Memória e indústria: Notas sobre a salvaguarda do patrimônio industrial no Paraná.

May 31, 2017 | Autor: Juliana Pereira | Categoria: Historia Urbana, Patrimonio Industrial, Paraná, Curitiba/PR
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MEMÓRIA E INDÚSTRIA: NOTAS SOBRE A SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL NO PARANÁ Juliana Regina Pereira Mestranda em História PPGHIS- UNICAMP [email protected]

RESUMO Constituída como área de interesse científico recentemente, o campo que se convencionou chamar de Patrimônio Industrial tem suas diretrizes metodológicas pautadas pela multidisciplinaridade entre tecnologia e humanidades com o sentido de compreender historicamente o desenvolvimento industrial como motor da urbanização nas sociedades contemporâneas. Deste modo, o patrimônio representado por instalações industriais, arquitetura, maquinário e mobiliário fabril passa, além de desempenhar função educacional em sentido museológico, a figurar ativamente enquanto representação de interações culturais entre técnica e sociedade numa perspectiva histórica dinâmica. Diversas situações podem exemplificar a perplexidade que o patrimônio industrial ainda gera na esfera pública, pois além da constante dificuldade em ver reconhecido o valor histórico e o potencial cultural que se encerra entre os muros das antigas fábricas, o presente trabalho busca compreender de que modo as peculiaridades de uma economia predominantemente agrícola influenciou não apenas o desenvolvimento industrial no estado do Paraná, mas o modo como é gerido o patrimônio cultural que a indústria nos lega, de modo que a recente destruição da sede histórica da Leão Jr. no bairro Rebouças em Curitiba, ou o projeto de requalificação do edifício da antiga fábrica Matte Real em andamento para sua conversão em campus do Instituto Federal do Paraná (IFPR), são casos escolhidos, uma vez que, dentro de suas especificidades, podem ilustrar as vicissitudes do processo de identificação, salvaguarda e promoção do patrimônio industrial no panorama cultural paranaense. Palavras-chave: patrimônio industrial; história urbana; Paraná; Curitiba. Considerados elementos característicos da paisagem urbana, edifícios de natureza industrial representam uma categoria de patrimônio cuja salvaguarda impõe grande desafio aos órgãos de preservação, face à velocidade das transformações que fenômenos econômicos e fundiários, tais como a desindustrialização, operam sobre as cidades. Tendo em vista o cenário cultural do estado do Paraná, dadas as especificidades de seu desenvolvimento industrial pautado principalmente pelo beneficiamento da erva-mate, o presente texto busca pensar de que maneira a institucionalização de bens culturais é capaz de promover a preservação e divulgação do Patrimônio Industrial a partir de um contraponto entre paisagens industriais no meio rural e urbano. Os principais casos analisados foram escolhidos em razão de se tratarem de tombamentos em esfera federal – o do Parque Histórico do Mate, em Campo Largo, e o moinho Matarazzo, incluído no tombamento do conjunto urbano de Antonina – e permitem chamar a atenção para o silêncio das políticas de preservação no que se refere às antigas áreas industriais da capital paranaense, em especial aos remanescentes industriais localizados no bairro

