MEMÓRIA E MITO ENTRELAÇADOS EM O LABIRINTO DO FAUNO

June 2, 2017 | Autor: Syntia Alves | Categoria: Franquismo, GUERRA CIVIL ESPAÑOLA, Memória social
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MEMÓRIA E MITO ENTRELAÇADOS EM O LABIRINTO DO FAUNO Joana Marques Ribeiro Syntia Pereira Alves

RESUMO O presente artigo propõe-se a tecer reflexões sobre o tema da memória tendo como objeto de análise o filme O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro. Em meio a trágicos acontecimentos que remontam os anos da Espanha da consolidação do regime ditatorial franquista, uma menina de 13 anos vivencia sua busca existencial por meio de aventuras próprias de um conto de fadas. Nosso objetivo será observar de que maneira as relações estabelecidas na obra em estudo entre o discurso historiográfico e o discurso literário, de forma específica aquele em que prevalece o maravilhoso e o mito, proporcionam-nos uma possibilidade de discussão sobre a memória em nossa contemporaneidade. Palavras-chave: Memória. Literatura. Mito. Guerra Civil Espanhola. Franquismo. ABSTRACT The purpose of this article is to interweave thoughts on the theme of memory, analyzing Guillermo del Toro's film, Pan's Labyrinth. In the midst of the tragic events that date back to the the early Francoist period, after the Spanish civil war, a young 13-year-old girl is on an existential quest that she undergoes through a series of fairy tale-like adventures. Our objective is to observe the established relationships between the historic and literary discourses, specifically focusing on those that arise in the fantastical and the mythical, in that way providing us a lead-in into a discussion on memory in contemporary society. Key-words: Memory. Literature. Myth. Spanish Civil War. Franco.

“O que existe são memórias de memórias, vestígios de outras memórias, memória da memória primordial. Vivemos no meio de nossa memória, como um caleidoscópio, os pedacinhos são os mesmos, mas mudam”. José Saramago 1

É evidente a preocupação atual com o tema da memória. A questão é constantemente colocada em discussão não apenas no âmbito acadêmico, dentro de diferentes áreas das



Mestranda na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Integrante do grupo de pesquisa Produções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens (CNPq) em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas as Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Professora de Língua Portuguesa e Literatura na rede particular de ensino.  Doutoranda pelo Programa de Estudos pós-graduados em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membra do Neamp (Núcleo de Estudos em Arte Mídia e Política da PUC-SP). 1 Entrevista de Saramago no programa Roda Viva, TV Cultura (s/d). Aurora,11 : 2011 41 www.pucsp.br/revistaaurora

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ciências humanas, como também é fonte e matéria nos mais diversos campos da produção artística. Dessa maneira, embora a busca por compreender o complexo processo que envolve a conservação do passado não deixe de ser um tema de reflexão do ser humano desde tempos remotos, como discutiremos neste artigo, parece-nos que em nossa contemporaneidade tal busca tem se tornado latente, unida à necessidade de evitar que fatos historicamente marcantes e fundamentais, no que concerne ao entendimento de nosso presente, caiam no esquecimento. Para Jacques Le Goff, em História e Memória, essa preocupação contemporânea deve-se ao fato de que a memória “é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 2003, p.469). Nesse sentido, Le Goff destaca, com respeito ao estudo da memória da história das sociedades, o fato de que: (...) a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2003, p.422)

