Memória, Identidade Social e Conflito entre os Pescadores de Itaipu-RJ

June 3, 2017 | Autor: Nupij Uff | Categoria: Ciências Sociais, História, História Oral, Pesca Artesanal
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Memória, Identidade Social e Conflito entre os Pescadores de Itaipu-RJ

Juliana Lopes Latini

Monografia de final de curso

Niterói 2/2006

Sumário

Resumo ......................................................................................................................... 1 Introdução ..................................................................................................................... 2 Capítulo 1: A Metodologia História Oral e suas particularidade 1.1. - Debate historiográfico ........................................................................................... 6 1.1.2. - Dificuldades e riscos apresentados pela História Oral .................................... 12 1.2. – As etapas da pesquisa ....................................................................................... 14 Capítulo 2: Modernidade e Tradição 2.1. – A inserção no campo .......................................................................................... 19 2.2. – A construção do objeto ...................................................................................... 24 2.3. – As representações sobre “Modernidade” e “Tradição” ....................................... 31

Capítulo 3: Memória, Identidade Social e Conflito 3.1. Memória, Identidade Social e Conflito ............................................................... 39

Considerações finais ................................................................................................. 48 Referências Bibliográficas ....................................................................................... 49 Anexos ........................................................................................................................ 51 Ensaio de Antropologia Visual Tabela das famílias que permaneceram no local, e as respectivas funções exercidas por seus membros.

Juliana Lopes Latini

Memória, Identidade Social e Conflito entre os Pescadores de Itaipu-RJ

Trabalho de monografia apresentado à Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do grau de bacharel em História.

Orientadora: Profª. Drª. Márcia Menendes Motta Co-orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima

Niterói 02/2006

Agradecimentos

Aos pescadores e atravessadores da Praia de Itaipu, em especial – Seu Pedro, Robinho, Neguinho, Ercília, Seu Chico, Lunga, Maurinho, Cambuci e família. À minha família, especialmente os meus pais, Maria Helena e Marcus Vinícius, e meu irmão, Guilherme. Agradeço o apoio de sempre de Pedro Caetano. Às amigas Paloma, Lívia e Luiza. A todos os amigos do curso de Ciências Sociais e História da UFF – em especial, Camila, Roberta, Camille, Fernanda, Iamara, Carol, Maria Mostafa, Morgana, Maya, Lívia, Fernanda Tibau, Marco Lamarão, Nataraj, Refael Dutton e todos da turma 01ºsemestre/02. A todos os companheiros do NUFEP – Ronaldo Lobão, Fábio Reis Mota, Lênin Pires, Lucía Elbaum, Maria Fabiana, Bruno Mibielle, Solange Cretton, José Colaço, Pricila Loretti Miriam, Helinho, Maria de Paula, Lídia, Robertinha, Andréa Ana, Cristian, Virgínia, Rodolfo Lo Bianco, Natália, Gláucia, Lúcio Pinho, Vívian, Marco Antônio Mello. Aos amigos do Instituto de Segurança Pública (ISP) – Daniele, Joana, Marcella, Isabella, Major Teixeira, Roberta, Eduardo, Clícia. Aos alunos e professores do pré-vestibular comunitário José Reis. À comunidade do Morro do Vital Brazil. Ao CNPq, pelo financiamento que viabilizou a presente pesquisa.

RESUMO

Esta monografia tem como objetivo refletir sobre as representações dos pescadores de Itaipu em relação ao processo de urbanização ocorrido naquela região. A discussão proposta se pauta na literatura produzida sobre o tema, na utilização da metodologia historia oral e na pesquisa antropológica. O trabalho pretendeu contribuir para o entendimento de como se constroem a memória e se preserva a tradição e a identidade social do grupo de pescadores de Itaipu, moradores nativos da região. Ao resgatar o discurso daqueles que viveram e acompanharam as transformações ocasionadas pelas mudanças urbanas, tanto do local de trabalho, quanto de moradia, podemos entender melhor o que significam tais mudanças ou o que se pensa sobre elas.

PALAVRAS CHAVES 1 – Praia de Itaipu, 2 – Pescadores, 3 – Memória, 4 – Identidade, 5 – Conflito

INTRODUÇÃO

O objetivo desta pesquisa é discutir a questão da Memória e da Identidade Social de um grupo de pescadores artesanais, a partir de suas representações sobre as mudanças promovidas pela urbanização com a finalidade de compreender como a identidade coletiva é (re)apropriada. A cidade de Niterói, inserida na grande região metropolitana do estado Rio de Janeiro, depois da conclusão da Ponte Presidente Costa e Silva (Rio – Niterói) finalizada em 1974, passa a ter ligação viária com a capital e, desde então, sofre um grande impacto em sua organização urbana. Em decorrência, a especulação imobiliária que já se desenvolvia no município de Niterói se intensificou. O mercado imobiliário voltou-se para as regiões que até então eram menos exploradas, como por exemplo, Camboinhas, Itaipu, Itacoatiara, Piratininga e Pendotiba. Dessa forma, diversos investimentos se desenvolveram nessas localidades com o objetivo de melhorar a infra-estrutura básica existente. Essa região, também chamada de Região Oceânica, foi sendo urbanizada e ocupada por diversos tipos de construções, como casas e condomínios luxuosos, que se multiplicaram rapidamente no decorrer dos anos. A estratégia utilizada pelos anúncios publicitários para promover a região se baseava na segurança do local e, principalmente, na proximidade das praias não poluídas da cidade – o que era considerado como um adicional para uma elevada qualidade de vida. A pesquisa apresentada teve como objeto de estudo o povoado de pescadores situado na Praia de Itaipu e as diversas representações que o grupo possui sobre a

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crescente urbanização, iniciada na década de 1970 e que continua até os dias atuais. O processo de urbanização e, portanto, de valorização do lugar implicou na produção de novas dinâmicas sociais. A pesca passou a dividir espaço com movimentos voltados para a especulação imobiliária que ali vem se desenvolvendo e também com o incremento dos fluxos turísticos. A pesquisa realizou-se a partir de uma bolsa de iniciação científica CNPq-PIBIC e desenvolveu-se no âmbito do projeto “Modelos Institucionais de Administração de Conflito e Produção de Verdade em uma Perspectiva Comparada”, sob orientação do professor Roberto Kant de Lima, durante o período de setembro de 2004 a setembro de 2005. O projeto está ligado ao Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP), localizado na Universidade Federal Fluminense, e se insere na linha de pesquisa iniciada pelo professor Luiz de Castro Faria sobre os pescadores da Lagoa Feia, em Campos, RJ. Inicialmente, vale ressaltar que as etnografias realizadas em Itaipu por Roberto Kant de Lima, Elina Pessanha e Bruno Mibielli são importantes referências para entender a Praia de Itaipu e, por essa razão, são constantemente utilizadas nesse trabalho. A metodologia baseou-se em profundidade nas entrevistas feitas com os pescadores e utilizando a observação participante. De posse desse material, busco analisar o material coletado através do método da História Oral, sendo os pescadores Seu Pedro e Robinho como os meus principais interlocutores. A relevância da pesquisa que pauta esse trabalho está em proporcionar para esses atores, uma posição de sujeitos da História, buscando resgatar suas memórias, com o objetivo não apenas de enriquecer as fontes de informação existentes sobre a 2

região, mas também privilegiar outras “verdades”. Assim, pode-se considerar a pesquisa inovadora por utilizar como metodologia os recursos da História Oral, que segundo Etienne François1, pretende dar atenção especial aos “dominados”, aos silenciosos e aos excluídos da história, assim como, ao cotidiano e a vida privada, à história local e enraizada. Segundo François, seria inovadora também por suas abordagens, que dão preferência a uma “história vista de baixo”, atenta às maneiras de ver e de sentir e que às estruturas “objetivas” e às determinações coletivas prefere as visões subjetivas e os percursos individuais, numa perspectiva decididamente “micro-histórica”. Segundo a autora, essa inovação de atentar aos novos objetos e adotar novas abordagens não são próprias da História Oral, pois são observadas muito além dos seus limites e constituem um aspecto entre outros das redefinições metodológicas e das mutações internas da pesquisa histórica atualmente em curso. Assim, não deve-se ignorar os múltiplos impulsos, incentivos e exemplos que foram encontrados fora dela. Este trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro deles trata das particularidades e dos riscos da metodologia História Oral, assim como, as diferentes etapas que compuseram a pesquisa. O segundo capítulo trata da etnografia, privilegiando a inserção do campo, a construção do objeto como também as representações que os pescadores possuem sobre as modificações promovidas pela urbanização. No último capítulo, será privilegiada a discussão a cerca da memória e da identidade social, assim como os conflitos proporcionados nesse ambiente pelos diferentes atores.

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FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da História Oral In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 4.

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1- A METODOLOGIA HISTÓRIA ORAL E SUAS PARTICULARIDADES

1.1 - Debate historiográfico

O uso da História Oral traz consigo uma nova forma de refletir sobre as fontes. Além da fonte escrita, forma mais usual de trabalho utilizada para questionar sobre determinado período de tempo, a fonte oral abre novos caminhos e novas perspectivas levantando críticas e novas abordagens. O uso sistemático do testemunho oral possibilita à História Oral esclarecer trajetórias individuais, eventos ou processos que não poderiam ser estudados de outra maneira. A História Oral permite uma análise mais detalhada do objeto de estudo, pois a partir dela as fontes históricas tradicionais podem ser assim contestadas. Além disso, a vivência de um interlocutor do tempo e do espaço estudado ganha bastante credibilidade depois de ser analisado empiricamente por um especialista, permitindo o entendimento das representações existentes em seu discurso. De acordo com Alessandre Portelli2, a memória é dividida, ou seja, estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas. Assim, apesar do respeito às pessoas envolvidas, à autenticidade de sua tristeza e à gravidade de seus motivos, a tarefa do especialista é interpretar criticamente todos os documentos e narrativas. Pois, segundo ele, não podemos esquecer que esses narradores são

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PORTELLI, Alessandre. “O Massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política, luto e senso comum” In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996.

