Memória e fluxo criativo no processo composicional: uma perspectiva a partir de Bergson e Deleuze

May 27, 2017 | Autor: Bruno Ishisaki | Categoria: Musical Composition, Gilles Deleuze, Henri Bergson, Memory, Creative Flow
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Anais do SEFiM, Porto Alegre, V.02 - n.2, 2016.

Memória e fluxo criativo no processo composicional: uma perspectiva a partir de Bergson e Deleuze Memory and creative flow in the compositional process: a perspective from Bergson and Deleuze Palavras-chave: Memória; Composição musical; Fluxo criativo; Bergson; Deleuze. Keywords: Memory; Musical composition; Creative flow; Bergson; Deleuze.

Bruno Yukio Ishisaki Universidade Estadual de Campinas [email protected] Este resumo expandido apresenta uma exposição sobre memória e fluxo criativo na atividade composicional a partir de recortes conceituais realizados sobre a produção filosófica de Gilles Deleuze e Henri Bergson. Abordamos filosoficamente a memória como um misto de percepção e lembrança: da experiência retêm-se as sensações produzidas pela percepção, misturadas às afetividades disparadas por uma profusão de reminiscências: algumas de ordem técnica, como as que nos fazem entender relações abstratas e estruturais; outras de natureza metafórica, que produzem associações entre experiência e afeto. Neste contexto, não retemos percepção e lembrança em sua totalidade: “a percepção não é o objeto mais algo, mas o objeto menos algo, menos tudo o que não nos interessa” (DELEUZE, 2012, p. 19). Do mesmo modo, a lembrança pura inexiste no ser, pois tal pureza compreenderia a lembrança do todo, sem as subtrações da percepção – o que seria inefável à cognição humana. Deleuze, em seu panorama sobre a filosofia de Henri Bergson, aponta que o ser reside no passado (DELEUZE, 2012; BERGSON, 1979, p. 69-72). É no passado que a memória se acumula; neste caso, o presente seria a atualização, o devir, a mudança constante, o desterritório. Viver exclusivamente no presente corresponde a não ser. O passado, como crescente cone de eventos que nos define enquanto individualidades, compreende todas as experiências que vivenciamos. Compreende, portanto, todos os mistos lembrança-percepção. O ser é, nessa instância, memória. Consideremos o esforço de Arnold Schoenberg em busca de uma unidade temática na sistematização das alturas, esforço esse que culmina na criação do sistema serial dodecafônico. Que tipo de impulso criativo e organizacional se impôs ao material serial em seu projeto dodecafônico? Que tendências do processo de criação privilegiaram, no uso de uma série dodecafônica, algumas combinações motívicas, rítmicas ou de perfil melódico em detrimento de outras? Com o quê Schoenberg compôs sua música dodecafônica, além das séries? Podemos vislumbrar uma resposta a essa questão sobre a composição com séries quando

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pensamos que, em suas primeiras obras dodecafônicas, Schoenberg fez uso de formas clássicas, pensou motivicamente e melodicamente – e daí vinha a crítica a ele dirigida por Pierre Boulez, em seu texto “Morreu Schoenberg” (BOULEZ, 2008). Foi com suas memórias que ele completou as lacunas de seu sistema. Qualquer processo criativo que faça uso de um sistema terá as lacunas desse sistema completadas pelas memórias de quem dele se utilize. A âncora de qualquer extrapolação criativa é a memória. O ser passa a cumprir um outro papel no processo criativo: ele não é somente aquele que estabelece os juízos, que decide por um ou outro material. Sob a instância da memória, o ser é também parte do material composicional. Assim, sugerimos que, no âmbito dos processos criativos, a memória possa funcionar em dois tipos de agenciamento: 1) ela pode completar a si mesma com outra memória (memória-memória) e 2) ela pode completar as lacunas de um planejamento composicional (memória-planejamento). O primeiro papel, associamos às criações que dependem de encadeamentos ininterruptos de memória. Pensemos nos surrealistas, na écriture automatique: fala-se de um fluxo de consciência, no qual o impulso criador não deve ser barrado por mecanismos racionais de censura (BRETON, s.d.). No agenciamento memória-memória, as memórias concatenam-se em mudanças súbitas de afecção: não há preocupação formal com a unidade. As memórias arranjam-se em suas próprias concatenações. Sobre o segundo tipo de agenciamento da memória (completar as lacunas de um planejamento composicional), o relacionamos aos “ismos” particulares da arte de vanguarda do século XX. O agenciamento “memória-planejamento” foi a grande tendência da arte do século XX. Tal agenciamento assemelha-se a um jogo; a ideia desse jogo, as questões que traçam seu limite continental resumem-se à: que tipo de memórias completarão um sistema baseado em regras de censura? Qual será o resultado estético desse agenciamento? Que tipo de memória surgirá a partir de um conjunto específico de censuras? A música dodecafônica de Schoenberg só poderia existir se ele criasse um sistema tal que censurasse uma classe específica de materiais (no caso, as alturas) e permitisse a emergência de outras memórias que ocupariam os espaços livres do sistema, e que resultariam na sonoridade muito particular da obra do compositor alemão. Apontamos o papel preponderante das memórias que completam as lacunas no dodecafonismo para promover uma diferenciação de estilos: Alban Berg produz música baseada em outros conteúdos de memória, diferentes dos de Schoenberg, assim como Anton Webern, apesar de adotarem o mesmo sistema. Consideramos, assim, que a memória tem papel preponderante tanto como repositório de conteúdos advindos da experiência da percepção quanto como matéria-prima nos processos de composição de peças musicais. Os textos aqui referenciados nos servem para ilustrar as instâncias operacionais de tal processo a partir de uma esfera filosófica, para além do cânone positivista, do manejo quantitativo de dados ou do pensamento normativo da ciência tradicional.

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Referências BERGSON, H. Cartas, conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. ______. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BOULEZ, P. Apontamentos de Aprendiz. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008. BRETON, A. Manifesto do Surrealismo. Disponível em: . Acessado em: 09 mar. 2015. DELEUZE, G. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 2012. ______. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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