Memórias Alentejanas do Século XX

June 5, 2017 | Autor: M. Almeida | Categoria: Twentieth Century History and Culture, Oral History and Memory, Alentejo
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Memórias Alentejanas do Século XX Por Maria Antónia Pires de Almeida

Lisboa, 2010 ISBN: 978-989-8131-73-7.

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Índice:

Capítulos Introdução 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 Bibliografia

Classificação profisisonal

data de idade na nascimento entrevista

Rendeiro agrícola, chefe da UCP Farmacêutico, proprietário agrícola Trabalhador rural, caseiro Trabalhadora rural, caseira Alugador de máquinas, rendeiro agrícola Tractorista Trabalhador rural, seareiro Trabalhadora rural Proprietária agrícola Médico, proprietário agrícola Proprietário agrícola Veterinário, proprietário agrícola Trabalhadora rural, empregada doméstica Trabalhadora rural, empregada doméstica Trabalhadora rural, dirigente de creche Trabalhadora rural Trabalhadora rural, empregada doméstica, emigrante Proprietário agrícola Trabalhador rural, jornaleiro Trabalhador rural, jornaleiro Pastor Empregada de escritório duma Fundação agrícola Engenheiro técnico agrário, presidente de câmara Engenheiro Agrónomo Advogado, proprietário agrícola

1939 1931 1928 1933

59 67 70 65

1929 1938 1929 1929 1916 1953 1951 1940

69 60 69 69 82 45 47 58

1924

73

1920

78

1928 1923

70 75

1923 1916 1931 1923 1937

75 82 67 75 61

1951

47

1944 1942 1930

54 56 68

Médico, proprietário agrícola Proprietário agrícola Gerente do Grémio da Lavoura, proprietário agrícola Emigrante, comerciante, director de cooperativa agrícola e lagar Carpinteiro Carpinteiro

1928 1953

70 45

1925

73

1926 1936 1927

72 62 71

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Introdução: Como parte integrante da minha dissertação de doutoramento em História Contemporânea, sob o tema da Reforma Agrária em Portugal, realizei em 1998 uma série de entrevistas aos intervenientes no movimento num concelho do distrito de Portalegre que assumiu um papel de liderança em todo o processo. Esta recolha oral foi utilizada como fonte e argumento para a tese, foi citada e contextualizada. Vários autores têm usado a memória oral, a etnobiografia e as histórias de vidas cruzadas como fonte para trabalhos de investigação científica. Praticamente todos os que escreveram sobre Reforma Agrária realizaram um importante trabalho de campo, utilizando o privilégio de contactar directamente com os actores da história que tinham acabado de presenciar. Como diz António Barreto, a recolha da memória oral tem a vantagem de permitir o contacto directo com as testemunhas dos acontecimentos. Depois de avaliado, esse trabalho foi publicado pela Imprensa de Ciências Sociais em 2006, sob o título A Revolução no Alentejo. Memória e Trauma da Reforma Agrária em Avis. Contudo, o acervo das entrevistas, no fundo histórias de vida de pessoas comuns, não estava acessível a um público mais vasto. O estudo de retratos biográficos, como disciplina integrante da Sociologia e da Antropologia, encontra-se em franco desenvolvimento, não só no meio académico, como no acesso mais directo ao público, em suportes tão diversos como o cinema1, a internet2, as gravações áudio, as entrevistas nos media e a publicação das mais variadas biografias e auto-biografias de personalidades públicas ou não, com maior ou menor relevância. O interesse parece crescente, tanto no que diz respeito ao contexto das figuras da história e das elites sociais e políticas, como aos cidadãos anónimos e às pequenas histórias que eles podem ter para contar. Neste trabalho apresento histórias de vida de uma geração em vias de desaparecimento, ou em grande parte já desaparecida, que viveu o regime do Estado Novo em meio rural e participou activamente na transição para a democracia. As entrevistas foram realizadas a membros das várias classes sociais intervenientes no processo da Reforma Agrária num concelho do distrito de Portalegre, e produziram uma variedade de histórias de vida que não deveria perder-se com o falecimento dos protagonistas. O critério de selecção obedeceu a uma tentativa de amostragem do ecletismo da população local. Saliento que quase todos tinham mais de 60 anos à data 1

Por exemplo com o filme de Inês de Medeiros – Cartas a Uma Ditadura, 2006. Em sites dos mais variados, tanto nacionais, como o www.memoriamedia.net, assim como internacionais, por exemplo o caso do United States Holocaust Memorial Museum – http://www.ushmm.org/remembrance/registry/. 2

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da entrevista. Alguns estavam na casa dos 30 no período das ocupações, incluindo os líderes locais do processo. Este trabalho pode trazer para novas gerações de leitores um mundo totalmente desconhecido. Considerando que a maioria da população portuguesa actual é urbana e toma o regime democrático como algo adquirido e incontestável, talvez a leitura de vivências rurais dos anos 40 e 50, e do período revolucionário português da segunda metade dos anos 70 do século passado, permita a tomada de consciência de uma série de factores formadores do regime em que vivemos e de alguns dos problemas que afectam a sociedade portuguesa contemporânea. Espero que o resultado constitua uma obra de grande interesse humano e com alguma importância histórica e sociológica. Os intervenientes são apresentados de forma anónima, apenas com a indicação da sua actividade profissional. E as entrevistas foram transformadas em discurso directo, com texto seguido, eliminando as perguntas. A ordem de apresentação é aleatória. Saliento que as transcrições foram feitas incluindo as variantes do sotaque e mesmo algumas incorrecções ortográficas e gramaticais utilizadas pelos entrevistados, o que teve a intenção de valorizar a riqueza da linguagem regional e das expressões originalmente utilizadas, e de modo nenhum é usado de forma depreciativa. Também se verifica que o discurso é pouco organizado, mas esse facto é revelador do encadeamento das ideias e do tipo de organização da memória de cada indivíduo. A recolha da memória oral implicou três fases distintas: a preparação das entrevistas, com a respectiva fundamentação teórica e metodológica; as entrevistas propriamente ditas; a transcrição das gravações e a análise da linguagem e dos temas recorrentes. Vários autores têm usado este tipo de fonte, especialmente nos períodos revolucionários. No caso português há exemplos de investigadores que viveram com os trabalhadores das cooperativas, participando entusiasticamente nos trabalhos rurais, como foi o caso de Jochen Bustorff. Este tipo de abordagem do meio rural não é novidade: no início do século XX Léon de Poinsard visitou praticamente todo o país e produziu uma análise bastante realista da lavoura portuguesa (além do sector das pescas e das minas), mas com manifesta tendência ideológica. Ora se esta se manifestou em 1910, mais ainda seria de esperar dos estrangeiros que visitaram o Alentejo no período revolucionário de 1974-76. Este foi o caso de Nancy Bermeo, politicamente marcada por fortes tendências de esquerda. O seu trabalho foi seguido 20 anos depois por Michael Baum, o qual já apresenta um maior distanciamento político. 5

Também em Espanha a recolha da memória oral dos habitantes do meio rural constituiu um marco nos estudos antropológicos e sociológicos. Por exemplo Martínez Alier estudou a região de Córdova, onde realizou um importante trabalho de campo em 1964-65, recolhendo testemunhos orais. No seu livro La estabilidad del latifundismo…, verifica-se que esta província de Espanha possui características sociais muito semelhantes às do Alentejo e o autor expôs as dificuldades pelas quais passou para realizar as suas entrevistas. Devido à forte barreira de comunicação habitualmente encontrada nos meios rurais, considerei muito mais razoável o tipo de entrevista não dirigida, fundamentada teoricamente nos clássicos Paul Thompson e Georges Granai, e mais parecida com uma conversa informal do que com um inquérito. Não cheguei ao extremo de utilizar a observação participativa sugerida por Giddens para o trabalho de campo, como o fizeram José Manuel Sobral, Miguel Vale de Almeida e Francisco Martins Ramos. Antes segui a técnica do apuramento de Histórias de Vida, cada vez mais usadas na Antropologia e na Sociologia em consequência da crescente importância atribuída à utilidade da memória oral e dos documentos pessoais na investigação em Ciências Sociais. Este tipo de recolha inspirou-se no trabalho pioneiro de Hamilton Holt, o editor do jornal Independent, que em 1906 reuniu num livro os relatos que a sua equipa de jornalistas recolheu por todos os Estados Unidos da América. O seu objectivo era deixar os homens comuns falarem3, o que resultou num livro de grande interesse humano e com uma enorme importância histórica e sociológica. Naturalmente, surgiu a tentação de copiar o estilo, expondo as life stories dos meus undistinguished alentejanos as told by themselves de forma integral e exaustiva, não esquecendo nunca de “deixar falar” os meus entrevistados. Segundo Jean Poirier et al., o interesse nesta recolha reside no facto de os sujeitos entrevistados serem os depositários de valores históricos de uma cultura que se pode chamar “tradicional”, muito diferente da cultura “racional” que lhe sucedeu. Franco Ferraroti, na sua obra La Historia y lo Cotidiano, destaca como uma das características essenciais da História Oral o facto de constituir precisamente a ponte de intersecção ou a consciente mediatização entre a História histórica e a vivência do

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“His team of journalists looked for ‘average’ and representative people in order to get answers to such questions as, where do you come from? if you were not born here, then why, when, and how did you come to America? are you better off or worse than you were in the past? what is your job? how much money do you make? what house do you live in? how do you spend your day? what are your pastime activities? and, are you happy? The answers are touching and fascinating, and they go far beyond the sociological information they also provide...”, Werner Sollors (2000), “Introduction”, Hamilton Holt – The life stories of undistinguished Americans as told by themselves (1906), expanded edition, New York & London, Routledge, p. viii.

