Memória ferroviária em Curitiba, PR: Análise da retirada dos trilhos da RFFSA noperímetrourbano

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MEMÓRIA FERROVIÁRIA EM CURITIBA, PR: ANÁLISE DA RETIRADA DOS TRILHOS DA RFFSA NO PERÍMETRO URBANO. MEMORIA FERROVIARIA EM CURITIBA, PR: ANÁLISIS DE LA ELIMINACIÓN DE LOS FERROCARRILES DE LA RFFSA EN ZONAS URBANAS. RAILWAY MEMORY IN CURITIBA, PR: A REVIEW OF RFFSA’S RAILS REMOVAL IN URBAN PERIMETER. Planejamento, urbanismo e apropriação social na preservação do patrimônio.

Gabriel Ruiz de Oliveira

Engenheiro Civil pela UTFPR Acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo – UFPR

Juliana Harumi Suzuki Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo – UFPR

Resumo: Os ramais ferroviários que atravessam a cidade de Curitiba constituem-se em importante testemunho do desenvolvimento e evolução da capital paranaense ao longo de sua história. Apesar de seu papel vital para a cidade, sobretudo entre as últimas décadas do século XIX e a metade do século XX, a relevância econômica destes ramais foi decaindo gradativamente à medida que o transporte rodoviário ganhava espaço no país. O destino do complexo de trilhos passou a ser discutido por diversos órgãos de planejamento municipais e federais. Este trabalho analisa o processo de retirada dos trilhos de trem que cruzam a cidade de Curitiba, PR, identificando as ações já implementadas e aquelas ainda em processo de discussão. Busca-se compreender as motivações que justifiquem tanto a permanência quanto a retirada da infraestrutura ferroviária da área urbana e avaliar o impacto da remoção dos trilhos para a preservação da memória ferroviária curitibana. Destaca iniciativas de uso e ocupação da malha ferroviária que contribuam para a apropriação social deste patrimônio. Palavras-chave: Patrimônio Ferroviário; Memória Ferroviária; Paisagem Cultural, Retirada dos trilhos.

Resumen: Las líneas ferroviarias que cruzan la ciudad de Curitiba constituyen un testimonio importante para el desarrollo y evolución de Curitiba a lo largo de su historia. A pesar de su papel vital en la ciudad, especialmente entre las últimas décadas del siglo XIX y mediados del siglo XX, la importancia económica de estos ramales sigue disminuyendo gradualmente a medida que el transporte por carretera ha ganado espacio en el país. El destino de las líneas ferroviarias ahora ha sido discutido por diversos organismos de planificaciones municipales y federales. En este trabajo se analiza el proceso de eliminación de las vías del ferrocarril que atraviesan la ciudad de Curitiba, PR, identificando las acciones ya ejecutadas y las que están en discusión. Se buscó entender las motivaciones que justifican tanto la permanencia como la retirada de las infraestructuras ferroviarias en el área urbana y evaluar el impacto de la eliminación de los carriles para la preservación de la memoria ferrocarril de la ciudad. Se destacan las iniciativas de uso y ocupación de la vía férrea que puedan contribuir a la apropiación social de este patrimonio. Palabras-clave: Patrimonio Ferroviario; Memoria Ferroviaria; Paisaje Cultural, Eliminación de los ferrocarriles.

Abstract: The railway lines crossing Curitiba represent important witnesses of the city's development and evolution through its history. In spite of its important role to the city, specially between the last decades of the XIXs and the first half of the XX century, the economic relevance of these lines has been declining gradually, as the road transport gains space in the country. The destination of these railway lines is discussed by several municipal and federal planning agencies. This paper analyzes the process of removal of railroad tracks that cross the city of Curitiba, PR, identifying the actions that have already been implemented and those still under discussion. It aims to understand the motivations that justify both the permanence and the removal of the rail infrastructure in urban areas and evaluate the tracks removal impact to the preservation of the rail memory in Curitiba. It highlights initiatives of use and occupation of the railway that contribute to the social appropriation of this heritage. Keywords: Rail Heritage, Rail Memory, Cultural landscape, Rails removal.

