior. Mesmo sem estarem habituados foi relativamente fácil encontrar um grupo e conseguirmos permanecer junto dele durante mais de duas horas, simplesmente porque começou a chover e o grupo não abandonou o local onde se encontrava. Nem nós, por inconsciência minha. O assistente de campo dizia-me: ‘eu não posso estar na floresta quando chove’, mas eu estava tão ausente com a visão dos chimpanzés que o único pensamento que me ocorreu foi que talvez se devesse a questões religiosas. Nem reagi quando nestas duas horas caíram quatro árvores à nossa volta. Só mais tarde me explicaram que a queda de árvores é muito comum quando começam as primeiras chuvas e que, nesta situação, é primordial o refúgio em áreas abertas. Este foi sem dúvida um dos momentos mais emocionantes do trabalho de campo e uma das grandes experiências que se podem viver. A vida em Kwano era estimulante mas solitária, ainda que o som ambiente nos envolvesse 24 horas por dia, nunca deixando que o sentimento de solidão se instalasse 218

Etnografia & Emoções

demasiado. Ouvir os chimpanzés logo às quatro da manhã é uma sensação indescritível, já para não falar de todos os outros sons, especialmente nocturnos, que não conseguia identificar por falta de familiaridade minha com a fauna local. Em contraste, as noites em Portugal são estéreis de tão silenciosas, pois quase todos os animais nos abandonaram faz tempo. Todas as sextas-feiras voltávamos para Gashaka onde ficávamos até domingo à tarde. Estas viagens semanais eram cansativas, representavam 24 quilómetros adicionais que tínhamos que percorrer, mas serviam para ficarmos um pouco menos bushy e permitiam que os assistentes de campo regressassem a casa. A ajuda dos assistentes locais revelou-se fundamental, pois numa floresta sem referências conhecidas, a elaboração de mapas mentais está extremamente dificultada e é fácil perdermo-nos. Além disso, eles eram muito mais competentes na floresta, que outrora tinha sido a sua casa, do que eu. A aldeia de Gashaka, à semelhança do que aconteceu com outras, foi ‘transportada’ do interior do Parque para a periferia. Felizmente, as aldeias africanas são quase portáteis: as casas, estruturadas com tijolos secos ao sol e cobertas com palha, são erguidas, sempre que necessário, sem grandes dificuldades. Como não poderia deixar de ser, o próprio parque teve um papel activo na deslocação das aldeias. Em Gashaka, os contactos sociais não se resumem aos assistentes de campo, mas são bastante limitados, a aldeia é pequena e apenas algumas pessoas falam inglês (o professor da escola primária, o chefe local, uma rapariga dos Camarões que encontrou marido na aldeia, e pouco mais). As crianças a frequentar o primeiro ciclo falavam um inglês rudimentar e, além disso, eram demasiado tímidas para se conseguir estabelecer um diálogo significativo com elas. Mesmo assim, os primatólogos do Projecto Primatológico de Gashaka procuravam desenvolver actividades em conjunto com a comunidade local que contribuíam para a sua integração na dinâmica da aldeia. Organizavam, por exemplo, um torneio anual de futebol e, durante a minha estadia, organizou-se um concurso subordinado ao tema: ‘Desenhar um Primata’. Como esperado o primata de eleição foi o chimpanzé sobre o qual muitas histórias eram contadas. Uma ou outra criança atreveu-se a desenhar babuínos e mesmo macacosverdes. Em Gashaka havia luz eléctrica quatro horas por dia, permitindo-me ler até um pouco mais tarde. Aproveitei o tempo livre e as horas de ‘iluminação’ para ler alguns clássicos de dimensão dissuasora, lembro-me particularmente da Anna Karenina do 219

Etnografia & Emoções

Tolstoy cuja leitura sempre tinha adiado. Li também alguns escritores nigerianos que desconhecia como o Ben Okri, mas que considero agora de leitura obrigatória para quem queira conhecer a realidade nigeriana. Este autor tem o dom de descrever a vida quotidiana na Nigéria de forma poética e, ao mesmo tempo, tão real que é quase penoso ler as suas obras. Destaco o livro – Dangerous Love. Na aldeia havia um restaurante se é que se pode considerar como tal, e uma loja que vendia Coca-Cola, esparguete, bolachas e pouco mais. Sempre que necessário íamos ao mercado de Serti, onde apesar de tudo não encontrávamos muito mais coisas. Parece caricato, mas a verdade é que demorávamos, em média, uma hora a comprar o que queríamos/conseguíamos e cinco horas à espera de transporte para regressar à aldeia. Esse entretempo era aproveitado para observar o mercado, as suas gentes e íamos falando com quem passava. Todos nos conheciam e sabiam o que estávamos a fazer, pois não era de todo comum ver brancos por aquelas paragens. A julgar pela reacção das crianças, provavelmente, algumas nunca tinham visto brancos antes e, a bem dizer, não ficavam muito agradadas. Para minha frustração só me conseguia aproximar de crianças muito pequenas. Em relação às crianças com mais de dois anos bastava que as olhasse mais fixamente para começarem num pranto inconsolável enquanto não desviasse o olhar. Para além dos produtos alimentares já referidos, conseguíamos ainda comprar no mercado de Serti laranjas, bananas e papa Cerelac. De Kwano podia-se subir até à aldeia de Selby, que ficava sensivelmente a quatro horas de distância. A aldeia situava-se dentro do parque e era permitido às comunidades locais (Fulani) pastorear as suas vacas em algumas zonas delimitadas. Optei por visitar a aldeia em dia de mercado, na expectativa de observar um pouco mais da vida deste grupo étnico. Aqui a comunicação também não foi fácil, as crianças como habitual choravam se me tentava aproximar e não consegui comunicar oralmente com as mulheres, porque não dominavam o inglês. Sobrava-me a mímica. Era notório que com os homens a comunicação era um pouco mais fácil e que se continuasse por estas paragens e quisesse interagir com a comunidade de mulheres teria que aprender as línguas locais. Em Selby ofereceram-me água, que aceitei para espanto dos meus interlocutores. Disseram-me que pensavam que os europeus não bebiam água. A partir deste momento, a comunicação foi estabelecida. Consegui interagir com crianças pela primeira vez e ofereceram-me ovos cozidos. O chefe da aldeia recebeu-nos amavelmente na comunidade cedendo uma casa para pernoitarmos e presenteou-nos 220

