Memoriais da infância - Pequenas memórias de grandeza

September 16, 2017 | Autor: Teresa Coelho | Categoria: Memoir and Autobiography
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Memoriais da infância Pequenas memórias de grandeza Teresa de Jesus Soares Coelho 07-06-2011

Memoriais da infância

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Ao pensar fazer uma breve reflexão sobre As pequenas memórias, de Saramago, lembrei de imediato, em contraponto, La place, Prémio Renaudaut de 1984, de Annie Ernaux, memórias de infância e da família, do pai em particular. Ambos originários de meios populares, a forma como lidam com o passado e os seus mundos naturais é muito diferente. Nele o orgulho nas origens; nela o mal-estar da adulta escritora pela vergonha da criança e da adolescente que olharam o meio de nascimento como um estigma. Ela tem hoje 71 anos. Ele teria… uma geração de diferença. A separá-los, ainda, o espaço social, cultural e económico de dois países distintos. Contudo, existem pontos em comum. Digamos que a comparação com Annie Ernaux serve de líquido revelador para um retrato mais nítido do escritor português, é uma forma de elucidar ou tornar mais visível o modo como Saramago lida com o seu passado. “I celebrate myself and sing myself (…)/ My tongue, every atom of my blood, form’d from this soil, this air, / Born here of parents born here from parents the same, and their parents the same”1. “Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra.” (p.12) A escrita do “eu” é celebração de si e, quase sempre, um canto de si mesmo, ainda que aparentemente lhe seja retirado o tom operático de um Walt Whitman. É o caso dos dois escritores, nestes textos despojados, que reenviam ao mundo imagens da infância dos autores-narradores e das suas circunstâncias. “Deixa-te levar pela criança que foste.” é a epígrafe de As pequenas memórias, leitmotiv para um conjunto de episódios do passado longínquo que, de algum modo, explicam, justificam, levantam do chão o homem que escreve. Não são histórias fabulosas, como as dos protagonistas que criou, são momentos marcados na lembrança, marcantes pelo que de positivo ou negativo aí deixaram. Por seu lado, Annie Ernaux descreve o arrependimento pela vergonha que sentia dos seus, do seu meio. La place, o livro que comemora a vida do pai, depois da sua morte, tem uma epígrafe de Jean Genet “Je hasarde une explication: écrire c'est le dernier recours quand on a trahi.” E esta obra é uma forma de remissão da traição feita “

Celebro-me e canto-me (…) / A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar, / Aqui nascido de pais aqui nascidos de outros pais aqui nascidos, e dos seus pais também” (W. Whitman, 2008: 6-7.)

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ao pai, ao seu mundo, àquele que, no presente da escrita, reconhece como tendo sido quem a fez passar para a margem de uma outra classe social. “Je voulais dire, écrire au sujet de mon père, sa vie, et cette distance venue à l'adolescence entre lui et moi. Une distance de classe, mais particulière, qui n'a pas de nom. Comme de l'amour séparé.“ (p.23). Como texto autobiográfico As pequenas memórias tem as marcas características deste género literário, mas não coloca apenas o escritor no centro, talvez por isso lhe tenha chamado “memórias”, por essa vertente de retrato de um mundo, de uma época. A admiração pela sabedoria dos velhos não é convencional, é carregada dos afectos da vida vivida, partilhada, aprendida. As personagens da vida de Saramago são próximas das que Annie Ernaux retrata nas biografias /autobiografias que são os livros La place e Une femme. Ambos trazem para o domínio do literário os homens e mulheres sem letras que lhes abriram as portas do mundo. Saramago presta homenagem não só aos avós, mas ao povo sem voz, que não teve o direito à palavra escrita. Annie Ernaux reflecte: C’est dans la manière dont les gens s’assoient et s’ennuient dans les salles d’attente, interpellent leurs enfants, font au revoir sur les quais de gare que j’ai cherché la figure de mon père. J’ai retrouvé dans des êtres anonymes rencontrés n’importe où, porteurs à leur insu des signes de force ou d’humiliation, la réalité oubliée de sa condition. (p.101)