MEMÓRIA FERROVIÁRIA EM CURITIBA, PR: ANÁLISE DA RETIRADA DOS TRILHOS DA RFFSA NO PERÍMETRO URBANO A FERROVIA EM CURITIBA Desde 1964, com a Carta de Veneza, é consenso definir como monumento histórico as criações arquitetônicas e os conjuntos urbanos ou rurais que retratam aspectos de uma civilização, de sua evolução ou de um determinado acontecimento histórico. Os ramais ferroviários que atravessam a cidade de Curitiba podem ser caracterizados como um conjunto de importante valor histórico e cultural, uma vez que representam um período de significativo desenvolvimento e evolução urbana da capital paranaense. A preservação do patrimônio deve buscar o reconhecimento e a valorização da memória social e da produção cultural significativa de uma determinada comunidade. Neste contexto, o conjunto de bens culturais decorrentes do fenômeno de urbanização de uma cidade também é digno de preservação, embora precise ser compreendido de forma mais ampla uma vez que, diferente dos artefatos isolados, a preservação de conjuntos urbanos deve identificar as funções orientadoras de seu desenvolvimento e compreender a multiplicidade de relações e atividades que se desenvolvem neste ambiente e que constituem parte desse patrimônio cultural. Diante disso, os conjuntos ferroviários que envolvem os trilhos, as edificações lindeiras e até o som do apito dos trens podem ser compreendidos como paisagens características que, se por um lado são distintas, por outro mantêm um vínculo de ligação que reforça seu valor cultural e justifica seu estudo e discussão: “As paisagens ferroviárias importam enquanto patrimônio histórico e cultural porque suas linhas ajudaram a delinear os contornos das identidades urbanas e sociais da cidade que crescia à sua volta.” (CORDOVA et al, 2010, p.137).

Até 1930, as ferrovias eram construídas e controladas por empresas particulares que recebiam concessão do Estado. Neste período, foram construídos o ramal Curitiba-Paranaguá, concluído em 1885; o ramal Curitiba - Araucária, de 1891, que segue até Ponta Grossa, no interior do Estado; e o ramal Curitiba – Rio Branco do Sul, inaugurado em 1909 (CORDOVA et al, 2010; GIESBRECHT, 2011). Com a expansão urbana e o aumento da demanda, em 1977 foi construído o ramal Pinhais – Engenheiro Bley, um desvio ferroviário que passava mais ao sul da cidade e que visava minimizar os conflitos entre os trens de carga e a cidade no ramal Curitiba – Araucária (Figura 1) (DUARTE, 1986, GIESBRECHT, 2011). Com o desenvolvimento trazido inicialmente pela estrada de ferro e num segundo momento pela construção das grandes estradas federais, Curitiba se consolidou como um importante entroncamento rodoferroviário no estado, especialmente pela interligação do interior agrícola com o porto de Paranaguá (CURITIBA, 2008).

Figura 1: Ramais ferroviários e pontos de interesse na cidade de Curitiba, PR. Fonte: Desenvolvido pelos autores a partir de Córdova, 2010; Dittmar, 2006 e Giesbrecht, 2011.