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quotidiano. Este autor defende ainda que a história oral pode não ser exclusivamente retrospectiva: também pode ser meio específico de nós vermos o nosso quotidiano. Especificamente sobre o tema da Reforma Agrária, também Afonso de Barros fez um levantamento de relatos de vida na sua tese sobre Albernoa, localidade onde realizou entrevistas que focaram principalmente a história pessoal, a situação anterior às ocupações, as ocupações de terras, organização e funcionamento das cooperativas; posição face aos pequenos agricultores…. Como levantamento das características de um grupo, este trabalho é valioso. Peca, no entanto, pela exclusividade que concedeu aos trabalhadores rurais, como se estes tivessem sido os únicos intervenientes do processo. A sua escolha determina um posicionamento ideológico e foi politicamente orientada. Já António Barreto não esqueceu os proprietários expropriados, os pequenos proprietários não ocupados, os seareiros4 e outros agricultores envolvidos, preocupação também revelada por Catarino et al. No Alentejo vários factores contribuíram ainda para aumentar as dificuldades: Entre os trabalhadores existe um certo receio de falar sobre actos que se realizavam na clandestinidade antes de 1974, como se o perigo da prisão ainda fosse real, ou o entrevistador tivesse intenções ocultas que pudessem prejudicar o entrevistado. Este receio parece ter ficado marcado para sempre no grupo em questão. Por outro lado, em alguns proprietários, além do desagrado em expor a sua privacidade, nota-se a preocupação com alguma remota possibilidade de que a ocupação das terras se repita. Apesar da Reforma Agrária, da substituição das elites, da democratização institucional e política, a clivagem social está ainda muito presente na mentalidade local. As barreiras entre os grupos ainda estão presentes de forma visível, os ricos continuam a ser os ricos, os pobres continuam a considerar-se pobres. Mesmo que estas designações já não tenham nem remotamente o significado que tinham há 30 anos atrás, quando Cutileiro as usou. Alguns trabalhadores analfabetos já têm netos licenciados, mas um “senhor doutor” ainda é algo muito distante. Esta dificuldade colocou-se na minha aproximação a este grupo, assim como se manifestou no contacto com o grupo dos grandes proprietários: numa sociedade que já não é bipolarizada, mas que ainda age como tal, eu não estava integrada em qualquer dos pólos. Logo, era vista com desconfiança pelos dois. Além da falta de integração social 4

Seareiro: caseiro que lavra por sua conta, a quarto ou quinto, terras cedidas pelos proprietário ou rendeiro geral (Picão 1983: 26. “Os seareiros são pequenos cultivadores, trabalhando por conta própria nas terras alheias ou comunais, que tomavam de arrendamento com condições mais precárias do que os rendeiros, e mediante o pagamento de uma quota parte da colheita” (Oliveira, Galhano, Pereira 1995: 82. Ver também Cutileiro 1977: 69-70. E Martins e Monteiro 2002.

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da entrevistadora, outro ponto de contacto entre todos os entrevistados foi o da privacidade e este problema teve de ser abordado com bastante cuidado e respeito. Para somar às dificuldades, o facto de ser mulher: se ajudou sem dúvida no contacto com o elemento feminino, abrindo-me portas intransponíveis para um homem, complicou um bocado, sobretudo na parte inicial das entrevistas com os elementos do sexo masculino, pouco acostumados a estabelecer qualquer tipo de conversação com o sexo oposto. Por cortesia, não deixaram de me conceder as entrevistas. Face a este panorama, o método utilizado foi o da aproximação cautelosa aos entrevistados por via de apresentação por parte de terceiras pessoas. Estabelecido o contacto telefónico ou pessoal, concedida a autorização para a visita em local previamente estabelecido (na maioria dos casos em casa das pessoas, noutros casos nas quintas), lá chegava então o momento crítico. O questionário não era mostrado e as perguntas surgiam na sequência de uma conversa informal. No caso dos trabalhadores, a apreensão inicial era visível, o medo ou apenas a desconfiança em relação ao gravador e à lista de perguntas estava ligado à referida herança do regime político anterior. Quanto aos proprietários, naturalmente não havia este receio, mas sim um certo pudor; em geral até tomavam uma atitude muito descontraída, apesar de haver certos temas e afirmações nos quais pediam especificamente para não serem citados ou mesmo para que eu desligasse o gravador. Depois de desviar a atenção dos elementos perturbadores, a entrevista começava pelos antecedentes e relações familiares, infância, condições de vida, educação, habitação, vestuário. Entre os trabalhadores, quase todos tinham um pai ou avô moiral (maioral de gado, tanto de pastorícia, como do trabalho da preparação das terra e das colheitas com carros puxados a parelhas5), que recebia comedias (ou comedorias – parte do salário em géneros). Ao fim da primeira hora muitos se revelaram grandes contadores de histórias, entusiasmados por terem uma audiência e capazes de falar abertamente sobre emoções e sentimentos. Surgia então o período da angústia e constrangimento, também descrito por Giddens, ao entrar em contacto com as descrições da miséria e do isolamento do mundo exterior que se sente numa comunidade rural. Alguns entrevistados derramaram lágrimas ao descreverem as dificuldades por que passaram, tanto na infância, como na vida adulta, principalmente por problemas de saúde e de pobreza, e pelo sofrimento das suas mulheres e filhos6. Um alugador de máquinas emocionou-se ao descrever o homem que o ajudou a 5

Ver definições em Martins e Monteiro 2002. Também Navarro (1978) comenta que alguns dos seus entrevistados choraram ao contarem os problemas de saúde que tiveram por falta de dinheiro. 6

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comprar os primeiros tractores, a quem ele chama um segundo pai. Tudo isto sem qualquer tipo de vergonha, pelo contrário: estas descrições eram apresentadas com orgulho e dignidade, quase como num ritual catártico, durante o qual o sofrimento era apresentado como uma forma de valorização pessoal. Aliás, o factor da saúde, a descrição das enfermidades, principalmente por parte das mulheres, ocupou grande parte das entrevistas do grupo dos trabalhadores. Finalmente, quando eu desligava o gravador, então era difícil terminar e sair. Era a altura das revelações mais custosas, aquilo que tinha sido omitido com o gravador ligado. Analisando as entrevistas, revela-se que cada membro de um grupo lembra o que para esse grupo é significativo e que compõe a representação pública do passado desse mesmo grupo (ver Tonkin 1995). Contudo as questões permanecem e ficam aqui lançadas para que cada leitor encontre as suas próprias respostas, segundo a sua leitura das vidas aqui descritas e o entendimento que tiver sobre o tema. Quem eram os habitantes do meio rural dos meados do século XX? Como viviam, como se comportavam? Quais as suas aspirações e qual o papel da agricultura nas suas vidas? Como eram essas pessoas, o que as motivava? E depois, qual o impacto da reforma agrária nestes grupos, tanto no dos ocupados como no dos ocupantes? Algumas constatações podem sem dúvida ser destacadas no grupo dos trabalhadores rurais: O gosto pela narrativa oral entre esta população, o prazer em “contar histórias” e, sobretudo entre os homens, a eloquência e a ironia do discurso e até mesmo o humor na descrição de algumas adversidades. A vivência feminina de uma adolescência animada pelos trabalhos rurais e pelo convívio que estes proporcionavam, seguida invariavelmente pelo sofrimento, sobretudo após o casamento e a chegada dos filhos. E ainda a subtileza do discurso sobre o aborto e a contracepção, tema importante nesta região do país, onde o número de filhos foi mais reduzido do que no Norte ao longo do século XX (Almeida 2008b, Nazareth 1977, Freire e Lousada 1982). A infância dos rapazes no campo desde muito cedo a trabalhar, privados da escola pelas distâncias e pela necessidade de auxiliar a família. O carinho nas referências aos cônjuges, e a admiração pelos sacrifícios e qualidades de trabalho.

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A importância dos comerciantes locais e do comércio a fiado. A diferença social dos trabalhadores rurais em relação aos grupos com um ofício. A frequência da escola por parte das crianças deste segundo grupo, motivada pela residência em vilas e aldeias, e não em espaços rurais, afastados e sem acesso às escolas. A melhoria das condições de vida de uma geração para a outra, que todos salientam. Importância das cartas de recomendação de pessoas com algum peso social, para arranjar uma colocação. Sempre a preocupação com uma melhor remuneração para o trabalho. Entre os proprietários outras constatações se apresentam: A mágoa pelas ocupações das suas terras, a sensação de injustiça, o gosto pela terra e pela lavoura, o desejo da continuação da actividade, mesmo perante as dificuldades crescentes que se apresentam à agricultura portuguesa. Uma curiosidade: por coincidência, as netas de uma proprietária e de uma trabalhadora rural estavam ambas a tirar o curso de Psicologia, provavelmente até eram colegas. Verificou-se na última geração uma transição cultural muito repentina, entre pais que nem frequentaram a escola e filhos que tiraram licenciaturas. Em ambos os grupos se verifica um enorme orgulho pelas conquistas académicas dos descendentes, as quais por um lado os afastam da vivência rural, mas por outro são reveladoras de qualidades intelectuais muito valorizadas pelos progenitores e que podem originar estilos de vida considerados muito mais favoráveis dos que a tradicional “vida do campo”. Na tese académica foram analisadas cada uma das entrevistas, cada tomada de posição, cada grupo, foi tudo enquadrado no ambiente político da época, à luz da legislação e da cronologia dos factos, que não têm muita discussão. Aqui será o leitor a fazer essa análise e a fazer as comparações que quiser. No final, pode discordar de tudo o que eu concluí na tese, ou até poderá dar-me razão. O que se deseja é que cada leitor tire alguns momentos para reflectir sobre os sentimentos que experimentou ao entrar na intimidade destas pessoas que são reais e que abriram os seus corações sobre um processo que os marcou para a vida. E que tome consciência de que afinal nem todos são bons ou maus, nem todos são ladrões ou vítimas, e que todos acabaram por sofrer penosamente com o processo da reforma agrária no Alentejo.