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apoiados por estruturas mediadoras da linguagem, da narrativa, do ambiente social e da política. Com isso, Portelli, defende que as narrativas resultantes – não a dor que elas descrevem, mas as palavras e ideologias pelas quais são representadas – devem ser entendidas criticamente. Conforme o autor, o campo específico da História Oral talvez seja a interação entre as representações e os “fatos”, pois esta é contabilizada como história com fatos reconstruídos, mas também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e na confrontação crítica com a alteridade dos narradores, a entender as representações. Segundo ele, as representações e os “fatos” não existem em esferas isoladas. Em vez disso, as representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos, ao mesmo tempo em que os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as representações. Dessa forma, o autor conclui que tanto fatos quanto representações convergem na subjetividade dos seres humanos e são envolvidos em sua linguagem. De acordo com Portelli, a “memória coletiva” apesar de ser um termo legítimo, não deixa de ser uma construção bastante ideológica e institucional, distinta das memórias pessoais nas quais se baseia. Não se deve esquecer, portanto, que a elaboração da memória e o ato de lembrar são sempre individuais: pessoas e não grupos se lembram. Assim a memória é social e pode ser compartilhada, e por essa razão cada indivíduo tem algo a contribuir para a história “social”, mas ela só se torna coletiva quando é abstraída e separada da individual. Desse modo, a pressão para não esquecer e para extrair memórias de um único grupo materializa o “controle social”, como a pressão da memória “coletiva” sobre a “individual”. Assim, a memória “coletiva“ para Alessandre Portelli, não tem a ver com memórias de indivíduos, mas como uma formalização igualmente legítima e significativa, mediadas por ideologias, linguagens, senso comum e instituições. Com isso, a definição “memória dividida”, precisa ser ampliada e 5

radicalizada para não só definir a dicotomia entre a memória institucional e a memória coletiva da comunidade, mas também para definir a pluralidade fragmentada de diferentes memórias. Ou seja, a memória de um povoado pode estar também socialmente dividida. Dessa forma, a História Oral pretende reconstruir os fatos narrados através de um diálogo entre as fontes históricas eruditas, para assim analisar criticamente tais fontes, mas é a partir dessa análise empírica, própria do historiador, que os fatos relatados são transformados em fontes históricas. Ao analisar a memória considerada coletiva, percebe-se que na realidade esta foi conquistada por determinado grupo que possui maior representação na sociedade e desta forma, conquistou a legitimação de seu discurso. Assim a memória é disputada por diferentes grupos, mas é adaptada pelo grupo que sobrepõe-se aos demais, representando interesses próprios de seu grupo. Com isso, a disputa pela memória reflete a disputa pelo poder local, pois o grupo que possui a “memória coletiva” possui por sua vez a representação daquela sociedade e a conquista do discurso dominante, que está de acordo com seus próprios interesses, agregando e legitimando seus poderes. Assim, pode se perceber que não existe uma “memória coletiva” e sim, um controle social que disputa a memória. De acordo com Pierre Bourdieu3, só se pode compreender a luta pela definição de identidade “regional” ou “étnica” com a condição de se compreender o real com a representação do real, e as lutas pelas representações do real. Assim, afirma que está em jogo nessas lutas pela identidade “regional” ou “étnica” o poder de impor a visão de

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BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região”. In__. O poder Simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Capítulo V: 107 – 132.

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mundo social através dos princípios de di-visão, que quando se impõe sobre um grupo, fazem a identidade e a unidade do grupo ser representada a partir da sua perspectiva – a visão dominante – a que possui a dominação simbólica sobre os demais – realizando portanto o sentido e o consenso sobre o sentido. Como se vê, a História Oral contribui para um entendimento mais aprofundado sobre a sociedade porque, ao permitir a interface com diferentes discursos, possibilita apreender as contradições do discurso dominante. Além disso, a metodologia produz subsídios para entender as representações da sociedade e dá voz aos considerados excluídos da opressora “memória coletiva”, ressaltando e dando credibilidade a vivência do interlocutor. O autor Henry Rousso4 defende a idéia de que a história da memória não tem definição simples e clara, além de ter ela sua própria história. Segundo ele, não existe uma memória compartilhada da mesma forma por toda a coletividade, pois a memória é a representação seletiva do passado em que o indivíduo está inserido num contexto familiar, social e nacional. O objetivo da história da memória é observar as representações do passado, percebendo a época determinada e/ou lugar em que estas são apresentadas de maneira recorrente e se dizem respeito a um grupo significativo. Além disso, deve-se perceber se a versão apresentada possui aceitação dentro e fora de tal grupo. A partir daí, deve-se fazer uma pesquisa sobre as representações destes fatos passados e de sua evolução

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ROUSSO, Henry. Entre Memória e História. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína,

orgs. Usos e abusos da história oral. Editora Fundação Getúlio Vargas.

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cronológica, para chegar o mais próximo possível de uma “memória coletiva”, ainda que seja através de uma abordagem empírica própria dos historiadores. Assim, segundo Rousso a função do historiador é perceber através da “memória coletiva” as contribuições históricas que seriam inviáveis de resgatar em outras fontes, como por exemplo, em arquivos de fontes tradicionais. Desse modo, a fonte oral é uma produção conjunta, pois considera tanto a trajetória pessoal do entrevistado como a experiência e a história acadêmica do entrevistador. Apesar da História Oral, apresentar diversos riscos é possível realizar uma análise histórica do tempo estudado, apesar da história pertencer principalmente àqueles que a viveram, cabe ao historiador torná-la inteligível para seus contemporâneos. A memória, portanto, não representa a realidade dos fatos de forma isenta, pois é uma representação do passado. Desse modo, a crítica sobre a fonte oral não difere da fonte escrita, mas exige um cuidado muito maior sobre ela. Etienne François

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afirma que a experimentação, pelos historiadores, de novas

formas de intervenção e de comunicação à margem das formas habituais do ensino e da pesquisa é cientificamente tão rigorosa quanto as precedentes. Assim, de acordo com François que além de novos objetos e de uma nova documentação serem produzidos, o historiador também tem a possibilidade de estabelecer uma relação original entre os sujeitos da História em questão. Com isso, a autora conclui sua exposição reconhecendo que a pesquisa empírica de campo e a subseqüente reflexão teórica sobre as problemáticas e os métodos estão indissociavelmente ligadas, demonstrando que a

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FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da História Oral In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 9 – 13.

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história é construção. Pois, de acordo com a autora, isto exemplifica de maneira mais convincente que o objeto histórico é sempre resultado da elaboração do historiador. As afirmações de Jorge Eduardo Lozano6 são muito relevantes para enriquecer este debate, pois segundo ele, a História Oral compartilha o método histórico tradicional as diversas fases e etapas do exame histórico. Por no início apresentar uma problemática, inserindo-a em um projeto de pesquisa, e depois, desenvolver os procedimentos heurísticos apropriados à constituição das fontes orais que se pôs a produzir. Assim, ao realizar essa tarefa, Lozano afirma que deve se proceder com o maior rigor possível, ao controle e às críticas interna e externa da fonte constituída, assim como das fontes complementares e documentais. Em seguida, o autor orienta se fazer a análise e interpretar as evidências, assim como o exame detalhado das fontes recopiladas e acessíveis.

Além disso, Lozano ressalta que este é um espaço de

intercâmbio entre a história e as demais ciências sociais, que através da oralidade oferecem interpretações qualitativas de processos histórico-sociais. E para isso conta com métodos e técnicas precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenha um papel importante. Desse modo, o autor afirma que fazer História Oral significa produzir conhecimentos históricos científicos, pois tais depoimentos não substituem a pesquisa e a conseqüente análise histórica. Assim, segundo ele, a História Oral não é uma mera técnica e sim uma renovação das concepções sobre o envolvimento do historiador com seus sujeitos e problemas de pesquisa. Lozano então conclui que a evidência oral é tão válida quanto aquela derivada da consulta de fontes

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LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 9 – 13.

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documentais como arquivos e registros fiscais ou policiais, ao mesmo tempo em que deve ter a mesma receptividade e os mesmos controles críticos aplicados em outras fontes como artigos de jornais, relatório político ou documentos lavrados em cartório.

1.1.2 - Dificuldades e riscos apresentados pela História Oral

Apesar dessas afirmações tal metodologia possui alguns riscos que geram críticas, como as apresentadas por Jean-Jacques Becker7. Segundo ele, uma das principais dificuldades encontradas na história oral é o fato dela se basear em relatos posteriores aos acontecimentos, pois o interlocutor pode resgatar lembranças involuntariamente equivocadas, ou transformadas em função dos acontecimentos subseqüentes, assim como lembranças sobrepostas, ou transformadas deliberadamente para “coincidir” com o que é pensado muitos anos mais tarde, ou seja, lembranças transformadas simplesmente para justificar posições e atitudes posteriores. Assim, Becker acredita que exista um grande risco em preencher as lacunas da história de modo falso, além de criticar duramente a fonte oral como única fonte. Outra questão apresentada por Daniele Voldman8 é a respeito da cautela que o historiador deve ter com tais fontes, pois segundo ela a entrevista parece-se com um “jogo de esconde-esconde” entre o pesquisador e o interlocutor. Assim, a autora desenvolve seu argumento baseando-se na questão da memória ser reconstruída ou por 7

BECKER, Jean-Jaques. O handicap do a posteriori. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 9 – 13. 8

VOLDMAN, Daniele. Definições e usos. In: FERREIRA, Marieta e AMADO, Janaína. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 34 – 40.

