Memorial apresentado para ingresso na Fiocruz - 2006
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Construções na fronteira
Por Marize Bastos da Cunha Memorial apresentado no concurso da FIOCRUZ O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê. É preciso transver o mundo (Manoel de Barros) 2006
A fala de Joana tem poder! Certa vez, num grupo de discussão, ela disse assim: “Nós somos uma espiral. Se pararmos, nos morreremos”. Avaliava então seu trabalho, e de outras tantas educadoras que, como ela, atuam em organizações e projetos sociais nas favelas do Rio de Janeiro. Isso me faz recordar José de Souza Martins que, discutindo a dimensão do tempo nas lutas sociais no campo, avaliou sua experiência de 15 anos acompanhando estes movimentos, declarando então que sua pesquisa ainda não fechara e que possivelmente se aposentaria antes de terminar o trabalho. “Há coisas que estou acompanhando desde o começo, que começaram a acontecer e ainda não acabaram de acontecer”, disse ele (1993). Joana não pára porque seu trabalho é necessário, e se renova e se amplia a cada dia, sempre tendo como base os resultados que vai colhendo. O sociólogo, estudioso dos movimentos no campo, não pára porque ainda não consegue explicar o conjunto do processo. Isso me faz pensar que há trabalhos que tomam uma existência. Trabalhos que se desenrolam em espiral. Não em linha reta, como se não houvesse ontem, ou amanhã. Nem em círculo, que se fecha sem saída. Trabalhos que caminham em espiral, projetando-‐se em retornos e avanços. Interrogações iniciais, primeiras respostas A lembrança revê....eu via diferenças, não apenas diversidades. Por detrás das cores, sons, gestos, jeitos e trejeitos múltiplos, as diferenças. E não entendia muito bem porque o diverso era diferente. E, logo, percebi que por detrás do diverso e da diferença, havia o desigual. Havia um mundo de interrogações, ressoando em cada esquina da minha vida, que me faziam querer compreender: o mundo, suas diferenças e desigualdades. Por isso, a escolha: faculdade de história. Queria entender porque as coisas se fizeram assim e não de outro modo. Uma vez cursando a graduação na UFRJ, de 1983 a 1988, para além dos calorosos debates teóricos, mobilizava-‐me, sobretudo, a potencialidade da história em relação ao mundo de interrogações pelo qual caminhava no presente. Um mundo, onde cada vez mais,
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o estranhamento, revertido na renitente indagação da cada esquina -‐ por que assim e não de outro modo? -‐ soava-‐me pleno de possibilidades críticas e uma importante arma profissional e política. Incorporava as palavras do já mencionado Sidney Chalhoub argumentando “em forma polêmica que a história serve, em última instância, para complicar a vida” e que “nos instiga a pensar o social-‐ passado, presente e futuro-‐ como processo tecido na contradição e na luta, e não como ‘anestesia’, como ‘mesmice’, isto é, como ponto de chegada necessário de um caminhar linear, harmônico e teleológico” (1986). E interessava-‐me, particularmente, as perspectivas que a história oferecia à compreensão de representações ideológicas que identificava em cada uma das esquinas, e que me pareciam fundamentais à reprodução da sociedade em que vivia. Foi este estranhamento, digamos quase existencial, e este particular interesse pelo terreno da ideologia, que moveu-‐me nos passos iniciais de uma pesquisa monográfica de final de curso : Preguiça e Ociosidade do Trabalhador Brasileiro: a formação da ideologia do Trabalho no Brasil. Minha inquietação era em relação às imagens que associavam o trabalhador brasileiro à preguiça e ociosidade, e que contrastavam com aquilo que via e ouvia pelo mundo. Preocupava-‐me também a força de tais representações, e suas implicações políticas, numa sociedade onde o trabalho aparecia como o “trampolim” para a prosperidade e riqueza, e entrada no rol dos países desenvolvidos. O curso, e particularmente a pesquisa então desenvolvida forneceram algumas respostas que buscava. A principal delas: eu não podia apenas “obter” respostas; precisava construí-‐las. Mas, por outro lado, o percurso me despertou outras tantas perguntas. Refletia sobre a relação entre o conhecimento produzido na academia e seu compartilhamento social. O papel social do pesquisador. E a relação entre a pesquisa e o ensino. Como falar sobre o mundo que nos rodeia, e nos constrói, sem falar com ele? Não deveria buscar resposta com o outro? A questões me faziam voltar à dimensão complicadora da história. Só serviria ela para complicar a vida? Não haveria um momento, onde ela deveria também descomplicar? Deixar o recanto do estranhamento e da investigação, e sair pelo mundo? Atravessando fronteiras, para além da universidade Não estava sozinha. Juntei-‐me a alguns companheiros ávidos por “novas respostas”. A nossa volta, em fins dos anos 80, a experiência social parecia fervilhar com a luta pela 3
ampliação dos espaços democráticos e a ocupação da esfera pública. Nós simplesmente não podíamos perder o bonde da história! Refletimos então sobre caminhos que, julgávamos, poderiam nos levar a participar deste bonde e construir uma alternativa coletiva de exercício profissional. A alternativa de atuação de nosso grupo veio de onde não podíamos esperar, ou não desejávamos. A possibilidade de prestar serviços em pesquisa social ao
CIRCO
VOADOR/FUNDIÇÃO PROGRESSO, nos levou à fundação, em 1987, de OS CONTADORES DE HISTÓRIA um
grupo “independente” de assessoria histórica. Nosso firme objetivo era então prestar serviços à sociedade. Foram cinco anos de trabalho, ao longo dos quais voltamo-‐nos fundamentalmente para a concepção, montagem e coordenação de cursos de extensão da
UNIVERTA
(Universidade Aberta) e posteriormente da UPB (Universidade Popular da Baixada). A experiência com os programas de educação da Universidade Popular da Baixada, revelou-‐se um verdadeiro desafio já que tínhamos um público heterogêneo, contando com a ampla participação de segmentos das classes populares e grupos ligados ao movimento comunitário da região. Descobríamos ainda que por detrás do povo, que freqüentava nossos discursos e ideais profissionais, havia uma multiplicidade de histórias, experiências e visões de mundo. Interrogávamos a unidade da realidade material e existencial das classes populares. Uma interrogação sobre a qual pudemos nos aprofundar pouco depois, quando desenvolvemos um trabalho de pesquisa na favela da Chácara do Céu, com o apoio institucional da UFRJ e financeiro do CNPq1. Com esta pesquisa, me defrontava mais diretamente com um mundo desconhecido que, ao longo de todos aqueles anos, ansiava por encontrar. O mundo dos sujeitos, cuja experiência social e política desejava compartilhar. Atravessava uma fronteira. Estranha no lugar. Imagens na cabeça. Buscando conhecimentos que pudessem explicar estas imagens. A Marginalidade em Questão: Conflito Social, Condições de Vida e Cotidiano na Favela (1992) nasceu daí. Da busca incessante de explicações para a existência daquele lugar, descrito por uma moradora. “Lugar esquecido por Deus”, disse ela. Explicações que me fizessem entender.