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1 – Rendeiro agrícola, chefe da UCP7. N. 1939, 59 anos. Tem de desculpar, é casa de maltês!8 Os meus pais eram justos a determinada altura, depois outras alturas trabalhavam de jorna, chamavam-se jornaleiros. O mê pai nasceu aqui, e o meu avô e o meu bisavô foram todos criados aqui. E eu nasci também aqui neste monte. Isto na altura era de uma senhora do concelho ao lado. Aqui havia um descontentamento muito de trás. De gerações. As pessoas trabalhavam muito, eram sacrificadas, olhe: eu posso dizer-lhe que quando eu tinha os meus quatro, cinco anos, e os meus pais ainda não foram dos mais carenciados, vamos lá, e eu era filho único, e a gente comia uma sardinha. E eu, como era o menino, o meu pai comia um bocadinho além da cabeça da sardinha, a minha mãe comia a outra parte da cauda e eu comia ali o meio, que eles me davam. Uma sardinha para os três. Tínhamos três refeições por dia, era tudo à base do pão. Era a açorda, a alimentação: eram migas, era o pão, as migas que eram feitas com pão. Havia as pessoas que faziam contratos, chamavam-se os justos. Esses depois, conforme o cargo que executavam, tinham outras regalias, por exemplo: comprava-se um porco, depois esse porco comia bolotas juntamente com as do patrão e depois matava-se o porquito gordo… Eram as comedorias. A carne era conservada e assim… E recebia-se quatro alqueires de farinha por mês, 3,5 litros de azeite… Eu trabalhei desde cedo. Saí da escola em Julho quando fiz a 4ª classe, e em Agosto comecei a guardar ovelhas, tinha 10 anos. Andei sempre no campo. O problema que existia no Alentejo é que a propriedade era de meia dúzia de pessoas e as pessoas viviam miseravelmente mal. Por exemplo aqui neste monte viviam 50 pessoas, tinham três casas e viviam, por exemplo, um casal tinha seis, sete filhos – o que na altura era a média – e eles viviam em três casas. Começava-se a trabalhar hora e meia antes de nascer o sol, no campo, e deixava-se o trabalho, em determinadas alturas, meia hora depois do pôr-do-sol. Se o 25 de Abril se dá aí na altura que foi a candidatura do Humberto Delgado e essa gente toda, se calhar 7

Unidade Colectiva de Produção, vulgo “cooperativa”, constituída com as terras das herdades ocupadas. As normas e critérios para o seu reconhecimento e funcionamento, e para que estas pudessem beneficiar de assistência técnica e financeira do Estado, foram estabelecidas pelo Decreto-Lei nº 406-B/75, de 29/7/1975. 8 Maltês: trabalhador eventual, itinerante. Trabalhador, que vive em maltas, sem domicílio certo (Figueiredo 1925). Indivíduos que “andam à jorna semanal ou a seco, trabalham avulso, não por temporadas (…) é o nome que se dá no Sul aos trabalhadores que vêm trabalhar de umas terras para outras, na pode, cava ou vindima. O conjunto deles chama-se a malta. São ajustados ou vêm oferecer-se” (Vasconcelos 1980, vol. V: 663). “Novos e ágeis pela maior parte, não inspiram simpatia a quem os vê, antes causam asco e repulsa, pelos seus tipos hediondos, sujos e esfarrapados. Estes párias desprezíveis são os chamados malteses (…) súcia de vadios” (Picão1983: 43-44). Ver descrição completa em Martins e Monteiro 2002.

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teríamos muito sangue corrido por essas terras, porque nessa altura havia muita fome. Só que a polícia não permitia; a gente éramos praticamente polícias uns dos outros e tudo o que um ouvisse contra o regime, que fosse contar, já sabia… Sofria-se muito, no Alentejo. Olhe que a gente descalços, descalços, aí no campo… Eu já tinha 10 anos, mas havia rapazes com sete, oito anos a correr aí atrás dos animais no campo. Eu sofri muito. E depois não havia o que há hoje, umas capas impermeáveis, eram uns sacos do adubo que púnhamos aqui nas pernas por causa dos carapetos e da chuva. Tive os meus primeiros sapatos a sério foi quando fui fazer exame, tinha nove anos. Eu vivia aqui na freguesia e tive de ir à vila. Fomos todos numas carrocitas que havia, depois havia pais que tinham uma carroça e levavam os outros. A religião era outra situação. Isso era outra situação de revolta que muitas pessoas tinham, que era: a gente para trabalhar nesta casa tinha de ser casado pela igreja. Se não eram, tinham de casar, se não, não lhe davam trabalho. Quer dizer: era obrigatório. E então o que é que faziam: por exemplo, quando vinha uma campanha, vinham os padres, vinham as senhoras esclarecer as pessoas o que era a religião e depois casavam todos os que não estivessem casados. E baptizavam-lhes os filhos. Aqui neste monte era tudo benzido: benziam os burros, benziam as mulas e benziam as ovelhas, benziam tudo, o padre estava ali para sacar aquela… Naquela altura o problema era este: o próprio regime em si, quem não era católico, não era ninguém. Porque o próprio regime assim o obrigava. E as pessoas… Ou estava com o regime ou, se não estivesse com o regime, era opositor. E então tinham consequências, as penalizações. Mas as pessoas não tinham tendência a ir à igreja. Se eu vou respeito. Às vezes eu ouço falar, no Alentejo que a religião católica, não sei que mais. As pessoas não praticam, mas também não hostilizam. Se houver uma festa, se houver uma procissão, participo. À missa, se calhar vão para aí uns 5%. Mas não hostilizam. Não há memória, a não ser um caso fora do normal, do vandalismo destruir uma igreja no Alentejo. Cá nunca se destruiu, pelo contrário, reconstrói-se coisas que estão caídas, abandonadas, que a igreja não tem dinheiro, e as coisas melhoram-se. Na escola havia um livro que era, que a gente… moral? Tínhamos um livro, e quem nã sabia moral, nã passava. Eu fiz a Primeira Comunhão, ainda me confessei, se não era logo marginalizado pela própria professora. Porque também, para se ser professora, na altura, também tinha de obedecer a uns certos requisitos que o próprio regime exigia.

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Nos anos 60 ainda vinham ratinhos9, normalmente eram da Beira. Vinham as criancinhas pequeninas, alguns traziam gaiatos pequenos, com sete, oito anos. Esses homens também sofriam aí imenso. Não faz ideia. Ganhavam pouco e comiam mal. Algum animal que fosse, morria de velho, conservavam à base do sal. E depois quando as pessoas vinham comiam aquilo. A maior parte deles depois adoecia. O calor e a água, e o comer estragado. Trabalhavam de dia e de noite, aquilo era uma exploração desenfreada. Por exemplo, o proprietário dizia que tinha X hectares de terreno semeado, para ceifar. E depois havia aquele indivíduo que contratava, tomava a responsabilidade. E trazia tantos homens. Mas logo o proprietário enganava a pessoa, porque, se tinha 70ha, por hipótese, dizia que só tinha 50. E depois aquilo tinha um prazo para estar pronto. As pessoas só recebiam depois de acabar. As pessoas chegavam a trabalhar até às 10, 11 horas da noite. Sempre a ceifar, sempre a ceifar. Depois dormiam por aí, no campo. Mas isso era geral. Os daqui não gostavam deles, porque havia aquela rivalidade: se eles não viessem, as pessoas aqui na zona ganhavam mais dinheiro. Porque na altura eles tinham necessidade de fazer as colheitas, não havia mão-de-obra suficiente, já o mercado de trabalho estava esgotado. E eles podiam andar ali por mais dinheiro. Quando vinham os ratinhos, o pessoal daqui arriscava-se a ganhar menos ou mesmo a ficar sem trabalho. Vinham muitos. Eu cheguei a ver aqui, nos anos 56, 57, 58, era capaz de vir para aqui mais de 1.000 trabalhadores. Eles tinham de ceifar, atavam, faziam montes. Depois aquilo tinha de vir ser junto a 10 ou 15m. E então vinham uns gaiatos mais pequenitos, 10, 11 anos, apanhavam e juntavam. Houve períodos de desemprego, às vezes seis meses e mais. Só que a gente ópois na altura cada um tinha de se tentar defender. Havia a azeitona no inverno. Porque chovia… A gente, se andasse a fazer um trabalho e chegávamos lá ao campo, começava a chover, vínhamos embora e não ganhávamos nada. E dantes chovia semanas e meses seguidos. A gente andava a esgalhar sobreiros, a cortar, que é andar em cima de uma árvore, de machado a cortar, para lenha. E depois o trabalho que havia era a azeitona. Então havia as pessoas que conseguiam apanhar a azeitona, mesmo a chover. Mas aquilo era um X ao quilo, ao litro, na altura, ainda começou a ser ao litro, depois mais tarde passou a ser ao quilo, pronto, era de empreitada, olhe, o que se apanhava era o que se ganhava. Se trabalhasse pouco 9

Ratinho: trabalhador sazonal que se deslocava em ranchos para realizar empreitadas de ceifas de cereais. Tinham características diferentes do trabalhador local. Estes “assalariados sazonais” ou “operários sazonais” (Medeiros, 1976) constituíam uma força de trabalho semi-proletarizada (Cunhal, 1968) frequente nos campos do Alentejo e Ribatejo até meados do século XX. Enquanto no Alentejo os trabalhadores vindos das Beiras eram chamados “ratinhos” ou ceifeiros beirões, na região de Coimbra os trabalhadores que para lá se deslocavam sazonalmente tinham a designação de “caramelos”. Quanto aos que iam para o Algarve, eram chamados “bimbos” (Martins e Monteiro 2002).