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diversos motivos, ser firmemente construída, como em determinado casos em que o interlocutor tenha o interesse de preservar uma identidade coletiva, ou pelo risco de mudar o modo de representação de sua própria existência. Com isso, Voldman acrescenta ao debate o fato do interesse que o entrevistado pode ter sobre os resultados da pesquisa, manipulando conscientemente seu discurso. Além disso, a autora disserta sobre algumas particularidades dessa metodologia. Pois define dois modos sobre o modo de proceder ao tratamento do documento sonoro. O primeiro é dividido a partir da importância dada à precisão, assim como à informação do documento, enquanto o último, quando a preocupação volta-se ao que pode ser revelado, ou seja, aos interstícios do discurso. Assim, o pesquisador deve atentar para interpretar também a mensagem que lhe é comunicada, sobretudo pelo não-dito, ou pela hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a divagação e a associação, pois todos esses, são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato. Entre outras coisas, Voldman também define a diferença entre arquivo oral e fonte oral. Segundo a autora, o primeiro busca preservar os vestígios dos tempos passados para os futuros pesquisadores e estão sob guarda de instituições, enquanto a fonte oral é o material recolhido pelo pesquisador para as necessidades de sua pesquisa, em função de suas hipóteses. Assim, segundo ela, compete ao pesquisador o poder de decidir o que será tomado como está e o que será reexaminado a luz de outras fontes, ou mesmo posto de lado, mas nada permite retirar da testemunha a posição por ela adquirida pelo simples fato de ter aceitado participar da pesquisa. Portanto, as particularidades são muitas, assim como os seus riscos. No entanto, os historiadores não devem desvalorizar essas fontes, assim como seus usos, mas, permanecer de forma analítica e crítica, independente de ser oral, ou escrita. 11

1.2 - As etapas da pesquisa

A pesquisa foi organizada em sete etapas que englobam o período estudado. A primeira etapa consistiu na leitura de etnografias sobre a pesca realizadas por pesquisadores vinculados ao NUFEP. Iniciei o trabalho me aproximando da literatura que trata sobre a região de Itaipu. Os textos dos antropólogos Roberto Kant de Lima e Luciana Pereira (1997) serviram de base para o meu trabalho, assim como o livro de Elina Pessanha (2003), a monografia de Bruno Mibielli (2004) e a dissertação de Ronaldo Lobão (2000), também antropólogos. A segunda etapa da pesquisa foi o trabalho do campo. Tive a oportunidade de freqüentar as reuniões da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu9, que aconteciam quinzenalmente, na maioria das vezes na sede da Abanerj, um clube do local. Durantes as reuniões eu utilizava o caderno de campo para anotar tudo que poderia ser importante para entender os conflitos e interesses dos participantes. Nas primeiras reuniões foi formado um grupo de trabalho composto por diversas entidades e coordenado por um representante do IBAMA. Uma das decisões tomadas por este grupo foi realizar pequenas reuniões, chamadas reuniões de esclarecimento, em outras localidades, como Piratininga, Itaipuaçu, Jurujuba e outros. O grupo de trabalho foi dividido em subgrupos, nos quais o NUFEP10 estaria responsável por realizar o relatório sócio-econômico. As incursões a campo para a realização deste relatório começaram na praia de Piratininga, mas este não foi concluído por falta de verbas.

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Adiante comentarei a respeito da discussão sobre a Resex-mar. Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas, núcleo coordenado pelo professor Roberto Kant de Lima.

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A terceira etapa da pesquisa foi a ida à praia de Piratininga para participar das reuniões de esclarecimento aos pescadores e para a realização do relatório. Estas atividades foram realizadas geralmente durante a manhã. Para a realização do relatório sócio-econômico foi formado um grupo de estudantes de graduação, coordenado pelos antropólogos Fábio Reis Motta e Ronaldo Lobão. Participei desse grupo e durante as nossas idas ao campo utilizei o caderno de campo para as diversas anotações, além de realizar a primeira entrevista, utilizando o gravador, com o pescador Euclides, que tem mais de 50 anos de pesca artesanal em Itaipu e hoje trabalha consertando redes de pesca em Piratininga. A quarta etapa foi minha inserção na praia de Itaipu. Comecei a freqüentá-la em média uma vez por semana durante o horário da manhã com o objetivo de perceber, através de minha perspectiva o que eu até então conhecia através das leituras das etnografias do professor Kant, da Elina Pessanha e de Bruno Mibielli e também do que escutava nas reuniões do NUFEP e da Resex-mar. Assim, utilizava inicialmente apenas meu caderno de campo. Inclusive essas anotações começavam desde quando pegava o ônibus 38 (Centro-Itaipu), por volta das seis horas da manhã, até a minha volta pelo mesmo ônibus aproximadamente às onze horas da manhã. E, ao longo do tempo, fui me familiarizando com a linguagem da pesca e também com o ambiente, entendendo quem eram aquelas pessoas que trabalhavam na praia e suas diferentes funções. O fato de me apresentar como orientanda do professor Kant e colega do pesquisador Bruno Mibielli facilitou meu trabalho naquele momento, pois a maioria dos pescadores entendia, mesmo que superficialmente, o que eu estava fazendo ali. A quinta etapa da pesquisa se deu quando realizei um trabalho da disciplina de Antropologia Visual em Itaipu, ministrada pela professora Tânia Neiva. Neste trabalho o 13

objetivo era fazer uma etnografia apenas utilizando imagens, enquanto a escrita seria usada somente se fosse muito necessário. Assim fotografei o tradicional leilão que ocorre para a venda do peixe e para isso escolhi a companha do Seu Pedro e Robinho. Esta escolha se deu porque no momento em que estava com a máquina fotográfica foi essa companha que estava fazendo o arrasto de praia; assim, fotografei até o momento que desejava, o momento do leilão. Depois distribuí as fotos para esses pescadores e pude perceber a importância desse recurso, pois a partir disso a minha aproximação com o Seu Pedro se iniciou e durante muitas conversas combinei de entrevistá-lo utilizando o gravador. Na sexta etapa da pesquisa foram realizadas entrevistas com esse pescador utilizando o gravador e o caderno de campo. Ao mesmo tempo, foram realizadas leituras de textos, principalmente das disciplinas de história oral e da história oficial de Niterói, para dialogar com a Antropologia. A sétima e última etapa, define-se como um momento de conclusão, pois a partir dos materiais produzidos durantes as etapas anteriores, principalmente a penúltima, o objeto de pesquisa foi construído. Assim, comecei a ter maior contato com a comunidade e a perceber suas representações sobre tais mudanças e conflitos. O tempo reduzido destinado à concretização da pesquisa me fez optar por trabalhar apenas com uma família, para assim, aprofundar a pesquisa, além de dialogar com a disciplina de História Oral, que possui importantes métodos para auxilio deste tipo de trabalho, voltado para a história de vida e de família. Durante o período da bolsa de pesquisa participei de reuniões semanais que ocorrem no núcleo em que pesquisadores de diferentes níveis de graduação e formação trocam informações sobre suas pesquisas e ajudam a esclarecer diversos tipos de 14

questões. Estas são coordenadas pelo professor Roberto Kant de Lima. Além disso, as freqüentes visitas ao acervo do NUFEP, que possui um extenso material sobre o assunto e a possibilidade de como bolsista fazer empréstimos desses materiais e de ter acesso ao computador, contribuíram para um melhor desenvolvimento da pesquisa.

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2- “MODERNIDADE” e “TRADIÇÃO”

A título de esclarecimento a localização da praia de Itaipu é apresentada de modo mais detalhada por Roberto Kant de Lima11:

“Em sentido estrito, a praia se estende por aproximadamente 3,5 km, na direção geral leste-oeste, no litoral sudeste do Estado do Rio de Janeiro, tendo como coordenadas, segundo a Carta Náutica 1501 do Departamento de Hidrografia e Navegação do Ministério da Marinha, 22º53’14” de Latitude Sul e 43º22’48” de Longitude Oeste (...) A praia é limitada a leste por uma formação rochosa, a Ponta de Itaipu (Morro das Andorinhas) ao pé da qual se forma uma enseada, utilizada como abrigo de embarcações fora da barra da Baía de Guanabara. Para oeste, estende-se de forma semicircular até outra formação rochosa, a Ponta da Galheta (Pedra do Canto da Ponte), como se em continuação do Morro das Andorinhas, vêem-se três ilhas: Ilha da Menina (“das Pimentas” ou “do Filho” ou “da Filha” ou “das Meninas”, a Ilha do Pai (“Ilha do Meio”) e Ilha da Mãe ( “Ilha do Pai”). (KANT de Lima e Pereira, 1997:49)

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LIMA, Roberto Kant de e PEREIRA, Luciana F. Pescadores de Itaipu: Meio Ambiente, conflito e ritual no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 1997. pp. 49.

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2.1 – A inserção no campo

A minha inserção no campo, como referido anteriormente, se iniciou durante as idas às reuniões da Reserva Extrativista Marinha de Itaipu. Essas reuniões tinham como objetivo a tentativa de implementar a Reserva Extrativista Marinha em Itaipu – Resexmar, mas esse processo já tinha ocorrido por volta de 1990 e no ano de 2004 foi novamente solicitada ao IBAMA pelos pescadores de Itaipu. O pedido foi feito especificamente pela Associação Livre de Pescadores e Amigos de Itaipu - ALPAPI, que é representada principalmente pelo pescador Seu Chico. Este importante personagem de Itaipu foi presidente da Colônia de Pescadores – Z-7 (Itaipu) e teve grande participação na primeira tentativa da implementação da Reserva, ainda na sua gestão. A RESEX-MAR garantiria aos pescadores considerados tradicionais a prioridade na utilização da praia e do mar e, com isso não seria permitida a pesca de grandes embarcações no local, além de possibilitar que os próprios pescadores discutissem os melhores meios de utilização do espaço. Dessa forma, os principais interesses desta Unidade de Conservação são: a preservação do Meio Ambiente e das formas de pesca consideradas tradicionais. A observação do antropólogo Ronaldo Lobão esclarece algumas das especificidades dessa Unidade de Conservação:

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“É uma área de mar onde se concebeu um tipo especial de cidadania a um grupo de pescadores artesanais para que eles pudessem definir localmente regras para a apropriação deste espaço público especial, que é o mar, de acordo com o interesse que a sociedade envolvente tem tanto na preservação deste ambiente natural como neste grupo social”. (Lobão,2000)

Para melhor compreender a Praia de Itaipu e alguns dos seus inúmeros conflitos é importante conhecer seus principais atores. Um deles é o Seu Chico, que por muito tempo foi pescador e hoje continua morando na praia de Itaipu com parte de sua família e exercendo a função de mergulhador profissional. Pode-se dizer que ele é a representação política da praia de Itaipu e cuida das relações institucionais com outros segmentos da sociedade. Segundo a análise do professor Roberto Kant de Lima, podese constatar que: “Há uma hierarquização e uma verdadeira especialização interna das fontes de informação. Há especialistas em tradições (pescadores mais antigos), em ‘relações públicas’ em geral, há os que cuidam das relações institucionais com outros segmentos da sociedade, preservando inclusive a história “oficial” da comunidade e finalmente há os que se dedicam a outros tipos de pescaria”. (KANT, 1997; p 37).