A manipulação da memória coletiva a que o historiador se refere foi levada ao extremo em momentos históricos como o das ditaduras nacionais do século XX, em que se filtravam informações e expunha-se uma “história” ou “verdade” a partir de um ponto de vista prédeterminado pelo sistema dominante, abafando-se as vozes dos percursos em conflito, perdendo-se a ambiguidade das múltiplas posições. É natural, portanto, que, passadas algumas décadas de distanciamento dos fatos, inúmeras sejam as tentativas atuais de investigar e resgatar a memória de uma época de silêncio e medo. Dessa maneira, em diversos países seja da Europa ou da América Latina, os quais viveram os anos de silêncio do sistema ditatorial, vemos a produção de livros, exposições, documentários, filmes, ou seja, uma infinidade de ações que procuram reconstruir a memória daqueles tempos, apresentando novas informações ou mesmo novas leituras sobre a época. ConfirmaAurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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se, dessa forma, como ato mnemônico fundamental o “comportamento narrativo”, caracterizado antes de tudo “pela sua função social, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (LE GOFF, 2003, p.421). Não podemos esquecer, portanto, que ao ato de lembrar intervém a linguagem, sendo que esta é um produto da sociedade. Ao observarmos algumas dessas produções, chamou-nos a atenção a obra cinematográfica O Labirinto do Fauno, produzida em 2006 e dirigida por Guillermo del Toro. O filme retrata o período posterior a Guerra Civil Espanhola, remontando-nos ao ano de 1944 de consolidação do regime ditatorial do general Francisco Franco. Em meio a este momento bélico vivido tanto pela Espanha quanto pelo resto da Europa2, acompanhamos a história de Ofélia, garota delicada e sonhadora de 13 anos, que viaja com a mãe, Carmen, a qual sofre uma gravidez de risco, para um posto militar ao norte do país. Chegando ao local, a menina encontra Vidal, cruel capitão do exército franquista, novo marido de Carmen e que não sente afeto algum pela enteada. Enquanto Vidal se preocupa em acabar com a resistência republicana, Mercedes, empregada do capitão, ajuda clandestinamente o grupo de rebeldes, cujo líder é seu irmão, com apoio do médico local. Certa noite, porém, Ofélia explora os arredores do lugar e encontra as ruínas de um labirinto, em que reside um fauno. O misterioso ser a reconhece como uma princesa, herdeira do trono do Reino Subterrâneo e desafia a menina a realizar três perigosas provas antes da lua cheia que, se cumpridas, comprovarão sua identidade. No desenrolar dessa missão, Ofélia deslocase constantemente entre a realidade sangrenta imposta pela ditadura franquista e sua realidade individual na busca por sua identidade. Nossa aproximação e interesse com respeito à obra em questão deu-se fundamentalmente não apenas pela temática mencionada acima, mas pelo diferencial da maneira como o filme concretiza a aproximação entre o discurso da historiografia sobre a época e o discurso literário, mais precisamente o maravilhoso dos contos de fadas e do mito. Tal diferencial coloca-nos a seguinte reflexão: em que medida a obra dialoga com a memória da época

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O ano de 1944 constitui um dos últimos anos da II Guerra Mundial, da qual a Espanha não fez parte oficialmente, mas estava claramente apoiando Hitler. Aurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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revisitada e com a discussão sobre o tema em nossos dias ao resgatar um momento histórico comprovadamente ocorrido colocando-o em relação com o mundo do maravilhoso mítico? Para a investigação da questão colocada, tomemos como caminho inicial uma análise de como cada um desses “mundos” ou “realidades” são reconstruídos pela obra. Como introdução do filme, deparamo-nos com as seguintes informações: “Espanha, 1944. A guerra civil terminou. Escondidos nas montanhas, grupos guerrilheiros ainda combatem o novo regime fascista, que luta para suprimi-los”. Apoia-se, portanto, na palavra escrita a fim de situar o tempo (histórico) e o espaço (concreto) em que se desenrolarão as ações. Com letras pequenas e brancas e o fundo negro, o texto promove um tom sério e documental ao verbal, enquanto os sons de ventania, de um sussurro agonizante e de uma melodia melancólica constituem uma atmosfera de medo e terror. Os elementos descritos acabam por inserir o espectador em um ponto de vista próprio da historiografia em que se “pressupõe objetividade” (LEITE, 2001, p.71). Somos, então, motivados a ativar nossos conhecimentos prévios sobre o momento que será retratado, certamente cenas de guerras, torturas, dentre outras, aparecem em nossa mente. As cenas seguintes e o desenrolar das ações confirmam as expectativas do espectador. Baseando-se nos fatos históricos, acompanhamos e vivenciamos por meio da fruição da obra o mundo do franquismo autoritário e repressor que, assumindo um discurso que se pretende monológico, busca a submissão de todos que estão sob sua liderança, sufocando incansavelmente e violentamente as ações dos rebeldes. O diretor Guillermo del Toro, em entrevista contida no DVD do filme, assume que, como mexicano, a história da Guerra Civil Espanhola sempre esteve presente em sua vida por sua relação constante com refugiados ou filhos de refugiados da guerra. Sendo assim, o diretor se apega a um acontecimento factual para criar sua ficção e, sem fazer nenhuma correlação historiográfica, leva-nos de forma pertinente ao conflito. A época da Espanha que o filme retrata é o período de pós-guerra, os primeiros anos do governo do General Franco com duração de quase quatro décadas (1939 – 1975). Apesar de estarmos tratando de um período de ditadura, podemos pensar que com o fim da guerra os confrontos haviam cessado, mas para entender o quão real é a recriação do embate entre o Capitão Vidal e os republicanos é