O povo. O homem da rua, anónimo, incógnito e esquecido. O pai de uma, os pais e avós de outro. Saramago canta o princípio, fala dos avós, no tom admirativo e comovido do reconhecimento pela herança recebida. O avô “É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa que não pôde ser nunca.” (p.130) Um homem como aqueles em cujos rostos anónimos AE buscou o pai morto. Saramago fala com os avós: Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida.”O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.” Assim mesmo. Eu estava lá. (pp.130-131)

Como já foi referido, Saramago compraz-se no elogio da família, da sua humildade e do esforço de sobrevivência de avós e pais, os primeiros no seio de um 3

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proletariado rural, a segunda geração no urbano. Há um orgulho manifesto nesses antepassados e na sua dignidade, assim como é fácil notar o sentido crítico relativamente àqueles que se curvam perante a burguesia ou a sua imitação, como é o caso daquele tio que afinal não é do mesmo sangue. Esta obra de Saramago, pela sobriedade e dimensão, contrasta com outros livros seus, romances históricos, frescos épicos, extensas e complexas parábolas do mundo, às vezes com aparência de ensaio ou roman à thèse. Aqui, o escritor conta, na primeira pessoa, as suas memórias de pequeno, os pequenos acontecimentos quotidianos que teceram a infância, na aldeia natal a que o Verão o fazia regressar da cidade grande, para onde o levaram pequeno. Conta episódios, a família, avós, pais, tios, primo, os vizinhos, os outros. A aldeia que o moldou e que ele, já velho, molda à imagem e semelhança da sua memória real e inventada. António Damásio explica o processo em O Livro da Consciência: Desde que uma cena tenha algum valor, desde que na altura houvesse suficiente emoção, o cérebro apreende imagens, sons, odores, e sabores, num registo multimédia, e irá recuperálos na altura própria. Com o tempo, a recordação poderá desvanecer-se. Com o tempo, e a imaginação de um fabulista, o material será embelezado, baralhado e voltará a ser ordenado num romance ou num argumento cinematográfico. Passo a passo, aquilo que começou como imagens fílmicas não-verbais poderá transformar-se num relato verbal fragmentado, recordável tanto pelas palavras de uma narrativa como por elementos visuais e auditivos. (Damásio, 2010: 168)

Ou, como diria Saramago, “(…) a minha desorientada memória pôde reunir e encaixar umas quantas peças que estavam dispersas e, finalmente, colocar o certo e o verdadeiro onde até aí reinava o duvidoso e o indeciso.” (p.118) Mas, mais adiante, explica: Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade a que chamamos certeza. (p.120)

Sabemos que o processo rememorativo pode dar-se por um acaso sensorial, como com Proust e a madalena molhada no chá que, na boca do homem, ressuscita o menino. Também Saramago anota «por um rápido instante, apenas o tempo de um relancear de olhos, reencontrei-me com todos os anos passados.» (p.29) O trabalho da memória é constantemente pensado: Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. (pp. 63-64)

