Memória, narrativas e consumo: experiências e trajetórias de um trabalho de consultoria

June 4, 2017 | Autor: Simone Luci Pereira | Categoria: Consumo, Memoria
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PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012

Memória, narrativas e consumo: experiências e trajetórias de um trabalho de consultoria1 Simone Luci Pereira2 UNIRIO, ESPM Ana Paula de Campos3 UNICAMP, ESPM Resumo O artigo traz um debate sobre passado, memória e narrativas, construído a partir do trabalho de consultoria realizado pelas autoras para a concepção e montagem do Memorial do Consumo. Este acervo digital é composto por registros de memórias e narrativas sobre o universo do consumo e foi idealizado pelo PPGCOM-ESPM/SP. O enfoque do texto está numa discussão sobre museu, memorial e acervos diante da tendência contemporânea de celebração, espetacularização e nostalgia do passado e aborda a questão das narrativas e histórias de vida que compõem o eixo central deste acervo. Os conteúdos são tratados a partir de Nora, Lipovetsky, Sarlo, Ricoeur, etc., possibilitando uma reflexão sobre essa temática no mundo acadêmico e não acadêmico. A importância do diálogo entre universidade e mercado está contemplada pelas diretrizes adotadas para o acervo, a partir do trabalho dessa consultoria. Inicialmente orientado em duas frentes (uma conceitual e outra operacional) que se revelaram intimamente relacionadas, a consultoria foi adquirindo especificidades compatíveis com a noção de curadoria, atividade que se faz necessária para a gestão desde e de qualquer outro acervo.

Palavras-chave: memória; narrativa; consumo; curadoria Este texto narra a trajetória do trabalho de consultoria que vem sendo realizado pelas autoras para a concepção e montagem do Memorial do Consumo, uma proposta do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo (PPGCOM) vinculado à ESPM/SP. Trata-se de um acervo idealizado pelos professores do PPGCOM, tendo como diretriz conceitual a abordagem do programa na investigação das questões relacionadas à temática do consumo, com ênfase na interface comunicação-consumo, orientação que serviu de bússola para o desenvolvimento do trabalho de consultoria.

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Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Memória, do 2º Encontro de GTs Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012. 2 Pós-Doutoranda mo PPG Música da UNIRIO (Bolsista PD Sênior da FAPERJ). Doutora em Antropologia e Mestre em História (PUC-SP). Pesquisadora do MusiMid (Centro de Estudos em Música e Mídia), da ECA-USP. Pesquisadora associada e Consultora do PPGCOM-ESPM. [email protected]. 3 Doutora em Artes (IA-UNICAMP) e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura (MACKENZIE). Docente na Universidade Anhembi-Morumbi. Pesquisadora associada do IA- Unicamp e Consultora do PPGCOM-ESPM. [email protected].

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Em linhas gerais, o Memorial do Consumo é um acervo digital sui generis e em constante atualização, composto por registros de memórias e narrativas sobre o universo do consumo, suas práticas, imaginários e materialidades. Define-se como um museu virtual voltado ao mapeamento, exploração e análise de narrativas visuais, textuais e sonoras. O projeto vem sendo desenvolvido desde agosto de 2011 pela consultoria das autoras, com a colaboração de bolsistas e sob a supervisão geral da coordenadora do PPGCOM, Profa. Dra. Rose Melo Rocha. Sobre as autoras e consultoras do projeto, uma é historiadora, especialista em tratar das questões da memória e a outra é designer, com larga experiência em montagem/organização de acervos. Estas duas formações e experiências se aliaram de maneira produtiva e fecunda na realização deste trabalho. Ambas possuem vínculos com as práticas acadêmicas, o que gerou questões pontuais no desenvolvimento do projeto, bem como debates produtivos engendrados pelas diferenças de trajetória. O que se observou ao longo deste processo é que o trabalho de consultoria, que se deu inicialmente em duas frentes - uma mais conceitual e outra mais operacional – se revelou por fim numa noção de curadoria, uma vez que estes aspectos demonstraram-se intimamente entrelaçados. Entre os desafios que ainda evocam permanente debate, estão a adaptação/diálogo/embates entre a discussão acadêmica e o discurso e interesses do mercado, que também está atento ao imaginário social contemporâneo de valorização do passado. Partimos dos percursos da atividade de consultoria em suas diferentes etapas: a compreensão do cenário do PPGCOM com sua historia, especificidade no estudo do consumo e linhas de pesquisa; a reflexão sobre os conceitos de museu, memorial e acervos na era digital tanto em seu aspecto conceitual, como também numa investigação do cenário existente na rede atualmente; a delimitação de parâmetros estruturadores da proposta do Memorial do Consumo; o desenvolvimento dos processos para a implantação da proposta, com produção de conteúdos piloto e acompanhamento da construção do website. Os aspectos mais descritivos desta trajetória foram apresentados em outro artigo (Rocha et al, 2012). Desenvolveremos aqui uma reflexão que tem acompanhado todo o trabalho e nos inquieta continuamente: a discussão sobre passado, memória e narrativas, os usos e apropriações que o mundo de fora dos muros acadêmicos tem feito do tema, o diálogo que se faz necessário entre a universidade e o mercado e o papel da consultoria/curadoria diante desse cenário. 2