Como referido anteriormente, a solicitação de retomar as discussões sobre a implementação da Reserva se deu principalmente devido aos esforços de Seu Chico, mas também teve o apoio da maioria dos pescadores artesanais, dos comerciantes locais, ONGs ambientalistas e diversas outras entidades.

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Assim, decidiu-se formar um grupo de trabalho que se divido em seis subgrupos: Secretaria Executiva, Delimitação de Pesca, Informação e Divulgação, Legislação, Levantamento Sócio-Econômico e Laudo Biológico. A secretaria executiva foi representada pelo IBAMA na pessoa de Walter Plácido, pela Associação de Moradores e Amigos de Itaipu – AMAITA, representada por Sylvia, advogada e moradora da região, e pela Associação Livre dos Pescadores e Amigos da Praia de Itaipu – ALPAPI, representada por Seu Chico. No entanto, é importante ressaltar que um dos primeiros impasses encontrados por tal empreendimento foi o posicionamento contrário dos atuais representantes da colônia Z7 (Itaipu), Otto e “Barbudo”. Sendo assim, as reuniões prosseguiam com um clima bastante tenso. Um dos principais motivos do impasse era a reivindicação de que o Governo Federal passasse a legitimar a Colônia de Pescadores de Itaipu – Z-7, como apenas mais um dos representantes dos pescadores de Itaipu, tanto de pequeno e médio, como de grande porte. Pois, de acordo com a determinação do Governo, a Colônia era a única legitimada a representá-los e, por isso recebia todos os recursos federais destinados aos pescadores. A disputa política entre Colônia e ALPAPI ocorre principalmente porque a Reserva acarretaria para Colônia a perda de seu poderio político, pois a partir das decisões tomadas pelo Conselho Consultivo, que seria composto por pescadores artesanais, diversas entidades civis e o IBAMA, os pescadores artesanais teriam prioridade na utilização deste espaço. Com isso, as grandes embarcações não poderiam mais pescar em toda a extensão demarcada, pois está destinada prioritariamente às atividades dos pescadores artesanais, que não podem se afastar da costa como aqueles.

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Dessa forma, o representante da Colônia de Pescadores Z-8, localizada em Jurujuba, que é composta por grandes embarcações e que utilizam a praia de Itaipu, Itacoatiara e Piratininga para pescarem iscas (peixes pequenos), também se colocou contra a Reserva. De acordo com sua afirmativa, ele não é contra a implementação da Reserva, mas se diz contrário à forma como está sendo conduzida. Os representantes da Colônia Z-7 (Itaipu) tentavam polemizar as reuniões colocando questões como desapropriação das casas próxima à praia, que segundo eles podiam correr esse risco, ou afirmando que a falta de fiscalização do IBAMA pode não modificar a atual situação. Esses representantes questionavam constantemente quais seriam os principais atores da Reserva, mas remetiam-se mais especificamente à participação de Seu Chico nesta discussão. A partir daí alguns questionamentos são suscitados. Principalmente quando se pensa no posicionamento dos representantes da Colônia Z-7 sobre a Reserva. Pois, se esta seria positiva para os pescadores artesanais de Itaipu, qual seria o motivo da oposição? Assim, essas atitudes nos fazem pensar em outros tipos de motivação, como interesses políticos em relação à Itaipu e até mesmo imobiliários, ligados à outras formas de exploração do local. Um outro exemplo, que gerava questionamentos sobre os seus reais interesse em participar desse processo era o representante do IBAMA/CNPT, que ressaltava constantemente sobre a degradação do órgão e que um dos motivos para este projeto estar em andamento é a sua presença. Dessa forma, observei que nestas reuniões a questão do pescador artesanal era utilizada por alguns para defenderem diversos interesses pessoais. Uma das demonstrações disso era a pouca freqüência dos pescadores nestas reuniões. Estes 20

desejavam ter mais informações sobre a Reserva e o que isto poderia afetar nas suas vidas mas, passaram a questionar, entre eles, os reais interesses da Reserva, principalmente pelo fato dos principais beneficiados estarem em menor quantidade em relação a todas as entidades e instituições presentes. Por outro lado, as reuniões de esclarecimento nas praias de Piratininga e de Itaipuaçu foram mais calmas e contaram com uma maior participação de pescadores. No caso de Itaipuaçu, esta inicialmente não faria parte da Reserva, mas como Seu Chico afirmou que eram pequenos como os pescadores de Itaipu, foi proposto um projeto de incluí-los. Assim em Itaipu, Piratininga e Itaipuaçu, a maioria dos pescadores artesanais se posicionou a favor da reserva, mas essas reuniões no momento ainda não haviam acontecido. As reuniões também não ocorreram nos locais, como Jurujuba e Ilha da Conceição, considerados como mais resistente. Assim, muitas discussões ainda estão por ocorrer sobre esta “polêmica” Reserva. Desde setembro de 2005 a discussão sobre a RESEX-MAR ITAIPU se encontra sem avanços significativos.

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2.2 – A Construção do Objeto

A idéia inicial da pesquisa era analisar as implicações da tentativa da implementação da Reserva Extrativista Marinha em Itaipu, pois estava freqüentando as reuniões e pensava que no campo teria abertura para continuar a desenvolver tais observações. No entanto, durante os trabalhos de campo na praia de Itaipu tive grande dificuldade de conversar com alguns pescadores sobre essa questão. Assim, percebi que, embora a maioria se declarasse a favor, não gostava de se posicionar. Segundo eles existia muita dúvida em relação aos reais interesses envolvidos, além de muitos demonstrarem estar desgastados com essas disputas entre Colônia (Otto e Barbudo) e ALPAPI (Seu Chico). O interessante foi perceber que nas representações desses pescadores sobre as discussões da Reserva, estas estão reduzidas a disputas pelo poder local. Essas idas à praia de Itaipu iniciaram-se em setembro de 2004. O meio de locomoção utilizado para chegar a tal destino era o ônibus 38 (Centro-Itaipu). Costumava aguarda-lo por volta das seis horas da manhã, e esse já estava lotado. O tempo de duração em média do bairro de Icaraí até Itaipu é de 30 a 45 minutos. Ao longo do trajeto buscava conversar com alguns passageiros, ou mesmo observa-las para melhor compreender esse ambiente. Assim, percebia que grande parte trabalhava em obras ou serviços domésticos nos bairros, Itaipu e Itacoatiara, enquanto, outra grande parte era composta de estudantes, principalmente do colégio Alcina Rodrigues e do Athaíde Parreiras, ambos públicos. No percurso, existem muitas lojas relacionadas a materiais de construção, artigos de jardim, utensílios domésticos, muitas de decoração, algumas relacionadas à 22

segurança privada, outras de ração de animais domésticos, alguns shoppings, muitas concessionárias, confirmando as reclamações que ouvia durante as reuniões da Resexmar sobre o grande processo de urbanização que a região vem sofrendo nos últimos anos. Além disso, percebia que quando o ônibus passava no Morro do Cantagalo, dependendo do horário, algumas pessoas pegavam carona até a praia de Itaipu. Depois, fui saber que eram pescadores, atravessadores ou ajudantes na puxada de rede, tais como Dona Maria José que há dez anos freqüenta a praia de Itaipu em média três vezes por semana, por volta de sete horas da manhã para garantir alguns peixes para o próprio consumo, ou mesmo o atravessador Biu, que está nessa profissão há quatro anos, mas afirma que há muitos anos freqüenta a praia e conhece quase todos os pescadores. Assim, começou ajudando a uma senhora que trabalha como atravessadora, Dona Lurdes, em Itaipu há muitos anos e depois colocou sua banca na praia. O pescador Seu Pedro também é morador do Morro do Cantagalo e pega o ônibus na sua primeira viagem, por volta de cinco horas da manhã, para iniciar a pescaria de arrastão com sua companha. Próximo ao ponto final do ônibus, durante esse horário da manhã, costuma ficar um rapaz ou uma senhora vendendo café da manhã para as pessoas que trabalham em Itaipu e que moram em outros locais, o que demonstra que muitos pescadores estão na mesma situação de Seu Pedro, por exemplo. Assim, muitos pescadores se autodenominavam como sendo de Itaipu, mas não moravam especificamente em Itaipu. Com isso, percebi que ser de Itaipu significa ter um sentimento de pertencimento ao grupo, compartilhar memórias, além de possuir na maioria das vezes relações de parentesco com determinado grupo. 23