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importante olhar de fato para o que foi o país nos anos que se seguiram sob o comando do “Generalíssimo”. A Espanha da guerra e do pós-guerra não foi apenas um país dividido em duas partes, uma nação que contava com dois grupos rivais, nacionalistas e republicanos, mas sim um composto por ideologias que se excluíam. Os dois lados da batalha lutavam pelo mesmo ideal: uma nova Espanha, porém seus conceitos partiam de pressupostos completamente contrários e qualquer que fosse essa nova nação, ela não suportava o outro bando. Assim, mesmo com o fim da guerra, os republicanos seguem resistindo em confronto bélico ao novo regime, enquanto que os fascistas entendem que, para nascer uma nova Espanha, é preciso morrer todo o rastro de pensamento divergente existente. Calcula-se que durante a Guerra Civil, somada aos trinta e seis anos da ditadura de Franco, morreram quinhentos e quarenta mil pessoas3, ou seja, o número calcula a mortandade tanto em guerra declarada quanto por motivos de perseguição e repreensão do Estado. O número de mortos não é separado por bandos, assim se trata de um levantamento geral, porém sabe-se que em dezembro de 1939, com o fim da guerra e a vitória nacionalista, o número de presos na Espanha era de mais de duzentos e setenta mil4 e este número certamente se refere apenas a republicanos. Ao longo da ditadura franquista o número de presos políticos foi diminuindo gradativamente e isso se deve a vários fatores: morte de muitos presos, fuga de republicanos para outros países, o abrandamento das políticas militares internas da Espanha para evitar embargos internacionais — lembrando que, com a perda do eixo na Segunda Guerra Mundial, bloco formado pela Alemanha, Itália e Japão, Franco se encontrava isolado no que diz respeito à política ditatorial de direita, e assim foi obrigado a adotar medidas que passassem uma imagem mais branda para a opinião pública internacional. Entre essas medidas, estavam as anistias que a princípio diminuíram as penas dos presos políticos e em um segundo momento lhes concedia liberdade condicional. Porém, dos duzentos e cinquenta mil presos no ano de 1940, apenas cento e três mil estavam por sentenças judiciais o que comprova a arbitrariedade do regime fascista.

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ORTEGA, 2005. PAYNE, 2007. Aurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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Os horrores da Guerra Civil Espanhola foram difundidos pela imprensa internacional da época. Até então uma guerra nunca tinha sido tão descrita, com palavras e imagens, e o confronto na Espanha ganhou notoriedade por chegar ao conhecimento daqueles que estavam muito distantes do front. Tanto os republicanos quanto os fascistas tinham seus agentes de imprensa que faziam um papel muito importante na batalha: a propaganda. Os bandos precisavam conquistar a Espanha, seja para pegar em armas, seja pra auxiliar de outras formas, e muitas mídias serviram para isso, além das artes, como a poesia e a música. Com isso a guerra chegava a todo o país e despertava simpatias e ojerizas, a Guerra Civil Espanhola foi de fato um confronto que envolveu tanto civis quanto militares, e isso explica o fato da guerra se estender para além de 1939, ano de seu término, por conta da resistência de republicanos e da repressão fascista. Franco contou com um partido militar mais duradouro de um movimento fascista na Europa: a Falange. Fundada em 1933 por José Antonio Primo de Rivera (1903-1936), a Falange não foi a única responsável pela atuação fascista na Espanha, mas certamente é a que melhor representa o pensamento nacionalista. Em seu discurso de fundação do partido, Primo de Rivera procede com a seguinte argumentação: “A Pátria é uma síntese transcendente, uma síntese indivisível, com fins próprios a cumprir; e o que nós queremos com o movimento (reunião) deste dia é promover a crença no Estado como o instrumento eficaz, autoritário, ao serviço de uma unidade indiscutível, dessa unidade permanente, dessa unidade irrevogável chamada Pátria”.5