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A Chácara do Céu é considerada pelo IBGE como um dos setores censitários pertencentes ao Morro do Borel localizado na Tijuca, Rio de Janeiro. A localidade é dominada por uma facção inimiga daquela que está presente nas demais áreas do Morro. 4
Com base na leitura de autores que se dedicavam então a estudar os processos de marginalidade e a urbanização nas sociedades da periferia capitalista, bem como as favelas cariocas, e nas informações que recolhia a respeito da Chácara do Céu, conseguia chegar às explicações para o surgimento desta favela, e de tantas outras existentes na cidade do Rio de Janeiro2. Com os dados obtidos através de questionários aplicados junto aos moradores da localidade, chegava a ensaiar uma configuração econômica e social da favela. Inspirada em leituras da sociologia e antropologia urbana, relacionava dados deste perfil econômico e social com os depoimentos colhidos junto aos moradores, e avaliava que, em seu cotidiano, a sobrevivência dos “sobrantes” era garantida através de um conjunto de estratégias de sobrevivência.3 Tais análises me fizeram dar um passo a mais na espiral de meu trabalho. Não apenas conseguia explicar o surgimento da favela e algumas de suas características. Começava a compreender seu modo de vida. Mas ao dar o passo, defrontei-‐me com uma tensão nesta espiral de pesquisa... Lugar e momento de desafio. Foi quando ao entrevistar Dona Sebastiana, ela me disse bem assim: “Graças a Deus a minha vida tá boa. Quem visse o que eu já tive lá em Minas...Minha vida tá boa sim”. Já tinha ouvido antes coisas parecidas, e minha formação acadêmica me dava uma série de conceitos para explicar aquilo: alienação, falta de consciência histórica e de classe. Mas fiquei desconfiada! E comecei a imaginar... a autoridade nos gestos, no tom e mesmo no conteúdo da afirmação de Sebastiana e outros tantos moradores, confrontada com a evidente precariedade de suas condições de vida, levava-‐me a pensar que não a estava entendendo, percebendo alguma coisa em sua fala e que, portanto, podia haver algo “errado” comigo, com minha formação acadêmica e profissional. Foi isso que concluí. 2
A partir dos anos 70, quando passaram a predominar a perspectivas que rompem com modelos dualistas de explicação das mudanças históricas e sociais, a favela é “redescoberta”. Alguns estudos, como O Mito da Marginalidade de Janice Perlman (1977), preocuparam-‐se em desvendar sua dinâmica interna e suas redes associativas, bem como seus nexos com os espaço da cidade e com o mundo político. Um outro conjunto de reflexões concorreu também para esta “redescoberta”, ao procurar explicar o avanço da favela e das áreas periféricas das metrópoles a partir das contradições do processo de acumulação urbana industrial que se acelerava, tendo como principal “avalista” o Estado. Criticando-‐se a perspectiva que a concebia como um distúrbio de uma urbanização desordenada, a favela passa a ser vista como uma forma de sobrevivência no âmbito das contradições da dinâmica econômica e social capitalista no espaço urbano. As lutas levadas à frente pelos moradores destas localidades também vão ser analisadas sob esta perspectiva. Destacam-‐se aqui os trabalhos de Lucio Kowarick, Capitalismo e marginalidade urbana na América Latina (1975) e Espoliação Urbana (1979). E ainda, Contradições Urbanas e Movimentos Sociais (1978) e Cidade Povo e Poder de José Álvaro Moisés e alli (1982). 3 Dentre as leituras da sociologia e antropologia urbana, destaco o já mencionado livro de Perlman (1977), e ainda Cardoso (1978), Caldeira (1984), Durham (1988, 1984 e 1977). 5
Os conceitos e referenciais de análise que trazia não pareciam responder às minhas questões. Era necessário reconstruí-‐los. Recordava-‐me então das palavras de Thompson, inspirador em minha busca de complicar descomplicando, ao interrogar o pensamento de Althusser: Sinto decepcionar aqueles praticantes que supõem que tudo o que é necessário saber sobre a história pode ser construído a partir de uma aparelho mecânico conceptual. Podemos apenas retornar, ao fim dessas explorações, com melhores métodos e um melhor mapa (...)Nas margens do mapa, encontraremos sempre as fronteiras do desconhecido. O que resta fazer é interrogar os silêncios reais, através do diálogo do conhecimento. E, à medida que esses silêncios são penetrados, não cosemos apenas um conceito novo ao pano velho, mas vemos ser necessário reordenar todo o conjunto de conceitos. Não há nenhum altar mais oculto que seja sacrossanto de modo a obstar a indagação e a revisão. (E.P.Thompson,1981,p.185) E aí percebi que queria mais. Mais do que explicar. Queria avançar na compreensão. Compreender mais a vida nas favelas. E também suas relações com o restante da cidade. Com aquilo que é “domínio” na cidade. E que é “domínio” nas relações que nela se tecem. Queria compreender as relações da favela com aqueles que para lá vão, em busca de alguma coisa, com algum interesse, assim como eu estava fazendo. Uma posição de fronteira: a passagem para a educação O impacto da experiência na Chácara do Céu, e os desencontros daí advindos, trouxeram-‐me uma série de estranhamentos e informaram meus caminhos a partir de então. Retornava, sobretudo, à antiga e renitente preocupação com o produto do trabalho construído e seu compartilhamento social. Descobria que a produção de um conhecimento crítico e implicado, potencialmente transformador das coisas e da vida, supunha mais do que boa vontade e possibilidades de atuação. Exigia também uma inquieta e rigorosa reelaboração teórica e um tensionamento das implicações metodológicas do trabalho de campo. Aqui, nada mais inspirador do que as palavras de quem faz arte com a vida: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Tornava-‐se claro para mim que a possibilidade de construção de um conhecimento crítico, que estranha o mundo, mas descomplica a vida, não estava naquilo que
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carregávamos para a pesquisa, por mais críticos que fossem nos referenciais. E tampouco estava naquilo que produzíamos depois da ida ao campo, por mais fundamentais que parecessem nossas conclusões e implicados que estivéssemos com sua socialização. Ela situava-‐se no caminho tecido no próprio campo, dispondo-‐se para nós no meio da travessia. Ponto de chegada. Início de outra partida. A experiência vivenciada na pesquisa então realizada despertava-‐me a necessidade de buscar instrumentais teóricos e metodológicos que pudessem complicar as questões que então me colocava -‐ especialmente aquelas relativas à percepção que as classes populares tinham de sua história e às possibilidades de produção de um saber crítico implicado na prática social -‐ e de trilhar um caminho, onde o conhecimento produzido não ficasse confinado nas complicações da vida. Em outras palavras, era preciso sair das margens da academia, voltar a ela e ao mesmo tempo estar no mundo, fazendo de minha prática profissional também uma prática social. Caminhos integrados que em velhos tempos eu cheguei mesmo a considerar antagônicos. Neste momento de redefinição da minha visão da universidade, seduzia-‐me o campo pleno de fronteiras da educação que parecia mais fértil à opção de buscar um exercício profissional e um conhecimento crítico articulados à prática social. Foi neste campo de fronteiras que fui tecendo um duplo caminho: o mestrado na área de Movimentos sociais, Políticas públicas e Educação na UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE e a atuação como professora na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro. E que fui também começando a constituir um lugar de fronteira. Lugar que agrega o papel de pesquisadora, educadora junto a projetos sociais desenvolvidos em favelas e, ainda, docente. A bagagem como pesquisadora permitia-‐me buscar explicações para a realidade da escola, na qual atuava como docente. Ao mesmo tempo, o olhar da professora pesquisadora problematizava as críticas, e já clássicas, correntes reprodutivistas e indicava-‐me pistas para elaborar teoricamente os desafios da prática docente e também da pesquisa. Pistas que eram, sobretudo, uma forma de se aproximar daquilo que não tinha respostas imediatas, ou, que muitas vezes se recusava a ser processado através dos esquemas teóricos e caminhos metodológicos com os quais eu contava. Daquilo que era desafio e silêncio. E que me fazia sempre recordar Thompson, afirmando que nas “nas margens do mapa, encontraremos sempre as fronteiras do desconhecido” e que “o que resta fazer é interrogar os silêncios reais, através do diálogo do conhecimento”.
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A entrada em salas de aula delineava-‐se como uma opção, movida pela confiança nas possibilidades que a escola podia oferecer em termos de atuação social e política e enquanto campo de investigação onde pudesse complicar as questões que então me preocupavam. A lotação em uma escola recém-‐inaugurada, em fins de 1992, situada em uma área favelada também recente, sugeria-‐me um trilha fértil e desafiante, pois me parecia que ali havia muito a se construir. Desde o início, me interessei pela história das favelas às quais a escola atendia, e pelos caminhos que levaram seus moradores a se estabelecer no local, procurando trazer tais temas para a sala de aula, procurando construir com os alunos uma outra história, onde eles pudessem se perceber como sujeitos, do conhecimento e dos percursos históricos. Porém, logo cedo, constatei os limites das possibilidades de atuação, que configuraram uma imagem um tanto dramática quando nos defrontamos com as implicações do mundo do narco tráfico na escola, a complexa relação da instituição com a favela, e os mecanismos burocratizantes e centralizadores da gestão escolar. Neste momento, foram os diversos encontros travados na pós-‐graduação que contribuíram para que me experimentasse a realidade da escola de forma menos dramática, oferecendo-‐me pistas para compreendê-‐la e potencializando minha ação. E quando me vi adentrando pelo caminho da retirada da escola, naquela época acreditando que havia sucumbido, as relações tecidas no mestrado com professores e companheiros, e o diálogo com velhas e novas leituras, acenaram-‐me com o mundo da investigação e do debate, fazendo-‐me reinventar a ação, por outras trilhas, mas ainda seguindo o mesmo caminho. Um caminho que pudesse responder às apropriações que vinha fazendo sobre a realidade com que me confrontava, me levasse a um aprofundamento sobre o universo de vida das classes populares, e oferecesse perspectivas de um construir coletivo. No grupo de orientação coletiva em movimentos sociais, políticas públicas e educação, trocávamos experiências de trabalho e novas leituras. Relevávamos os desencontros entre a população e os profissionais que com ela trabalhavam, em busca de uma perspectiva crítica de nossas práticas e interpretações. Recuperávamos José de Souza Martins que nos fazia avançar no campo da sociologia do conhecimento, tensionando a relação entre mediadores e as classes subalternas (1989; 1992; 1993; 1994). Recuperando o alerta de Thompson, as leituras e releituras faziam com que penetrasse nos silêncios então vislumbrados, reordenasse meus conceitos e desconstruísse 8