Durante as minhas estadas na praia tive a oportunidade de conversar com poucas pessoas sobre a Reserva. Uma dessas foi com a esposa de um pescador de arrasto. Ela afirmou que considera boa a atual gestão da Colônia, pois recebe o cheque-cidadão no valor de cem reais por causa de dois filhos menores de idade, seu marido recebe o defeso durante certo período, seus filhos têm aulas de informática e ela pôde ir ao médico, que não ia há mais de dez anos. Disse também que se não fosse isso não daria para pagar os gastos com a família, pois a pescaria está muito fraca. Segundo ela, a atual gestão não ajudou diretamente a causa do pescador artesanal, mas mesmo assim está satisfeita, pois antes não existia nada desse tipo. Uma outra conversa foi com um pescador, que se define como sendo de rede de malha. Ele também concordava com a afirmação anterior e acreditava que a situação da Colônia tinha melhorado nesta gestão, mas ainda deveria existir maior assistência à causa do pescador, como auxílio para financiar a rede, por exemplo. Dessa forma, continuei freqüentando o campo, mas como não tive sucesso nas minhas investidas sobre o tema pretendido, optei por ouvir o que os pescadores queriam me contar. Nesse meio tempo, estava fazendo a disciplina de Antropologia Visual e decidi realizar o trabalho final da disciplina, que era um ensaio fotográfico, em Itaipu. Assim fui para a praia, com um pequeno diferencial, a máquina fotográfica entre meus habituais acessórios. A escolha pelo objeto das fotos se deu de maneira espontânea, pois fotografei a companha de Seu Pedro e Robinho que naquele momento estava fazendo o arrasto, e depois o leilão. Dessa forma, iniciei meu ensaio de etnografia visual buscando mostrar o que acontecia nesses leilões. Pois este é um momento importante, em que os 24

pescadores negociam a venda dos peixes considerados por eles de valor com os atravessadores, que possuem bancas em pontos fixos na praia para revenderem freqüentadores da praia. Este acontecimento foi extremamente importante para a construção do objeto da pesquisa, pois a partir da escolha de uma das cinco companhas 12 de pescaria de arrastão para a realização das fotos, tive a oportunidade de me aproximar de um grupo específico. A partir daí, muitas conversas informais ocorreram, assim como entrevistas gravadas. Entre os assuntos discutidos, a temática do ensaio foi privilegiada. Dessa forma, a partir disso percebi que o leilão ocorre sempre no centro da praia, depois da companha separar os peixes considerados de valor comercial e os destinados para as pessoas que ajudaram na puxada da rede, assim o mestre direciona-se para essa parte da praia, onde se localizam as bancas dos atravessadores. O mestre leva o tabuleiro com o peixe com a ajuda de algum companheiro e coloca-os na areia. Os atravessadores, banhistas, moradores, se aglomeram ao redor dos pescadores para verem os peixes e a própria negociação em si, que chama a atenção por toda a desenvoltura realizada pelos que dela participam. As caras e bocas, gestos e olhares fazem parte do espetáculo realizado todos os dias nas areias de Itaipu. No trecho abaixo reproduzo um fragmento da conversa sobre o leilão.

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Ver anexo.

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“O pescador acorda às 3 horas da manhã, começa a pescar, às vezes, você vai ver são 11:30 h e ele ainda está aqui ajeitando a pescaria dele. Já pensou ele ficar aqui com a canoa dessa cheia de peixe para tentar vender. O cansaço físico! E amanhã ele tem que ta aqui 3 horas da manhã de novo. Aí o que ele faz, ele bota tudo num leilão, a quantidade toda de peixe que ele tem. Porque ele vende e o trabalho dele termina ali. Cuidar da rede e vendendo o peixe, dependendo da quantidade de peixe ele fica o dia inteiro ali (...) Bota tudo num leilão para ver se aumenta o valor um pouco, pois o pescador sabe que o atravessador nunca vai querer dar o que ele quer. Aí ele pede um valor para que o atravessador chegue o valor que ele quer ou o mais próximo possível”.

Em Itaipu existem as bancas de atravessadores, que compram o pescado dos pescadores em lote e revendem por unidade para banhistas, turistas e moradores. Eles também possuem certa clientela pela região e às vezes lançam mão de aparelhos celulares para se comunicarem com seus clientes ou, quando a quantidade é grande, com os comerciantes do Mercado de Peixe, localizado no Centro da cidade, que vêm buscar de caminhão. Assim, as bancas estão dispostas do meio da praia em direção ao Morro das Andorinhas, mas a última banca fica próximo à casa do pescador Cambuci. De acordo com esta ordem, a primeira banca é a da Ercília e Neguinho, a segunda da dona Auxiliadora, a terceira da dona Lurdes, a quarta do Marcelo, a quinta do Biu, a penúltima do Abacate e a última do Zeca e do Ribamar13.

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O Ribamar possui dois empregos, trabalha de vigia em um supermercado próximo, no período noturno e quando sai de manhã por volta das 5:30 hs vai direto para praia de Itaipu ajudar o outro atravessador Zeca.

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Estas bancas são as que estão constantemente em Itaipu, mesmo no período de inverno, quando a pescaria está fraca. Mas, durante o verão, quando a condição de pesca é melhor, costumam aparecer mais pessoas para revenderem o peixe, assim como também aparecem outros pescadores, geralmente aqueles que pescam de linha e que deixam suas pequenas lanchas de alumínio nas areias da praia durante o ano. Existem também os atravessadores que não possuem bancas, mas que freqüentam a praia constantemente. Estes vendem o peixe fora de Itaipu e possuem bastante clientela, como o Seu Maucinho, o Seu Elias, o Zezinho e o Seu Beterraba. A venda de peixe para fora de Itaipu também é feita pelos atravessadores considerados fixos, como é o caso do atravessador Marcelo, que quando não consegue vender seus peixes na banca em Itaipu, vende na região próxima, chamada Jacaré, utilizando uma bicicleta. Ele afirma que consegue vender todos os peixes, pois já tem uma clientela antiga no local. As entrevistas utilizando o gravador, e as demais conversas ocorreram em frente ao barracão enquanto eles estavam consertando a rede. O barracão está localizado na beira da praia, ao lado do bar do Seu Dirlei14, além disso, tanto o bar, como o barracão pertencem à família de Robinho. Esse lugar foi escolhido para realização das entrevistas, pois no momento em que eles saíam para pescar eu ainda não tinha chegado e quando eles chegavam do mar, eles tinham que fazer o arrasto, separar peixe para ser vendido e para ser distribuído para os que ajudaram na puxada de rede,

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Seu Dirlei tem um barco de caiçara e pesca de rede de malha, e o deixa ancorado no pé do Morro das Andorinhas. Esse tipo de barco é um pouco menor que uma traineira e ficam ancorados nesse local quatro barcos do mesmo estilo, que pertencem espectivamente, a Seu Dirlei, a Augusto (que pesca por esporte e tem uma casa em frente a praia e outra a 2km, mas quem toma conta do seu barco é o pescador Bolão), o Barbudo e o Jairo, que pescam de rede alta.

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fazer o leilão, arrumar as cordas, entre outras coisas. Então passei a aproveitar esses momentos de reunião para ouvir as histórias que contavam. As “pescarias de arrasto” de Itaipu são composta pela canoa, pela rede de arrasto e pelos “companheiros”. Assim, de acordo com o relato de Seu Pedro podemos entender com a sua companha é dividida:

“O mestre (Robinho) fica na popa na frente do barco, controla a direção da canoa com o próprio remo, cada um fica com um remo (...) O mestre fica na popa de frente para os outros. Para o mestre levar a canoa certo. Ele que controla a direção da canoa. É o leme da canoa. Mas não é um leme de popa como de barco não, é como um remo menor, com o próprio remo que ele vai controlando. Na proa é o Valmir, o do meio sou eu, o contra-meio é o escurinho, Paulo César e dá ré não tem. O remo da ré é ele que larga o chumbo que é pra jogar dentro da água. Mas como não 15

tem, o contra-meio larga o chumbo ”.

Nesse momento, um antigo morador aproveita para caçoar do contra-mestre e o mestre da companha:

“Ele tem duas funções, mas só ganha por uma, e muito mal (risos). O Robinho vai controlando e com um chicote também! “ (Beto, pertencente a uma das principais famílias de pescadores de Itaipu)

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A rede sempre fica rasgada devido a pressão que a areia faz perto do chumbo. O chumbo é feito por eles com cimento e areia e é utilizado preso a rede para que a rede possa ir até o fundo do mar, funciona como um peso.

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Assim, os pescadores Seu Pedro e Robinho passaram a ser os principais interlocutores da pesquisa. A partir de seus relatos procurei compreender os aspectos comuns a todos os demais pescadores artesanais de Itaipu. Com isso, percebi que a nostalgia pelo “Itaipu de Antigamente’” era recorrente. Pois todos os demais pescadores que conversavam insistiam no mesmo ponto, a comparação de “antigamente” com os dias atuais da Praia de Itaipu. Dessa forma, o campo me levou a pesquisar as representações que esses pescadores possuíam sobre todas as mudanças ocorridas na localidade.

2.3 – As representações sobre a “Modernidade” e a “Tradição”

A praia de Itaipu na década de 1920 iniciava os primeiros contatos com o processo de urbanização, pois nesse período foi construída a estrada que faz a ligação do local até o Centro de Niterói. Nesse primeiro momento, a locomoção ainda era muito difícil, pois a mesma não possuía iluminação e nem asfalto. Além de o transporte coletivo ser feito somente por meio de um único ônibus aberto que circulava a uma vez de manhã e outra de noite16. Mas até então, de acordo com Kant de Lima (1997) somente a abertura de uma estrada não alterou as relações no povoado. O autor justifica:

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O transporte oferecido neste período somente se realizava nos dias não chuvosos, vide que as estradas eram precárias, pois ainda não possuíam asfalto. Segundo Seu Pedro o ônibus era chamado de “matasapo”.

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“Itaipu ainda se identifica como produtor de peixe, para um mercado até mesmo ampliado, pois, além das trocas regionais e complementares com os agricultores da área, pode intensificar seu mercado com a ‘cidade’, cada vez mais acessível”. (Lima,1997: 56)

Até esse período, a comunicação do povoado pesqueiro com a cidade do Rio de Janeiro ainda era muito deficiente, pois o meio que costumava se utilizar para chegar até a Praça XV era o barco a remo. Segundo Elina Pessanha (2003), os pescadores transportavam o pescado para a venda nas bancas lá sediadas, que monopolizavam a distribuição para o Rio de Janeiro e pertenciam geralmente a portugueses. Porém, este transporte marítimo foi gradativamente abandonado, pois a construção da estrada e do Mercado Municipal São Pedro facilitavam a redistribuição do produto. As modificações urbanas começam a ser mais intensas a partir da década de 1960, mas é a partir da década seguinte que a especulação imobiliária, proporcionada principalmente pela imobiliária Veplan Residência, passou a modificar intensamente o ambiente e a vida social dos pescadores artesanais da praia de Itaipu. O trabalho realizado por Lima (1977, pp.31) realizado na década de 1970, disserta sobre a especificidade dessa localidade em relação aos demais segmentos da sociedade. Pois, a área foi sendo urbanizada por esta companhia imobiliária, enquanto os pescadores já lutavam por conservar o exercício de suas atividades, tradicionais no local há muito tempo. De acordo com Lima, uma intensa interação ocorria entre os pescadores e os turistas, que incentivados pelo fácil acesso promovidos pela existência de linha de ônibus regular, lotavam a praia principalmente nos finais de semana.