Este desenvolvimento, particularmente aquele motivado pelo transporte ferroviário, propiciou o surgimento de um rico sistema de paisagens que estabeleceu-se em dois momentos distintos. Inicialmente, a ferrovia era considerada um símbolo de progresso e desenvolvimento. Durante esse período, o aumento do número de trens que transitavam pela cidade tornou necessária a construção de novos desvios e ramais para manobra das composições. Para atender a essa demanda, neste período construiu-se a maior parte das edificações ferroviárias, como as oficinas, casas de turma e vilas para funcionários. Em um segundo momento, porém, o transporte ferroviário perde importância e os trilhos passam a ser considerados como obstáculo para o tráfego de veículos sobre rodas. Por isso, uma equipe de engenheiros da RFFSA elaborou um relatório sobre adequações necessárias às ferrovias diante das diretrizes objetivadas pelo Plano Diretor de Curitiba de 1965. O relatório intitulado 'Instalações Ferroviárias de Curitiba' apontava a incompatibilidade do crescimento urbano com as grandes estruturas ferroviárias em operação na cidade na época. Além da construção de uma nova estação ferroviária (no caso, a Rodoferroviária de Curitiba), o relatório recomendava a desativação dos ramais Curitiba - Araucária e Curitiba - Rio Branco do Sul, que seriam substituídos por contornos ferroviários ao longo do perímetro urbano (CÓRDOVA et al, 2010). Esse processo de inversão de preferências inicia-se com a construção do viaduto do Capanema em 1969, passa pela redução do pátio de manobras do km 108 para abertura de uma avenida e atinge seu ápice no início da década de 1990 com a retirada dos trilhos do ramal Curitiba Araucária. O ramal Curitiba – Rio Branco do Sul tem sido objeto de estudos elaborados por órgãos de planejamento desde o início da década de 1980. Diversas propostas de novos desvios visando solucionar a incompatibilidade de usos no trecho de 14 quilômetros cortado por 71 passagens de nível (31 delas somente em Curitiba) têm voltado à pauta de discussões nos últimos anos (GAZETA DO POVO, 1981; CURITIBA, 2008; CABRAL, 2009). Estudos mais recentes preveem a construção de um novo desvio ferroviário a leste, a fim de possibilitar a desativação do ramal Curitiba – Paranaguá no trecho que corta a capital do Estado (IPPUC, 2008; CABRAL, 2009; LIMA, 2010). Os diversos estudos que propõem a retirada destas estruturas do tecido urbano concebem o transporte ferroviário e a presença dos trens na cidade apenas como um problema, ou um "mal necessário". O recente Plano Diretor de Mobilidade Urbana e Transporte Integrado desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), por exemplo, contempla o modal ferroviário apenas para o transporte de cargas, buscando exclusivamente a minimização do impacto sobre o perímetro urbano através de traçados alternativos para as ferrovias (CURITIBA, 2008). De acordo com este plano, o traçado original das ferrovias é incompatível com a ocupação urbana e o adensamento da Região Metropolitana de Curitiba pois o transporte de cal e cimento atravessa zonas residenciais de alta densidade e prejudica o funcionamento do sistema viário, especialmente nas regiões Norte e Leste da cidade (IPPUC, 2009). Muito embora o transporte de cargas nos antigos ramais ferroviários seja atualmente incompatível com a ocupação urbana existente em seus arredores, estes trajetos são testemunhas da história e da memória da cidade, além de consolidados como referências na paisagem curitibana. Mais do que obstáculos, entende-se que essas infraestruturas possam ser consideradas potencialidades no planejamento das regiões por elas atravessadas, uma vez que o transporte sobre trilhos pode representar uma solução alternativa eficiente para a mobilidade urbana (LIMA, 2010).

Para Lemos (1985), o valor digno de preservação de um conjunto de artefatos, entendida por ele como a “personalidade” do conjunto, se esvai com a separação das partes e com a perda de suas funções. Este trabalho, então, tem como objetivo analisar o processo de retirada dos trilhos de trem que cruzam a cidade de Curitiba, PR, identificando as ações já implementadas e aquelas ainda em processo de discussão. Busca-se compreender as motivações que justifiquem tanto a permanência quanto a retirada desta infraestrutura da área urbana, avaliando-se o impacto da remoção dos trilhos para a perpetuação desta personalidade própria, ou seja, a preservação da memória ferroviária curitibana.