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O tom deste livro é de uma simplicidade que atraiu muitos detractores e resistentes a Saramago, irritados com a provocação anticlerical, desorientados pela inovação estilística de obras consideradas maiores e que consagraram o autor. Porque agora, o leitor comum revê nas personagens “reais” que o nosso Nobel descreve, com algum romantismo, alguém que lhe é familiar: uma avó, um tio, uma prima, aquela raiz popular que existe em cada um de nós. A procura da identidade inscrita nas escritas do eu é, neste caso, afirmação de pertença a uma comunidade esquecida pelos outros… esquecida de si. Há espaços físicos entre os momentos temporais. //A passagem de um momento a outro é marcada graficamente pelo espaço em branco. Mas o texto é quase na totalidade um fluxo discursivo, pontual e raramente interrompido pelas aspas de palavras reportadas. Não é um monólogo interior, mas antes um contar despojado e poético, eivado do humor picaresco das histórias de amores ilícitos (última página) e da sobriedade bem humorada das vidas de gentes e animais de corpos e destinos misturados. A linguagem popular não é posta em evidência distanciada, é assumida pelo autor. Mas há julgamentos do autor/narrador, no presente da narração, como houve do jovem personagem que foi, sobre as figuras familiares. Não havendo na escrita distanciamento documental, nem frieza, também não há o tipo de sentimentalismo fácil e visão idealizada que muita vez se associa à memória da infância. Há sentimentalismo chão, diria eu. E há a jouissance da escrita, banida em AE: Naturellement, aucun bonheur d’écrire, dans cette entreprise où je me tiens au plus prés des mots et des phrases entendues, les soulignant parfois par des italiques. Non pour indiquer un double sens au lecteur et lui offrir le plaisir d’une complicité, que je refuse sous toutes ses formes, nostalgie, pathétique ou dérision. Simplement parce que ces mots et ces phrases disent les limites et la couleur du monde où vécut mon père, où j’ai vécu aussi. Et l’on n’y prenait jamais un mot pour un autre. (p.46)

AE chama às suas memórias da infância familiar, em particular com o pai, La place. Título aberto a variadas interpretações, praça pública onde expõe íntimas traições, lugar de uma geração distinto do de outra, sítio da escrita como redenção do pecado enunciado na epígrafe e retomado ao longo do texto. De um lado o orgulho, do outro a vergonha. Mas a vergonha enunciada e publicada, publicitada. E a consciência de uma fenda esquizofrénica que a faz dizer “Je me sentais séparée de moi-même.” (p.98) “J'ai glissé dans cette moitié du monde où l'autre n'est qu'un décor. “ (p.96) e, quase no final, “J'ai fini de mettre au jour l'héritage que j'ai dû déposer au seuil du monde bourgeois et cultivé quand j'y suis entrée. “ (p.111) 5

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Em ambos a certeza da origem humilde. O reconhecimento expresso dos progenitores. Em ambos os anacronismos, a ordem violada do tempo ao sabor do ditado da memória e das suas associações. Com Saramago, a auto-representação obedece a um conjunto de princípios do homem que não se autorizou aburguesamentos e quis, depois de todas as consagrações, lembrar ao mundo sa place. Há, nesta narrativa do começo na vida, uma espécie de justificação ética das escolhas sociais e políticas que lhe conhecemos. Nesta vinda ao mundo num lugar carregado de História mas que e História teria esquecido, não fora Azinhaga o berço do escritor, procuram-se sentidos do presente. Saramago conta a História da aldeia onde as raízes se lhe criaram, a sua história pessoal. Os escritores, ”homens de palavra”, através do símbolo estético, podem fazer germinar uma nova consciência social. Lemos sobre a criança recordada pelo homem «Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer.» (p.13) Para na adolescência acordar e agora lembrar: «(…) senti dentro de mim, se bem me lembro, se não estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer.» (p.23). Só ele sabe, soube, sabia. Só mais tarde. O escritor que nega o destino faz a escolha pessoal de um homem que veio do povo e que quer mudar o mundo através da escrita. Um escritor proletário. Um artista empenhado. O orgulho poético no berço original. Não se encontra o conflito de classes ou o conflito cultural entre o adulto, burguês, e a sua origem proletária, virtuosa em alguns casos, nem tanto noutros. Não há qualquer sentimento de traição ou remorso pela transição para uma categoria social de intelectual burguês que rejeita a burguesia. Talvez porque não aceita aburguesar-se, ainda quando o faz. Lembro fotos dele com Jorge Amado, Garcia Marquez, Salman Rushdie. Cada um a seu modo na mesma luta: o velho debate da arte pela arte, da literatura como um fim em si mesma, e da arte como um instrumento de mudança da sociedade está ainda presente no início deste século. Saramago não é um cultor da arte pela arte. É um escritor empenhado na mudança, alguém que, através da produção literária, procurou intervir, criticar, apontar, sublimar…. Se as origens moldam o ser humano adulto, não é menos verdade que o adulto também molda as suas origens segundo a perspectiva que a vida lhe impôs, ou permitiu adoptar, ou fez escolher. 6