Rebouças, em Curitiba. O campo que se convencionou chamar de Patrimônio Industrial, constituído como área de interesse científico na Europa pós Segunda Guerra, tem suas diretrizes metodológicas pautadas pela multidisciplinaridade entre tecnologia e humanidades com o sentido de compreender historicamente o desenvolvimento industrial como motor do desenvolvimento urbano nas sociedades contemporâneas. Deste modo, o patrimônio representado por instalações industriais, arquitetura, maquinário e mobiliário fabril passa, além de desempenhar função educacional em sentido museológico, a figurar ativamente enquanto representação de interações culturais entre tecnologia e sociedade numa perspectiva histórica dinâmica. Com relação à materialidade dos acervos oriundos de antigas fábricas, tem-se em mente que estes não se compõem apenas por documentos em papel, mas a artefatos, máquinas e ferramentas cuja relevância interpretativa se encontra em duplo risco com relação a seus lugares de memória1. Isto é, a possibilidade de retirada do acervo material do lugar de trabalho ao qual pertence ao mesmo tempo que o transforma em sucata – sem lugar, sem armazenamento e sem possível utilidade – esvazia de sentido o edifício industrial. Na esfera acadêmica brasileira problemáticas que envolvam o patrimônio industrial ainda têm pouco destaque. Na mesma medida em que o público desconhece o assunto, políticas governamentais que apoiem seu estudo e preservação inexistem, sendo o tema preterido mesmo em debates que toquem à questão da conservação de patrimônio histórico. Questionar essa tardia “descoberta” do patrimônio industrial exige que se leve em consideração que a industrialização efetiva no Brasil se deu a partir da década de 1930, e consequentemente, o impacto da chamada desindustrialização se fez sentir apenas muito recentemente. Deste modo, conforme aponta Rodrigues (2010) foi somente nas últimas décadas que a desativação e desapropriação de grandes complexos urbanos passou a figurar como interesse público, dada a notável destruição de fábricas, armazéns, chaminés e demais marcos memoriais da atividade industrial. No entanto, não são apenas os elementos arquitetônicos visualmente associados à memória industrial que se encontram em risco. Embora memoriais desta natureza sejam lugarcomum quando se trata de patrimônio industrial, não se pode ignorar que desde o século XVI o Brasil vive em determinados ciclos econômicos uma experiência se pode chamar préindustrial, tendo sido empregados no ciclo da cana-de-açúcar: Fábricas de moer cana e engenhos para fabrico de aguardente e de açúcar 1

NORA, Pierre. Entre Memória e História. Projeto História nº10, PUCSP, 1993.

apetrechados essencialmente com tecnologia tradicional assente na tração animal e na força motriz da água, chegando de meados para o final do século XIX o vapor a ser utilizado na moenda por algumas fábricas.2

Meneguello (2006) aponta que o legado industrial brasileiro tem características únicas por abranger, além da produção de cana-de-açúcar, complexos de mineração, e tecnologias empregadas no beneficiamento do café. Todavia esse patrimônio se encontra às margens do abandono, e a destruição sumária de complexos desta natureza, somada a desastrosos projetos arquitetônicos de reabilitação geram no panorama brasileiro um lento despertar para o patrimônio industrial. A lentidão do processo salta aos olhos ao se perceber a lacuna de 28 anos entre a publicação do primeiro artigo sobre arqueologia industrial no Brasil3, em 1976, e a realização do primeiro seminário nacional sobre o tema, em 20044. Ao se considerar as peculiaridades da economia predominantemente agrícola e o modo como se deu o processo de industrialização no estado do Paraná de forma comparativa à quantidade de bens de natureza industrial tombados – isto é, preservados em âmbito público governamental – ou de alguma forma protegidos na esfera privada, percebemos o quanto ainda há para ser feito neste campo. Os casos analisados a seguir podem exemplificar a perplexidade que o patrimônio industrial ainda gera sobre os órgãos de preservação, além da constante dificuldade em ver oficializado, não somente o valor histórico, mas o potencial cultural que se encerra entre os muros das antigas fábricas. Paisagem industrial no meio rural As transformações desencadeadas pelos primeiros passos da industrialização regional foram fundamentais no sentido de construir concreta e simbolicamente um sentido contemporâneo de cidade, mas a cultura industrial paranaense sempre esteve muito atrelada às atividades agropastoris, sendo o desenvolvimento econômico do setor secundário de ordem muito mais recente. O quinhão que cabe ao patrimônio – e à indústria – no referido estado está representado pelo Engenho do Mate, engenho de soque hidráulico que foi inscrito no livro do tombo estadual de número 19 no ano de 1968, tendo sido reconhecido em nível nacional em 1980/81. Localizado no distrito de Rondinha, nas proximidades de Campo Largo, o antigo AZEVEDO, E.B. Patrimônio Industrial no Brasil. p.11. 3 DEAN, Warren. Fábrica São Luiz de Itu: Um estudo da Arqueologia Industrial. Anais de História: Assis, ano 8, 1976, pp. 9-25. 4 ROSA, C. L. O patrimônio industrial: a construção de uma nova tipologia de patrimônio. p.8. 2