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Uma das demonstrações do intenso processo de urbanização na localidade foi o fato de algumas décadas depois, a praia ser utilizada como ponto final por diversas vans e linhas de ônibus. Ao todo são seis linhas de ônibus que dão acesso a esta praia: Viação Pendotiba – 38 (Centro- Itaipu), 770 (Praça XV – Itaipu), 46 A (Várzea das Moças - Piratininga-Itaipu). E mais um ônibus da linha 537 D (São Gonçalo - Itaipu).17 Um forte contraste com a época que a locomoção de Itaipu até o Centro era realizada apenas por um ônibus aberto que passava uma vez de manhã e outra de noite e isso apenas quando não chovia. Essas modificações urbanas que se desenvolveram ao longo desses anos na região, promoveram inúmeras conseqüências. Na representação dos pescadores uma das grandes modificações foi o fim da pesca da tainha. A relevância desse acontecimento pode ser compreendida quando Lima (1977, pp.251-252) observa que o “inverno” se caracterizava pela concentração da captura de cardumes de tainha, em oposição à captura simultânea do verão, espacialmente dispersa. Nesse período, segundo o autor, o volume e o valor da produção alcançavam o ápice em relação ao ciclo anual. A pesca da tainha representava para esses pescadores uma possibilidade capturas previsíveis, enquanto o a pesca mais freqüente no “verão” chamada de lanço a sorte representava a captura. De acordo com o antropólogo, pode-se dizer que o “inverno” era a época em que se maximizava a hierarquia e se reafirmam os valores locais, e quando os ganhos extraordinários eram possíveis, processava-se o reforço da ideologia de que afinal a atividade pode ser economicamente compensadora. Além disso, segundo ele, essa produção de um 17

A linha 52 (largo da Batalha-Itaipu) da Viação Pendotiba acabou a alguns anos, segundo o despachante da Companhia.

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excedente “extraordinariamente previsto” implicava em uma euforia social, exacerbandose as trocas e dádivas, com as conseqüentes afirmações dos desequilíbrios da hierarquia social. Portanto, o autor conclui que a “pescaria da tainha” era o ponto focal do inverno, podendo ser compreendida como a síntese da vida comunitária de Itaipu, constituindo-se numa apropriação ritual do excedente para reafirmação da “estrutura” social. Com isso, ele afirma que criava-se um circuito de produção, repartição e consumo de bens e serviços simbólicos, que se constituía em uma esfera que ultrapassava o “econômico” para se localizar na exacerbação da vida social. A etnografia de Bruno Mibielli (2004, pp.46-50) realizada décadas depois privilegia essa discussão. Segundo ele, as épocas do ano em Itaipu se dividem em duas : o ‘inverno’ e o ‘verão’. Como afirmado anteriormente a pesca no ‘inverno’ sempre foi considerada melhor do que no ‘verão’, devido a tradicional pesca da tainha, mas a partir da década de 1990, a tainha passou a se tornar escassa devido a diversos motivos. De acordo com os pescadores, entre os principais motivos estão; a predatória pesca industrial, que dificulta a entrada do cardume na Enseada de Itaipu; como também, a pesca de ‘rede de espera’, que é colocada durante a noite e recolhida pela manhã, também é considerada como um empecilho para a entrada do cardume; assim como, a própria poluição, que aumenta em conseqüência da urbanização crescente e desordenada. Assim, Mibielli afirma que ocorreu uma inversão no marco temporal destes pescadores; pois o ‘inverno’ passa a ser considerado incerto enquanto o ‘verão’ torna-se mais favorável para a pesca. Por isso, esse acontecimento proporciona uma das principais modificações na vida desta comunidade pesqueira, pois para esses pescadores o fim da pesca da tainha é representado como o fim de um período de fartura e início de um momento de decadência. A exposição de Mibielli a este respeito 32

sintetiza bem a questão e demonstra qual foi a alternativa encontrada pela comunidade para esta importante modificação:

“Assim, podemos ver esta inversão de importância para a pesca ’de arrasto’ em Itaipu, onde de maneira definida, o ’verão’ passa a ser a época próspera quando as esperanças se renovam e o ‘inverno’ um período de lamentações e nostalgia que remonta uma época passada. Esta nostalgia por uma experiência passada vivida é uma evocação por uma tradição que também se torna um elemento identitário do grupo. Neste sentido, embora invertidas, estas épocas cíclicas continuam sendo entendidas um em oposição a outra”. (Mibielli, 2004, pp )

Segundo os pescadores, outro fato que teve diversas conseqüências em suas vidas foi a construção de um Canal, este que proporcionou a permanente ligação entre o mar e a lagoa de Itaipu. Esse acontecimento fez com que a antiga distância de 3,5 km de extensão da praia se desdobrasse em duas, ou seja, a antiga praia passou a compreender tanto a praia de Itaipu quanto a praia de Camboinhas e o Canal promove a ligação entre ambas. Em conseqüência disso, os pescadores que moravam na parte da praia que passou a pertencer a outro bairro que estava sendo loteado e urbanizado foram forçados a se retirar. Assim, todos que lá viviam receberam tal proposta, recebendo uma indenização considerada irrisória pela maioria deles. A partir do relato do Seu Pedro podemos perceber como esse acontecimento foi relevante para esses pescadores.

“As famílias de pescadores morava tudinho, depois veio a Veplan e nós fomos praticamente obrigados a sair dali. Obrigados! Nós ia sair a troco de nada e fui

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indenizado por dez mil cruzeiros. Você sabe que pobre quando vê dinheiro, o pobre fica todo bobo. Então fui morar no Cantagalo, outros foram morar no Maravista, outros foram morar mais longe. E praticamente a maioria tudo em Cantagalo. A Veplan panhou tudo, não queria pobre nenhum ali . Aí ela conseguiu tirar os pobres todos. Dali tinha vinte família de pescador. (...) Eu pensei foi o seguinte, de nunca mais voltar para Itaipu, sabe? Ficar longe de Itaipu, praia enjoa muito, sabe? Aí quer dizer compramos a casa ali em Cantagalo. Mas a saudade de Itaipu é muito! Isso aqui é nossa vida! Eu até falei para minha mulé, que antes de eu morrer eu vou comprar uma casa boa em Itaipu! Eu falei para minha mulé que eu quero morrer em Itaipu. Eu nasci em Itaipu, vou morrer em Itaipu!” (Seu Pedro - Pescador)

A dificuldade de acesso entre ambas as praias foi outra questão gerada pela construção do Canal, que era necessária principalmente para manter a atividade da pesca em determinada localidade. Além disso, outras dificuldades de acesso foram impostas em relação ao uso de tal espaço pelos pescadores, como demonstrado no relato deles:

“É o seguinte, na realidade o pescador vai ficando sufocado e daqui uns 10 anos, essa pescaria de beira de praia vai acabar. Não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, não pode chamar, não pode gritar, não pode entrar com carro lá para pegar uma embarcação, se cair vento, você já não pode. Se houver algum problema com você, o carro não pode entrar para pegar o seu pescado. Não pode não! Pergunta para os outros pescadores, lá pra baixo, se você tentar entrar eles chamam a polícia e tudo!” (Robinho, Pescador)

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Os pescadores que moravam no Canto esquerdo da praia, próximo ao Morro das Andorinhas, durante alguns anos ficaram mais protegidos dos interesses imobiliários, por ser uma área aforada pela colônia de pescadores. Neste local se localizam alguns barracões de pescarias, que abrigam os materiais de pesca como também servem de moradias para alguns, enquanto que ao longo desta parte da praia as antigas canoas ficam pelas areias. Mas, a atual constatação é a pouca quantidade de casas 18 pertencentes a pescadores demonstra a pressão exercida pela crescente valorização, pois grande parte deste espaço passou a ser compartilhado por muitas casas de classe média e por inúmeros bares, enquanto que muitos pescadores foram residir principalmente no Morro do Cantagalo, situado a aproximadamente 10 km da praia, ou Maravista, situado a 5 km. Assim, todas essas mudanças que repercutiram diretamente na vida desses pescadores fazem com que a maioria deles reproduza a nostalgia pelo “antigamente”. Este “antigamente” representa a época da fartura proporcionada pela pesca da tainha, ou quando o espaço praiano não era compartilhado por tantos outros atores que promoveram diversos conflitos explicitados pela necessidade de buscar implementar a Resex-mar. Com isso, os pescadores construíram um discurso que busca acima de tudo a legitimação do uso desse espaço coletivo por eles, baseando-se constantemente na longa permanência que estão no local praticando a mesma atividade. O relato de um pescador sobre a praia de Itaipu nos dias atuais é um bom exemplo para compreender esse questão:

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Ver anexo.