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O texto começa com o sítio inaugural, a paisagem rural, o rio, pedaços de linhas que o tempo desfez, narrativas que o adulto, com a visão distanciada do presente da escrita, procura desenhar, interligar, na tentativa de estabelecer um quadro coerente e compreensível, para si próprio e para os outros, um testemunho. “A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava (…)” (p.15) A mesma forma de ser/estar, de ver o mundo, sem a consciência de ver ou de uma relação ao mundo. Sou favorecido porque tive uma espécie de adolescência prolongada. É como se tivesse vivido em dois planos: um, biológico; outro, não direi propriamente intelectual ou cultural, mas que tem a ver com isso, e que me fez entrar pela vida adulta como se tivesse conservado um ar de adolescente. Isso traduz-se também numa certa forma de olhar. Um 2 olhar não habituado. Olho as coisas como se os meus olhos não estivessem habituados.

refere Saramago numa entrevista com Francisco José Viegas, em 1989. O olhar do escritor tem essa característica tão literária de “estranhamento”: a capacidade de ver o anódino quotidiano com os olhos de uma primeira vez. A consciência de que, à distância de décadas, o adulto que escreve imagina mais que recorda. O velho escritor interrompe as histórias para se interrogar sobre a fidelidade da sua memória. Alertas ao leitor para a subjectividade do texto, reiteradamente afirmada, em expressões como “creio que… talvez”. São fotografadas várias etapas, nem sempre cronologicamente contadas (há avanços e recuos nos tempos narrados), em que o narrador-autor explica e se explica, no processo de regresso à infância e adolescência misturadas, às vezes baralhadas, indistintas etapas daquelas fases da vida e das suas descobertas íntimas. O mesmo acontece com Annie Ernaux que, inclusivamente, olha e descreve fotografias de família e através delas fala de si e dos seus. Ao olhar sobre a paisagem, no presente da escrita, o narrador-autor vê no antigo território as transformações operadas pelo tempo, pelo progresso involutivo a que o Homem sujeitou a natureza. Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida

Ler/Livros e Leitores , Primavera 1989, pp.15-16

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vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até às fronteira do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo. (pp.17-18)

O olhar sobre si próprio, a criança que foi, o rio, eterna metáfora do passar do tempo, as águas que nunca voltam as mesmas, a passar nas mesmas margens, a vontade humana de resgatar o espaço, salvando-se. Sem sinais de dor, “porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas…”(p.18) reconstruir a casa é o primeiro de muitos passos relacionados nos caminhos da infância. E o texto está repleto destas enumerações.

E, finalmente, o título desta reflexão “Memoriais da infância”: uma mera função denotativa. “A maior flor do mundo”, feita de palavras e deposta à beira desta tarde em memória das infâncias, de todas as infâncias defuntas, enterradas na memória; de todas as que a vida apagou e das que não chegaram a ser; daquelas que lemos e nos despertam os sentidos dando mais sentido à vida, humanizando-nos.

“A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava (…)” (p.15) Como na ritournelle de Peter Handke. “Als das Kind Kind war, /wußte es nicht, daß es Kind war, / alles war ihm beseelt, / und alle Seelen waren eins. / Als das Kind Kind war…“3

P. Handke (19…), “Quando a criança era criança, / não sabia que era criança,/…..

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Bibliografia: ERNAUX, Annie (1984) La place, Paris, Gallimard. SARAMAGO, José (2006), As pequenas memórias, Lisboa, Editorial Caminho. Ler/Livros e Leitores, Primavera 1989, pp.14-25 Entrevista de Francisco José Viegas. Peter Handke em As Asas do Desejo, de Wim Wenders WHITMAN, Walt (2008)), Canto de mim mesmo, Lisboa, Biblioteca Editores Independentes. DAMÁSIO, António, 2010, O Livro da consciência – A construção do cérebro consciente, Lisboa, Temas e Debates. Época, Entrevista de Luís António Giron, “As razões da memória sentimental”

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