Rivera é categórico em suas palavras: esperava tornar a Espanha uma síntese indivisível, um Estado autoritário, e certamente tanto os falangistas quanto os demais franquistas seguiam esses mesmos ideais e, em O Labirinto do Fauno, Vidal representa esse ideal de Espanha. Ao longo do filme o Capitão não mostra apenas ser autoritário, mas cruel e sanguinário. Desde a primeira cena ele se apresenta duro com Ofélia, intransigente com Carmen, autoritário e prepotente com o médico. Vidal ignora as fragilidades da tanto da menina quanto

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“Discurso de la fundación de Falange Española” pronunciado no Teatro de la Comedia de Madrid em 29 de outubro de 1933. Aurora,11 : 2011 46 www.pucsp.br/revistaaurora

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de sua mãe e sua saúde debilitada, como desconsidera os conselhos do médico quando este diz que Carmen não deveria ter feito a viagem para o moinho ou quando diz que não há certeza do filho que a mulher espera ser um homem. Porém, por mais exagerada que possa parecer a representação que Vidal faz dos generais e exército franquista, os números citados acima somados às inúmeras descrições e imagens da Guerra Civil Espanhola mostram o quão perto do real está o personagem do Capitão. O filme, apesar de ser assumidamente uma ficção, faz uma alusão muito próxima do que de fato aconteceu na guerra da Espanha. Assim, é construída uma atmosfera de horror predominante do contexto retratado, ambiente criado em perfeita consonância com testemunhos daqueles que vivenciaram os anos sangrentos da ditadura. Ao resgatar a memória da guerra é inevitável “em primeiro lugar, as memórias físicas, os sons, os cheiros e as superfícies das coisas.” (ORWELL, 2006, p.262). A reconstrução da luta armada na Espanha da primeira metade do século XX reaviva a lembrança de fatos históricos e pode ser visto como um meio fictício de nos reportar a um acontecimento real. Guillermo del Toro, por meio de um personagem que de tão cruel nos parece caricato, leva à cena a “verdade” absoluta incorporada pela ditadura franquista, revelando-nos a essência de todo pensamento totalitário (ORWELL, 2006, p.276). O totalitarismo e o governo ditatorial não foram exclusividade da Espanha. Ao longo do século XX outras partes do mundo experimentaram o sabor amargo de viver baixo à repressão e à força militar, à falta de liberdade, ao mando de governantes que, mesmo com o fim das monarquias tinham o poder de vida e morte de seus cidadãos. Outros países da Europa, assim como na América Latina, Ásia e África viveram décadas de ditaduras. Os governos autoritários nunca deixaram de existir, nem tampouco a resistência de cidadãos contra eles. Assim, o filme representa uma guerra específica, mas pode remeter a muitas outras guerras contra as ditaduras, em outros países, espalhando dessa forma realidades e sentimentos semelhantes como se cumprisse o papel mítico, como veremos adiante, por seu caráter universal. Em contrapartida, a reconstituição de uma época na qual predomina a violência física e, principalmente, ideológica, choca-se tanto com a narrativa protagonizada por Ofélia, que representa o mundo da fantasia, em que predominam a imaginação e as infinitas Aurora,11 : 2011 47 www.pucsp.br/revistaaurora

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possibilidades da existência humana, quanto com o próprio título da obra O Labirinto do Fauno, cuja presença do vocábulo labirinto traz-nos referências, dentro da tradição mítica, ao antigo labirinto cretense. A representação desse mundo do maravilhoso nos é introduzida a partir do seguinte discurso, narrado por uma voz masculina e grave: Conta-se que há muito, muito tempo, no Reino Subterrâneo onde não existe mentira nem dor, vivia uma princesa que sonhava com o mundo dos humanos. Ela sonhava com o céu azul, a brisa suave e o sol brilhante. Um dia, burlando toda a vigilância, a princesa escapou. Uma vez do lado de fora, a luz do sol a cegou e apagou da sua memória qualquer indício do passado. Ela se esqueceu de quem era e de onde vinha. Seu corpo sofreu com o frio, a doença e a dor. E, passados alguns anos, ela morreu. No entanto, seu pai, o rei, sabia que a alma da princesa retornaria talvez em outro corpo, em outro tempo e em outro lugar...