engenho tem sua construção datada de aproximadamente 1870 e é atualmente o último exemplar preservado de espaço fabril dedicado ao beneficiamento da erva mate no estado. Suas características arquitetônicas são comparadas em boletim do SPHAN “às dos engenhos de açúcar e farinha do Recôncavo Baiano, por estar instalado no sopé de um morro, beneficiandose de um curso d'água como força motriz”5. Assim, a comissão responsável pelo patrimônio histórico federal, em consonância com o órgão estadual, inscreve, em 24 de abril de 1985, o Moinho do Mate nos livros do tombo histórico e de belas artes através do processo de número 1119-T-84. A justificativa endossada pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico Nacional é expressa no laudo assinado pelo arquiteto Eduardo Kneese de Mello: Considero plenamente justificável a proposta de seu tombamento, tendo vista seu aspecto histórico; o que a erva-mate representa para todo o Brasil; pelo estado em que se encontra o monumento, restaurado pelo Patrimônio do Paraná e ainda pelo rico material colhido e atualmente exposto no Museu.6

A inscrição nos livros do tombo viabilizou a elaboração de um plano de restauro visando redirecionar a funcionalidade do espaço para fins públicos através da museificação da área construída e criação de um parque que preservasse a paisagem na área circunvizinha. Todavia, em toda a documentação analisada, seja em arquivos da Secretaria de Estado da Cultura, correspondências internas, ou materiais de publicação do IPHAN prescinde-se das características industriais do complexo e não há qualquer relação, ainda que subjetiva, com o patrimônio industrial em sua epistemologia. Financiado pelo governo estadual, o plano de restauro previa numa primeira etapa a identificação, catalogação e restauro dos equipamentos utilizados no processamento da erva mate para com este material compor o acervo museológico de forma a reconstituir cada etapa do processo produtivo, constituindo esta a única aproximação de uma abordagem de interesse industrial. As modificações feitas na estrutura arquitetônica ao longo das décadas puderam ser revertidas após a identificação das antigas fundações, que permitiram a reconstituição da planta baixa da construção necessária para pautar o plano de reparos necessários no piso, cobertura, esquadrias das janelas, vedação e estrutura de sustentação do telhado, segundo projeto elaborado pelos arquitetos do IPHAN Paraná. A degradada paisagem rural que circundava a área do engenho, nas imediações da BR 277, sofreu uma série modificações para acomodar

5 6

Boletim SPHAN/FNpM. Brasília, MEC/FNpM n. 33, 1988, p. 15. Ibid.

certas facilidades necessárias à existência de um parque público, tais como estruturas com banheiros, churrasqueiras e um espelho d'água foram acrescentados ao espaço que passou a ser chamado Parque Histórico do Mate. Um segundo processo de restauração foi levado a cabo no ano de 2004 utilizando verba federal através da 10ª superintendência regional do IPHAN, e desde então o Museu do Mate permanece como unidade atrelada ao Museu Paranaense, embora permaneça na maior parte do tempo fechada à visitação pública. Figura 3: Parque Histórico do Mate, em Campo Largo-PR

Fonte: Jornal Folha de Campo Largo

O desafio da preservação do legado material da indústria e da memória do trabalho é fator preponderante para pensar a questão da salvaguarda do patrimônio industrial. De modo geral, percebe-se que o debate sobre a requalificação de edifícios fabris para fins educacionais acompanha o desenvolvimento da problemática historiográfica relacionada ao patrimônio e à arqueologia industrial no âmbito internacional, de modo que em países pioneiros em políticas de preservação desta categoria de patrimônio encontram-se alguns dos principais exemplares de museus industriais da atualidade. Todavia, cabe questionar em que medida a institucionalização pode ser considerada um meio eficiente de preservar o patrimônio industrial em nosso contexto. Do interior ao litoral: Indústrias Matarazzo no Paraná