A DESATIVAÇÃO DO RAMAL CURITIBA - ARAUCÁRIA O ramal Curitiba - Araucária começou a ser construído em 1891 com o objetivo de ligar a capital à cidade de Ponta Grossa, no interior do Estado. Originalmente, permitia derivações para os portos fluviais de Rio Negro e Porto Amazonas. Dentro do município, este ramal possuía duas pequenas estações. A estação do Portão, construída no entroncamento da ferrovia com o Caminho das Tropas, estimulou o desenvolvimento do bairro de mesmo nome como centro comercial e industrial devido à facilidade de transporte. Destacam-se principalmente as indústrias de móveis, barricas e os engenhos de erva mate. Na década de 1960, uma estação em alvenaria substituiu a anterior. Na extremidade da linha, pouco antes da divisa com o município de Araucária, ficava a estação do Barigüi, uma pequena construção de madeira, desmontada em 1986 com a desativação da linha. (GIESBRECT, 2012; IPPUC, 2012). A partir da década de 1960 o Plano diretor de Curitiba prevê a transferência das áreas industriais para a recém-criada Cidade Industrial de Curitiba. Em 1977, a incompatibilidade de usos entre o transporte de cargas e a cidade em crescimento levou à construção, na região sul de Curitiba, do ramal Pinhais – Engenheiro Bley. Com este novo ramal, o transporte de cargas deixou de circular pelo ramal Curitiba – Araucária. Assim, muitos dos espaços industriais perderam seu uso e sua relação com o entorno e a região do bairro Rebouças, antigo distrito industrial da cidade, entrou em decadência. Novas iniciativas do poder público, todavia, têm proporcionado a transformação do bairro em um polo de lazer e cultura (DITTMAR, 2006). O trem de subúrbio, que funcionava no ramal Curitiba - Araucária desde 1950, foi extinto em 1984. Durante a década de 1980 este ramal também serviu a uma linha de turismo com destino à cidade histórica da Lapa, no interior do Estado, porém, no início da década seguinte a linha foi definitivamente desativada e os trilhos removidos. (DITTMAR, 2006; GIESBRECHT, 2011). No plano diretor de 1985, era prevista a construção de um desvio ferroviário que substituísse o ramal Curitiba - Rio Branco do Sul. Como o ramal Curitiba- Araucária já possuía a variante Pinhais Engenheiro Bley, o IPPUC propõe que esses ramais sejam desativados e transformados no Eixo de Integração Comunitária Parque Cachoeira - Barigüi (Figura 2). A proposta consistia em um parque linear de 25 km, onde seriam implantadas áreas de lazer e recreação bastante arborizadas, com equipamentos públicos, incorporando e aproveitando elementos da memória ferroviária (DUARTE, 1986; DITTMAR, 2006).

Figura 2 - Ilustrações da proposta para o parque Cachoeira-Barigüi Fonte: DUARTE, 1986; IPPUC, 1985 in DITTMAR, 2006, p.134.

O desvio para Rio Branco do Sul, porém, não foi construído e quando os trilhos do ramal Curitiba Araucária retirados, em 1991, apenas um pequeno trecho do projeto original do parque foi executado (Figura 3).

Figura 3 - Eixo de Animação João Saldanha, único trecho do parque linear construído Fonte: GOOGLE MAPS, 2013; GALLARZA; BAPTISTA, 2010, p.375.

Atualmente, o parque linear contido entre as ruas João Negrão e Conselheiro Laurindo (esta última, prolongada em sua extensão atual após a desativação do ramal) recebe o nome de Eixo de Animação João Saldanha. Além de um amplo gramado com árvores de grande porte e alguns equipamentos esportivos, permanecem no local dois fragmentos do uso original: a ponte metálica sobre o rio Água Verde e um pedaço de trilho com um eixo de rodagem (GALLARZA; BAPTISTA, 2010). Em 1989, a Prefeitura Municipal adquiriu a faixa de domínio de 40 metros de largura do ramal ferroviário desativado do bairro Parolin à Cidade Industrial para implantar um programa de habitação popular denominado Ferrovila. Este programa previa a construção de apartamentos para 10.000 famílias através de uma parceria entre o poder público e empresas privadas. O município vendia os terrenos por um valor baixo para as empresas construírem moradias para seus empregados de classe baixa (DITTMAR, 2006). A primeira empresa a aderir ao programa foi o Banco Bamerindus, que construiu quatro conjuntos de apartamentos e em 1991 já havia entregue metade das 400 unidades negociadas (TONELLA, 2010). Trata-se de uma série de edifícios de apartamentos de quatro pavimentos, articulados por um volume comercial com o dobro de andares (Figura 4).

Figura 4 - Primeiro trecho do Conjunto Habitacional Ferrovila Fonte: GOOGLE MAPS, 2013.

Na madrugada do dia 7 de setembro de 1991, uma ação coordenada pela União Geral dos Bairros, uma entidade de representação comunitária, promoveu a ocupação de 14 km da faixa de domínio do extinto ramal Curitiba - Araucária por 3.500 famílias (Figura 5) (TONELLA, 2010). A invasão planejada recebeu o apoio de um grupo de vereadores vinculados a partidos políticos que faziam oposição à prefeitura da época, alegando a ausência do poder executivo na produção de habitação social (BOM DIA PARANÁ, 1991). Embora a questão fundiária envolva diversos fatores, é importante destacar o viés político destas ocupações, que provocaram, em última instância, mudanças no traçado urbano da cidade e forçaram mudanças de planejamento.