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“Nos dias de domingo ou em feriados, é impraticável até mesmo para quem nasceu, foi criado e trabalha todos os dias aqui. E que tantas linhas de ônibus e vans, a quantidade de pessoas é maior que a possível e mesmo assim os comerciantes cada vez colocam mais mesas e cadeiras, atrapalhando a pesca. Aqui não tem acordo e constantemente tem confusão”. (Arino – pescador)

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3- MEMÓRIA, IDENTIDADE SOCIAL E CONFLITO

Neste capítulo será privilegiada a discussão a cerca da memória e da identidade social, assim como os conflitos proporcionados nesse ambiente pelos diferentes atores. Primeiramente, realizarei algumas considerações sobre a memória, que de acordo com Michael Pollak19, pode ser constituída de dois elementos. O primeiro distingue-se pelo fato de ter como especificidade os acontecimentos vividos pessoalmente, enquanto que o segundo privilegiam também, os acontecimentos definidos como “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer sem necessariamente ter participado de fato. Assim, essa memória habita no seu imaginário de tal forma que é quase impossível discernir se realmente ocorreu ou não, mesmo quando, esses acontecimentos não se situam dentro do espaçotempo da referida pessoa ou de determinado grupo. Conforme as afirmações de Michael Pollak é perfeitamente possível acontecer um fenômeno de identificação com determinado passado por meio da socialização histórica ou política, de forma tão forte que se pode falar numa memória quase que herdada. Dessa forma, o autor explica que podem existir acontecimentos regionais que marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória pode ser transmitida ao longo de muitos anos com altíssimo grau de identificação. Além desses acontecimentos, Pollak fala dos lugares de memória, que estão ligados particularmente a uma lembrança que pode ser pessoal, mas que também não está necessariamente ancorada ao seu tempo cronológico. Assim alguns locais podem 19

POLLACK, Michael. “Memória e Identidade Social” In: Estudos Históricos. RJ, 1992, vol. 5, n.10.

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constituir uma grande importância para a memória do grupo e, por conseguinte, para a própria pessoa, muitas vezes influenciada pelo sentimento de pertencimento a um grupo específico. De acordo com o autor, a memória é um fenômeno construído social e individualmente e quando se trata de memória herdada, pode-se dizer também que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e a identidade. A partir da relação feita pelo autor entre memória e identidade social é importante ressaltar que quando ele fala de sentimento de identidade, fala no sentido da imagem que o entrevistado tem de si próprio, para ele e para os outros. Isto é, a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua representação, mas também, para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. Segundo o sociólogo, podemos dizer, portanto, que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de unidade, continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo na reconstrução de si. Com isso, sobre a memória coletiva repercute todo o trabalho de mudança e rearrumação necessário para dar a cada membro do grupo esses sentimentos - de unidade, coerência e de continuidade. Segundo as reflexões do autor, a construção da identidade é um fenômeno que se produz com os outros, em referência aos critérios de aceitabilidade que se faz por meio de uma negociação direta com diferentes indivíduos e grupos sociais. Dessa forma, a memória e a identidade podem ser negociadas, pelo fato de estarem sempre em processo de construção, sendo assim, não podem ser compreendidas como consolidadas por determinado grupo ou indivíduo. Além disso, Michael Pollak acrescenta 38

que a memória e a identidade passam a ser mais disputadas particularmente em momentos de conflitos sociais, principalmente quando estes opõem interesses políticos. Com o objetivo de enriquecer o debate, acrescentarei a análise de Ulpiano Bezerra20, pois este defende a necessidade de examinar as memórias como estratégias e formas de negociação, capazes de estabelecer equilíbrios entre memórias em conflito. Assim, Bezerra acrescenta que a memória caminhou por duas direções bem diversas. A primeira para ele é caracterizada como conservadora, pois busca transformar a memória em mercadoria, legitimada pelo “valor cultural”. Enquanto, a segunda pode ser considerada como uma resposta às alienações provocadas pela expropriação da memória e representa uma consciência política. Esta última direção demonstra que tem ocorrido recentemente cada vez mais uma mobilização da memória como bandeira política, assim como alimenta diversos movimentos sociais. Ulpiano concorda com a afirmação que a memória é construída socialmente e, partindo desse princípio afirma que ela é a formação da imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. De acordo com ele, não devemos confundila com a História, que pode ser considerada como a forma intelectual do conhecimento, ou uma operação cognitiva. Em vez disso, a memória deve ser percebida como uma operação ideológica, ou um processo psico-social de representação de si próprio, que tanto organiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que produz. Com isso, Ulpiano defende que a memória fornece

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MENEZES, Ulpiano Bezerra de.“A História, cativa da memória?: Para um mapeamento da memória no

campo das Ciências Sociais.” Em Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - IEB, USP/SP - número 34, 1992.

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quadros de orientação, ou de assimilação do novo, códigos para classificação e para o intercâmbio social. A partir dessa discussão, podemos pensar na questão da Praia de Itaipu e assim perceber que as memórias desse grupo de pescadores constituem uma forma de construir e legitimar sua identidade coletiva. Mas é extremamente relevante ressaltar que esse grupo possui também suas particularidades, pois não é possível defini-lo como homogêneo, pois cada um desses pescadores artesanais também possui interesses e representações diferentes sobre o lugar e sobre a atividade. A partir dessa ressalva, pode-se compreender melhor a realidade dessa localidade, que desde o início do processo de urbanização passou a ser palco de novas formas de conflito, devido aos diversos atores que começaram a utilizar o espaço da praia e do mar, com interesses bastante divergentes. A disputa pelo uso do espaço na praia de Itaipu tem na pesca de arrastão um de seus melhores exemplos, pois o início desta modalidade de pesca ocorre por volta das três a cinco horas da manhã, registrando seu término, geralmente, entre sete e dez horas. Quando os pescadores retornam com suas embarcações para a praia acabam dividindo o espaço na extensão de areia com as mesas e as cadeiras dos comerciantes. Durante os finais de semana e feriados, a situação fica mais tensa, pois a quantidade de mesas e cadeiras aumenta na mesma proporção que a quantidade de freqüentadores e, por isso, nestas ocasiões a possibilidade de surgir alguma querela também se torna maior. Os pescadores então, têm que corrigir o seu trajeto e desviar desses empecilhos para concluir a pesca de arrastão. Dificuldade semelhante também se apresenta no momento de reparar as redes e apetrechos de pesca em decorrência da falta de espaço

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na praia – local onde tradicionalmente os pescadores de Itaipu se reúnem para esse tipo de atividade. Os pescadores utilizam a praia em todos os momentos da pescaria de arrasto, assim segundo Kant de Lima (1997) a praia em oposição fundamental entre “mar” e “terra”; surge como um local público, liminar e, ao mesmo tempo, ponto de referência fundamental para o grupo. O autor argumenta:

“A expressão de que ‘praia é lugar de pescador’ assume, assim, conotações mais precisas do que as de simples evidências do exercício e da observação das condições do mar. Significa, mesmo, o próprio lugar em que a identidade social se define, extrapolando-se, é certo, para o mar e para a terra, mas na praia renovando-se indefinidamente porque sua liminaridade exige, permanentemente, a caracterização de sua fisionomia”. (Kant de Lima, 1997, p.132)

Percebe-se, então, que durante todos os dias da semana a praia de Itaipu é o palco da atividade pesqueira e da vida social de seus moradores, diferentemente da praia de Camboinhas – sua vizinha – onde os picos de freqüentação se localizam especialmente nos finais de semana e feriados. Sendo assim, a pesca artesanal promove uma dinâmica própria à Praia de Itaipu. Dessa forma, a praia de Itaipu é palco de um conflito, ora tácito, ora manifesto, entre pescadores de arrastão, de redes de malha, ou de grandes embarcações; moradores locais; atravessadores de pescado; banhistas, comerciantes, e outros atores. Por isso, Seu Pedro afirma: “Aqui tem muita desunião, é você e sua equipe”.

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As modificações ocorridas influenciam de diversas maneiras a organização da pesca artesanal, mas a modalidade de arrasto de praia permanece, ainda que se adaptando às novas configurações no uso do espaço praiano. Os pescadores em geral possuem uma representação negativa sobre as conseqüências dessa urbanização, mas reconhecem também que se beneficiaram com a melhora da infra-estrutura da região. O depoimento do antigo pescador, Seu Meméia, pode ilustrar essa posição:

“Deu melhoramento, veio melhorar numa coisa e piorar na outra, porque veio trazendo o bom e o ruim para cima da gente. Veio muito conforto aqui para Itaipu, as coisas melhoram muito com a estrada de chão, mas também tira a liberdade da gente aqui, você não fica mais sossegado como antigamente, porque ninguém conhece quase ninguém é tanta gente estranha no meio da gente aí. Tem que ficar de olho vivo aí, atento, né? É da vida, né! A gente tem que conviver com essas coisas que somos obrigados, né?” (Seu Meméia – pescador)

No entanto, tais modificações podem ser extremamente prejudiciais para a reprodução social do grupo, como afirma o professor Roberto Kant de Lima:

“Frise-se que a ‘reprodução’ não implica repetição pura e simples, mas pelo contrário, a adoção das modificações indispensáveis para assegurar

a

continuidade da vida social, vinculada a uma representação da identidade social. É indiscutível que tais modificações alterem a fisionomia dessa identidade, mas na medida em que forem os acontecimentos ‘digeridos pelo sistema’” (GODELIER, s.d.) “Como a utilização do náilon, a comercialização por via rodoviária e mesmo a convivência com a urbanização, a identidade permanece. Apenas no momento em

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que ela for politicamente ameaçada, pela excessiva ingerência no estilo de vida e na organização tradicional da produção, como parece ser o caso do progressivo desprestígio dos ‘patrões’ locais, o acontecimento deverá ‘digerir’ a estrutura. Tais ameaças, que se consubstanciam internamente na proliferação de pequenos produtores que utilizam ‘rede de espera’, podem levar ao colapso político que realmente altere a fisionomia do grupo, tornando-o incapaz de projetar no futuro seu passado idealmente representado”. (KANT de LIMA, 1997).

Essas diversas modificações urbanas na região influenciaram e continuam a influenciar diretamente a pesca artesanal, porém, a identidade de pescador artesanal de Itaipu permanece. Assim, estes pescadores buscam valorizar a “tradicionalidade” da atividade, enquanto todo o seu redor busca a “modernização”. Dessa forma, tais acontecimentos estão de acordo com a afirmação de Pierre Nora(1993, pp. 27) pois segundo ele a sociedade tende somente a reconhecer indivíduos iguais e idênticos.

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a descritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela vontade de uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua transformação e sua renovação. Valorizando, por natureza, mais o novo do que o antigo, mais o jovem que o velho, mais o futuro que o passado.”