alguns “altares”. O próprio Thompson me conduzia ao conceito de experiência e à ênfase do papel da cultura enquanto mediadora das relações sociais e da estruturação da sociedade. E apontava-‐me uma trilha onde a dinâmica do movimento social não se reduzia a seus antecedentes sócio-‐econômicos, sendo informada por padrões e rituais do próprio conflito, onde estava em jogo também os significados e a validade a ele atribuídos por seus sujeitos (1981, 1987) O contato mais aprofundado com o trabalho de Gramsci me levava a resgatar a monografia de graduação e fundamentava antigas perspectivas de análise a respeito da dimensão relacional e dinâmica dos conceitos de hegemonia e ideologia. E através novamente de José de Souza Martins, recuperava a noção de subalternidade, presente na tradição gramsciana, que comportava a diversidade de situações de subalternidade, e sua riqueza histórica cultural e política (1989). Começava a responder a uma velha interrogação sobre a unidade das classes populares, e sua identidade de perspectivas, surgida em meio à experiência na Universidade Popular da Baixada. Recorria ao conceito de classes subalternas, concluindo que ele aparecia atravessado pela marca da universalidade e da particularidade. Universalidade porque compreendido no âmbito do processo de subalternização, que produzido pelo desenvolvimento capitalista, atinge parcelas crescentes da população. Particularidade porque só pode ser interpretado a partir da forma historicamente específica através da qual se desenrolam as relações entre os diferentes grupos sociais e a experiência da subalternização. Mestre no ofício de estranhar, o Prof. Victor Valla me fazia “estranhar” também minha complicada relação com a história, levando-‐me a revê-‐la. E acenou-‐me com o caminho que me fez resgatar minha formação e experiência de trabalho, na contramão das “tiranias da razão histórica”. Recordava-‐me do cheiro da história, que eu apenas sentia no Morro do Borel, e especialmente da fala da moradora que ainda soava renitentemente em meu percurso: “Graças a Deus a minha vida tá boa. Quem visse o que eu já tive lá em Minas...Minha vida tá boa sim”. Refletia sobre a frustração que sentia em sala de aula quando os alunos me perguntavam sobre a Marquesa de Santos enquanto me esmerava em lhes explicar o processo de independência. As reminiscências de todos estes desencontros se reatualizavam. Todas elas me falavam daquilo que vinha estudando: o universo de vida das classes subalternas. Isso eu 9
sabia, e era movida por esta constatação que forjava meus caminhos. Porém, o que só fui percebendo depois é que elas me falavam também de história. De diferentes códigos de mudança histórica e lógicas temporais inscritas nas perspectivas que então se confrontavam. Eram desencontros que indicavam mais do que uma diferença de lugares econômico-‐sociais, concebidos em termos de presente. Apontavam também diferentes formas de se perceber a história, de tratar historicamente a experiência social, a partir de vivências e valores que traduziam o próprio caráter conflituoso de nossa sociedade que produz um estranhamento que, recuperando a idéia de Martins, nos vitima a todos (1989). Pouco a pouco, fui tecendo a trama onde a história aparecia como um elemento fundamental na compreensão do saber produzido pelas classes populares e na reflexão sobre nossa relação, enquanto educadores, com estas mesmas classes. E identificava a trilha a perseguir: um estudo do saber histórico das classes subalternas, tendo em vista as suas interpretações a respeito das próprias mudanças que experimentaram. A região da Lepoldina, onde meu orientador Victor Valla desenvolvia seu trabalho através do CEPEL ( Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina) e da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública), ia se configurando como o solo final do percurso. Seguindo pistas por ele apontadas, buscava algumas das lutas ocorridas em favelas da Penha-‐ subúrbio do Rio de Janeiro. Ia definindo então meu projeto de investigação no mestrado, Reconstruindo a trama por caminhos, atalhos e pistas. Tarefa que, compartilhada no grupo de orientação coletiva, tornou-‐se menos angustiante e solitária. O “gabinete” da objetivação e da escrita ia abrigando muitos, companheiros do grupo de orientação coletiva e outros tantos. A pesquisa compartilhada: na encruzilhada de muitas lutas e múltiplos sujeitos Na verdade, ainda em fase de construção do projeto, as margens deste “gabinete” alargaram-‐se ainda mais, conforme avançava em meus caminhos. Na travessia da pesquisa, o contato inicialmente assistemático com o CEPEL tornou-‐se convívio com alguns parceiros de inquietações e propostas. E quando lá comecei a trabalhar, em 1994, fazendo parte da equipe de pesquisa, tornou-‐se contato com alguns daqueles que faziam as tramas que estudava, e outros tantos que não teciam “aquelas” tramas, mas que 10
faziam e me contavam outras. Os fios pareciam se alongar entercruzando-‐se, revelando-‐se faces de uma mesma luta e potencializando a pesquisa. Os encontros com os atores das tramas me davam a possibilidade de acompanhar não só seus comentários espontâneos, mas também as pistas indicadas por Ecléa Bosi: os recursos expressivos de suas falas, inscritos na inflexão da voz e da expressão corporal (1988). E os riscos da participação observante de que nos fala Eunice Durham (1986), anunciavam-‐se. Contudo, a condição de participante não suprimia um dos instrumentos que avaliava como fundamental à prática de pesquisa: o estranhamento. Por mais que se delineasse a empatia, necessária à convivência do trabalho e à confiança para que pudesse me tornar “ouvinte”, o estranhamento sempre esteve presente em função dos diferentes lugares dos quais falávamos, de onde vínhamos e aonde produzíamos. Trabalhei movida pela necessidade de me voltar para o conhecimento produzido pelas classes populares, considerando-‐o como fundamental na construção de um conhecimento crítico. Aqui, no âmbito das discussões do grupo de orientação coletiva do mestrado, buscava ajuda em Martins, que dizia: Isso passa pela nossa conversão à condição de objeto dele, no sentido de tomar como premissa o pensamento radical e simples das classes exploradas, meio e instrumento (ao invés de instrumentalizá-‐lo) para desvendar o lado oculto das relações sociais com os olhos dele, revelando-‐ lhe aquilo que ele enxerga mas não vê; completando, com ele, a produção do conhecimento crítico que nasce da revelação do subalterno como sujeito, na medida em que lhe restituímos a condição de objetivo e lhe abrimos a possibilidade de resgatar o pleno sentido de conhecimento alternativo que ele representa e propõe na sua prática. (Martins 1989: 137)
Considerava então que, na construção do conhecimento crítico, o olhar para o outro abre espaço para a compreensão de nossas concepções, podendo fertilizar nossa prática profissional e política, em especial no que se refere à relação com os grupos populares. E assim, procurava seguir em espiral... recuperando a história de três movimentos ocorridos nas favelas da região e tecendo uma reflexão sobre o saber histórico popular, investigando a forma como as os agentes participantes destes movimentos percebiam a sua história, particularmente as lutas das quais participam, e os significados a elas atribuídos. 11
Seguindo as pistas de algumas das lutas ocorridas nestas localidades, procurei buscar parte de uma memória que parecia perdida na história da cidade, mas que não escapava àqueles que a vivenciaram enquanto ação. Porém, resgatar a história de alguns destes movimentos através dos depoimentos daqueles que os vivenciaram, buscando recuperar o seu significado histórico, era parte do trabalho proposto. Na verdade, meu objetivo não era tanto trazer tais lutas para a “História” mas, especialmente, compreender os significados que seus protagonistas lhes atribuíam, considerando que só assim poderia entender melhor as experiências sociais e práticas políticas daqueles que vivem no “inferno”. Entender, enfim, porque dizem que a “vida está boa do jeito que está”, porque fecham ruas, ou porque se silenciam, quando os militantes políticos acham que eles precisam falar. Porque fazem determinadas opções políticas que, aos olhos daqueles que estão fora do “inferno”, aparecem sempre como “alienadas”. Foi desta forma que fui compreendendo um pouco mais do universo da favela, do saber e das visões de mundo, e também dos movimentos de seus moradores. Dialogando com as reflexões de Thompson (1981;1987) e de Martins (1989), avaliava que era no âmbito de sua experiência de subalternidade que os moradores produziam suas visões a respeito das lutas por eles vivenciadas. E recuperando fios de memória destes agentes, constatava que nesta experiência histórica de subalternidade, vinham inscritas práticas e percepções construídas ao longo do vivenciamento de um processo de exclusão em suas múltiplas faces: na exclusão no campo e no migrar para a cidade, na exploração no trabalho e na luta cotidiana na favela, na relação com os mediadores e no confronto com as instituições públicas. Analisando, então, estas práticas e percepções, podia perceber que elas eram atravessadas por mediações que particularizavam a forma como este processo era vivido pelos sujeitos: fertilizado pela prática sindical, pela atuação político-‐partidária, pela experiência de trabalho, pelo acompanhamento do dia-‐a-‐dia na favela, pela religiosidade. Com isso, podia ir compreendendo melhor porque não era todo mundo igual ali no “inferno”. Porque uma liderança dizia: “eu achava horrível aquela briga dos companheiros favelados, todos pobrezinhos, brigando um com o outro pelo poder que não tinha significativo algum” enquanto uma moradora da mesma localidade lembrava que “a própria comunidade tem noção do que ela quer”. Ia começando a compreender os caminhos e opções diferenciadas daqueles que viviam nestas localidades. 12
Reencontrava ainda uma das principais questões que deram origem à pesquisa: lançava um novo olhar para a experiência histórica e a visão de mundo dos moradores das favelas. Chegava à conclusão de que ela vinha marcada pela dor da travessia histórica que se reatualizava incessantemente, colocando a necessidade de garantir o dia-‐a-‐dia, de prover a vida no presente. Vinha atravessada também pela imprevisibilidade do cotidiano da vida subalterna, frente ao enfrentamento da sobrevivência. Percebia também que esta mesma experiência não anulava a possibilidade de projetos. Os moradores não viviam apenas de dar respostas às urgências. Alimentavam projetos. Projetos alongados e adiados em meio à imprevisibilidade do cotidiano e à busca da provisão. Vividos enquanto sonhos, ideais e expectativas de mudança. Tecidos ao longo da vida, eram redefinidos em função dos limites aí colocados, encontrando possibilidades de se insinuar em meio às brechas forjadas pelos sujeitos em seu cotidiano. Assim, era o projeto da casa própria, o “ideal” que uma moradora declarava ter dentro dela, e também seu sonho frustrado de ser assistente social e a busca por outro caminho, de agente de saúde. Descobria que, se examinada, considerando a experiência dos agentes sociais da ocupação, a favela é bem mais do que resultado das contradições do padrão de acumulação do capital e do papel que o Estado aí assume. Ela pode ser projeto de vida tecido em meio à insatisfação vivida como perda e a expectativa de melhoria de vida. Ela pode ser luta individual e coletiva, travada em meio à precariedade experimentada no dia a dia. Ela encerra modos de vida e formas culturais, construídos coletivamente, no enfrentamento da vida no espaço urbano. E ela pode ser conquista, resultante de trabalho comum e de conflitos com outros agentes sociais, particularmente o Estado e o capital imobiliário. E assim, eu deslocava o olhar. No lugar de produto das contradições da acumulação urbano industrial que é garantida pelo Estado, processo tecido historicamente em meio aos conflitos presentes no mundo urbano, usando uma expressão de Lefebvre, na cidade do capital. Ao invés de carência, entrava o trabalho, a conquista. Ambos movidos pela necessidade. Uma necessidade experimentada enquanto condição de vida e dinamizada por agentes sociais que agem, referenciados em certas determinações sim, mas também atravessados por expectativas e projetos, e que encontram coletivamente caminhos para concretizá-‐los. As possibilidades de os projetos se viabilizarem estariam então menos associados à intensidade do descontentamento, do que ao encontro que permitia que
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insatisfações e projetos vividos particularmente fossem reconhecidos em sua dimensão coletiva. Este “encontro” mereceu um olhar atento. Porque não é raro na história das favelas. Marca mesmo a memória de algumas de suas principais lutas.