Escutando a narrativa, logo reconhecemos o contador de histórias, descendente dos narradores primordiais, que contavam o que tinham ouvido ou conhecido, representando a memória dos tempos a ser preservada pela palavra e transmitida de geração para geração. Retoma-se, portanto, um modo de narrar que considerava o mundo como um todo e conseguia representálo através de um ponto de vista fixo (GOTLIB, 1988, p.30), onde tempo e espaço situam-se fora da realidade conhecida, noções que resultam da consciência mítica do início dos tempos (COELHO, 2000, p.104)6. Dessa maneira, ainda que a aproximação à tradição literária dos contos de fadas e do mito pareça afastar-nos da reconstrução de fatos concretos da ditadura franquista retratada no filme, acabamos por tocar em uma concepção de memória derivada de tempos remotos e que pode ser capaz de iluminar a reflexão sobre a época e, num âmbito maior, a discussão do tema da memória em nossos dias. De origem remota e popular, os mitos constituem-se em narrativas que, por meio do pensamento maravilhoso, exemplificam a busca do ser humano que ao longo dos tempos

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Ver artigo “A construção do maravilhoso e do insólito em 'O Labirinto do Fauno', de Guillermo del Toro”, disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/livro_insolito_simposio.pdf Aurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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procura entender o mundo que o cerca e a si mesmo. É possível afirmar que a memória mítica não deixa de ser, também, uma espécie de memória coletiva, uma vez que, de acordo com Fiorin, antes do surgimento da ciência, era por meio do mito que o homem buscava explicar os acontecimentos (FIORIN, 2001). De maneira ampla, o mito define-se por relatar a memória de um acontecimento originado em um tempo primordial. Segundo Eliade, graças à memória presente nessas narrativas, ou seja, à memória mítica, seria possível a recuperação das realidades originais. Como relatos próprios de um momento da “criação”, tais histórias acabam por revelar modelos de ritos e de atividades significativas do ser humano (ELIADE, 1963). Nesse sentido, por carregarem questionamentos humanos essenciais, Nelly Novaes Coelho destaca ainda como característica de tais estórias o fato de guardarem um conhecimento fundamental, referente à experiência primordial do homem em relação ao mundo e à vida (COELHO, 2000). Por um lado, a narrativa citada anteriormente, não apenas nos introduz o ponto de vista mítico, como estabelece um rico diálogo com a questão da lembrança e do esquecimento. A memória da princesa, por seu desejo de conhecer o novo e pela ânsia por liberdade, foi apagada e, agora, somente após uma longa jornada de busca existencial, metaforizada pela comprovação de sua identidade de princesa, será capaz de resgatar seu conhecimento do passado e de si mesma. Por outro lado, com respeito à figura do labirinto, podemos dizer que o filme é contextualizado em um momento histórico, em certa medida, muito próximo ao mito original7, ou seja, temos uma situação de opressão instaurada pela ditadura franquista, cujo líder Vidal, da mesma maneira que o rei Minos, não medirá esforços e vidas para manter a soberania da ordem estabelecida. Retomando os significados simbólicos do mito, segundo Junito de Souza Brandão, o símbolo do “touro” representaria a dominação perversa exercida por Minos, cuja injustiça tirânica é simbolizada pelos jovens atenienses destinados a servir de pasto ao monstro (BRANDÃO, 2002). Ao prender o monstro no labirinto, tece-se um raciocínio ilusório, a dominação perversa de Minos, o Minotauro, continua a viver. O rei, assim, é incessantemente obrigado a opor-se à sua sabedoria, a alimentar sua atitude

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Idem nota 6. Aurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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monstruosa, o que o torna incapaz de reconhecer seu erro e renunciar às condições impostas aos atenienses. É possível observar, dessa maneira, uma intensa relação entre a época histórica retratada e o conhecimento advindo da memória mítica resgatada pelo discurso maravilhoso presente em O Labirinto do Fauno. Ademais, a aproximação entre o discurso maravilhoso mítico aqui, não apenas responde e justifica as indeterminações que encontramos com respeito à ausência de elementos mais concretos e factuais na retomada daqueles anos vividos pela Espanha, como fundamentalmente coloca-nos uma profunda reflexão sobre a memória da época. Parece-nos que a obra não tem como foco principal reconstruir os acontecimentos de maneira específica e sim, ao relacionar a memória daqueles anos ao maravilhoso mítico, propor-nos a reflexão sobre atitudes e comportamentos que acompanham o ser humano desde tempos imemoriais, atitudes e comportamentos estes cuja memória ainda sobrevive por meio dos mitos. A aproximação entre o discurso historiográfico e o pensamento maravilhoso presente na narrativa mítica na constituição da obra cinematográfica em estudo relaciona-se às discussões mais pertinentes sobre o tema do resgate e conservação da memória em nossa contemporaneidade. Vejamos o que afirma Ecléa Bosi sobre a questão: Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual (...). O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (BOSI, 1994, p.55)