É digna de atenção a iniciativa datada do início dos anos 2000 na cidade de Jaguariaíva, a 222 quilômetros da capital paranaense, que demonstra algum intento de preservar um exemplar da arquitetura fabril de inspiração inglesa7, ainda que fora do âmbito dos tombamentos, sejam estaduais ou federais. O edifício sede das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM) em Jaguariaíva teve sua construção iniciada em 1918 e ocupa localização com fácil acesso à ferrovia que liga a cidade a São Paulo, principal destino de sua produção. O local abrigou até 1964 um grande frigorífico que “foi instalado com maquinário importado, provavelmente o que havia de mais moderno para a época e manteve praticamente inalterado seu equipamento durante todos os anos de funcionamento”8, e cuja atividade pode ser considerada como o motor do desenvolvimento econômico, infra estrutural e populacional da cidade. Posteriormente, o maquinário do frigorífico foi vendido integralmente e o edifício foi adaptado para receber uma tecelagem também pertencente às IRFM, mas que após o desmembramento do grupo foi gerida pela companhia Cianê e mantida em funcionamento até o início da década de 90. Brandão (2000) afirma que após anos de abandono, a construção de mais de vinte e dois mil metros quadrados foi adquirida pela prefeitura municipal de Jaguariaíva por intermédio da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano, que financiou um importante processo de revitalização do espaço com objetivo de nele instalar novas indústrias e alguns setores da administração pública local.

Figura 4: Frigorífico das IRFM em Jaguariaíva-PR.

Fonte: Prefeitura Municipal de Jaguariaíva

Sobre este tema ver: VICHNEWSKI, Henrique Telles. As Indústrias Matarazzo no Interior Paulista: Arquitetura Fabril e Patrimônio Industrial (1920-1960). 8 BRANDÃO, A. Memórias: Frigorífico das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo em Jaguariaíva. p.82. 7

Entretanto, no outro extremo da ferrovia, próximo ao Porto de Antonina, outro marco das atividades das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo no Paraná não goza de sorte semelhante. Na mesma medida em que se pode entender a desativação da fábrica como agente provocador da degradação funcional de grande parte do tecido urbano envoltório, elementos de infraestrutura presentes na malha urbana, tais como ferrovias e vias de acesso, podem dificultar a renovação de dinâmicas de integração com o entorno em razão de sua caracterização fundiária. Considere-se também que os entraves impostos pela sobreposição da administração do espaço em diferentes esferas de poder, tanto público como privado, torna a preservação deste edifício industrial particularmente complicada. A inclusão de parte do terreno do moinho Matarazzo ao tombamento do conjunto urbano Antonina, oficializado em 2012, não viabiliza qualquer intenção se realizar intervenções de salvaguarda, uma vez que se interpõem querelas familiares sobre a propriedade do terreno9, que permanece assim inacessível aos órgãos de preservação. Em retrospecto histórico é possível perceber que com a industrialização do processo de beneficiamento da erva-mate, o crescimento do volume de exportações impulsiona a construção da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá de modo a intensificar, já em fins do XIX, a comunicação entre o interior do Paraná e o Porto de Antonina. Uma nova etapa de crescimento se inicia nesta cidade quando da instalação da primeira unidade paranaense das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo em um vasto terreno junto ao atracadouro Itapema, dedicada a moagem de trigo importado da Argentina, sal e açúcar vindos do nordeste brasileiro. O conjunto foi construído sob o padrão arquitetônico de inspiração manchesteriana característico de edifícios fabris das Indústrias Matarazzo, cuja ornamentação é construída com ênfase em elementos da estrutura, com uso decorativo de materiais e texturas dos tijolos cerâmicos e das pedras de fecho, e destaque para as cintas entre os pavimentos e lanternins de motivo ornamental. O complexo abarca além dos edifícios fabris, um ramal ferroviário, um cais privado para movimentação de cargas, os casarões da administração, uma escola nomeada em homenagem a seus fundadores, e uma vila operária formada por casas de quatro peças pertencentes à empresa, onde os funcionários residiam sem custo10.

BELO, Carolina Gabardo. Complexo Matarazzo é área de conservação. Gazeta do Povo. Curitiba, 26 de agosto de 2012. 10 QUEIRÓS, Luiz Fernando. Antonina, como será agora seu futuro? Diário do Paraná: Órgão dos Diários Associados. Ed. 4961 21/01/1972. 9

O moinho foi mantido em atividade pelas seis décadas seguintes, fornecendo farinha de trigo, sal e açúcar por via marítima para diversas localidades do Brasil, e há indícios de que no terminal portuário da empresa se operava também o despacho de cargas por contrato. Entretanto, o desenvolvimento da atividade industrial e portuária na região foi severamente afetado pelo assoreamento dos canais da baía, onde a falta de investimentos de manutenção das áreas navegáveis, somada ao aumento das dimensões físicas das embarcações, levaria a partir da década de 40, a atividade portuária de Antonina à decadência. Com sua economia estagnada, a cidade viveu em 1972 o fim do funcionamento das Indústrias Matarazzo e em 1976 a desativação definitiva do ramal ferroviário Morretes-Antonina.