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ganhava pouco. Outros iam para os lagares. Cada um defendia-se. E outros coitados… Depois era o problema. Uma pessoa não tinha um trabalho, tinha mulher; na altura qualquer casa tinha quatro ou cinco filhos, pequeninos, sem ninguém ganhar nada, o pai não ganhava, a mãe não ganhava, as pessoas… Era a fome. Depois iam ao merceeiro, que vendia fiado. As pessoas iam levantando. Depois ao Verão pagavam, mas alguns depois já não eram capazes de pagar. Depois chegava o Inverno, lá o dono da mercearia já não lhe fiava. Depois era fome. Nesse tempo já havia comunistas. E esses defendiam-se uns aos outros, na clandestinidade. Eu entrei para o Partido Comunista tinha 17 anos. A primeira coisa que me deram a fazer foi ir pôr uns cartazes no prédio10 do médico, porque na altura ele era da União Nacional. Estava lá no parlamento. E ele tinha tomado conta duma herdade da mulher. Ele tinha uns cães muita grandes naquele quintal do prédio. E havia umas amoreiras na rua e os cães eram muita maus. Eram rafeiros alentejanos. Então era para pôr lá uns papéis a chamar nomes ao homem, que ele não dava trabalho e não sei que mais. Sabe como é que a gente iludiu os cães? Éramos dois: um pôs-se dum lado a fazer figas aos cães, mas isto aí às duas, três da manhã, não é? E pendurámos mesmo na porta do médico. Quando ele saiu de manhã encontrou o papel. No outro dia era guarda aí por todo o lado à pergunta a ver se sabiam quem era. Na outra vez levava aqui assim o peito todo cheio de papéis para irmos deitar na aldeia ao lado, espalhar pelas freguesias. E à vinha11 apareceu uma patrulha da Guarda Republicana a cavalo. E a gente ouviu as patadas dos cavalos, escondemonos lá dentro dumas casas, escondemos aquilo tudo… naquela altura era assim. Eu cá tive ligação sempre, e fiz muito trabalho para o partido. Por exemplo, eu tinha de ir, várias vezes, espalhar panfletos. E aquilo era uma repressão militar que existia, né, o trabalhador andava a cavar e chegava o patrão e toda a gente se tinha de pôr em sentido e tirar o chapéu. E só depois de ele mandar trabalhar é que as pessoas voltavam a trabalhar. E se algum não fizesse isso era logo lá a guarda, era esvergastado logo ali. E às vezes ele chamava os rapazes lá ao prédio e zurpava-os12. Mas havia outros patrões que não o exigiam, chegavam lá, diziam ou bom-dia ou boa-tarde… O meu pai não era militante do partido, mas era simpatizante. E ópois a gente, olhe, porque isto, eu não posso considerar que tinha uma ideia do que é que era o 10

Nome que se dava às casas apalaçadas, com dois andares. Na volta. 12 Batia-lhes. 11

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comunismo ou não, eu nã tinha. Eu o que sei é que vivia mal, trabalhava, em 24 horas trabalhava por exemplo 17 ou 18 horas, não era remunerado do meu trabalho e vivia descontente com essa situação. O único apoio que nós tínhamos era dos panfletos que a gente lia do Partido Comunista português que nos abria o caminho para a gente exigir… Distribuíam aí, espalhavam aí. Depois havia quem passasse. E falávamos, aí por esses cabeços, de noite, a malta falava. As ceifeiras começaram a aparecer… Eu não tenho as datas exactas, mas olhe que as ceifeiras só começaram a aparecer talvez em 58, 59. E era ali uma por acaso, muito distanciado. Mas ópois a partir dos anos 60 é que começou-se a encher isto tudo. Tractores, ceifeiras… Porque ópois, também houve aquela situação da primeira tentativa dos trabalhadores quererem as oito horas e foi muita gente presa e nã lhas deram… Mas depois conseguiram, mais tarde. A primeira vez que se fez a tentativa das oito horas parou aqui o concelho todo. Foi uma segunda-feira. Até à tarde. E as pessoas concentraram-se. Depois apareceu a guarda, começou a prender, cada um fugiu para seu lado. Foram uma série deles presos nesse dia, à tarde. Depois os outros, cada um fugiu. Depois uns abalaram, foram ceifar para o Baixo Alentejo, outros foram para outros lados… Depois mais tarde voltaram. A única coisa que se conseguia era mostrar o nosso descontentamento pela situação. Depois, não sei se em 62, as pessoas então paralisaram mesmo a nível do Alentejo quase todo. E o governo reagiu e tiveram que dar as oito horas. Mas era uma luta que já se vinha travando há vários anos. Depois diziam: “Como é que é possível as oito horas de trabalho, depois anda uma parelha – na altura os tractores ainda não apareciam, eram poucos – anda a trabalhar, chegam as oito horas, vai na estrada, abandonam ali aquilo…”. Quer dizer, tinham confusão para provar, na mentalidade deles, que não era possível as oito horas. E depois, nessa altura as pessoas trabalhavam muito, quase que não os deixavam beber água. Quando era a ceifar as oito horas, aquilo era sempre, sempre, sempre de empreitada. As pessoas sofriam muito. Depois foram outras coisas, agora as oito horas já não têm importância. Aquilo era assim: havia sempre pessoas penalizadas. Daquilo que eu conheço, os outros mais velhos terão outras experiências. Mas aquilo que eu acompanhei no caso das oito horas, a primeira vez que eu estive metido nisso e outras mais, e a gente era assim: a gente tínhamos um controle de três pessoas, só. Eu se fosse, por exemplo, preso pela PIDE, e não fosse capaz de me calar, eu só podia descobrir duas pessoas. Depois a gente falava. Depois marcávamos. No dia tantos, às 11h da noite, às duas horas da noite… Ou em casa de fulano, ou vamos aí para o campo. Era nesses montes. Isso dantes estava tudo habitado, mas íamos para onde não havia 15

assim muita gente. Havia montes só de uma família. Ou até mesmo no campo. Às vezes, para não correr certos riscos, a malta preferia ficar no campo. Depois fazia-se. Falávamos uns com os outros e depois às vezes alargava-se a 20 ou 30 pessoas. Penso que a revolta, quase que se poderia dizer, nessa altura, na agricultura, era 100%. Mas depois há o temperamento de uns e de outros. Por exemplo, se andavam 20 homens a trabalhar. E as pessoas ganhavam pouco. E estavam sempre a ver se ganhavam mais algum. “Vamos pedir ao patrão que nos dê mais 10 tostões.” Muitos dos trabalhadores que estavam nesse grupo não sabiam que já havia uma organização atrás deles que tinha discutido os pormenores, como é que havia de ser. E depois havia sempre um que tinha que avançar. Normalmente, o que avançava com a proposta só lá trabalhava nessa semana, porque ao sábado era logo despedido. Mas era um que tinha esse feitio. Houve pessoas que sofreram na carne as consequências… Arriscavam na mesma. E eram despedidos, e… Depois, havia também, quando as pessoas eram presas, faziam-se bailes, arranjavam-se verbas de solidariedade, dava-se à senhora… As pessoas tinham consciência disso. E as pessoas eram amigas, e ajudavam. E convivia-se mais do que hoje. O sentimento contra os ricos era generalizado. Porque a senhora veja: havia pessoas que suportavam tudo, mas um pai ou uma mãe, com quatro ou cinco filhos, sem saber o que lhes há-de dar de comer… Querer trabalhar para arranjar comer e não ter. Isso era uma revolta constante. Havia pessoas que se suicidavam, havia outros que dava-lhes para chorar. Depois o temperamento nervoso de cada um levava-o a fazer… Depois também havia casos de alguns que eram afilhados do patrão, o patrão ajudava-os. O próprio patrão rodeava-se também de meia dúzia de pessoas a quem ele dava… Por exemplo, a gente andava aí a trabalhar e chamava a essa gente os bufos. Eu andava a trabalhar mais 10 ou 12. E desses 10 ou 12 havia um… Eu, por exemplo, ganhava 20 escudos e o patrão dava a um ou dois desses 21. E esse trabalhava mais depressa. Eu, como andava com ele, tinha de trabalhar também mais depressa. Eles rodeavam-se dessa gente. E a gente depois sabia. Às vezes até pessoas que a gente… Tinham outras regalias, tinham outro tratamento. Mas ajudava só enquanto ele tinha interesse próprio para ele. Porque no dia em que não precisasse dele, o tratamento que ele fazia a esse era o mesmo que fazia aos outros. Eles lá havia um ou outro a quem eles guardavam um certo respeito, mas a amizade que eles tinham aos trabalhadores não era nenhuma. Também havia trabalhadores que não tínhamos amizade. Andávamos lá porque também tínhamos de andar, mas também não lhes tínhamos amizade nenhuma. Veja que isto era aquase pouco melhor que a 16

escravatura: a gente, quem trabalhava ao ano, quando era no Verão, começava-se a trabalhar, quem tinha, por exemplo, tínhamos de ir colher o pão para a eira, chamavase a eira para a máquina vir debulhar. O trigo estava no campo, e os carros iam lá buscar e concentrava-se o trigo todo ali no local que chamavam a eira. Antes de nascer o sol tínhamos de já ter na eira uma carrada de trigo desses carros. E depois dependia da distância. Essas circunstâncias todas levavam que a gente, ali num dia… E as nossas mães e as nossas avós é que nos iam depois levar ali um bocadinho de pão com aquele toucinho rançoso, amarelo, que era do porco que se tinha matado em Janeiro, e que estava metido em sal. Depois faziam-se uns caldinhos de farinha, dessa farinha de pão, de que hoje se faz o pão. Era farinha torrada. Torravam a farinha, um caldito disso e depois era lá a trabalhar até ao meio-dia. Depois ao meio-dia almoçávamos. Tínhamos duas horas para descansar. Mas a pessoa que era responsável por ter de ir trocar os animais para o trabalho, esse não descansava nada. Ia levá-los onde andavam os outros a comer e tinha de trazer outros para ao fim das duas horas já estarem outra vez metidos nos carros para irem buscar trigo até meia hora depois de se pôr o sol. Quando era meia hora, quando não era uma hora ou mais. Quem controlava era o feitor13. Havia também o abegão14, normalmente o homem que mandava no campo. Havia homens indesejáveis, havia outros… Porque esses já tinham de manter um certo ouvido entre o patrão e os trabalhadores. Eles estavam ali no meio. Mas eles puxavam sempre para o lado do patrão. Havia sempre descontentamento. Havia patrões que só cá vinham de 5 em 5 meses. Porque havia muita gente que vivia longe das propriedades. E não havia os transportes que há hoje, não é? O rendeiro era também uma pessoa mais sacrificada. Porque o próprio trabalhador já tinha mais à vontade de falar com o rendeiro do que com o senhor da terra. E já exigia mais. E, como o rendeiro, a receita dele dependia da exploração, também não a podia deixar estragar. Tinha de a fazer na devida altura. E isso levava a uma maior ligação entre os trabalhadores e o rendeiro da terra. Diferente daquela que era com o proprietário. E havia pessoas que deixavam estragar as coisas. Por exemplo havia um que tinha muitas romãs. As romãs eram apanhadas e as nozes