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A rapidez e o processo de globalização/ mundialização características da atualidade, impelem a viver em um mundo que parece se tornar um só, comprimido temporal e espacialmente, onde o efêmero e o incessantemente novo imperam, a duração de um fato histórico tem a mesma duração de uma notícia e a história torna-se eternamente contemporânea. É esta a “aceleração da história” sugerida por Pierre Nora (1978 e 1993), em que o tempo de lembrar se dilui, o passado se perde em favor do presente, ameaçando os referenciais, seus traços e seus vestígios. Não por acaso, o final do século XIX e início do XX, foi o momento em que vários autores, na filosofia, literatura, sociologia, voltaram-se para essa questão. Um momento em que a industrialização e outras características da modernidade pareciam evidenciar uma aceleração dos tempos, uma sensação de iminente perda ou atrofia da “experiência”, no sentido posto por Benjamin (1985), como sendo matéria da tradição, da inscrição das narrativas e dos fatos na própria experiência individual, no compartilhar, enfim, em que conseguimos apenas “meras vivências”. Benjamin e também Zumthor (1997) apontam para a época anterior à modernidade, como sendo um tempo em que narrativa poética e memória caminhavam juntas, tratando da mesma matéria: a tradição. A narrativa acontecia espontaneamente, a memória não era perseguida pela atenção, esforço e racionalidade, como na modernidade, pois a experiência, integrada à tradição e à memória, afloravam naturalmente. No turbilhão da modernidade, a busca pela memória torna-se indispensável – como uma tentativa de reconstrução da própria experiência – encontrar a figura do narrador, aquele que ao contar experiências as integra em sua própria vida, imprimindo sua marca, sem isenção ou exatidão, mas atualizando a tradição na modernidade, operando a sua restauração, valendo-se de sua memória. Importante trazer esta discussão para uma época atual, verificando como autores mais contemporâneos vem pensando sobre estas questões. Pierre Nora, em um texto já clássico dos anos 1980, afirma que na atualidade há um interesse cada vez maior pela busca do passado demonstrado por uma preocupação com o esquecimento. Daí a crescente obsessão pela criação de “lugares da memória” (1993), num contexto em que a aceleração da história parece não permitir mais o tempo de lembrar, sendo preciso criar espaços, instituições que concentrem, guardem e celebrem o passado. Fredrik Jameson (1996), observando há duas décadas a pós-modernidade como lógica cultural do capitalismo tardio, salientava o quanto adentrávamos numa era de imitação de estilos mortos, uma produção de volta ao passado com máscaras estocadas num museu imaginário de uma 3