Figura 5: Ruínas do moinho das IRFM em Antonina-PR.

Fonte: Elaborada pela autora, 2015.

Embora os meios práticos para a preservação da área tombada ainda sejam incertos, a extensão do tombamento compreende além do centro histórico da cidade, grande parte do complexo edificado das Indústrias Matarazzo e do porto anexo, para o qual está prevista “a retomada da atividade portuária, por meio de diretrizes para ocupação da área, desde que sejam preservados e recuperados os imóveis remanescentes mais importantes individualizados no registro do bem”11. Destacada no próprio texto em publicação do IPHAN, a postura de

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IPHAN. Conselho Consultivo confirma tombamento do Centro histórico de Antonina, no Paraná. Brasília, 2012. Grifo nosso.

isolamento de determinados pontos da arquitetura histórica falha ao preterir qualquer possibilidade de construção de leitura, apreensão ou percepção da paisagem edificada enquanto conjunto de operações através do qual se desenvolvem ao longo do tempo as interações que dão à cidade sua forma e identidade, códigos estes que direcionam a construção de um futuro conectado com sua história. E a capital? Tendo em vista que as cidades são por excelência palco do complexo sistema de interações que se estabelece entre atores, atividades e o próprio território, no espaço urbano ficam evidentes as construções – em aspecto social, mas também material – motivadas por tais interações na forma de espaços modificados por estruturas arquitetônicas e de maquinaria. Dentre outros elementos, chaminés, fachadas em tijolos, os telhados em formato serrilhado das antigas fábricas, e os guindastes dos portos, se tornam parte indissociável da construção imagética e simbólica destes espaços que, passíveis de novos usos e novas interpretações, são transformados de acordo com as conveniências socioeconômicas através do tempo. Em Curitiba, a industrialização tardia, somada a planos de urbanização que sempre dirigiram boa parte das fábricas para fora dos limites urbanos12 delimitam nosso campo de pesquisa a remanescentes esparsos e núcleos planejados para serem ocupados pela indústria, como é o caso da CIC, Cidade Industrial de Curitiba, concebida na década de 70 como bairro voltado para concentração de indústrias. Anteriormente, todavia, desde fins do século XIX o maciço das indústrias estabelecidas na capital do Paraná se concentrava no bairro Rebouças, onde a proximidade em relação à linha férrea, somada à facilidade de abastecimento de água através do canal Belém, contribuíram para a formação de uma das mais importantes paisagens industriais da história da cidade, composta por edifícios que abrigaram até recentemente fábricas de grande porte. Em 2011 ocorreu o caso de maior notoriedade envolvendo o patrimônio industrial curitibano, a demolição de grande parte da fábrica Leão Júnior S/A, trouxe à tona a omissão dos órgãos de planejamento urbano da cidade, que teve sancionada uma Lei municipal de tombamento apenas em março de 201613. Marco do ápice da indústria ervateira paranaense, a fábrica fundada por Agostinho Ermelino de Leão em 1901 ocupou diferentes localidades até finalmente se estabelecer em 12 13

OLIVEIRA, Dennison de. Urbanização e Industrialização no Paraná. p.46. CURITIBA. Lei municipal nº 14.794, de 22 de março de 2016.

definitivo no grandioso complexo fabril construído na avenida Getúlio Vargas. Após décadas de atividade, a venda da indústria para um multinacional acarretou a transferência de sua sede para a região metropolitana de Curitiba, esvaziando de função o edifício que já não atendia às demandas de produção industrial do mate. A localização privilegiada em relação ao centro da cidade e a extensão do terreno – 16,3 mil metros quadrados – fizeram da área, apesar de considerada pelo município como unidade de interesse patrimonial, mercadoria de uma transação milionária com a Igreja Universal do Reino de Deus, que, desobrigada a preservar o edifício histórico, levou ao chão o edifício histórico para dar lugar a seu novo templo. Do complexo, restou apenas uma construção menor, com características art déco. Figura 6: Terreno da antiga fábrica da Matte Leão.