Nessa ordem de ideias, é fundamental o fato de que várias são as perspectivas a partir das quais podemos observar o passado e o ponto de vista da memória mítica não deixa de ser uma possibilidade, já que as ações pontuais podem ser vistas e pensadas a partir de uma perspectiva muito mais universalizante, a qual o mito é capaz de nos proporcionar. Além disso, ainda que, num primeiro momento, pareça que a obra realiza uma fuga do que poderíamos considerar o resgate da memória da realidade histórica de fatos passados, a Aurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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inserção do mito não apenas ilumina a reflexão sobre a época e sobre a repetição do gesto ou atitude humana retratada, mas dialoga com a própria essência do ato de lembrar como reconstrução e releitura do passado. Ainda, segundo Ecléa Bosi, “a memória poderá ser conservação ou elaboração do passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se a meio caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a inteligência que é capaz de inovar” (BOSI, 1994, p.68). O Labirinto do Fauno é uma obra de ficção que indiscutivelmente nos remete a um fato histórico. Entretanto, Moraes Leite nos alerta que é preciso colocar em dúvida a objetividade do discurso historiográfico, ou segundo suas próprias palavras:

“... desconfiar da noção de FATO histórico, tão cara a uma historiografia positivista. Perceber isso é descobrir que os fatos não existem por si, mas nascem do sentido que lhes é atribuído, do recorte que o historiador faz no real ao expressá-lo por palavras; não mera cópia, como quer fazer crer, ainda, a maior parte dos historiadores.” (LEITE, 2001, p.83)

E mais adiante completa: “A HISTÓRIA assim entendida aproxima-se da HISTÓRIA como “memória e reconstrução” que uma nova filosofia da HISTÓRIA, crítica tanto do positivismo liberal, quanto do historicismo mecânico, começa a investigar (...)” (LEITE, 2001, p. 84). Sendo assim, se o estudo historiográfico pode ser visto como uma reconstrução da memória ao mesmo tempo em que levanta questionamentos sobre o olhar dirigido ao fato histórico, é pertinente uma retomada fictícia dos fatos, mesmo que seja por meio do enredo do filme que constantemente remete ao mundo maravilhoso mítico dos contos de fadas. Com isso, apesar da personagem de Vidal ser tão fictícia quanto o Fauno, ambos retomam uma memória de opressão e horror presentes em distintas e diversas épocas e sociedades. Assim, tão importante quanto entender o real visando sua exatidão objetiva e concreta são as muitas perspectivas a partir das quais se pode olhar esse real. Ou, segundo as palavras do narrador primordial ao encerrar o filme:

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“Diz-se que a princesa voltou para o reino de seu pai, e reinou com justiça e bondade por muitos séculos, que foi amada por seus súditos e que deixou detrás de si, poucos rastros de sua existência, visíveis somente para aqueles que saibam onde olhar”.

REFERÊNCIAS BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega (vol. III). Petrópolis: Vozes, 2002. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: teoria, análise e didática. São Paulo: Moderna, 2000. _________ O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987. ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Lisboa: Edições 70, 1963. _________ Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991. FIORIN, José Luiz. “In principio erat verbum” in As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 2001. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 1988. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 2001. ORWELL, George. Lutando na Espanha: homenagem à Catalunha, recordando a guerra civil espanhola e outros escritos. Trad. Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2006. ORTEGA, José Antonio y SILVESTRE, Javier, Las consecuencias demográficas da la Guerra Civil. Galicia: X Congreso de la AEHE, 2005. PAYNE, Stanley G., La Época de Franco, Cap.: Gobierno y Oposición (1936-1969). Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2007. RIBEIRO, Joana Marques. “A construção do maravilhoso e do insólito em ‘O Labirinto do Fauno’, de Guillermo del Toro. In: SIMPÓSIO ‘O INSÓLITO E SEU DUPLO’, 2009, Rio de Janeiro. Anais do VI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional, Rio de Janeiro, Dialogarts, 2010. P. 123-136. Aurora,11 : 2011 www.pucsp.br/revistaaurora

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TORO, Guillermo Del. O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno). ESP/MEX/EUA: Estúdios Picasso, Tequila Gang e Esperanto Filmoj, 2006, 119 minutos.

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