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cultura global. Aludia à idéia de simulacro (cópia idêntica de algo que jamais existiu) do tempo histórico, onde o próprio passado é modificado não numa busca da ressurreição de vozes apagadas ou num retroceder para reorientar o futuro, mas sim para a formulação de uma vasta coleção de imagens ou simulacros fotográficos, onde o passado seria apenas um conjunto de espetáculos empoeirados. Daí viria, segundo Jameson, a moda de filmes de nostalgia (entre outras obras artísticas), pastiches de um passado estereotípico abordados por conotações estilísticas da imagem. Estes seriam sintomas do desaparecimento do referente histórico, pois não podemos mais representar nosso passado, mas apenas as nossas idéias e estereótipos sobre ele, o que se mostra como algo típico da lógica do pós-moderno, que é em si mesma, a marca e o sintoma de seu dilema. Gilles Lipovetsky em sua já bastante conhecida idéia de hipermodernidade (2004), argumenta que para além da pós-modernidade (época de transição), adentramos nos últimos vinte anos nos tempos hipermodernos, onde assistimos a um revivescimento do passado, consubstanciado num frenesi patrimonial e comemorativo que demonstra que a hipermodernidade não é estruturada numa idéia de presente absoluto (como foi a pós-modernidade, segundo ele), mas por um presente paradoxal que não pára de querer exumar o passado. Esta nova valorização e celebração do antigo nos tempos hipermodernos se faz acompanhar de excrescência, saturação e alargamento infinito das fronteiras da memória para uma hipermemória, numa modernização levada ao extremo, onde se aliam interesses financeiros, mercadológicos, midiáticos, turísticos, materializando uma indústria da memória, do passado e do patrimônio histórico que elaboram produtos para o consumo cultural e material. Esta indústria do patrimônio histórico e do passado, como observa Gilles Lipovetsky, ganha espaço e cada vez maior valor e distinção nos tempos hipermodernos, transformando a memória e o vivido em entretenimento e espetáculo e onde a expansão mercantil e o consumo invadem até este terreno do mnemônico e do pretérito não como algo estruturante para o presente, mas renovado e reciclado ao gosto do atual e hipermoderno. Beatriz Sarlo (2007) acrescenta ainda mais elementos a esta discussão, indicando que as operações com a história entraram no mercado simbólico do capitalismo tardio com grande eficiência, consubstanciada numa certa “mania preservacionista”. As últimas décadas, segundo a autora, foram marcadas por um processo intenso de “museificação, da heritage, do passadoespetáculo, dos theme-parks históricos (...) do surpreendente renascer do romance histórico, dos best-sellers e filmes que visitam desde Tróia até o século XIX, da reciclagem de estilos” (p.11). Mais ainda, Sarlo prossegue no argumento central de seu livro, articulando esta “cultura da 4

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memória” com o que ela chama de “guinada subjetiva”, ou seja, este processo verificado nas últimas décadas (dentro e fora da Academia) de valorização da experiência da rememoração em primeira pessoa, a importância e a credibilidade inéditas dadas aos relatos pessoais, subjetivos, testemunhais como ícone de verdade, ou pelo menos, como recurso mais importante para a reconstrução do passado. Diante deste cenário, atentas a este debate crítico e cientes da historicidade da própria idéia de museu, memória e preservação, bem como da crítica ao elogio indiscriminado das narrativas testemunhais, a criação de um Memorial do Consumo vinculado a um Programa de Pós-Graduação - cujo acervo central se compõe de depoimentos - demanda a compreensão de seu papel na busca pela efetivação de um passado conservado, atuante e atualizado no tempo presente. Distingue-se assim de um sentido cristalizador ou espetacular dos fenômenos abordados, de uma celebração vazia que se esgota em si mesma, como evidenciado pelos autores citados. Por isso é que para a concepção da filosofia do Memorial e seu acervo, mobilizamos outras perspectivas de modo a garantir que, ao revisitar o passado, os propósitos não fossem orientados para um arquivismo gratuito, por um amontoado de conteúdos dispersos e sem filtros que lhe confiram sentido. Na perspectiva de resgate do passado de maneira crítica o pressuposto que adotamos foi de que a relação entre presente e passado é dialógica, possui a “aura” de um encontro (Benjamin, 1985), no qual um resgate de outros tempos só adquire sentido na medida em que possa ser restaurado na atualidade, havendo uma recognoscibilidade entre ambos. Este encontro pressupõe a idéia de um tempo que explode com o continum da História (diferente da idéia de série encadeada de fatos da história oficial), contendo ruptura e descontinuidade. Assim como Mnemosyne – a deusa grega da reminiscência - era também a deusa representante da poesia épica, pode-se argumentar que o ofício do pesquisador que lida com a memória e o passado está ligado ao exercício de uma narrativa, de uma poética, capaz de suscitar outras e sempre novas leituras, sem espaços e considerações fixas, fechadas e explicativas. Uma poética presente na origem da própria História, com seu “pai-fundador”, Heródoto, produtora de uma textualidade em que as fronteiras entre história, memória, narrativa, poesia épica pareciam tênues ou até inexistentes (Gagnebin, 1992). No próprio campo da História, já há algum tempo vem se discutindo o quanto a construção de fatos está enredado numa teia que encobre diferenças e visões heterogêneas, construindo aquilo que Vesentini (1982) chamou de “a teia do fato”. Também Edgar de Decca afirma que “os fios da memória histórica são muitas vezes quase invisíveis, uma vez que é próprio dessa memória apagar 5