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O feitor era o encarregado da exploração agrícola, dirigia todos os trabalhos de uma lavoura (Martins e Monteiro 2002). 14 O abegão era um feitor de herdade ou quinta, que dirigia todos os trabalhos realizados pelos maiorais das mulas e dos bois, pelos ganhões e pelos sotas com carros de bovinos ou muares. Também podia ser um empregado fixo contratado ao ano e encarregado da abegoaria, onde se realizavam trabalhos de carpintaria a todos os carros e utensílios agrícolas (Figueiredo 1925, Picão 1903 e Martins e Monteiro 2002).

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para dar aos porcos. Se um desgraçado dum trabalhador fosse visto a comer uma noz ou uma romã era logo despedido. Havia pessoas más, más, más, pronto. Mas havia outros que, sendo maus, não eram tão maus. As pessoas só começaram a sair daqui depois da construção da barragem. Isso é que deu aqui também um grande impulso para as pessoas, para a gente começar a compreender que a vida não podia ser aquilo. E então daqui abalou muita gente. A barragem criou muito emprego na altura, e as pessoas habituaram-se a esse trabalho e depois abalaram. Porque na altura era os Melo, era a CUF, que davam aqui muito trabalho, eram várias empresas, e depois foram para outras obras para outro lado e muita gente abalou daqui. A seguir de 1962, mais a partir de 64, é que abalou muita gente. Começou a abalar muita gente do Alentejo. Depois vieram as fábricas, e o tomate é uma das culturas que ainda emprega muita gente, já não é tanto como era, porque hoje já está tudo mais mecanizado e isso, com as coisas feitas à máquina… Mas na altura resolveu, deu emprego a muita gente. Principalmente a fábrica do tomate. Dava trabalho. Havia trabalhos em linha, que era na altura, agora já não era assim. O tomate era apanhado para dentro dumas caixas, depois as caixas eram descarregadas na fábrica e tinha de haver homens a despejar as caixas constantemente para dentro da linha e as mulheres a tirarem. Pronto, isso normalmente eram pessoas que estavam habituadas a trabalhar no campo. Tinham uma certa preparação física. Os rendimentos evoluíram pouco, porque normalmente regulavem-se pelo campo, está a perceber? Nós no Alentejo temos cortiça, temos êcalitros15, temos pedra mármore, temos pinheiros, temos tudo, mas a indústria está no norte, porque a preocupação dos proprietários era ter um mercado de mão-de-obra sempre disponível, para que ele escolhesse, e para manterem os salários baixos. Porque se eles precisassem de 50 homens e só tivessem 25 tinham de lhes subir o salário, mas eles precisavam de 50, tinham 200 na praça! Então eles davam só aquilo que queriam. E as pessoas que tinham necessidade para comer… Depois começou a guerra colonial. A orientação do partido era da malta não embarcar. Houve muitos que fugiram, foram para França, para a Holanda. Mas de cá não tenho conhecimento. Eu andei lá seis anos em África e às vezes a guerra ultrapassa os limites daquilo que até os próprios comandantes e responsáveis prevêem. Eu ainda andei lá um ano e tal, lá no mato. E depois é que… Eu fui soldado raso. Fui cabo 24 horas, depois… Aquilo foi assim: a gente um dia fomos destacados 15

Eucaliptos.

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para ir para um lugar, lá para uma zona, e a gente, a malta revoltou-se. A gente foi uns 22 recrutas, depois houve pancadaria entre os oficiais e os soldados e depois houve cinco que fomos responder a tribunal de guerra. Aquilo é daquelas coisas que saem em conjunto, depois o oficial esteve 8 dias na sala de reanimação e o sargento esteve na enfermaria e o cabo foi também para o hospital. Escute lá, eu já disse assim: ninguém deseje uma guerra, que não é bom para ninguém, é a coisa mais triste que há! Eu ainda hoje quando falo nisto me arrepio e já de lá vim há 30 e tal anos; nenhum vem de lá em condições de tratar da vida dele logo ali nos primeiros meia dúzia de anos, porque a malta vem de lá completamente traumatizados. Porque aquilo vê-se e faz-se as… Depois vai do temperamento de cada um: uns sofrem a ver fazer, e outros sofrem se não o fazem. Estive preso lá em África quase seis anos. Olha, passou. Eu fui preso em Junho de 1961 e saí em Julho de 67. Eu estive em Lourenço Marques, na altura era Lourenço Marques e o presídio era na esquina grande. Quando vim de África fui taxista. Foi quando casei, e arrendei uma casa. Depois já em 72 ou 73 comprei uma casa. Quando eu fui taxista já era uma diferença em relação à ocupação que os meus antepassados tinham, fui muito diferente. Mais tarde, o meu pai tinha umas ovelhas e quando eu estive em África o meu pai guardava as ovelhas e comprava bocados de pastagem. E depois eu tive conhecimento aqui de uma herdade de uma senhora, e que as pessoas que estavam a explorar a herdade a iam deixar. Então disse ao meu pai: “A gente, com o dinheiro que devia pagar por aqui um bocadinho de pastagem para as ovelhas, a gente vai ver se a senhora quer arrendar aquilo.” Arrendámos a herdade por 15 contos nessa altura. E depois comecei a trabalhar mais o meu pai. E depois deixei de ser taxista em Fevereiro de 74 e dá-se o 25 de Abril passados dois meses. Isso era uma das coisas que se previa, porque em África, em 66, 67, lá no mato o descontentamento dos próprios oficiais era muito, porque havia também uma rivalidade na guerra, entre os oficiais do quadro permanente, chamavam eles, e os milicianos. Todos dizem isso. E havia isso porquê? Porque os milicianos iam para o mato, e os outros, os do quadro, eram poucos os que por lá passavam. Ficavam, ou no quartel-general, ou em lugares mais seguros, pronto, não iam para o mato. E havia um grande descontentamento. Mas o movimento dos capitães não foi uma coisa que se realizou assim num ano ou dois. Aquilo demorou. Mas falava-se: que em Portugal qualquer dia vai haver uma revolta, vai haver uma revolta, isto não pode continuar a ser assim… O problema das ocupações, quanto a mim… Na altura, em 75, ou 74, poucos eram os jovens que não passavam pela guerra, não era? O espírito da revolta que as 19

pessoas traziam por aquilo que tinham passado, e depois por as circunstâncias que encontravam, levavam-nos a um maior descontentamento. Isso contribuiu bastante. A malta que avançava era malta que também tinha uma certa estratégia da própria guerra. Isto houve aí alturas de campanha, que foi uma completa batalha campal: era a guarda por um lado, só que uns tinham armas, outros não tinham nada, não é? Cada um defendia-se como podia. Isto durou, ainda durou muitos anos. Quem começou a ocupação das terras foram os pequenos agricultores e os alugadores de máquinas. Porque na altura passava-se já uma crise no sector, muitas pessoas tinham comprado os tractores e depois não tinham trabalho. E viviam uma crise, tinham as contas para pagar. Havia proprietários que alugavam os tractores para fazerem um serviço. E havia os alugadores de máquinas. Alguns nem tinham terra nenhuma deles. Foram pessoas que adquiriram uma máquina. Por exemplo, era um tractorista. Depois tinha um certo jeito para aquilo e um senhor que esteve aqui, que contribuiu muito para isso, vendia tractores. Então as pessoas, ele tinha uma certa confiança numa pessoa e dizia: “É pá, tu tens condições, vendo-te um tractor”; e ele dizia: “Eu não tenho dinheiro!”. “Vens aqui ter na segunda-feira, levas o tractor, levas umas alfaias e vais-me pagando”. Eles eram trabalhadores rurais, tinham alguma reserva, e outros nem deram entrada. O homem dava-lhes as máquinas. Como eles eram trabalhadores e ele conhecia-os, e sabia que eram honestos e sérios… E as pessoas fizeram a vida assim. Eles é que guiavam. Havia muita gente que tinha uma parcela de terra e não tinha animais para trabalhar a terra, começou a alugar o tractorzito. E depois uma pessoa queria fazer, por exemplo, 4 ou 5ha de tomate, não tinha tractor, alugava um tractor. Isso foi a partir de 1962, 63. Eles iam trabalhando o ano inteiro. Porque havia propriedades que estavam cheias de mato que alguns proprietários tinham, depois queriam desfazer o mato e alugavam essas máquinas. As primeiras ocupações aqui no concelho foram feitas precisamente por esses senhores das máquinas. E a seguir, atrás deles, entraram os trabalhadores agrícolas a fazerem a limpeza do mato, das árvores… A primeira ocupação neste concelho era uma situação que vinha já de atrasado, estava em processo de julgamento. E aquilo não prestava e então dissemos: “vamos ocupar as que não estão tratadas”. E se tivesse filmadas as cenas todas que aí houve…! As ocupações não foram planeadas. Quer dizer, não houve um plano a dizer: “Vamos ocupar”. Houve um ponto de orientação que se tinha de fazer a Reforma Agrária. Mas depois os próprios trabalhadores, em cada região, em cada local, é que tomaram a sua iniciativa própria, a nível de concelho, a nível de freguesia, a nível local. Não nos foi dito assim: “Hoje tem de se fazer isto”. Havia a orientação para 20

