Memória e verdade de corpos e gêneros na resistência à ditadura civil-militar
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Memória e verdade de corpos e gêneros na resistência à ditadura civil-‐militar Viviane Melo de Mendonça Jornal Cruzeiro do Sul Sorocaba, 21/04/14 | http://www.jornalcruzeiro.com.br/materia/543107/memoria-‐e-‐verdade-‐de-‐ corpos-‐e-‐generos-‐na-‐resistencia-‐a-‐ditadura-‐civil-‐militar Neste mês reli o livro "Direito à Memória e à Verdade: Luta, Substantivo Feminino". Desta vez alguns trechos do depoimento da advogada Maria Luiza Buerrenbach me saltaram aos olhos: "Ele me disse: "Se você sair viva daqui, o que não vai acontecer, você pode me procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou Jesus Cristo [codinome de delegado de polícia Dirceu Gravina]". Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: "que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos". E virava a manivela [...] Levei choque uma manhã inteira". Uma mulher, um corpo, a tortura e a resistência. O Brasil estava vivendo um dos momentos mais tristes de sua história, resultado do Golpe Civil-‐Militar de 1964. Neste mês de descomemoração dos 50 anos deste acontecimento terrível, vozes se juntam para pedir memória, verdade e justiça para aqueles que foram assassinados, torturados e desaparecidos pelo regime ditatorial. Em 2012 foi instituída a Comissão Nacional da Verdade para investigar arquivos do exército e para convocar os torturadores para depoimentos. Em Sorocaba, a Câmara de Vereadores criou em fevereiro deste ano a Comissão Municipal da Verdade para apurar casos de violação de direitos humanos no município durante o governo militar. Estamos, portanto, em um momento de narrar uma história que deve ser contata a contrapelo, como diria Walter Benjamin. Narrar uma história a contrapelo é inevitavelmente trazer também à tona corpos e gêneros invisibilizados e ignorados. É escarafunchar vozes, imagens e registros em suas camadas de silenciamento. É ouvir a dor dos choques elétricos, estupros, espancamentos de mulheres militantes, advogadas, professoras, psicólogas, artistas e estudantes, enfim, corpos de mulheres que resistiram e lutaram contra a repressão, a censura e a ditadura. É saber da morte e desaparecimento de muitas delas. Não foram apenas corpos de mulheres. Recentemente, a Comissão da Verdade também decidiu investigar as perseguições contra a população LGBT durante o período militar. Sabe-‐se que neste período o chamado à época Movimento Homossexual surgiu com ações articuladas às organizações de esquerda e contra a ditadura. Um dos mais conhecidos e atuantes foi o Grupo SOMOS Grupo de Afirmação Homossexual. Também neste período foi fundado o jornal Lampião da Esquina, que circulou entre 1978 e 1981, trazendo visibilidade ao Movimento Homossexual. O jornal teve várias tentativas de fechamento e foi indiciado pelo governo militar sob a alegação de ferir a "moral e bons costumes". Mas, na verdade, o que este jornal
trazia eram debates sobre temas que incomodavam a ditadura vigente (e que incomodariam ainda hoje). A transgressão de corpos, desejos e da ordem repressiva da sociedade ameaçaram o regime militar. Eram corpos, sexualidade e gênero transformados em arma política. Em 1971 surge a trupe performática Dzi Croquettes, que rompe com o binarismo de gênero nos palcos de teatro de São Paulo e Rio de Janeiro. Havia em suas apresentações uma subversão da ordem imposta que logo foi alvo de monitoramento dos militares. Em seguida, estas apresentações foram censuradas e seus integrantes, exilados. Atravessando estes corpos e gêneros, a categoria raça/etnia revela também uma camada mais profunda deste silenciamento: a das memórias de negros/as e índios/as que lutaram e resistiram às forças de repressão. Este é o resultado de uma ação violenta de apagamento da história ainda realizada pelo atual racismo à brasileira. É aqui que os estudos e teorias de gênero e epistemologias feministas nos dão ferramentas para a compreensão das experiências de silenciamento. Ao contrário dos que pregam contra o que denominam estranhamente "ideologia de gênero" -‐ ou por desconhecimento ou por desonestidade intelectual -‐, estamos falando da afirmação e memória de corpos e gêneros que violentamente são colocados à margem, explorados e mortos, em períodos de ditadura ou não. Estamos falando de modos de superação da ordem opressiva quem mantém as desigualdades sociais e a violência estrutural da sociedade. A memória e verdade de corpos e gêneros que resistiram à ditadura civil-‐militar nos revelam pessoas que lutaram e lutam onde os olhos de uma sociedade que subalterniza a mulher, a população LGBT, seus corpos e desejos, não veem. Revelam o ocultamento de histórias que nada mais é que um sintoma de que algo vai mal na sociedade brasileira. Estas pessoas produziram corpos que foram reprimidos, mas que emergem ainda resistentes e persistentemente na memória a cada tentativa de um novo silenciamento e ocultamento. Viviane Melo de Mendonça é professora do Departamento de Ciências Humanas e Educação da UFSCar, pesquisadora do grupo Educação, Comunidade e Movimentos Sociais (GECOMS) e coordenadora do grupo de estudos e pesquisas em Feminismos, Sexualidades e Política.
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