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os rastros de sua própria constituição” (1994, 18). Desse modo, na busca por concepções que não apenas reafirmem mitos e dogmas sobre o que passou, tenta-se um trabalho de desconstrução destas narrativas caucadas muitas vezes em visões hegemônicas4 que, embora se possa argumentar que não são únicas, ainda assim têm força. E mais, retomando Pierre Nora (2009) em texto recente, temos que esta emergência da memória experimentada na atualidade se deve a dois fatores: a chamada “aceleração da história” já referida e outro aspecto, interligado ao primeiro, que é a “democratização da história”, ou seja, um poderoso movimento de afirmação, construção de identidade de grupos chamados minoritários que não podiam aparecer na História oficial, mas que pela via da memória, tiveram suas trajetórias resgatadas e valorizadas, trazendo o paradoxo de fazer com que a memória lembre o que a história insista em apagar. Ora, neste sentido temos a importância, força e valor dos relatos memoriais, na medida em que desconstroem tanto a hegemonia da história oficial e profissional quanto a idéia de patrimonialização que está na base da noção de museus, tantas vezes representante das posições vitoriosas. Embora saibamos que esta diferença entre memória e história não deva se transformar num confronto polarizador em termos absolutos, promovendo certa tirania da memória (como plural, verdadeira, popular, espontânea, genuína) sobre a história (vista como apenas elitista, deformadora dos fatos, parcial), salientamos sim a importância da memória para trazer à tona trajetórias, experiências e narrativas que são muitas vezes encobertas por sentidos unívocos, obscurecendo as divergências e heterogeneidades que a noção de história deve conter. Outro alerta que os críticos da “cultura da memória” fazem é sobre a possibilidade – advinda e realçada pelas mídias – do aumento da capacidade de armazenar, preservar e manipular informações do passado numa mera pilhagem irresponsável e pouco crítica (Pio, 2006). Ainda que o Memorial do Consumo seja um acervo virtual interativo, o que lhe confere enorme potencial de acumulo de dados, asseveramos que seus propósitos não se definem por um interesse de mero ajuntamento arquivístico de informações variadas e desorganizadas sobre o consumo. Em sua construção nossa preocupação maior tem sido garantir sua vocação para recortar, refletir e construir um sentido para o acervo, configurando-lhe uma narrativa específica e direcionadora, 4

Note-se aqui, a utilização do termo hegemonia, conceito que comporta a idéia de relação, num jogo de forças em que nada é definitivo e no qual as posições encontram-se em permanente dinâmica e interpretações e outras estão a todo momento aparecendo e disputando espaços (Gramsci, 1978).