ocupar as propriedades, as propriedades de mais de determinada dimensão e que estivessem subaproveitadas16. Mas às vezes houve excessos, coisas que não estavam no próprio plano para serem ocupadas. Aqui não vieram pessoas de fora, foram os de cá que combinaram. Só que aquilo era assim: a gente, os trabalhadores ocupavam uma propriedade e depois lá tinham as suas razões, e depois telefonavam para o Governo Civil e vinha… Na altura havia uma, como é que hei-de dizer, uma componente das Forças Armadas que vinha confirmar. Era o MFA; vinha uma comissão confirmar a ocupação da terra para ter uma acção jurídica. Depois eles, para destruírem as cooperativas, começaram… Porque a lei começou por dar 27.000 pontos. Cada proprietário tinha direito a 27.000 pontos que correspondia a uma determinada área. E essa área… Porque se as cooperativas se tivessem mantido… Mas tivemos uma CEE17 com exigências! E que não permite a produção que se pretende, as cooperativas também não tinham hipótese de funcionar. O problema que acabou com isto foi a questão política. Isto, cada um pensa à sua maneira e é bom que cada um possa divulgar as suas ideias. Infelizmente, antigamente nem isso podíamos fazer. Mas em primeiro lugar o responsável por esta situação toda foi na altura em que era o Mário Soares e o Partido Socialista que esteve no governo. Esse homem é que começou a ofensiva contra a Reforma Agrária. Depois do 25 de Abril, as primeiras investidas policiais das forças militarizadas foram mandadas pelo governo do PS. E depois os governos de direita deram sequência a isso. Eu ainda hoje não consigo perceber, mas se calhar a cultura que tenho não é suficiente para compreender isso, porque é que o Mário Soares é considerado um estadista e, penso nisto todos os dias a ver se consigo chegar a uma conclusão, em que eu não encontro na minha maneira de ser dados que me permitam que aquele homem tenha sido um grande estadista para Portugal. E gostava que um dia alguém me esclarecesse… O homem estava lá em França e chega a Portugal. Forma um governo provisório, e vai à África e diz assim: “Isto hoje passa a ser dos pretos!”. Esqueceu-se de milhares e milhares… Eu estava de acordo, e estou, e acho que foi bem feito entregar aquilo. Mas, se aquilo tem sido feito, no meu entender, em condições, nem os pretos tinham sofrido o que estão ainda a sofrer hoje, que foram mais 11 anos ou 20 de guerra que têm andado. A fome que lá há hoje, que nunca tiveram essa fome enquanto os portugueses lá estiveram. E as pessoas que lá 16

Decreto-Lei nº 653/74, de 22/11/1974: Conferiu poderes ao Instituto de Reorganização Agrária (IRA) para tomar de arrendamento compulsivo terras incultas ou subaproveitadas. Conceitos estabelecidos: incultas são as terras que, podendo ser economicamente aproveitadas, não são objecto de exploração ou as cobertas de pastos naturais que não correspondem a uma exploração pecuária organizada; subaproveitadas são as terras cujo rendimento por hectare é notoriamente inferior ao valor médio conseguido na região nos últimos três anos, tendo em conta a classe dos solos e os tipos de cultura. 17 Comunidade Económica Europeia, actual União Europeia.

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estiveram, que alguns lá nasceram e tinham lá a sua vida constituída tiveram de fugir com a roupinha que traziam vestida, conheço pessoas que vieram assim, à pressa. Portanto, na descolonização, acho que o homem não fez nada que se aproveitasse. Nem defendeu os interesses dos brancos, falando assim, nem dos pretos. Meteu aquilo tudo dentro do mesmo saco, gatos junto com cães, cada um morda-se como quiser, entendam-se. Pronto, acabou. Cá em Portugal tinha-se feito a Reforma Agrária, que ele até estava de acordo. O Barreto, que era o Ministro da Agricultura no tempo dele, fez a tal lei dos 27 ou 29.000 pontos, mas que, a própria lei em si mais tarde foi alterada e já o proprietário tinha direito a 27.000 pontos, mas o filho tinha direito a 27, a mulher tinha direito a 27, o feitor tinha direito a 27… Bom, e às tantas, a terra que o proprietário tinha antes da ocupação já não chegava para dar terra a toda a gente de acordo com a própria lei vigente que estava. Acabou com isso também. Outras conquistas que realmente se tinham feito com o 25 de Abril… Ele tem feito mais pela direita do que tem feito pela esquerda. Parlapié não lhe falta. Bom, se um dia houver alguém que me diga assim, como eu já uma vez ouvi dizer: “O Mário Soares evitou uma guerra civil”. Em determinada altura que os homens da Revolução e do MFA se desentenderam, se dividiram, com o Otelo e não sei que mais… E que isto esteve à beira duma guerra civil, e que se não fosse o Mário Soares ela tinha-se realizado. Não se realizou, deve-se ao Mário Soares. Se isso é verdade… Não sei se é ou se não. Eu falei com muitos Conselheiros da Revolução, e alguns muito responsáveis. Olhe, aqui mesmo onde nós estamos falei com alguns. E no final das reuniões ele normalmente ia dizer aos jornalistas sempre o contrário daquilo que tinham discutido lá. São situações que eu não consigo perceber. Mas é como eu digo, eu sou analfabeto, sou capaz de não ter capacidade para compreender a situação toda. E a gente começámos a entregar reservas e havia um acordo com o governo do Mário Soares sobre as benfeitorias. Chamavam-se as benfeitorias nas herdades ocupadas. Os valores dessas benfeitorias eram descontados nas dívidas que as cooperativas tinham ao Crédito Agrícola de Emergência. Houve benfeitorias em casas, reparações de montes, barragens que se construíram. Por exemplo, esta herdade tem duas barragens feitas pela cooperativa. Gados, tudo o que fosse feito na altura da ocupação e que não existia antes, isso era pago. Só que essa lei nunca chegou a vingar. E depois isto começou a vencer juros. Ficou decidido também numa reunião do Ministério que o capital investido nas benfeitorias passava a render juros iguais à dívida que se tinha, o que compensava. Só que esta também não foi cumprida. Quando isto estava já mesmo para acabar, na altura do Cavaco, aparece a lei de que 22

as cooperativas tinham de pagar. E nós, de 7.000 contos, pagámos 130.000! Lá fomos pagando. Havia um advogado responsável pela cobrança das dívidas ao Crédito Agrícola de Emergência. Então, uma vez fomos lá para liquidar tudo. A gente tínhamos pago de uma vez 60.000 contos e tinha ficado a faltar 20.000. E levávamos os 20.000 contos para pagar. Quando lá chegámos para pagar, com estes 60.000 já fazia 127.000. E diz o homem assim: “Vocês agora, se entregarem mais 20.000, ainda ficam a dever 130.000”. Digo eu: “Então o senhor desculpe, mas já nem estes 20.000 pagamos, porque assim vale mais matarem a gente”. E já então não pagámos. E dissolvemos a cooperativa. Aquilo foi para as finanças. A cooperativa tinha um património de quase 500.000 contos, entre máquinas, gado, propriedades e tudo. Venderam tudo ao desbarato, partiram, escavacaram, fizeram tudo e ninguém lhes fez nada. Foi muito trabalho durante 16 anos, que as pessoas sacrificaram-se muito, trabalharam muito. Até aos 12, 13 anos de existência aquilo funcionou bem e as pessoas sentiam-se todas felizes. Nunca houve tanto espectáculo. Todos os anos fazíamos contas no final, apresentávamos as contas, cada um tinha a sua missão a cumprir. As pessoas viviam felizes. E trabalhavam, só aqui chegaram a trabalhar 320 pessoas! Mais o agregado familiar, isto ocupava aqui 600 ou 700 pessoas. A gente distribuía todos os meses, a esta gente aqui, 7 ou 8.000 contos. Todos os meses. Tínhamos dois contabilistas a fazer a contabilidade, o escritório funcionava, aquilo era tudo por sectores. As pessoas, cada um para levantar qualquer coisa tinha de ter um documento devidamente assinado. O que recebia tinha de assinar que recebia. Temos relatórios. Temos vários técnicos e veterinários que tiraram aqui os estágios. Apresentaram relatórios no final do curso, tivemos aqui várias coisas. Fomos considerados, a nível de empresas, a nível da Europa, em termos de cooperativa, em termos agrícolas a melhor empresa. Dada pelos estrangeiros. Foi pena terem destruído isto. Agora: tinha de haver alterações, não é? Não se podiam manter os mesmos postos de trabalho, porque as coisas também se mecanizaram muito. A cooperativa tinha terras próprias. Só que a malta, todos tínhamos essa opinião: se um dia a cooperativa acabasse, quando acabasse para um, tinha de acabar para todos. Excepto os que quisessem sair. Houve gente, ao longo do tempo, ou porque arranjaram outras vidas, outras coisas, foram saindo. Mas em termos de acabar, o espírito era este: um dia que acabe, acaba para todos. E acabou em 24 horas. Fizemos um plenário, foi decidido, acabou-se. Eu ainda houve muitos anos que guardei, tinha ali num quarto, pastas que eu tinha para mim. E aquilo que era meu