(...) no verão, a gente tinha uma informação que a associação de moradores vendia água, desviava água para os terrenos próprios do Grotão. E aquela empresa de ônibus Nossa Senhora de Lourdes recebia um subsídio e tal, de água, de canos clandestinos. (...) A associação levou uma grana para que deixasse ligar. Era uma água gratuita. A água da comunidade é grátis. Só paga a manutenção da bomba que faz o sistema de elevatória. Ninguém paga conta de água no banco, nada disto. Existe aquele convênio. E no verão sempre faltava água. Aí descobriram que esta água era desviada para os terrenos próprios da Vila Cascatinha, para que se aumentasse o quadro social e com isso a associação captava mais recursos. (...) a mulherada se juntou uma vez para dar uma coça nos manobreiros. Várias donas de casa com vassouras. Foi em 83. Foram para pegar o seu Zezinho. Foram na casa do seu Zezinho e depois foram na casa do manobreiro. Foi uma coisa delas. Uma coisa assim que aconteceu rapidamente. Foi um levante das donas de casa, com vassoura na mão4.
Eis aí o “encontro”. Uma situação em que configurou-‐se o que Thompson chama de atropelo aos “supostos morais” dos moradores, baseados num histórico e “amplo consenso” da comunidade, atravessado por um noção legitimizante. (1984, p.65). Controlar o fornecimento de água, cobrando por isso, podia ser considerado como legítimo, mas o seu desvio para outros locais a fim de se acumular recursos atropelava o “amplo consenso” ao qual se refere Thompson. Este atropelo, no âmbito do transtorno causado pela falta d’água no verão, abriu as possibilidades para ação direta das mulheres. Depoimentos que traziam relatos de eventos como o citado acima ajudaram-‐me a compreender uma das interrogações da pesquisa: a temporalidade inscrita nas lutas populares, sua dinâmica, seus nexos de ação. Concluí que eventos como este não podiam ser
4 Tal fato ocorreu em Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, município do Rio de Janeiro. Sr.Zezinho era o presidente da Associação de Moradores na época referida. 14
reduzidos nem ao clímax de um processo acumulativo, nem a um acaso abrupto. Muitas vezes, eles se colocavam para os sujeitos enquanto oportunidade no meio da estrada, num percurso que aparentemente parecia “conformado” e, neste sentido, apareciam como um ponto de ruptura que possibilitava o deslanchar compartilhado de um projeto e a instituição da luta. Mas eles eram também potencializadores de caminhos que vinham se tecendo e, por isso, signos de experiências acumuladas, que definiam alternativas e práticas no encaminhamento deste projeto. Por fim, ao longo de toda a pesquisa, fui procurando construir uma reflexão sobre as armadilhas presentes na relação entre aqueles que viviam no “inferno” e diferentes profissionais mediadores, de forma a problematizar as representações produzidas por estes últimos acerca do conhecimento e da experiência popular e, por outro lado, me aproximar criticamente das visões que os moradores possuíam a respeito dos mediadores. Aqui, foi fundamental também um tanto de leituras e o desenvolvimento de uma discussão sobre a cultura, concebendo-‐a a partir de sua dimensão processual, contraditória e conflituosa. Seguindo caminhos trilhados por Geertz (1989), Sahlins (1990), Durham (1977) e Ginzburg (1987), pensava as produções do mundo simbólico das classes populares como ação no tempo, atravessadas por tempos históricos distintos e inscritas num tecido social permeado por lutas e contradições. Dentro desta perspectiva, procurava ir além das dicotomias que opunham cultura de elite/cultura popular. E acolhia o conceito de hegemonia cultural sugerido por Thompson, que me permitia explicar a reprodução de determinadas práticas e valores comuns à sociabilidade capitalista, mas compreender também as “distintas cenas e dramas diversos” desenhados nas teias das estruturas de dominação e subordinação (1984). Tendo como base tal discussão, dialoguei com os depoimentos dos atores dos movimentos então pesquisados, ensaiando uma leitura a respeito da relação entre lideranças e moradores das favelas e os profissionais mediadores, procurando desalojar determinadas interpretações dicotomizadoras. Percorrendo as histórias, relia textos, imaginando... Estabelecia nexos que indicavam novas possibilidades de análise. Chegava à noção de mediador na comunidade que me levou a repensar as oposições bem definidas entre mediadores externos/comunidade e, também, refletir sobre o percurso da liderança à frente da organização comunitária, enquanto uma possibilidade de ação política no movimento, que muitas vezes a aproximava dos profissionais mediadores, tornando suas 15
representações bastante semelhantes. De certa forma, o mediador na comunidade vinha me sugerir outras alternativas de prática social e política, que não passavam necessariamente pelos “níveis de consciência política” indicados por mediadores externos mas também pelas lideranças mais expressivas. Ao fim da pesquisa, concluía que a atuação do morador mediador na comunidade particularizava-‐se pela ação nas margens das esferas de poder instituído na favela, no caso a associação de moradores. Aproximava-‐se da liderança pelo conhecimento do jogo político, acumulado na prática no movimento comunitário, mas dela distinguia-‐se pela forma de ação na luta. Diferenciava-‐se dos demais moradores pela experiência no movimento e pelo conhecimento das regras do universo político. No entanto, a particular forma de atuação na favela, através da proximidade cotidiana com os moradores, reforçava os vínculos com sua experiência subalterna. Produzia, pois, sua visão a partir de um outro lugar que possivelmente lhe dava um horizonte de visibilidade crítica. Daí, ele percebia as implicações das relações de poder na favela, a atuação dos mediadores externos, e interpretava a ação e experiência dos demais moradores. Na percepção do mediador na comunidade, o seu percurso apresentava-‐se como particular, mas não era colocado em outro plano. Ele aparecia enquanto possibilidade da trajetória de vida daqueles que viviam na localidade. Trajetória que ele buscava compartilhar no âmbito da localidade em que vivia através de sua ação mediadora. Esta identificação da existência do mediador na comunidade foi uma das questões que assumiu maior relevo na pesquisa, mas não pude me dedicar a ela. Cheguei ao fim da pesquisa levando a interrogação comigo. E nos anos seguintes, mantive-‐a como um desafio. O alimento na fronteira Ao longo do mestrado, e nos anos seguintes, dediquei-‐me a constituir a posição de fronteira, a qual me referi anteriormente. Posição que me permitiu investir no duplo caminho de produzir conhecimento, em diálogo com os sujeitos sobre os quais me debruçava, e compartilhar o resultado desta produção. Neste caminho foi fundamental o trabalho desenvolvido em várias Organizações Não Governamentais. A dissertação de mestrado ampliara meu olhar sobre a realidade das classes populares, especialmente das favelas da Leopoldina. E atuando como pesquisadora no CEPEL 16
(1994-‐96; 1998-‐99), pude prosseguir em meus esforços de investigar o universo destes atores, mais particularmente suas condições e experiências de vida. O trabalho de pesquisa articulava-‐se então, à ação de assessoria junto a grupos populares da região, à produção de um sistema de informações, divulgadas no jornal Se Liga no Sinal. Assumindo a coordenação da pesquisa Construindo Indicadores sobre as condições de vida nos bairros e comunidades da Leopoldina, que procurava avançar na proposta de organização de um sistema de informações sobre as condições e experiências de vida da população da Leopoldina, eu me apropriava de conceitos e referenciais metodológicos, particularmente aqueles referentes à construção de indicadores em saúde, que aumentavam minha bagagem em relação à pesquisa com classes populares. Por outro lado, trazia para a pesquisa as reflexões e conceitos trabalhados por mim trabalhados ao longo do mestrado. Problematizava o alcance da noção de condições de vida quando se tratava de analisar as formas através das quais a população intervém em suas condições e as mediações que atravessam os movimentos populares, na pluralidade de organizações e formas de luta. Indicava o quanto tal noção era fundamental para analisar o campo de ação onde os atores sociais se movem, mas apresentava limites quando se tratava de entender as possibilidades de ação, ou seja porque e como os atores sociais se movem, e em que medida o fazem de forma diferenciada, a despeito da identidade de suas condições de vida. Com isso, resgatava a necessidade de operar com uma categoria analítica capaz de ampliar a compreensão a respeito da leitura que a população tem de sua realidade e e suas alternativas de sobrevivência. Resgatava assim a noção de experiência de Thompson, já referida, e levantava, assim, a idéia que, apesar de inserida em determinadas condições de vida que conformam seu campo de ação, os grupos populares não respondem reativamente a elas, mas atravessados por sua experiência de vida, que implica uma determinada forma de apropriação da realidade e as possibilidades de ação sobre ela. Trazendo tal discussão para a pesquisa, avaliava que na tarefa de desenvolver um Centro de Documentação sobre as Condições de Vida, se aquilo que a população nos dizia era importante, era importante demais para se perder nos registros seletivos da cada um. Era preciso repensar as questões metodológicas implicadas em nosso trabalho e buscar caminhos de sistematização das informações acumuladas pela equipe do CEPEL junto às favelas da região. Na construção de indicadores era necessário considerar as experiências de vida da população e registrar, bem como sistematizar, as informações por ela trazida, já 17
que não apenas os dados oficiais são “dignos” de serem objetivados. Tais informações eram fundamentais à compreensão da realidade dos moradores da Leopoldina tanto no que se referia às condições de vida, quanto no que dizia respeito às suas experiências e percepções acerca do mundo em que vivem. A experiência aí acumulada, particularmente na articulação entre pesquisa e assessoria a grupos populares atuantes em favelas, me permitiu, a partir de 1997, entrar numa nova área de atuação, participando como assessora pedagógica do PAE (Programa de Aumento da Escolaridade), resultante do Convênio Viva Rio e da então Secretaria Especial do Trabalho. Tal trabalho levou-‐me a amadurecer antigas reflexões em torno dos processos de escolarização de classes populares e a defrontar-‐me com novas questões, relativas às experiências de educação não formal. Ao mesmo tempo, o contato com um leque de agentes sociais (educadores que moram e atuam nas favelas, lideranças comunitárias, alunos e filhos dos alunos), ofereceu mais elementos para compreender a experiência de vida dos moradores de favelas. Ao longo da ação como assessora pedagógica, em uma região que já conhecia bem (a Leopoldina), minha velha preocupação com a história, e as perspectivas de discussão que ela trazia, me fazia pensar que todas as questões que identificava (traduzidas em relatórios de professores, cartas e depoimentos de alunos) não podiam ser perdidas. Precisavam ser registradas e debatidas com os diversos atores que participavam do programa. A coordenação do projeto compartilhava comigo a preocupação com o registro da memória. Da atuação na assessoria pedagógica, passei a coordenar uma pesquisa sobre a história do projeto (1998), procurando, sobretudo, trazer a visão daqueles que eram seus principais protagonistas: alunos e professores. Através desta pesquisa é que pude contribuir, em 1999, na avaliação do PAE, realizada pelo ISER (Instituto Estudos da Religião), levantando então questões relativas ao papel dos educadores, às expectativas dos alunos e à relação de tais atores com a organização comunitária. (...) é fundamental identificar por onde têm passado os caminhos de participação da população nas comunidades. Se muitas vezes os moradores não encontram respostas nas associações, de que forma vêm articulando suas demandas, veiculando suas necessidades e enfrentando seus
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problemas? Quais os espaços que despertam sua confiança e permitem sua atuação? (Cunha 1999)
Posteriormente, rumei para consultoria pedagógica (1999-‐2000), procurando contribuir para uma reflexão sobre o programa e apostando em uma iniciativa que discutisse o conhecimento que vinha sendo produzido nas salas de aula, e onde professores e alunos pudessem se reconhecer como sujeitos, do conhecimento, e também da história. O trabalho deu origem a um Caderno Pedagógico do PAE, elaborado a partir do diálogo entre o conhecimento teórico e as experiências e questões trazidas pelos educadores (orientadores pedagógicos e supervisores) e alunos. Logo depois, junto aos educadores investi no esforço de tornar a pesquisa uma prática em sala de aula e de integrar os vários atores num projeto coletivo, na discussão de uma temática, que era o centro da preocupação dos alunos: o trabalho. Daí surgiu a pesquisa Mundos do Trabalho, onde os alunos de todo o projeto coletaram, tabularam e analisaram informações a respeito dos trabalhadores das localidades onde viviam. Um processo educativo, onde entraram em cena as vivências dos alunos e suas visões de mundo, e a reelaboração de seu saber, através da apropriação de novos conhecimentos e informações.