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consubstanciando um memorial que tem princípios de seleção, filtragem, armazenamento de conteúdos e fundamentalmente, uma visão crítica sobre o passado e o presente, diferenciando-lhe de um arquivo. A concepção desta narrativa para o memorial é que orientou a definição de seus núcleos de conteúdo, a saber, os depoimentos, as materialidades e as reflexões advindas destes. Como sugere Heloisa Dallari (2011), a conexão entre o espaço museal (que atesta reconhecimento aos objetos) e a internet, como meio de exposição de impacto midiático, reformula as formas de interação entre patrimônio e sociedade, que não deve se resumir ao espetáculo da contemplação, mas por uma complexa lógica dos usos por parte dos receptores. Assim, a interatividade proposta no Memorial do Consumo permite novas construções de sentido (Gouveia e Dodebei, 2007), pressupondo participação e intervenção por parte do usuário, sendo estimulado a contribuir com a construção do acervo, deixando seu depoimento sobre consumo, enviando arquivos audiovisuais, sonoros ou imagéticos para a o acervo de materialidades ligadas ao consumo ou ainda podendo criar sua própria área dentro do site, selecionando seu próprio acervo de depoimentos, imagens, textos, etc. A emergência de uma certa “cultura da memória” pode ter seus deslizes, exageros, acriticismos, interesses que resvalam para o puramente mercadológico, mas traz à tona a questão da pluralidade e diversidade de vozes, narrativas, uma democratização das formas e das possibilidades de contar e dar sentido ao passado, aos grupos e suas identidades. As tecnologias digitais e a interatividade podem contribuir com a formação e difusão de visões mais ecléticas em que podem ter lugar o cotidiano vivido, as experiência contemporâneas ligadas ao consumo e às mídias, desviando-se de uma noção monumentalista do passado discutida por LeGoff (1996). Na elaboração de um acervo que se baseia fundamentalmente em memórias, não tomamos o discurso memorialístico de maneira acrítica ou como detentor de uma pureza, autenticidade inquestionáveis. Isto quer dizer que as memórias não prescindem da interpretação crítica do pesquisador, pois não se toma estes discursos produzidos na atualidade como a verdade dos fatos ou a verdadeira significação sobre outros tempos. É necessário ter como pressuposto que, muitas vezes, a memória pode muito mais encobrir sentidos do que desvelá-los, uma vez que o tempo, a tradição e as leituras hegemônicas sobre alguns temas e fatos podem permear a construção memorialística dos depoentes. Isso não faz com que a memória seja uma fonte menor, ou menos confiável. Neste trabalho há sempre a possibilidade da ruptura, de surgimento de ecos do passado que não correspondem a 7

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uma noção de continuidade e repetição. Os esquecimentos, as reticências, silêncios e não-ditos podem ser levados em consideração e usados como motivo para reflexão. Para compreender estes aspectos, é necessária uma interpretação das entrelinhas, dos pormenores, dos detalhes, não se deixando envolver pela narrativa como se ela trouxesse a verdadeira noção sobre os fatos ocorridos. Nas entrelinhas das narrativas surgem rupturas, elementos não programados, frutos da memória involuntária, em que se podem perceber identidades, gostos, estilos de vida, experiências que muitas vezes não podem aparecer por força de um discurso hegemônico sobre o passado. O que assumimos é que o discurso memorialístico é lembrança e esquecimento, contendo aquilo que o memorioso julga importante ser registrado (Montenegro, 1994), num jogo conflituoso que tem por trás a trajetória que se quer enfatizar e a imagem que se quer salientar no presente. Na elaboração de uma metodologia no trabalho com a memória, o esquecimento é levado em conta como algo que a integra, tanto quanto a lembrança. Como nos sugere Pollak (1989), esquecer é a ruptura, a lacuna, o vazio que pode ser uma defesa, uma vontade. De suas incongruências novas interpretações e possibilidades de releitura são geradas. Nestas narrativas estão presentes os esquecimentos, os ocos, os vazios requerendo um olhar apurado do pesquisador, exigindo seu esforço interpretativo (Pereira, 2004). Além do mais, no discurso memorialístico temos os elementos voluntários e os involuntários. Voluntários são a busca consciente pela lembrança e por motivações do presente, o qual, estando empobrecido, necessita dos tempos pretéritos para obter respostas num passado que nunca aparece em si mesmo, mas é seqüenciado, linear, causal. Os involuntários são frutos do imponderável, sendo fragmentados, descontínuos, advindos de uma memória afetiva, sonora, onde sabores, cheiros, sons, sensações táteis têm papel preponderante no processo. Emergem em flashs, instantâneos que muitas vezes não se sabe a que se articulam e vinculam, onde se situam, sendo a incerteza seu indício maior. No entanto, não se deve encarar a memória voluntária e involuntária como separadas; ao contrário elas estão articuladas. No rememorar involuntário aparecem cacos do passado que dão conta da experiência na sua origem, mas para que isso ocorra é preciso o esforço consciente do presente, a memória voluntária ajudando a atribuir sentidos a este tempo redescoberto. Há que se atentar para as especificidades das “histórias de vida”, pois ao rememorar a sua trajetória, o depoente se esforça na construção de sua própria identidade, num resultado de apropriação simbólica do real, contando suas experiências, emitindo suas opiniões. Dando sentido 8