Figura 5 - Ocupações irregulares no antigo leito do ramal Curitiba - Araucária Fonte: GOOGLE MAPS, 2013.

Entre 1993 e 1995, um dos trechos mais valorizados da Ferrovila, nas proximidades dos bairros Vila Guaíra e Portão, foi desocupado e as famílias foram relocadas pela COHAB para o Bairro Novo, no sul da cidade. Assim, foi possível aprimorar a urbanização nesta área com a abertura de ruas e a construção de mais blocos de apartamentos (Figura 6) (DITTMAR, 2006).

Figura 6 - Segundo trecho do Conjunto Habitacional Ferrovila Fonte: GOOGLE MAPS, 2013.

Recentemente, este trecho da Ferrovila foi ampliado com a construção de 178 unidades habitacionais pela COHAB. Este prolongamento do empreendimento fez parte de um programa de reassentamento de famílias em área de risco em outras partes da cidade (COHAB, 2012). A retirada dos trilhos e a substituição dos usos da área, especialmente nos trechos ocupados irregularmente, contribuiu significativamente para a perda da percepção da imagem e da memória da ferrovia na região. A antiga estação do Portão foi demolida, restando no local apenas algumas das casas que compunham a vila ferroviária. No local onde havia um pequeno pátio de manobras, com desvios para as indústrias e para um quartel do Exército, encontra-se uma pequena praça, Enquanto que no terreno onde anteriormente estava localizada a Estação do Barigüi encontra-se uma escola municipal. Em frente a esta escola, ainda é possível identificar um pequeno rastro histórico dos trilhos do antigo ramal, item bastante raro neste trecho bastante descaracterizado. (DEPARTAMENTO DE URBANISMO, 1962; GIESBRECHT, 2012).

O FUTURO DOS OUTROS RAMAIS Em 1906, inicia-se a construção da Estrada de Ferro Norte do Paraná, cujo projeto original previa a ligação de Curitiba com uma colônia de imigrantes europeus onde eram produzidos alimentos para atender a demanda da capital. Todavia, devido a problemas da concessionária, após a inauguração do primeiro trecho (que chegava a Rio Branco do Sul) em 1909, o projeto foi abandonado. Por conta disso, este ramal somente deixou de ser deficitário na década de 1950 com a instalação de uma fábrica de cimento em Rio Branco do Sul (CÓRDOVA et al, 2010). Indutor do desenvolvimento de diversas colônias de imigrantes ao longo de seu traçado, desde a desativação do serviço de transportes de passageiros em 1991, o ramal Curitiba – Rio Branco do Sul funciona praticamente com um ramal particular que transporta minérios e cimento, cortando a paisagem de forma agressiva, sem relação com as comunidades por onde passa. Entretanto, ao longo do ramal a ferrovia é ladeada por uma ciclovia bem utilizada por crianças e adultos. A faixa de domínio da estrada de ferro apresenta grandes áreas de vegetação diversa que colorem boa parte do trajeto, tornando-o bastante agradável para passeios e caminhadas. O traçado sinuoso da ferrovia, decorrente do relevo acidentado da região, embora obrigue os trens de carga a reduzirem sua velocidade, cria diversos pontos de contemplação, com visuais panorâmicas da cidade (CÓRDOVA et al, 2010).

Figura 7 - Paisagem comum ao longo do sinuoso ramal Curitiba - Rio Branco do Sul Fonte: GOOGLE MAPS, 2013; CÓRDOVA et al, 2010.

Um dos destaques deste ramal que resiste à passagem do tempo é a Vila Argelina. O conjunto de casas de ferroviários localizava-se junto a uma parada de mesmo nome que inicialmente serviu a

uma colônia de imigrantes franceses oriundos da Argélia. Com a instalação de um grande conjunto de quartéis militares na região, a partir da década de 1930 começou a operar no local um desvio para carga e descarga de material bélico (Figura 8).

Figura 8 - Vista da Vila Argelina e manobra militar no local, década de 1980 Fonte: GALLARZA; BAPTISTA, 2010, p.675; GIESBRECHT, 2012.