Percorrer um número maior de favelas do município, particularmente da Leopoldina,
dialogando com “gente comum”, que passava longe do dia a dia da organização comunitária me proporcionou mais elementos para entender a experiência de vida deste mundo, cheio de necessidades e limites, de ausências, mas também de sonhos e ousadias. Um entendimento que era reforçado conforme, também na Leopoldina, voltava ao CEPEL e assumia a coordenação da pesquisa Redes Sociais de Solidariedade na Leopoldina, a respeito das iniciativas sociais existentes nas comunidades da região, e as redes de apoio e solidariedade tecidas dentre elas5.
A investigação então desenvolvida procurava responder a algumas perguntas: que
novas entidades e grupos estão aparecendo nas favelas da região?; quantos são?; como são
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O trabalho daí resultante deu origem à publicação Conhecendo a região da Leopoldina: algumas iniciativas
sociais (1999).
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formados?; o que fazem?; a que população atendem?; como sobrevivem?; qual sua relação com os órgãos públicos e outras entidades da sociedade?
O trabalho de coleta de dados envolveu um levantamento em registros oficiais de
informações (Pastoral Social da Leopoldina, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Regiões Administrativas e Iplan-‐ Rio) e visitas a experiências identificadas pela equipe do CEPEL. Com isso, foi possível configurar um mapeamento de mais 80 entidades e grupos, responsáveis por diferentes iniciativas sociais, que nos proporcionou uma imagem aproximada das ações sociais que vinham sendo desenvolvidas na região, e nos permitiu dar respostas às perguntas iniciais da pesquisa. Dentre tais respostas, destacavam-‐se: § Várias entidades e grupos vinham cumprindo um papel que deveria estar sendo executado pelo Estado, muitas vezes recebendo recursos do próprio poder público, como era o caso de instituições que administravam programas governamentais; § As alternativas indicavam novas formas de ação coletiva, aonde a mudança pessoal vinha lado a lado com a mudança grupal; eram alternativas de enfrentamento da pobreza, onde se destacavam elementos valorizados pela população atendida pelos projetos: auto estima, dignidade e controle da própria vida. § A atuação em iniciativa social, mesmo de forma voluntária, muitas vezes significava uma ganho subjetivo para seus participantes, favorecendo mudanças e projetos individuais que, por sua vez, tinham reflexos sobre as relações de sociabilidade e a coletividade; § Eram várias as iniciativas que se desenvolviam através de uma espécie de rede, costurada geralmente em torno de ações locais e específicas, unindo grupos diferentes em torno de um interesse ou projeto comum; por isso, a rede não era única, e nem juntava todos os grupos e instituições; § A importância da rede localizava-‐se no fato de permitir a sobrevivência de vários projetos e serviços, até mesmo no setor público; o funcionamento da rede implicava em ações conjuntas, troca de serviços e de informações. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, pude me confrontar com uma velha questão, não suficientemente desenvolvida em minha dissertação de mestrado: o mediador na comunidade. E avançar nas reflexões a respeito das ações dos educadores em favelas. 20
Percebia então que havia um processo em expansão do trabalho destes educadores nestas localidades e afirmava: Assim, mesmo contando com dificuldades, crescem os projetos e serviços no campo social que, além de responder a alguns dos principais problemas das comunidades, oferecem alternativas de trabalhos a alguns de seus moradores, fazendo aumentar o número dos chamados trabalhadores sociais. São principalmente agentes e educadores comunitários que possuem um vínculo precário, sem nenhuma estabilidade e garantia trabalhista. Atuam, porém, em vários serviços, levando para seu trabalho aquilo que nenhum curso ou programa de capacitação é capaz de oferecer: sua experiência no trabalho comunitário e o conhecimento das relações existentes nas comunidades (Cunha & Valla 1999: 45)
Destacava ainda a tendência de incorporação de tais trabalhadores em vários programas governamentais, apontando as armadilhas aí presentes, com as quais os moradores já estavam acostumados a conviver: o crescimento de disputas dentro das comunidades já que não há espaço para remunerar todos os trabalhadores sociais; e o reforço político do poder governamental que anuncia a participação ativa da comunidade em programas, onde quase sempre quem dá as cartas é ele, e quem trabalha a baixo custo são os moradores. Trabalha, não apenas executando as ações, mas pensando as soluções para os problemas e conflitos que surgem no desenvolvimento dos programas (Cunha & Valla 1999)
Algum tempo depois, revisitava as mesmas questões em outra região do município,
desta vez atuando como consultora, e posteriormente acumulando a função coordenadora executiva e de projetos da Gestão Comunitária: Instituto de Investigação e Ação Social, ONG que atua na Grande Tijuca, município do Rio de Janeiro. Como ocorreu com o CEPEL, na Gestão Comunitária, minha atuação foi marcada pelo diálogo com os educadores comunitários e profissionais que atuam na área de saúde. Mais uma vez, buscava neste diálogo conhecimentos que fertilizavam minha abordagem do
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universo das classes populares e, por outro lado, procurava alimentar os projetos com alguns de meus referenciais de análise (do campo da história, da educação e da antropologia). No entanto, de forma um tanto diferente do que acontecera no CEPEL, o papel de coordenadora de projetos assumido na Gestão Comunitária, cujas atividades eram principalmente de intervenção nas favelas, me exigiu uma troca ainda maior com os educadores comunitários, à frente das atividades desenvolvidas pela instituição, fundamentalmente no campo da educação e da saúde. Foi este contato estreito com os educadores da Gestão Comunitária, que vivem e atuam nas favelas, que aprofundou minhas reflexões a respeito dos trabalhadores sociais. Vislumbrava um leque diversificado de ações e experiências acontecendo. E por detrás de várias delas, percebia alguns sujeitos especiais. Não eram lideranças com muito tempo de estrada, mas estavam em vários lugares e projetos, governamentais ou de ONG´s. Eram, sobretudo, mulheres, e também alguns jovens, que pareciam percorrer suas localidades apostando nas pessoas a seu redor e num lugar melhor para viver. Eram sujeitos de muitas ações que lutavam por descomplicar a vida e o faziam através de redes de apoio e de alternativas, onde fazer e conhecer caminhavam juntos.
Ao longo do período que se seguiu ao mestrado, a coordenação de várias iniciativas,
todas desenvolvidas junto a moradores e educadores de favelas, me fez perceber com mais clareza os vínculos entre educação e trabalho, educação e família, educação e saúde, educação e memória histórica, educação e desenvolvimento comunitário. E, como que costurando estes vínculos, e procurando melhor potencializá-‐los, destacava-‐se sempre a ação deste personagem: os chamados educadores comunitários, moradores de favelas que atuam em projetos sociais desenvolvidos em suas localidades, atuando na fronteira da favela e “o asfalto”, do local e o global, do público e o não público. Em seus trabalhos percebia um aspecto, sobre o qual me debruçaria mais tarde: O desenvolvimento do trabalho na comunidade exige do educador que ele vá além de sua área mais específica de atuação, pois em seu dia a dia defronta-‐se com problemas que exigem encaminhamentos; assim, segundo os educadores, eles vão se tornando assistentes sociais, psicólogos etc; é importante destacar que a credibilidade, confiança e respeito que o
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educador tem na comunidade está diretamente ligada à sua disponibilidade para responder, e mesmo simplesmente escutar, os problemas dos 6
moradores.