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aos gestos e fatos, o memorioso se torna sujeito de seus próprios atos, percebendo seu papel singular na totalidade social. Por serem dotados de força narrativa, apresentam aspectos da realidade vivida importantes para o pesquisador, o que os torna elementos de uma riqueza incomparável (Pereira, 2004). Paul Ricoeur, em uma de suas mais substantivas obras, Tempo e narrativa (1985), faz a ponte entre os estudos sobre linguagem e estudos sobre a ação buscando compreender o homem agindo no mundo e avaliando eticamente suas ações a partir da palavra e das ações. Em outras palavras, Ricoeur busca a elucidação da experiência humana através das mediações da linguagem e dos símbolos. Daí nasce a idéia de identidade narrativa, um aprofundamento na compreensão da noção de sujeito, que estava tão desvalorizado pelo pensamento estruturalista. “Sem o auxílio da narração”, diz Ricoeur, “o problema da identidade pessoal está, de fato, fadado a uma antinomia sem solução” (p. 315).

As noções de narrativa, tempo e memória advindas das discussões

hermenêuticas de Paul Ricoeur se mostram como importantes contribuições para a interpretação das narrativas de si elaboradas pelos sujeitos que narram suas experiências de consumo. Segundo o filósofo, o tempo só se torna humano por meio da narrativa, permitindo a construção da memória (no seu jogo de lembranças e esquecimentos, aspectos voluntários e involuntários) e das identidades, dando sentido às trajetórias de vida dos sujeitos. A discussão sobre o caráter paradoxal da memória, bem como as especificidades de sua abordagem para a investigação científica e produção de novas interpretações são de interesse do Memorial do Consumo na medida em que um de seus núcleos de conteúdo se alimentará de reflexões, ensaios, leituras e releituras advindas do trabalho de pesquisadores a partir dos depoimentos e materialidades que constituem seu acervo. A elaboração desses conteúdos se dará a partir da expertise e a prática dos pesquisadores, o que distingue o Memorial do Consumo de acervos e de visitas ao passado de caráter não acadêmico. Para Sarlo (2007) as formas não-acadêmicas de preservação, valorização e reconstituição do passado acompanham as demandas do excesso contemporâneo por informação, buscando sínteses, sistemas explicativos – em geral simplistas – grandes reconstituições teleológicas, lineares e globais de fatos, personagens e objetos, com base em relações de causa e efeito, sensíveis às estratégias com que o presente torna funcional a investida no passado. Neste contexto, o antigo se apresenta como forma de legitimação, considerado sempre melhor (ao menos nos discursos), possuidor de “uma história” e por isso, mais verdadeiro, legítimo, autêntico, revestido de um novo fetichismo. 9