Dentre os que estão em atividade, o ramal Curitiba – Rio Branco do Sul é aquele que suscita maiores polêmicas - marcado por diversos cruzamentos com ruas ao longo de seu trajeto, o ramal norte é alvo de críticas constantes por parte da população, principalmente pelos diversos acidentes com automóveis e pelo excesso de barulho das composições (CARRIEL, 2009; CABRAL, 2009). Embora atravesse bairros predominantemente residenciais, este trecho da ferrovia possui diversas passagens de nível onde vias de grande fluxo disputam espaço com os trilhos. Acidentes com pedestres ou veículos são comuns e as reclamações dos moradores sobre o barulho das composições (em média cinco trens por dia) é frequente neste trecho (CARRIEL, 2009). Por isso, o Plano Diretor Multimodal prevê o remanejamento da linha férrea nesta área. Diversas propostas (Figura 9) foram desenvolvidas para este desvio ferroviário, porém entravam em conflito com aspectos ambientais. Atualmente a proposta mais aceita e oficialmente aprovada propõe que a ferrovia siga paralelamente ao traçado dos Contornos rodoviários Norte e Sul, interligando o ramal para Rio Branco do Sul diretamente com a estrada de ferro em Araucária. Nesta proposta, a ferrovia percorreria a Cidade Industrial de Curitiba, favorecendo seu uso pelas mais de 450 indústrias instaladas na região. Outra vantagem deste traçado refere-se a existência de menos conflitos e rejeição da ferrovia pela população, uma vez que a área não possui densa ocupação residencial ou de comércios e serviços. A região, pelo contrário, dispõe de áreas para instalação de pátios de transbordo e terminais intermodais. Soma-se a isso o fato de os raios e declividades do traçado rodoviário serem compatíveis com as necessidades do novo modal que o acompanharia (IPPUC, 2009). Com a desativação do ramal Curitiba - Rio Branco do Sul, a prefeitura vê a oportunidade de reorganizar o território fragmentado pelo traçado ferroviário. Basicamente, a desativação da ferrovia possibilitaria a ampliação de avenidas, a complementação do sistema viário em algumas regiões da cidade e a implantação de um binário com a avenida Anita Garibaldi, na região norte da cidade (IPPUC, 2008). Observa-se daí que essas propostas pouco se aproveitam dos potenciais culturais, ambientais e paisagísticos que a área possui, favorecendo sua fragmentação pela abertura de novas ruas e sua substituição por um modal de transporte que já se provou problemático a longo prazo.

Figura 9 Propostas do IPPUC e DNIT para o ramal ferroviário Curitiba-Rio Branco do Sul Fonte: Cabral, 2009.

A rede ferroviária paranaense teve seu primeiro trecho inaugurado em fevereiro de 1885, ligando a cidade de Curitiba ao porto e à cidade de Paranaguá. A construção desta ferrovia representou um marco para a engenharia brasileira. Apesar da falta de confiança dos engenheiros estrangeiros diante do desafio de transposição da Serra do Mar, a conclusão da obra viabilizouse, em grande parte, pela atuação e esforço dos engenheiros negros André e Antonio Rebouças (CÓRDOVA et al, 2010). Diferente dos anteriores, o ramal Curitiba – Paranaguá é uma das poucas linhas por onde ainda circulam trens de passageiros, ainda que de forma turística. Este serviço, fornecido por uma concessionária privada desde a década de 1990, é reconhecido internacionalmente por sua qualidade e potencial (KAUFMAN, 2010). Este ramal inicia-se na Estação Rodoferroviária de Curitiba, construída em 1972 como a primeira do país a integrar em um mesmo terminal os transportes rodoviário e ferroviário de passageiros, e durante boa parte de seu trajeto divide duas paisagens bastante diferentes. Ao norte da ferrovia, encontram-se grandes empreendimentos imobiliários contemporâneos que consolidam o eixo estrutural leste de Curitiba. Opostos a estes, no lado sul da linha, pequenas casas térreas, algumas de madeira, lembram o início da ocupação da região pelos ferroviários (Figura 10).

Figura 10 - Paisagem ferroviária ao longo do ramal Curitiba - Paranaguá Fonte: GOOGLE MAPS, 2013; CÓRDOVA et al, 2010.