Foram estes educadores que me levaram a perceber que o alimento de meu trabalho como pesquisadora vinha exatamente do saber e da experiência produzida por eles. Trabalho que, por sua vez, só se realizava no compartilhamento social do conhecimento, quando então podia alimentá-‐los com aquilo que carregava em minha bagagem. Foram eles que me inspiraram a elaborar meu projeto de doutorado em 2000. Investigando a fronteira Porque a gente procura caminhar em espiral, é que as descobertas não se desfazem. Posso dizer que foi esta percepção da existência do mediador que me levou a desenhar a pesquisa voltada para os educadores que vivem e atuam em favelas do município do Rio de Janeiro. A lembrança revê... Meu primeiro encontro, e mesmo diálogo, com estes educadores deu-‐se exatamente quando atuava no CEPEL, onde pude acompanhar a assessoria que a instituição oferecia às educadoras do Sementinha Serviços Comunitários, participando inclusive da sistematização da experiência de trabalho do grupo através da elaboração de uma publicação Guia do Bem Estar: um trabalho de Esperança. 7 Defrontar-‐me com o trabalho do Sementinha, dentre outras coisas, me despertou para o particular lugar ocupado por moradores de favelas que atuam como educadores em seus locais de moradia, ou em outras favelas. Até então, minha visão a respeito do universo dos que viviam na favela era um pouco dicotômica: de um lado, os moradores comuns, mais ou menos participantes das lutas comunitárias; de outro, as lideranças voltadas fundamentalmente para estas, mais ou menos vinculadas às associação de moradores. De repente, descobria que havia pessoas na favela que não se localizavam nem no lugar do 6
Relatório de Avaliação dos Grupos de discussão, Gestão Comunitária: Instituto de Investigação e Ação Social, mimeo, 2000. 7 O Sementinha Serviços Comunitários é um grupo formado por mulheres que desenvolvem atividades na área da saúde, em favelas da Penha. O grupo formou-‐se em meados dos anos 80, a partir de uma proposta de mobilização comunitária da Pastoral de favelas da Igreja Bom Jesus da Penha. A experiência histórica do Sementinha e as visões produzidas pelo grupo foi um dos temas da dissertação de mestrado já citada. 23
morador comum, nem da liderança propriamente dita. O que percebi imediatamente é que as mulheres do grupo afastavam-‐se dos outros moradores pelo fato de que circulavam em espaços sociais diferenciados, para além dos lugares aonde viviam. Com isso, posso dizer que o diálogo com o Sementinha me fez relativizar a paisagem das favelas, interrogando uma visão que polarizava a existência social nestas localidades não concebendo lugares outros, exceto o de morador comum e liderança participante do movimento comunitário. Com o tempo, acompanhando o grupo fui desvendando outras questões. As mulheres do Sementinha possuíam uma prática de assistência individual aos moradores. Levavam doentes e idosos aos serviços de saúde, ao banco, e outros locais que eles necessitavam. E acompanhavam aqueles que estavam internados no hospital, zelando por eles e, muitas vezes, respondendo ao estado de abandono que estas pessoas se encontravam em função do mal funcionamento do serviço público ou da negligência/ou falta de condição das famílias. Era evidente no grupo uma prática de solidariedade, que já havia identificado na sociabilidade das favelas, onde necessidades que aparecem como individuais, mas quase sempre são causadas pela falta de acesso aos serviços públicos (de infra-‐ estrutura urbana ou sociais) e pela desfiliação social, são solucionadas numa esfera comum8. Sim, as mulheres do Sementinha, como muitas moradoras das favelas, eram solidárias. Estavam sempre prontas a agir a fim de ajudar quem estava ao lado. No entanto, o que percebi foi que esta solidariedade era mais do que uma prática social local. Ela foi se constituindo como forma de trabalho. O que não cheguei a compreender foi o processo que deslocou esta solidariedade, configurando-‐a como trabalho. De qualquer forma, ver o Sementinha em ação me fez lançar um outro olhar sobre aquilo que até então via como elemento constituinte do modo de vida na favela. Esta questão, assim como a complexidade da dinâmica do movimento popular nas favelas e a posição aí ocupada por estes educadores das favelas-‐ que passei então a conceber como mediador na comunidade -‐ , como afirmei anteriormente, se repôs em todas minhas experiências de trabalho em favelas nos anos seguintes. 8 O termo desfiliação social, trabalhado por Castel (1998) é usado aqui para referenciar a multiplicidade de situações de precariedade que atingem os moradores de favela, num processo que nada tem de estático e que configura um acúmulo de experiências, que vão da vulnerabilidade à desfiliação. Desta forma, questões que são tratadas de forma substancializada e isoladamente, como desemprego, alcoolismo, dependência química, perda de laços familiares e da sociabilidade local, são experiências que fazem parte deste percurso de desfiliação social. 24
De todas estas experiências, o alimento na fronteira, pude colher algumas questões para desenhar a pesquisa levada a cabo no doutorado: a configuração da solidariedade como forma de trabalho; a diminuição da credibilidade das associações de moradores das favelas; os caminhos de participação da população nas comunidades; o crescimento de projetos e serviços no campo social; o aumento dos trabalhadores sociais; o reforço político do poder governamental através da incorporação dos trabalhadores sociais em seus programas; a ação em espiral dos educadores, respondendo a múltiplas demandas nas localidades aonde atuam. No estudo desenvolvido de 2001-‐2005, que deu origem à tese de doutorado Nos desencontros e fronteiras: os trabalhadores sociais nas favelas do município do Rio de Janeiro, sob a orientação do Prof. Gaudêncio Frigotto, procurei enfocar a experiência de um grupo de trabalhadores sociais, moradores de favelas que desenvolvem ações em suas localidades, ou mesmo em outras, integrados a programas e projetos governamentais ou não governamentais. E refletir sobre as particularidades deste trabalho, compreendendo-‐o como uma prática educativa, mediadora, que se constitui num terreno que denominei de fronteira, e que encontra aí seus limites, mas também suas maiores possibilidades, no que se refere à realização da promoção da autonomia. Foi aproximando-‐me do conceito de campo de Bourdieu que cheguei à noção de fronteira, concebendo-‐a como um lugar do mundo social onde estão alojados diferentes agentes sociais, todos voltados para a intervenção social nas favelas mas que ocupam posições desiguais neste mundo. Compreendi ainda a fronteira como espaço fundamental de mediação do político, onde se defrontam interesses diversos e, muitas vezes, divergentes e em disputa. Na busca de uma melhor compreensão desta fronteira, realizei uma aproximação histórica com os processos subjacentes à configuração histórica deste terreno, produzido no âmbito do que Martins, a partir da leitura da obra de Lefebvre chama de desencontro entre o econômico e o social, presente nas sociedades capitalistas (1997). E recuperei ainda alguns elementos fundamentais à gênese da fronteira, onde atuam os trabalhadores sociais e outros mediadores, oriundos do poder público, de igrejas, ONG´s, universidades e diversas organizações da sociedade civil. Localizando-‐o no âmbito do mencionado desencontro e na fronteira, analisei o processo de trabalho dos agentes sociais estudados, demarcando algumas de suas 25
características e refletindo sobre suas experiências e cotidiano de trabalho, seus processos de formação e de legitimação no campo do trabalho social. Os resultados da pesquisa demonstravam que assim como o trabalho social, a miséria e a precarização instalam-‐se também em espiral, sem parar, demonstrando o impacto dos efeitos do atual desencontro sobre a vida nas favelas, e outras áreas de pobreza. Os efeitos expandem-‐se em espiral, atuando sobre o social e o cultural, mas, ainda, sobre o político e o econômico.
Por isso, a fronteira alarga-‐se, quanto mais cresce o desencontro. Configurando-‐se
como território de disputas, alimentadas por interesses diversos e caminhos divergentes diante do desencontro. A despeito do esforço de muitos e da configuração de experiências e movimentos que procuram humanizar o fazer social, ela cresce num sentido que desumaniza a tessitura social, as relações e existências aí presentes, tornando-‐as refém da lógica do mercado e do jogo político-‐partidário. É uma dinâmica desencontrada, onde os programas e projetos sociais são criados, mobilizando uma soma enorme de recursos, mas atuando de forma setorizada e num ritmo sazonal. No âmbito desta dinâmica, os trabalhadores sociais são inseridos precariamente, as demandas sociais são controladas através de diferentes mecanismos, e respondidas de forma precária. É uma dinâmica que não universaliza direitos, nem estabelece estruturas permanentes que respondam àquilo que não é sazonal. A pesquisa indicou ainda que, inseridos de forma precária nos programas e projetos dos quais participam, os trabalhadores sociais enfrentam esta precariedade com as armas que dispõem. Exploram sua experiência de vida e o saber que possuem a respeito da “comunidade”, potencializando-‐os. Reinventam o valor da flexibilidade, presente na lógica do mercado, realizando várias atividades ao mesmo tempo e potencializando seu tempo, fazendo circular experiências e conhecimentos de uma iniciativa para outra. Apropriam-‐se do mecanismo da parceria, presente na dinâmica desencontrada, criando redes que permitem a sustentação de seu processo trabalho, e que acionam para responder às demandas dos moradores. Produzem “segredos”, que tornam possível enfrentar a precariedade de sua inserção nos programas e projetos, a precariedade das condições de realização de seu trabalho e a precariedade da favela.