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ainda guardei, mas depois, estava a ver aquilo todos os dias… Queimei, fiz uma fogueira aí na rua do monte. Com a entrada na CEE começa a haver o descontentamento. Eu uma vez fui à Holanda fazer uma sessão de esclarecimentos sobre o 25 de Abril e mais um alferes que fazia parte do MFA. E nunca mais me esqueço, o homem a determinada altura lá na discussão, lá os holandeses fizeram várias perguntas, e se não era possível haver uma contra-revolução em Portugal. E ele disse que não, por uma dezena ou duas de anos não seria possível e que a camada que viria mais tarde a viver momentos de descontentamento e que iria fazer uma grande pressão em Portugal seriam as camadas a viver da agricultura, os pequenos e os médios agricultores. E cá está, o homem não falhou. Desaparece tudo. E hoje a ideia que eu tenho é que quem dantes tinha muito cada vez tem mais e os que dantes tinham pouco cada vez têm menos. Esta é que é uma realidade. As condições de vida, hoje está-se a voltar um bocado ao que estava. E muitos foram-se embora porque não têm hipótese de sobreviver da agricultura hoje. No outro dia um engenheiro que eu já não via há muitos anos, encontrei-o, bebemos um café e estivemos ali à conversa. E às tantas diz-me o homem assim: “Isto está tudo perdido no nosso país. Dantes, quem tinha uma herdade de 500 ou 600ha aqui no Alentejo era rico, tinha uma fortuna. Daqui a pouco, uma pessoa que tem uma propriedade com 1000ha que nã tenha sobreiros, que nã tenha pinheiros, que nã tenha êcalitros, que nã tenha água, está condenado à miséria e o melhor que tem a fazer é ir-se já embora.” E hoje se nós formos para Beja já encontramos zonas completamente desertas, que nã há lá ninguém e os poucos proprietários estão empregados ou abalaram, pronto. A gente hoje para produzir em Portugal um quilo de milho – isto é uma comparação, os números não condizem à realidade, que eu vou dizer – mas a gente gasta 60$00 para produzir e ópois vende a 28. E há a outra questão, que é a falta de mão-de-obra. Vem agora lá na Agenda 2000 a dizer assim: cada agricultor tem a sua exploração, se ele só for capaz de criar três postos de trabalho, tem um prémio. É o culto que os americanos utilizaram, os métodos que eles utilizaram aqui há uns anos atrás. Só que o senhor não tem hipóteses de aumentar, com a forma como está. Não tem rendimento para pagar a três operários. Quem é que poderá ter esses rendimentos? Quem tiver muita cortiça, muita coisa. Eu penso que nós estamos a viver um momento muito difícil, tanto a nível nacional como internacional. E, como os homens hoje têm isto… Nós tínhamos antes povos colonizados, hoje estamos nós colonizados. E nós temos de começar a fazer 24

aquilo que os outros querem que a gente faça, a Alemanha, a França. Esses é que ditam as leis, quer queiramos, quer não. E quando a gente um dia quiser respirar fundo, eles colocam aqui uma força militar e abafam a gente, que a gente nem tem tempo para respirar. E agora vem a outra moeda: perdemos a nacionalidade! Eu sou contra, mas se me perguntar também porque é que eu sou contra, eu não sei. Percebo muito pouco disso, ou nada, mas acho que a gente não devia perder a nossa moeda. Com que é que se caracteriza um país? É pelo seu povo, pelo seu passado… Ao menos continuamos a falar português. Mas agora temos de começar a saber falar inglês, não é? Passa a ser obrigatório, também… A única liberdade que temos hoje é podermos dizer o que queremos. E não se pode perder. Mas devemos ter respeito pelos outros.

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2 – Farmacêutico, proprietário agrícola. N. 1931, 67 anos. O meu pai era funcionário corporativo. Era gerente do grémio da lavoura. Eu nasci em 31 e foi o ano em que se inaugurou a luz eléctrica na terra. Antes disso as pessoas não tinham luz e eram iluminadas a petróleo, a velas ou a candeias de azeite, que usavam o azeite já frito, para ser mais barato. As pessoas guardavam o sebo dos animais para fazerem velas de sebo. A luz era tão pequena que via-se mal. Quando a luz foi inaugurada, e durante muitos anos, a luz acendia-se depois do sol-posto e a central fechava à meia-noite. A partir daí ficávamos com candeeiros de petróleo e eu lia com candeeiros de petróleo. Mas nem toda a gente tinha acesso ao petróleo. O meu pai morreu em 51 e ganhava 2.500$00. Em 1941 eu vim para Lisboa estudar para o liceu, para casa da minha avó. E quando eu vim veio a minha mãe também para ajudar a avó a trabalhar cá em Lisboa num atelier de bordados que tinham montado cá. O meu pai nessa altura ganhava 1.200$00 e mandava-nos para Lisboa 900$00. Nós pagávamos 500$00 de renda de casa, ficavam 400$00. E 400$00 não davam para pagar a comida sequer. Era preciso trabalhar em bordados no atelier para complementar isso e conseguir dar algum dinheiro para a gente comprar livros e para os transportes. Eu andava num liceu a 4km de casa. As propinas não eram baratas: custava a matrícula em volta de 50$00 e as propinas eram trimestrais e eram na ordem dos 60$00 por trimestre. Com o que se ganhava era uma violência. Nós éramos considerados da classe média. Eu vivi como um rico. Eu era um dos 10% dos rapazes da vila que andavam calçados. Os outros andavam descalços. Alguns deles só se calçavam a primeira vez para ir para a tropa. A certa altura foi proibido andar descalço. Em Lisboa em 1951 já era proibido andar descalço, mas andava muita gente descalça. Na vila andavam descalços e continuaram muito mais tempo. E os rapazes que iam trabalhar para o campo – e muitos deles não fizeram a instrução primária, embora fosse obrigatória já – muitos deles foram trabalhar para o campo aos seis anos. Geralmente começaram a guardar porcos. Em minha casa não havia o exagero de prendas que há agora. Eu, por exemplo, só tive em toda a minha vida de rapaz um carrinho pequenino de corda. Mas tive outras prendas muito mais valiosas: tive uma bicicleta, patins e outras coisas assim, que não me eram forçosamente dadas no meu aniversário. Um relógio de pulso, por exemplo, quando tinha 13 anos, foi uma prenda que eu recordo. O meu pai, pela dificuldade que sentia com o seu ordenado, para dar o curso aos dois filhos, estava convicto que ia dar um curso só a mim e à filha não. O que se provou que era uma injustiça tremenda, porque ela foi muito melhor aluna, muito mais aplicada que o

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filho. E foi a minha avó que achou que não, que decidiu que a neta vinha para Lisboa e que havia de ser farmacêutica. Decidiu e disse ao filho: “Achas que não, eu vou para Lisboa e ponho a miúda a estudar”. E foi ela que veio. É claro que o pai contribuiu com uma mensalidade, mas a avó é que teve a ideia. O meu pai não acabou o liceu. A minha mãe é que andou na faculdade, mas não acabou porque já era casada, tinha os filhos pequenos e não aguentou ficar longe deles e do marido. E o meu pai tinha uma ideia fixa que havia de ser Oficial da Marinha e deixou de estudar quando começou a usar óculos. A graduação que tinha não lhe permitia ir para a Marinha, desistiu de estudar e foi logo trabalhar para um banco. Aos 15 anos era funcionário do Banco Pinto e Souto Mayor no Porto. A idade no trabalho era muito inferior dantes do que é agora. Os miúdos começavam a trabalhar mal acabavam a instrução primária, oficialmente, num emprego certo, e faziam a sua aprendizagem no posto de trabalho. Hoje não há aprendizes e as pessoas não sabem nada do que estão a fazer. Por exemplo, o ajudante de farmácia era um indivíduo que quando acabava a instrução primária ia praticar para a farmácia, fazia os recados, aprendia, e a partir dos 14 anos começava a registar prática e adquiria a sua qualidade de ajudante conforme o número de anos que tinha com aproveitamento. E chegava a ajudante técnico de farmácia com a aprendizagem que fazia com o trabalho. Começava a ganhar um ordenado logo que entrava, a fazer recados e aprendia uma profissão. Quando eu nasci ainda não havia nenhum automóvel na vila. As pessoas mais bem vestidas que havia no concelho não eram os ricos: eram os funcionários públicos. E os ricos começaram a estranhar: “Vestem melhor que eu e têm uma vida melhor”. Era eu muito pequeno quando o primeiro latifundiário comprou um automóvel. Logo a seguir alguns funcionários começaram a ter carro. Um tio meu, que foi secretário da câmara, chegou a ter dois automóveis. Quando os ricos ainda não tinham nenhum. As pessoas viviam de facto todas muito pobremente. E mesmo as pessoas que tinham dinheiro, como iam para o campo todos os dias, andavam vestidos de maneira própria de andar no campo. Mas já estudavam. Na geração anterior à minha já aí havia indivíduos formados em Medicina, em Direito e Veterinária. De preferência cursos ligados à agricultura, como Regente Agrícola. Se bem que alguns nem quiseram que os filhos exercessem. Eles tinham que trabalhar para eles, nunca para outros. Houve um que era veterinário e que brigou com o pai e começou a trabalhar por conta própria para provar ao pai que ganhava mais do que aquela miséria que era a lavoura. Ele quis demonstrar ao pai que podia fazer uma vida melhor que a dele com uma profissão liberal. E conseguiu. Foi veterinário municipal. Logo com os primeiros 27