Mais à frente nessa linha, encontram-se dois pequenos conjuntos de edificações ferroviárias: as casas de turma1 das paradas Cajuru e Stresser, que delimitam um conjunto de paisagem bem definido (Figura 11). Nesta paisagem destacam-se, além das casas de turma, os diversos cruzamentos de pedestres, a área gramada de recuo da linha férrea, o som das movimentadas avenidas que ladeiam a ferrovia e a horizontalidade dos bairros divididos pelos trilhos (CÓRDOVA, 2010).

Figura 11 - Casas de turma das paradas Cajuru e Theodoro Stresser Fonte: GALLARZA; BAPTISTA, 2010, p.722 e p.729.

1 Pequenas construções, geralmente de um único cômodo, dispostas ao longo das linhas. Serviam de apoio e moradia aos trabalhadores responsáveis pela manutenção da via permanente.

Próximo ao limite de Curitiba com o município de Pinhais, o ramal Curitiba - Paranaguá possui um pequeno desvio que leva às oficinas ferroviárias de Curitiba (Figura 12). O conjunto das Oficinas começou a ser construídas em 1943, tendo sido oficialmente inauguradas pelo presidente Getúlio Vargas em 1953. Embora novos edifícios tenham sido construídos e alguns dos antigos, se perdido, a rotina de funcionamento da "maior oficina de locomotivas da América Latina" (CÓRDOVA et al, 2010, p.29), com seus fluxos de ferroviários, ruídos, apitos e cheiros característicos, contribui para a permanência do vínculo da região com a cultura dos trilhos.

Figura 12 - Conjunto da Vila Oficinas em fotos da década de 1970 e atuais. Fonte: GOOGLE MAPS, 2013; CÓRDOVA et al, 2010, p.27; GALLARZA; BAPTISTA, 2010, p.590.

Na época de sua construção, as oficinas encontravam-se bastante isoladas do restante da cidade. Para atender demandas dos funcionários que ali trabalhavam, diversas casas foram construídas pela Rede, dando origem a uma região de traçado urbano bastante característica chamada Vila Oficinas. Atualmente o conjunto das oficinas é ocupado pela ALL, concessionária da malha ferroviária da extinta RFFSA no Estado (CÓRDOVA et al, 2010; GALLARZA; BAPTISTA, 2010). Embora possua apenas cinco passagens de nível em seu traçado, o ramal Curitiba - Paranaguá não está isento das propostas de desativação e descaracterização. O crescimento urbano e o adensamento ao longo da linha férrea tem sido considerado incompatível com o transporte de cargas neste ramal. Os órgãos de planejamento municipal (IPPUC) e metropolitano (COMEC) propuseram algumas opções para um desvio ferroviário que substitua o ramal Curitiba Paranaguá e parte do ramal Pinhais - Engenheiro Bley. A opção mais aceita prevê a implantação do ramal paralelo ao Canal Extravasor do rio Iguaçu até conectar-se ao traçado original na cidade de Piraquara (Figura 9). A obra do ramal definiria o dique necessário para complementar a função de delimitação e contenção de cheias do canal já implantado, além de permitir uma conexão com o Aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais (CABRAL, 2009; IPPUC, 2009; LIMA, 2010). Nestas propostas, a Estação Rodoferroviária, um dos poucos edifícios da extinta RFFSA que ainda mantém seu uso original, perderia sua função de terminal de passageiros para o trem turístico e poderia receber a instalação de um terminal de ônibus metropolitanos. Nas possibilidades apresentadas, o novo terminal de passageiros poderia ser instalado na antiga estação ferroviária de Piraquara, incentivando o turismo na região metropolitana, ou no conjunto de Oficinas da RFFSA, que perderia sua destinação ferroviária operacional e passaria a desempenhar o papel de articular a criação de um pólo turístico e gastronômico no bairro (IPPUC, 2008; IPPUC, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os trens têm estado à margem do planejamento de Curitiba há algumas décadas. Observa-se que as linhas férreas apenas têm sido consideradas pelos órgãos de planejamento municipais e metropolitanos como obstáculos e elementos segregadores do território. Esta postura, que já permitiu perdas irreparáveis à memória ferroviária, necessita ser revista para garantir a efetiva preservação deste rico conjunto patrimonial. A diversidade de estudos sobre a retirada destas estruturas do tecido urbano, porém, não costumam apresentar propostas consistentes para a requalificação das áreas desocupadas. Algumas iniciativas podem ser observadas ao longo dos últimos cinco anos por parte do poder público e de pesquisadores. A Fundação Cultural de Curitiba lançou, em 2009, um edital de Identificação e Registro2 que teve como temática a paisagem ferroviária do município. Uma equipe multidisciplinar, formada por antropólogos, historiadores, fotógrafos e arquitetos e urbanistas, desenvolveu pesquisas ao longo dos ramais Curitiba - Paranaguá e Curitiba - Rio Branco do Sul, identificando e caracterizando elementos que fazem parte da paisagem ferroviária, a partir dos quais foram propostos os conjuntos paisagísticos que servem de base para as análises e interpretações deste trabalho. Lima (2010) identifica potencialidades paisagísticas e turísticas ao longo de segmentos dos ramais Curitiba - Paranaguá e Pinhais - Engenheiro Bley, a fim de propor um projeto de requalificação urbana. Através de instrumentos de regulamentação do uso do solo e diretrizes viárias, a autora busca reforçar a memória e a identidade ferroviária destes lugares. Há, porém, um descrédito nas possibilidades e soluções de mobilidade que envolvam o transporte ferroviário tanto por parte da sociedade quanto dos investidores públicos ou privados (LUZ, 2006). A descrença na ferrovia soma-se aos grandes investimentos necessários para sua adaptação e operação e prejudica a viabilidade dos projetos. A incipiência dos trabalhos sobre o tema é notória – constituem-se predominantemente de estudos de identificação e documentação das áreas com potencial de preservação do patrimônio ferroviário. Tratam-se ainda de iniciativas pouco articuladas, quando não isoladas, entre os órgãos gestores do patrimônio cultural e do planejamento urbano da cidade. A identificação de potencialidades para usos alternativos das linhas, ao invés da simples retirada dos trilhos e ampliação de ruas, precisa ser considerada como uma opção possível a fim de evitar a iminente descaracterização das paisagens ferroviárias. Muito há que se fazer para resguardar a memória dos trilhos curitibanos.