Pude perceber que através destas ações que vão deslocando suas existências. Nas
localidades, vão constituindo-‐se como “referências”, tornando-‐se uma “uma instituição” em 26
movimento. Na fronteira, buscam um melhor posicionamento de forma a fazer avançar seus projetos individuais, familiares e coletivos. Deslocando-‐se, entram em aliança com alguns agentes sociais, e em confronto com outros. Tanto nas favelas, quanto na fronteira. “A nossa vida, a gente vive no fio da navalha, a gente se expõe”, me disse certa vez um morador de favela à frente de um projeto em sua localidade. Deslocam-‐se no fio da navalha, na tensão entre a necessidade de não parar na espiral, e não perder a legitimidade construída. Com a pesquisa, pude confirmar o que observei ao longo dos anos em que acompanhei vários projetos sociais em favelas. A espiral de trabalho dos trabalhadores sociais, moradores destas localidades, move-‐se sob o ritmo da urgência. A urgência impõe a necessidade de acumular ações e de estabelecer um leque de interlocuções, buscando o sustento individual e familiar, a sustentação do processo de trabalho, e a sustentabilidade das ações de forma a dar algum tipo de resposta aos moradores das favelas. Nada disso é garantido pela estrutura dos programas e projetos nos quais estes trabalhadores estão inseridos, uma vez que eles se fundamentam numa dinâmica precária e sazonal. E é por isso mesmo que é preciso mover-‐se com urgência. Na urgência, os trabalhadores sociais acabam por produzir uma forma de trabalho que lhes permite enfrentar a precariedade, mas não combatê-‐la. Os traçados flexíveis do trabalho, às vezes, possibilitam que se desloquem na fronteira, mas, inscritos nos limites de uma lógica de mercado e do jogo político-‐partidário, não se desdobram em ações que tornem possível a construção de estruturas permanentes no fazer social, e universalizem direitos. O que pude perceber é que, de certa forma, o limite de seus traçados acaba sendo o movimento. Se expandem suas ações e seus projetos, produzindo demandas e agregando diferentes agentes sociais, passam a viver o risco de serem demitidos, não terem apoio para suas atividades ou projetos, e passam a ser objeto de controle de muitos. Aqui cabe lembrar o que diz Martins, analisando a obra de Lefebvre: No vivido, a práxis é contraditória. Ela reproduz relações sociais. Mas Lefebvre observa, não há reprodução de relações sociais sem um certa produção de relações, não há repetição sem um certa inovação. (1996)
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Concluí que este era o maior impasse deste processo de trabalho. Aquilo que lhe dá particularidade, e potência, o movimento em espiral, é também o que o coloca em risco. Porque o movimento em espiral é um movimento cuja existência contraria a lógica inscrita nos programas e projetos, e que produz “inovação” em meio à “reprodução”. É um movimento que cria demandas e “referência”, aonde existe precariedade e sazonalidade. Se assim for, ele está sempre sob riscos: de ser controlado, parado ou se perder.
Por fim, a pesquisa chegou ao fim indicando uma agenda de questões em aberto, que
passaram a fazer parte de meu horizonte: §
o papel da religiosidade no processo de trabalho destes agentes sociais: grande parte dos trabalhadores sociais pesquisados pertencem a grupos e instituições religiosas e, em muitos casos, percebi que os grupos religiosos aos quais pertencem fazem parte de suas redes de sustentação, o que me faz pensar que objetivamente eles cumprem um papel importante em sua experiência de trabalho, reforçando seu papel de “referência” junto aos moradores; os valores ligados a religião os alimentam, e alimentam seu movimento em espiral; deslocam-‐se movidos pela percepção de que são investidos da missão de traçar sua vida e trabalho, como testemunhos da obra de Deus; tais valores concorrem para levar a espiral para onde?;
§
As iniciativas que os trabalhadores sociais vem desenvolvendo em suas localidades, reunindo-‐se a outros trabalhadores e procurando construir projetos que nascem de suas experiências e discussões; quase todos os trabalhadores com os quais tive contato vem procurando criar seus projetos, cada qual aproximando-‐se de áreas/ grupos/ temas/ formas de ação com os quais tem afinidade, e onde acumulam experiências; tais iniciativas, que possuem uma relativa autonomia, não vem lhes trazendo ganhos objetivos pois, na maioria das vezes, desenvolvem estas atividades voluntariamente; mas há um ganho subjetivo em termos de realização e de posicionamento na fronteira, pois assumem aí funções que não possuem em projetos para os quais trabalha: elaboração do projeto, gerenciamento, planejamento, coordenação das ações; a questão que me coloco é quais os desdobramentos destes projetos para as localidades e na fronteira?; qual o sentido que dão a espiral?
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Considerando o imenso universo de trabalhadores sociais hoje presente na fronteira, quais os significados que o trabalho social está assumindo para os diversos “perfis” 28
de trabalhadores?; há diferenças entre eles, até mesmo dentro da pequena fatia deste universo que procurei abordar; uma indagação é até que ponto tais diferenças retalham este universo, indicando sentidos divergentes para o trabalhar social; e em que medida as disputas na fronteira não concorrem para aumentar estas diferenças, produzindo abismos?; de que forma tais abismos concorrem para controlar a espiral? Ou fazê-‐la parar e se perder? Desafios na fronteira Sem abrir mão de minha posição de fronteira, ao mesmo tempo em que desenhava a pesquisa e avançava no doutorado, “alimentava-‐me” acompanhando projetos desenvolvidos por ONG´s: inicialmente como coordenadora na Gestão Comunitária (até 2002), posteriormente como coordenadora da Rede de Informações da Agenda Social Rio (2003) e avaliadora dos projetos de intervenção social do CIEDS(Centro Integrado de Estudos e Programas de Desenvolvimento Sustentável). Pesquisar no campo de ação profissional....este foi um desafio da pesquisa desenvolvida no doutorado. Primeiro, difícil conciliar o tempo de ação do trabalho como educadora em ONG´s com o tempo de ação como pesquisadora. Os impasses cotidianos das atividades em ONG´s, e, especialmente, o fato destes impasses envolverem o trabalho de um conjunto de pessoas, vão nos tragando. A urgência nos precipita a todo instante, tornando o tempo de ação, tempo de decisão. Decisão é precisão, ainda que depois seja necessário ajustar o impreciso. Com a pesquisa, sabemos, acontece o inverso. Cada desafio exige a elaboração, investigando cada beco, em busca de respostas. O tempo de ação é tempo de mastigação, de um certo saboreamento das coisas que vamos encontrando pelo caminho: pistas, respostas, mais perguntas...Com isso é difícil o tempo lento de pesquisa não acabar subordinando-‐se ao ritmo das precipitações requeridas no outro ofício. Hoje, perguntando-‐me como lidei com isso, digo que não foi possível dar uma resposta a esta contradição, de divisão do trabalho. Por vezes, simplesmente deixei-‐me levar, pelo tempo, digamos, imperioso das atividades em projetos das ONG´s. Outras vezes, procurei compatibilizar meus vários tempos, minhas várias faces, abrindo mão, ora de um
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papel, ora de outro, o que me fez ter a sensação de que me tornava um ambiente Windows, com várias janelas, a serem abertas e fechadas. Estes desafios metodológicos, surgidos a cada instante do trabalho, absorveram boa parte de minhas reflexões ao longo da pesquisa. Investigando o trabalho do outro, passei a revisitar o meu, refletindo sobre as tramas deste ofício que é ser educadora e procurar produzir conhecimento na encruzilhada de muitos saberes e experiências, meus e de outros. Saberes e experiências produzidos em espaços diferenciados, desiguais, sob lógicas diversas. Muitas vezes contrapostos e privados da possibilidade de se encontrarem.
Em várias ocasiões, em tal reflexão, busquei inspiração nas próprias pessoas que pesquisava, trabalhadores sociais que tentam equilibrar seu tempo exercendo várias atividades, encarnando uma multiplicidade de papéis. Com eles aprendi que não é possível dar respostas a uma contradição, que exige muito mais do que o esforço de cada um. Mas que é possível enfrentar o conflito, traficando conhecimentos e experiências de um ofício para outro, de forma potencializá-‐los. E assim, me esforcei para ser um pouco pesquisadora quando estava em ação, em meu outro ofício. E para abrigar um tanto do ritmo das precipitações, requerido nas várias atividades junto a projetos sociais nas favelas do Rio de Janeiro, quando desenvolvia a pesquisa. Enfim, de algum modo precisei reinventar todo o meu trabalho, como educadora e pesquisadora. E, com isso, acabei por repensar a pesquisa, no campo onde atuo, junto a grupos populares. Reforcei minha antiga percepção da pesquisa como produção compartilhada de conhecimento, fundamental ao campo educativo. Nesta pesquisa, mais do que nunca descobri o sentido do inacabado e do imponderável quando se trata de desvendar segredos do humano e do social. O movimento não está apenas inscrito no histórico-‐social, ele se coloca o tempo todo na relação do pesquisador-‐pesquisado. Em alguns momentos, foi colocando meu roteiro de pesquisa de lado, e deixando me surpreender pelo movimento dos entrevistados, ou dos participantes de grupos focais, que pude ter acesso ao inesperado, que acabou se revelando fundamental na compreensão do processo de trabalho dos agentes sociais enfocados. Enfim, tive a certeza de que, muitas vezes, é no meio do caminho que encontramos algumas respostas que buscamos, fundamentais a pesquisa. Em alguns momentos, foi me subordinando ao ritmo das precipitações, exercendo o papel de educadora, que descobri algumas pistas para este trabalho. Foi mediando impasses, e mesmo conflitos, entre 30
educadoras com as quais trabalhava, que me defrontei com as diferenças entre elas, e do trabalho que desenvolviam, revendo a imagem homogeneizadora que até então eu cultivava a respeito da questão. Em outros momentos, foi abrindo mão de minha agenda de investigação que avancei na compreensão da experiência de trabalho dos agentes sociais pesquisados. Com freqüência, nestes momentos, pude ouvir das pessoas que desistia de entrevistar, o que sequer passava pelo meu horizonte de inquietação. Foi assim que descobri algumas das dores, subjetivas e físicas, produzidas pelo trabalho destas pessoas. Dores que não encontram-‐se no campo das dificuldades ou obstáculos ao trabalho, sobre as quais todos os educadores falam. São subterrâneas, vindo à tona em momentos que envolvem situações de conflitos, injustiças, que pude acompanhar. Alguns dos depoimentos que ouvi nestas ocasiões ampliaram minha compreensão a respeito do trabalho que estas pessoas exercem. Mas, não raramente, eles não puderam ser incorporados à pesquisa, sob a forma de “dados”. Desabafos quase sempre se recusam a ser processados como “dados”. Semeando na fronteira
Enquanto me dedicava a compreender o universo material e simbólico das classes
populares, bem como suas relações com os profissionais mediadores e com o poder público, assumia também o papel de docente no ensino superior.