Fonte: Paulo Manzig, 2013.

O espaço urbano do bairro Rebouças encapsula em sua paisagem alguns exemplares de processos de requalificação da arquitetura industrial que se encontram em andamento. A despeito da irreparável perda da Matte Leão, a aquisição do antigo conjunto fabril da Mate Real pelo Instituto Federal do Paraná para a instalação de seu campus em 2011 representa uma importante iniciativa no sentido de renovar usos e apropriações da memória fabril a partir do trabalho desenvolvido por professores e alunos do instituto no sentido de recuperar e

ressignificar o acervo material abrigado no edifício14. Na mesma região, a conversão do edifício sede da antiga RFFSA em campus da Universidade Federal do Paraná, a despeito do grave atraso nas obras, representa também uma perspectiva de ressignificação do espaço que, outrora ocupado por operários da ferrovia, cederá abrigo à produção de novas memórias por parte da comunidade acadêmica paranaense. Embora a paisagem urbana de Curitiba conte outros antigos espaços industriais convertidos para novos fins, como a fábrica de fitas Venske ou o esmaecido passado industrial do shopping Mueller, os objetos da breve análise apresentada podem ser compreendidos como exemplos que podem, dentro de suas especificidades, ilustrar certas vicissitudes da preservação do patrimônio industrial, haja visto que o valor histórico da indústria e da memória do trabalho não são valores preponderantes no que toca à preservação do patrimônio histórico no panorama cultural paranaense. Assim, compreender o sentido histórico da modernização industrial e, consequentemente, urbana em Curitiba representa uma etapa de grande importância no processo de construção da memória da cidade, pois, na medida em que o legado da indústria passa a ser entendido como aspecto de interesse cultural e patrimonial, se ampliam as possibilidades de interpretação do passado urbano como objeto do estudo histórico. Considerações Finais A partir das breves notas apresentadas sobre o patrimônio industrial no estado do Paraná, é possível compreender a configuração dos bens de alguma maneira contemplados por políticas de salvaguarda diferem sobremaneira do senso comum sobre o espaço fabril como lugar de memória da industrialização urbana. No caso do Parque Histórico do Mate, esta especificidade pode ser percebida como uma particularidade da consolidação agroindustrial paranaense, de um momento em que, muito antes de os galpões e chaminés dominarem a paisagem das cidades, a roda d'água foi símbolo de inovação. Quanto ao velho porto de Antonina, ultrapassado pelos avanços da logística portuária, a ruína do império industrial dos Matarazzo exemplifica a lacuna à qual é relegado o patrimônio quando se sobrepõem as limitações da gestão pública e os interesses do capital privado. Pode-se até conjecturar que o destino do antigo moinho tivesse

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FERNANDES, J.C. Pesquisadores aprendizes encontram cofre com “tesouros” da Mate Real. Curitiba: Gazeta do Povo, 30/10/2015. Disponível em: . Acesso em 28/04/2016.

sido o mesmo da fábrica Matte Leão, se não pela disputa sobre sua propriedade por parte dos herdeiros. Em ambos os casos, todavia, o distanciamento de áreas de urbanização intensa foi fator preponderante para a manutenção da integridade material destas fábricas por décadas até o surgimento da possibilidade de se operar - ou não - uma intervenção pública de proteção e restauro. Já nos centros urbanos, onde se percebe com maior intensidade a aceleração do tempo da tecnologia e o rápido crescimento das demandas de produtividade, o esvaziamento do espaço industrial, como se observa no caso do bairro Rebouças em Curitiba, oferece um vislumbre de interações sociais e padrões de ocupação do espaço em constante choque com as percepções de uso impostas pelo tempo da cidade. Assim, a ‘casca vazia’ da fábrica desativada não apenas representa o colapso da barreira que o uso impõe sobre o espaço, protegendo-o da inevitabilidade da ação do tempo, mas incorpora a dialética entre apropriação e apagamento num contexto em que a indústria, como conhecida no século XX, deixa de ser prática para ser incorporada à memória.

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