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No ambiente empresarial e nas lógicas do mercado são comuns os discursos que enfatizam a antiguidade ou tradição de uma marca ou empresa, como num atestado de garantia, nobreza, legitimidade. Como sugere Lipovetsky, verificamos não mais a destruição do passado, mas sim a sua reintegração, sua reformulação no quadro das lógicas modernas do mercado, do consumo e da individualidade (2004, 57), o que aparece nas modas retrô, vintage, que despertam a nostalgia. No trabalho de consultoria de um memorial voltado para o consumo, estes embates ficam ainda mais complexos diante dos enfrentamentos entre a preocupação acadêmica no trabalho com as reconstruções críticas do passado evocadas pela memória e interesses mais mercadológicos que lidam com esta mesma matéria-prima. Estas fronteiras, muitas vezes tênues, estreitas, difusas, têm exigido desde o início até hoje, um repensar constante dos parâmetros que dirigem o trabalho de concepção, montagem, inserção, manutenção do acervo e efetivação de parcerias do Memorial do Consumo, numa preocupação que atravessa questões éticas, políticas, estéticas. Diante da multiplicidade de informações disponibilizadas pelas tecnologias digitais na atualidade, coloca-se como necessidade socialmente relevante a seleção, a filtragem, a organização e a reflexão sobre conteúdos com enfoque específico, ainda mais por se tratar de museu/memorial virtual e interativo, em que lidamos com objetos imateriais, rarefeitos, de forma colaborativa e compartilhada pelos usuários, em algo que Sousa (s/d) chama de curadoria conceitual de substâncias imateriais, trabalho que requer, para além do conhecimento técnico, uma expertise conceitual e teórica. Por isso ressaltamos ainda o quanto nosso trabalho não se esgota no lançamento do site, mas transforma-se num trabalho de curadoria que estará em constante construção e atualização. A atual discussão sobre curadoria em museus ou memoriais têm enfocado o seu aspecto de mediação entre público, artistas (no caso dos museus de artes), autores e instituição. Maria Cristina Bruno (2008) elaborou uma análise do percurso conceitual do termo curadoria, focando seus “diferentes tempos históricos, distintos campos de conhecimento e múltiplos usos” (p.15). Segundo ela, a história dos museus testemunha, pelo menos há quatro séculos, o surgimento das atividades de curadoria em torno das ações de seleção, estudo, salvaguarda e comunicação das coleções e dos acervos. De partida, já temos uma primeira noção do que significaria o trabalho de curadoria em museus ou memoriais, sem esquecer que neste processo estão presentes ainda a observação, coleta e tratamento que, ao mesmo tempo, implicam em procedimentos de controle, organização e administração. A autora salienta o quanto a prática curatorial deve estar impregnada de uma 10

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“lucidez do exercício do olhar, capaz de selecionar, compor, articular e elaborar discursos expositivos, possibilitando a reversibilidade pública daquilo que foi visto e percebido” (p.22). Ao longo da trajetória do trabalho desenvolvido para o Memorial do Consumo, é possível observar o quanto investimos na definição de seus contornos conceituais, afinando-os aos interesses do PPGCOM-ESPM e articulando-os a aspectos operacionais de modo a construir a idéia de museu ou memorial que lhe serve de fundamento. A partir daí é que podemos pensar que nossa tarefa de consultoria vem se transformando naturalmente num trabalho de curadoria. Dentre as qualidades da curadoria na atualidade, destaca-se a importância destes profissionais em conhecerem os “processos” que Bruno (2008) chama de museológicos, mas que podemos aplicar aqui ao contexto do Memorial do Consumo. Ou seja, conhecer a trajetória do projeto, da idéia que o originou, seus fundamentos, seus propósitos e funções, o que possibilita a delimitação do recorte das coleções e dos acervos, a partir de intenções pré-estabelecidas. Mostra-se importante respeitar as potencialidades de ressignificação das coleções, a capacidade comunicativa desta tipologia de acervo, reconhecendo que se faz presente o relacionamento dos objetos, pessoas e sociedades, cunhando o sentido sócio-cultural do Memorial. Este aspecto vem de encontro a outro ponto de destaque no atual debate sobre curadoria, que é o seu caráter interdisciplinar, acionando saberes e competências que podem vir de áreas variadas do conhecimento. No caso deste memorial destacamos que um olhar da história, do design e das artes permitiram uma mediação, um diálogo com os saberes da comunicação mobilizados pelo PPGCOM-ESPM, possibilitando uma prática condizente com a complexidade imposta pela natureza da atividade de curadoria. Selecionar informações (uma vez que se trata de um site em constante atualização e interatividade com seu público), construir novas narrativas na articulação dos conteúdos, elaborar estratégias de visibilidade, realizar parcerias e fazer uma mediação entre os olhares da academia e os anseios do mercado, bem como garantir o entrelaçamento com as premissas conceituais do PPGCOM e a realidade conjuntural da instituição a que está filiado, configuram caráter do futuro trabalho de curadoria do Memorial do Consumo.

Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas Vol.1. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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