REFERÊNCIAS: BOM DIA PARANÁ. Reportagem exibida no dia 09.set.1991. Canal 12, Curitiba, 1991. Disponível em: Acesso em 05.fev.2013. CABRAL, Themys. Será o fim do apito do trem? Gazeta do Povo. Curitiba, 13 mar 2009, Vida e Cidadania.

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Este projeto de pesquisa teve como produtos um livro, um relatório fotográfico e um website que se complementam. Tanto o livro "Pelos trilhos: Paisagens ferroviárias de Curitiba" quanto o relatório "Paisagens materiais" estão disponíveis para download no website do projeto, www.pelostrilhos.net (CÓRDOVA et al, 2010; GALLARZA; BAPTISTA 2010).

CARRIEL, Paola. Vandalismo aumenta riscos. Gazeta do Povo. Curitiba, 12 mar 2009, Vida e Cidadania. COHAB. Vila Guaíra vai ganhar mais 138 moradias populares. Publicado em 27.jan.2013. Disponível em: Acesso em 06.fev.2013. CORDOVA, Dayane Z.; IUBEL, Aline; STOIEV, Fabiano; SOUZA, Leco de. Pelos trilhos: Paisagens Ferroviárias de Curitiba. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2010. CURITIBA. Plano de Mobilidade Urbana e Transporte Integrado. Curitiba: Prefeitura Municipal de Curitiba, 2008. Disponível em Acesso em 23 nov 2012. DITTMAR, Adriana Cristina Corsico. Paisagem e morfologia de vazios urbanos: análise da transformação dos espaços residuais e remanescentes urbanos ferroviários em Curitiba. 2006. 230 p. Dissertação (Mestrado em Gestão urbana). – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006. DUARTE, Silvestre. No lugar dos trilhos. Correio de Notícias, Curitiba, 19 jan 1986, Bom Domingo. GALLARZA, Gabriel; BAPTISTA, Maria. Patrimônio Ferroviário de Curitiba: Paisagem material. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2010. GAZETA DO POVO. Curitiba terá um novo ramal ferroviário a escoar carvão. Gazeta do Povo, Curitiba, 21 mai 1981. GIESBRECHT, Ralph M. Curitiba – Estações ferroviárias. . Acesso em 02 dez 2011

Disponível

em

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