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A pesca artesanal vem persistindo apesar de todas essas indicações, mesmo que muitos pescadores já não residam em Itaipu e mesmo que a quantidade de pescarias de “rede de espera” seja maior que a “pescaria de arrastão”. A atividade persiste, mas de forma bem diferente que o termo “pescaria tradicional” possa levar a entender. Pois, a atividade da pesca artesanal não está estanque no tempo, pelo contrário, está em constante construção ou reconstrução. Um exemplo que pode demonstrar essa adaptação à nova realidade por parte desses pescadores é a busca pela complementação da fonte de renda com outras atividades, para assim permanecer na atividade, assim como garantir o próprio sustento. Além disso, buscam fortalecer a identidade coletiva do grupo em detrimento da comparação com os demais que são classificados como “de fora”, pois não são considerados pertencentes ao local por tais pescadores, por não possuírem diversas características comuns ao grupo, como por exemplo; ter nascido e sido criado na praia de Itaipu, tendo a atividade pesqueira artesanal como principal meio de vida. O sentimento de pertencimento ao lugar onde seus antepassados viveram, onde suas histórias foram perpetuadas pelo parentesco, faz com que a praia de Itaipu faça parte de suas vidas. Seja pelo trabalho cotidiano – onde a pesca artesanal ainda ocupa uma posição central capaz de estabelecer e (re)afirmar consideráveis laços sociais – ou seja, pela convivência que proporciona a manutenção do contato entre parentes e amigos de infância. As pessoas que já não praticam a atividade da pesca, por conta da idade, por doença, ou mesmo por terem outra ocupação, ilustram bem esse quadro. Pois, continuam a freqüentar a praia, afirmando que não conseguem ficar muito tempo sem viver fora da atmosfera deste oficio que marcou, de geração a geração, a identidade social do povoado de Itaipu. 44

Algumas representações são compartilhadas pela maioria dos pescadores que se reconhecem como sendo de Itaipu, estas que podem demonstrar o significado dessa praia para todas essas pessoas que convivem com esse exercício há várias gerações. Como nesse relato expressado por um pescador:

“Eu digo a você na sinceridade, meu avô pescou. Mas se ele fosse vivo, ele teria na base de 190 anos. Aí, o pai do meu avô já pescava. Se ele fosse vivo, ele teria uns 200 anos, uns 200 e pouco. O meu bisavô pescava e o pai do meu tataravô pescava. E já tem uns 400 anos. É mais antigo! A família tem mais de 500 anos na pesca! Isso aqui é nossa vida!”

(Seu Pedro – pescador)

Dessa forma, Seu Pedro batendo a mão em sua canoa, afirma que: “O dia que acabar a pescaria de arrastão; acaba Itaipu!”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A titulo de conclusão, gostaria de destacar alguns pontos sobre este trabalho que me parecem importantes. Como ficou claro ao longo do texto, o trabalho apresentado é resultado de uma pesquisa realizada por mim, sob orientação da professora Márcia Motta, que pertence ao departamento de História, e pelo professor Roberto Kant de Lima. Assim, o diálogo entre ambas disciplinas foi facilitado, além de considerar que ter tido a oportunidade de integrar uma equipe de pesquisa, realizar trabalho de campo, freqüentar as discussões e debates promovidos nas reuniões do NUFEP, acrescentaram muito a minha recente formação. Essas experiências me ajudaram a entender melhor o trabalho do pesquisador social e me motivou a continuar buscando esse entendimento. Além disso, ao utilizar uma metodologia própria do campo da historia (a historia oral) e uma metodologia da antropologia (a observação participante, o trabalho de campo), pude me aproximar de dois campos do conhecimento que, não raro, tratam dos mesmos temas, mas utilizando perspectivas diferentes. Finalmente, o trabalho buscou resgatar as memórias destes pescadores artesanais construídas e/ ou reconstruídas a partir do tempo presente, já que é a partir da construção de uma “memória coletiva” que os pescadores artesanais de Itaipu reivindicam o uso desse espaço público, a praia e o mar, e com isso garantem a permanência de seu oficio bem como de sua reprodução social enquanto grupo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DE

ESTUDOS

PÓS-GRADUANDOS

EM

HISTÓRIA

E

DO

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, PUC/SP. número 10, 1993.

48

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49

Anexo:

Ensaio de Antropologia Visual

50

51

52

Tabela das famílias que permaneceram no local, e as respectivas funções exercidas por seus membros.

Famílias

Casa, galpão e

Função na praia e na pesca

quarto.

Casa do Eli

Tem um bar e um barco de traineira em Jurujuba.

Família Neizinho

do

Casa do Neizinho

Pesca baleeira, pai de Marquinho.

Casa do Marquinho

Tem uma canoa e pesca de rede alta.

Dona Dica é mãe de Maurinho, Lunga , Toti e Zeca. Ela tem um bar, enquanto Lunga pesca Família da Dona Casa Dica

da

Dona

Mauro, Lunga e Toti

Dica, com rede de malha, Mauro na pescaria de arrasto (de Lula), Toti pesca de rede malha e o Zeca mora no Cafubá e é atravessador em Itaipu.

Família Cambuci

do Casa

e

Cambuci

Galpão

de Irmão de Dona Dica, pesca de arrastão (mestre) e de rede de malha.

53

Casa de Seu Chico

Mergulhador da Petrobrás

Casa da Jorgete

Tem um bar na beira da praia

Casa de Nico

Mergulhador em Itaipu

Casa de Zé Grandão

Tem um barco de pesca de caiçara

Casa de Joel

Mergulhador da Petrobrás

Família21

do Seu Chico

Família do Seu Galpão da família de Seu Robinho pesca na pescaria de arrasto (mestre) Carlinho

Carlinho,

utilizado

pela e é sobrinho de Seu Carlinho, e Marcelo pesca

companha de Robinho e de rede de malha e é filho de Seu Carlinho. por Marcelo.

Casa de Dona Marlene

Dona Marlene é mãe de Lula e Marcos Paulo.22

21

A família de Seu Chico neste quadro não foi definida por função de pesca, pelo fato deste antigo morador que deu as informações, estar considerando os dados atuais. Hoje, ele e maior parte de sua família não pescam mais, apenas seu irmão Nico que trabalha com mergulhador em Itaipu.. Eles continuam morando lá e Seu Chico tem um bar na beira da praia, trabalha como mergulhador da Petrobrás, e tem grande participação nos assuntos políticos de Itaipu, principalmente a discussão sobre a Resex-mar.

54

Família do Seu Pedro

Pescaria de arrastão (mestre) e é bombeiro, Quarto de Lula

tem um quarto, mas mora em Itaipuaçu. Sobrinho de Pedro e filho de Zequinha. Dunga e Wilson são irmãos e sobrinhos de Seu Pedro e Zequinha, foram criados pelo Seu

Quarto de Dunga e Wilson Vavá. Dunga pesca na companha do Lula e Wilson é mestre e dono de companha. Eles dividem o quarto, mas moram no Cantagalo. É dono e mestre de uma pescaria de arrastão, Família de Dino

Quarto de Dino

tem um quarto, mas mora no Cafubá. Sua família é de Piratininga.

Casa Família

de

Ercília

de Neguinho

e Os dois são casados trabalham juntos como atravessadores

Ercília

Barbudo é presidente da colônia Z-7 e tem Família Barbudo

de Casa

de

Palambeta

Barbudo

e barco de caiçara, pesca de rede de malha, enquanto Palambeta é seu filho e pesca de linha.

22

Marcos Paulo pesca de arrastão na companha de Lula e é bombeiro, mora em Itaipuaçu.

55

Pescarias de arrasto – 200523

Dono da pescaria

Integrantes da Companha Mestre: Cambuci

Cambuci

Contramestre24: Manoel Lagarto

Remadores25: Manoel Lagarto, Abelardo, Valmir e Zuca

Ponta de cabo: Damião

Mestre: Robinho

Pedro e Robinho

Contramestre: Pedro

Remadores: Valmir, Pedro, Paulo César e Paulo

Ponta de cabo: José e Thiago

Mestre: Wilson (sobrinho de Pedro)

24 25

O pescador Roni ocupava a posição de contramestre mas saiu. Hoje trabalha arrastando camarão. O pescador Orlando saiu da pesca há aproximadamente seis meses, pois já tem idade avançada e ficou doente.

56

Wilson

Contramestre: Edinho (tio de Robinho)

Remadores: Jailton, Thiago e Nen (Sebastião)

Ponta de cabo: não tem

Mestre: Dino

Dino

Contramestre: Andinho (Anderson)

Remadores: Andinho ou Dino, Abelardo e Charles

Ponta de cabo: não tem

Mestre: Lula

Lula

Contramestre: Dunga

Remadores: Mauro, Jesué, Beto, Sergio, Bigo e Marcos Paulo Ponta de cabo: Baixinho (Altemir) e Guilherme.

57

Pescarias de Arrasto - 199826.

Dono da Pescaria

Integrantes da Companha

Mestre: Wilson Robinho e Dino Contramestre: Robinho (também rema)

Remadores: Fernando, Dino, Peca e Paulo César

Vigia: não há fixo

Ponta-de-Cabo: não há fixo

Mestre: Dunga Lula Contramestre: Rui (também rema)

Remadores: Dunguinha, Marcos e Rafael

Vigia: não há fixo

Pessanha, Elina Gonçalves da Fonte. Os companheiros: trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu – Niterói, Rio de Janeiro, EDUFF, 2003. pp134. 26

58

Ponta-de-Cabo: não há fixo

Mestre: Mário Zequinha Contramestre: Pedro

Remadores: Beto, Alexandre, Bruno, Biscoito, Júlio

Vigia: não há fixo

Ponta-de-Cabo: não há fixo

Mestre: Cambuci Cambuci Contramestre: Valmir

Remadores: Orlando, Jabu, Manoel Lagarto, Carlinhos

igia: não há fixo (Cambuci costuma atuar)

Ponta-de-Cabo: Damião

59

Mestre: Tinga Tinga Contramestre: Bogê (também rema)

Remadores:Vadeco, Dudu, Macarrão

Vigia: não há fixo

Ponta-de-cabo: não há fixo

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