Quando comecei a dar aulas no Centro Universitário Augusto Motta, em 1995, eu
estava chegando ao fim do mestrado, e atuava como pesquisadora do CEPEL, mergulhada em desafios que pareciam seguir em descompasso com a realidade da sala de aula da faculdade. A instituição de ensino localiza-‐se em Bonsucesso, região da Leopoldina. Apenas isso aproximava os trabalhos desenvolvidos, cada qual de um lado da fronteira. Em minha visão, havia um tanto de improvável no fato de ter trilhar as travessias da educação popular e dos movimentos sociais, e estar dando aulas de História do Brasil e Historiografia. Mas logo, instigada pelos próprios alunos, descobria que sob o improvável, está o possível. Tinha muito a discutir e compartilhar com eles. Matriculados num curso de licenciatura história, eles viam no horizonte a possibilidade do magistério, ou no caso daqueles que já davam aulas no primeiro ciclo do 1o grau, tornarem-‐se professores de história.
Foi trazendo minha experiência para a sala de aula que encontrei o caminho do
possível que procurei buscar no meu ofício como professora na graduação de história: os 31
impasses implicados na produção do conhecimento histórico e na reprodução do conhecimento na escola, processos que colocam os abismos existentes entre pesquisa e ensino, sujeito e objeto, professor e aluno; a abordagem da História do Brasil a partir dos processos de exclusão política e social que marcam a experiência histórica de nossa sociedade.
Tal caminho tornou-‐se ainda mais fértil quando, passei a ser responsável pela
disciplina de Pensamento Social Brasileiro, trazendo então para sala de aula as diferentes perspectivas dos pensadores brasileiros a respeito de nossa sociedade. E quando, assumi as disciplinas Prática de Ensino em História e Pesquisa e Prática Pedagógica do curso, compartilhando com os alunos reflexões que já vinha desenvolvendo em pesquisas e que, de forma geral, debruçavam-‐se sobre os processos históricos e sociais que marcam a estruturação e dinâmica dos espaços educativos, e as experiências dos agentes aí inseridos.
Foi principalmente a docência na disciplina de Prática de Ensino, que inicialmente
concebi como um mal necessário, que ampliou meu horizonte de visibilidade, permitindo que ressignificasse meu trabalho na instituição. Conviver com os desafios trazidos pelos alunos-‐estagiários, com suas expectativas, ideais e tensões próprias ao momento em que a condição de professor se instala , me fez perceber o curso com outros olhos. Outro fato que contribuiu para que desse novo sentido ao meu trabalho como docente na instituição, foi o crescimento do curso e o aumento o número de alunos, provenientes das classes populares, muitos dos quais educadores e(ou) moradores de favelas. A partir de então, o descompasso existente entre minha docência na instituição e minha ação profissional em outros espaços foi se dissipando. Percebi que na faculdade atuava junto aos mesmos sujeitos sobre os quais me debruçava em minhas pesquisas, e cujos trabalhos acompanhava nos projetos de intervenção social. Fui então, incorporando, o trabalho como docente no curso de licenciatura em história ao “lugar de fronteira”, que vinha construindo, estabelecendo elos com minhas outras atividades. Mais uma vez, o elo maior que unia todas estas frentes de trabalho era o “popular”, a produção compartilhada do conhecimento e o papel do mediador.
Foi esta mudança que, recentemente, me levou a posicionar-‐me de forma mais
afirmativa no curso, elaborando a proposta de um Núcleo de Estudos e Pesquisas em
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Memória, de forma a incentivar os estudos sobre as favelas da região e as escolas onde os alunos desenvolvem estágio. Na configuração da proposta recuperei as experiências desenvolvidas em pesquisas anteriores e, principalmente, junto ao Grupo Condutores de Memória, que acompanho desde a época em que atuei na Gestão Comunitária9. Seguindo a reflexão de Pollack (1989), avalio que o crescente interesse pelo tema da memória resulta do crescente esgarçamento do tecido social das sociedades ocidentais contemporâneas, marcadas pelo desafio de construir ou reconstruir identidades pulverizadas, seja pelas configurações político-‐sociais que produziram os dramas das minorias étnicas e dos diversos “marginalizados”, seja pelos processos político-‐sociais e econômicos, que reproduzem em escala ampliada a imagem do “excluído”. Neste caso, a memória comparece como um elemento importante no projeto de (re)construção de identidades, e constituição de novos elos, contribuindo assim para a recuperação do esgarçamento do tecido social, e para democratização de sociedades marcadas pela desigualdade e por clivagens tão intensas, como é o caso da nossa sociedade (Cunha, 2005). O projeto elaborado na Unisuam fundamenta-‐se então na perspectiva de que, em nossa sociedade, a memória vem assumindo visibilidade social, mobilizando o interesse não apenas de pesquisadores e professores, mas de diferentes atores sociais, tais como lideranças e educadores comunitários, técnicos do poder público e de ONG´s, e empresas. E ainda, que ela encontra-‐se no centro de reflexões, pesquisas, e ações educativas e sociais, voltadas para a questão da identidade de espaço histórico-‐sociais, grupos sociais ou categorias profissionais e, especialmente, de segmentos historicamente marginalizados, como é o caso das chamadas minorias étnicas ou sociais, ou mesmo de grupos banidos de determinadas sociedades em função de conflitos políticos (Pollack,1989:2). E como a gente caminha em espiral... Revê, vê e transvê... Redescobrir os alunos do curso, revisitar meu trabalho como docente, levantar propostas novas de trabalho, me fez assumir o desafio de assumir, desde abril de 2006, a coordenação do curso de História da
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A origem do grupo Condutores de Memória remonta a um projeto elaborado, em 2000, no âmbito da Agenda Social Rio, e coordenado pela Gestão Comunitária e pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). O trabalho desenvolvido pelo grupo, formado por moradoras e educadores de favelas da Grande Tijuca, foi abordado em trabalho apresentado por mim no Encontro Regional Sudeste de História Oral, em Juiz de Fora (2005). A experiência do grupo é também o tema principal de um artigo que encontra-‐se no prelo, a ser lançado pela Gestão Comunitária.
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instituição. Uma nova semente em minha posição na fronteira. Novos elos para me ajudar a construir nesta posição. Como transver? Tem momentos mesmo, em que, roubando as palavras de uma educadora cujo trabalho acompanhei um pouco, “a gente não tem uma visão para enxergar aquilo mais longe”. Penso que passamos por este momento. Momento em que é preciso recorrer as nossas melhores armas. Tentei, e ainda venho tentando, me voltar para elas. Busco na história, com suas permanências e rupturas, um alimento para compreender melhor a tessitura do terreno histórico-‐social em que pisamos. E assim como os trabalhadores sociais, que rememoram em conjunto, procuro fazer disso um caminho que possa compartilhar, de forma a irrigar a reflexão. Minha outra arma, é traficar experiências e conhecimentos, de um ofício para o outro, da educação junto aos trabalhadores sociais para pesquisa acadêmica. Agregar o que aprendo lá e cá, para tentar “enxergar mais longe”. Neste movimento, procuro usar minha terceira arma, agregar esforços e sair do isolamento, que torna tudo mais longe, tornando a espiral um círculo aprisionador. De certa forma, ao longo dos anos, aprendi este movimento de agregar, em toda sua dimensão existencial, social, cultural e política, com os educadores/trabalhadores sociais. A gente chega sempre ao final com perguntas, porque vive em movimento. E compartilha as perguntas porque é preciso lhes dar respostas. E as respostas requerem movimento, liberdade e agregação. Isso foi outra coisa que aprendi com os trabalhadores sociais. Eles sempre dizem coisas que nos fazem pensar, nos deslocar e nos incentivam a agregar: “As pessoas arrumam 1001 formas de ganhar dinheiro com a miséria. Isso não é humano. Não existe humanidade. Não posso compartilhar com isso”, “A gente fica muito restrito no local que a gente atua”. “Tinha dias que você marcava a reunião era uma pessoa só. Mas não deixou cair” “ Você quer der certo, você quer que as coisas aconteçam”. “O social eu faço junto a muitas pessoas. Eu estou com outras pessoas. Porque se eu fosse fazer o social sozinha, eu acho que seria muita ousadia pra dizer que eu faço sozinha”.
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“Será que não era o momento de você também ter uma outra postura, se posicionar mesmo?” “E viver não é só respirar oxigênio. Não é só ter um coração batendo. Viver é participar da vida. E participar da vida é ser vida na vida do outro. Então, eu dedico toda a minha história em cima de ser vida na vida do outro. Se não, não tem sentido viver. Só tem, quando eu posso ser mais vida”. Referências nas memórias: BOURDIEU, Pierre.. 1989. O poder simbólico. Lisboa /Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil. BOSI, Ecléa. 1988. Problemas ligados à cultura das classes pobres In: VALLE, Edênio & QUEIRÓZ, José J.(org.), A Cultura do Povo, 4aed. São Paulo: Cortez. CALDEIRA, Thereza P. 1984. A Política dos Outros. O Cotidiano dos moradores da Periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Brasiliense. CARDOSO, Ruth. 1978. “Sociedade e Poder: representações dos favelados de São Paulo”. Ensaios de Opinião, v.6, Rio de Janeiro: Inúbia. CASTEL, Robert. 1998. As Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes. CHALHOUB, Sidney. 1986. Trabalho, Lar e Botequim, São Paulo: Brasiliense CUNHA, Marize. 2005. O alimento e a relação: o trabalho de memória em experiências de pesquisas e projetos educacionais nas favelas do Rio de Janeiro, VI Encontro Regional Sudeste de História Oral, Associação Brasileira de História Oral, Juiz de Fora. ________________. Nos desencontros e fronteiras: os trabalhadores sociais nas favelas do município do Rio de Janeiro, tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação, Niterói, Universidade Federal Fluminense. _____________. 1999. “O PAE: introduzindo algumas questões” In: ISER (org). Contribuições para a Oficina de Trabalho Avaliação do PAE (Convênio Secretaria Municipal do Trabalho e Viva Rio), Série Avaliações, Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião-‐ ISER. _____________. 1995. Grotão, Parque Proletário, Vila Cruzeiro e Outras Moradas: História e Saber nas Favelas da Penha, dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação, Niterói: Universidade Federal Fluminense. ______________. 1992. A Marginalidade em Questão: Conflito Social, Condições de Vida e Cotidiano na Favela. 1992. Relatório de pesquisa CNPq, IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro. 35
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