Etnografia & Emoções

com um excelente abacate. A dificuldade para se encontrarem produtos frescos fez deste fruto um presente muito apreciado. Os Fulani têm óptimo aspecto, homens e mulheres são muito magros, mas altíssimos, provavelmente devido ao consumo frequente de produtos lácteos. Na comunidade Haúsa de Gashaka, as pessoas também têm boa aparência, apesar de serem diferentes fisicamente. São mais baixas e as crianças parecem menos saudáveis do que as crianças vizinhas Fulani. Disseram-me que a troca de bens entre estes dois grupos era comum, mas apenas observei a venda ocasional de iogurte e de carne de vaca fumada por parte dos Fulani. Da minha curta viagem por estas paisagens africanas destaco positivamente a amabilidade dos habitantes locais e a diversidade ecológica quase imperturbada que permite idealizar um número ilimitado de projectos antropológicos. E, o que menos apreciei foi, claramente, o isolamento físico e social. Viajar nestas paragens, sem ser a pé, é bastante duro e, tendo visitado inicialmente algumas cidades nigerianas, não tive qualquer intenção de sair mais da zona de Gashaka enquanto não terminasse o estudo. O mesmo diziam os meus colegas primatólogos que, tal como eu, apenas iam muito esporadicamente a Serti. A falta de recursos alimentares frescos também constituiu um aspecto negativo. Não posso dizer que tenha passado fome, mas após semanas a comer somente arroz, condimentado com feijão-frade bichoso ou inhame, confesso que mesmo as folhas que comiam os babuínos e que sabia também serem do agrado dos chimpanzés me pareciam apetitosas. Já para o final do estudo enchi-me de coragem e provei alguns frutos que via os babuínos consumirem e levava para o acampamento, para gáudio dos assistentes de campo, as mangas ainda esverdeadas que os babuínos desperdiçavam e que consumia depois de maduras. Desconfio que os meus companheiros sentissem alguma inveja quando me viam comê-las (ou talvez não). A verdade é que mesmo com estas experiências alimentares pouco ortodoxas, estive sempre bem fisicamente. O segredo para superar a estação seca foi beber quatro litros de água por dia. Na estação das chuvas, não houve maneira de me sentir menos miserável, além de tentar usar o mínimo de roupa possível. A humidade chegava aos cem por cento, por isso era impossível secar a roupa e todas as manhãs vestia a roupa molhada da véspera, o que é uma sensação bastante desagradável. A velocidade com que as ervas cresciam impressionava, lembrava-me sempre dos documentários da National Geographic, e, desconfiava que em breve teria 221

Etnografia & Emoções

dificuldade em ver os babuínos. Também era evidente que em Gashaka chovia menos do que em Kwano e, nas aldeias mais afastadas do parque as crianças continuavam a cavar leitos de rio secos para conseguirem obter alguma água – ainda não tinha começado a chover. A desflorestação quase total das áreas não integradas no Parque chocou-me imenso, porque adivinhava as dificuldades que aquelas pessoas teriam que enfrentar no seu dia-a-dia. A reduzida diversidade alimentar, fez-me dar ainda mais valor às comunidades locais. Excluindo os macacos que não vejo como comestíveis, ocupavam o parque inúmeras espécies que aos meus olhos pareciam bem apetitosas, mas cuja proibição de caçar era acatada. Os habitantes locais também ganham se respeitarem as normas, aqui o que está em causa é a preservação de uma floresta, mas também a manutenção de modos de vida ancestrais que sobrevivem desde que em harmonia com a natureza. O equilíbrio ecológico é fácil de quebrar, mas pelo que observei a vida no Parque de Gashaka-Gumti tem todas as condições para florescer. Passados os dois meses previstos, regressei, fazendo exactamente o mesmo percurso – Iola, Abuja e, por fim Lagos, onde permaneci cerca de três dias. No total estive em Lagos cinco dias que me permitiram visitar alguns mercados locais e conviver com alguns ornitólogos e ecologistas ingleses que colaboravam com o governo nigeriano. Amavelmente, levaram-me a conhecer o Clube frequentado pelos ocidentais a residir em Lagos que, como não poderia deixar de ser, patenteava um estilo muito British. Parti de Gashaka com o sentimento de que os primatólogos são um grupo privilegiado de investigadores – viver na floresta, e, em particular, na agitada e sonora floresta africana fez-me sentir bem viva e em paz. A contra moeda desta e de outras experiências anteriores em terrenos exóticos é a vontade incessante de querer voltar e a eterna desacomodação ao ritmo ocidental vivido tão à superfície. Não sei se existe algum código ancestral gravado no meu ADN, mas este retorno a uma forma de vida rodeada de sons e de outras vidas tem a capacidade de me fazer sentir integrada – como se estar ali fizesse todo o sentido.

Agradecimentos Ao Prof. Volker Sommer pela oportunidade de viver a experiência aqui relatada e à Sónia Frias pelo convite para a partilhar. 222

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.