ordenados comprou um carro bem melhor que qualquer outro. Teve o carro melhor da terra. O pai comprava o carro a seguir e ele ia logo comprar outro melhor. Teve os melhores Mercedes de desporto que havia na época, teve um Jaguar. Até que o pai, o último carro que comprou foi um carro americano, um Lincoln Zefire… A irmã queria tirar um curso e o pai não deixou. As herdades daquela família eram extraordinariamente bem cuidadas. Ele dizia que o rendimento da propriedade dava aproximadamente 2.000 contos por ano. Ele dava 1.000 à irmã, que era dona de metade. E ele ficava com 1.000 para ele. Ele não conseguia gastar por ano mais de 300 contos. Todos os anos lhe sobravam 700 contos, que ele estava a acumular. Mas o cunhado, que era um médico já com renome, dava à irmã, só para a casa, todos os anos 2.000 contos. Isto pode multiplicar-se por 50 para se chegar aos valores actuais, o que é imenso. Tive esta conversa com ele exactamente em 1970. A profissão liberal dava mais que uma lavoura considerada grande. E eles nem tinham cortiça. Mesmo a cortiça não tinha os preços que tem agora. A cortiça tem vindo a subir de preço. Tem altos e baixos. Na vila havia um passado musical muito rico, havia uma banda. Havia muitos homens dedicados e com grande amor à música. Quase todos os operários, principalmente os que eram considerados artistas, os artesãos, os ferreiros, os sapateiros, os carpinteiros, quase todos pertenciam à banda. Com um amor muito grande e com algum virtuosismo. Saíram de lá indivíduos que vieram para bandas conhecidíssimas e até arranjavam empregos excepcionais para a época, em que havia dificuldade de empregos. Porque tocavam tão bem música e havia mais bandas. Houve um, por exemplo, que tocou na Banda da Carris. Tocavam nas festas todas, nas feiras. E havia concursos de bandas. Havia o Carnaval, havia festas da Misericórdia e da Liga de Beneficência para angariação de fundos. Tocavam nas procissões todas do concelho. Na quadra da Páscoa havia duas ou três. Nessas festas as pessoas todas participavam, independentemente da classe social. Os bailaricos eram sempre separados nos três grupos distintos. O grupo mais fechado era a Sociedade Artística. Eu ia a todas. Mas os indivíduos da Artística tinham entrada na dos pobres, que era a da Bola, mas os da Bola não podiam entrar na Artística. Lá em casa havia sempre uma criada ou duas. Estavam lá pouco tempo, mas eu não sei porquê. Talvez tivesse a ver com a fama que o meu pai tinha de se meter com as criadas. Mas às vezes também saíam por coisas disparatadas, porque a minha mãe tinha muito mau feitio, também não era uma pêra doce. À noite fechava as criadas à chave para o meu pai não ir lá aos quartos. Outras se calhar foram-se embora porque o meu pai andava a piscá-las. 28

Não havia grande religiosidade. A minha avó tinha a religiosidade dela. O meu pai é que não era católico. Casaram pela igreja, e nós éramos baptizados e tudo. Mas depois não nos deixou fazer a Primeira Comunhão. Porque não havia religiosidade, de facto, no Alentejo. No meu tempo de rapaz só me lembro de dois homens que iam à missa: um deles era homossexual. A partir de uma certa altura, depois de acabar a guerra de Espanha, começou a haver umas dificuldades de trabalho. Havia uma praça na vila onde se juntavam geralmente os desempregados. Mas havia uns homens, trabalhadores mais ruins, que eram sempre os mesmos a serem despedidos. Não se pode generalizar e dizer que esses eram os comunistas, porque havia comunistas extraordinariamente bons trabalhadores. Nessa altura o meu pai passou a ser o presidente da assembleia-geral da Casa do Povo. Começou a encarregar-se de arranjar trabalho para os desempregados. Arranjava-lhes trabalho à semana. E isso acontecia nas épocas mortas. Não era na altura das sementeiras, nem nas colheitas, era nos intervalos. Os comunistas começaram a ter reuniões, toda a gente sabia que havia encontros e havia locais que toda a gente sabia. O principal comunista era um homenzinho de nada que fazia barulho. Era rural e analfabeto. E dizia que era comunista. Mas depois de ter descoberto o que ele julgava ser uma mina de volfrâmio, já queria que as filhas só casassem com engenheiros. Depois havia um que era funcionário da câmara, tomava conta das centrais eléctricas da vila. Era electricista e mecânico, e era um homem com uma cabeça excepcional, tinha uma inteligência brutal. Mas tinha pancada. Foi um autodidacta. Foi um indivíduo que começou por aprender a marceneiro. Depois foi ferreiro, depois mecânico. Depois, sozinho, começou a mexer em electricidade. E a fazer coisas. Mecânico de automóveis, mecânico de espingardas, de tudo. E tudo com uma habilidade excepcional. Aprendeu inglês e francês, sozinho, com discos. As reuniões que havia na central eléctrica eram frequentemente reuniões políticas. Tinha lá sempre uns amigos. E teoricamente os amigos eram todos do grupo. Ele adorava o Fidel Castro, mas o sonho dele era ir para a América. Os americanos não o aceitaram, não lhe deram o visto, porque ele era comunista. Para lá entrar era necessário declarar-se que não se era comunista. Ainda hoje os americanos perguntam isso para darem o visto. Mas depois alguns comerciantes começaram a ter ideias comunistas, um deles chegou a ser preso. Esteve seis meses preso na PIDE. Ele tinha uma taberna e também na taberna dele se faziam reuniões. Os comunistas têm coisas estranhas. Esse foi um bom empregado de um comerciante. A certa altura resolveu estabelecerse por conta própria em concorrência. Estabeleceu-se com uma loja de fazendas. Mas 29

tinha a loja, preguiçou, preguiçou e foi-se abaixo. Teve de vender a loja e montou uma taberna. Na taberna ele começou a ser o melhor cliente dele próprio. Estava sempre nos copos com os amigos. Aquilo dava pouco. Ainda por cima começou a achar que o Estado é que tinha a culpa. Quando as pessoas se sentem diminuídas, têm tendência para dizer que a culpa é do governo. Começou a achar que a culpa era do governo e começou a ter reuniões lá dentro com os amigos. Só sei que se discutia política e se falava em comunismo nessas coisas. Antes do 25 de Abril esses grupos diziam mal de tudo. Ficavam muito satisfeitos com as vitórias do Fidel de Castro. Na altura então da Revolução Cubana (1959) eles vibraram com as notícias do Fidel de Castro. E eu lembro-me de ter 17 anos, estavam a meter as canalizações para a água, não havia água canalizada até essa altura. Foi em 48, estavam a abrir as valas e a meter água na maior parte das casas, e eu lembro-me de uns indivíduos que estavam a cavar as valas. E iam a passear dois lavradores, andavam a conversar, estavam de férias. E ouvi uns trabalhadores a dizerem assim: “Olha para aqueles, andam ali a passear. Qualquer dia isto dá uma volta e eles é que vêm para aqui trabalhar e andamos nós aí a passear”. Eles não utilizavam expressão nenhum de Reforma Agrária. Eles achavam que a passagem do comunismo era exactamente isto: os ricos iam trabalhar e os pobres iam fazer vida de ricos, iam passear. Eles não compreendiam é que os ricos eram muito poucos e pensavam que aquilo podia inverter-se. O indivíduo que está no governo é o que é sempre criticado. Mas para eles o que eles viam mais eram alguns ricos. A pessoa mais odiada dos ricos era um médico casado com uma das maiores proprietárias. Que era de facto um indivíduo com tendências fascistas. Era o único. O grémio para eles era bom no tempo do meu pai, porque era ao grémio que eles iam resolver os problemas das crises de trabalho. E associavam o indivíduo que lhas resolvia com o grémio. Depois o grémio passou a não fazer nada, e foi perdendo valor quer para os ricos, quer para os pobres. E eles depois exigiam que o presidente da câmara lhes arranjasse trabalho. Daí os conflitos com o presidente da câmara, que veio mais tarde a fazer com que ele fosse saneado da terra. Porque ele não foi capaz, ao princípio, de resolver os problemas do trabalho. A introdução da fábrica do tomate veio criar novos empregos para pessoas que nunca tinham trabalhado. A fábrica é sazonal, só trabalhava três meses por ano, foi dar emprego a mulheres que nunca tinham trabalhado. Muitas delas pessoas que viviam dos seus rendimentos e que aproveitavam aqueles três meses para trabalhar.

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Não houve criação de emprego. Mais tarde elas vieram a obter subsídios de desemprego, quando isso apareceu, e só trabalhavam nessa época do ano. Nunca trabalharam noutra coisa. E alguns estudantes em férias que iam fazer a campanha do tomate. Os trabalhadores rurais não foram para a fábrica, mas ganharam mais emprego porque aquelas fábricas de tomate ali tão perto fomentaram maior produção de tomate na área. Os rurais continuaram a trabalhar na apanha do tomate, isso é que aumentou. Por isso diminuiu o desemprego. A fábrica do leite, essa, por sua vez, nunca trabalhou em pleno. Foi super dimensionada, é uma coisa enorme. Nunca trabalhou mais que a terça parte, porque nunca souberam aproveitar o leite de ovelha, que era a maior quantidade de leite que havia na área. E fizeram sempre recolhas só de leite de vaca. E há poucas vacas na área. Está preparada para fazer leite em pó, já fez tomate liofilizado, já fez tomate em pó, que é concentradíssimo. Ocupou algumas pessoas nos trabalhos menores: manutenção e algumas coisas. Algumas pessoas tiradas dos rurais. Nos anos 60 houve pessoas que começaram a experimentar fazer tomate. Esses indivíduos começaram a ter lucros tão bons que se entusiasmaram. Houve um que começou como pastor. Era bom trabalhador e começou a fazer queijos. No ano em que resolver casar-se desempregou-se e começou a trabalhar por conta própria. Entrou no tomate, ele próprio a produzir. Começou a ter lucros e começou a pôr outros a trabalhar para ele. Arranjou casais a quem dava percentagem, começou a arrendar bocados e tinha dezenas de casais. Ele arrendava bocados de terra na ordem dos 10, 12ha, punha em cada um desses bocados um casal, pagava-lhes a jorna normal por eles trabalharem lá e dava-lhe percentagem na venda do tomate. Ele chegou a ser o maior produtor de tomate da Europa. Produzia quantidades colossais: chegou a ter talhões arrendados até Beja. De seareiro de tomate passou a empresário de vários seareiros. Começou a comprar gados, começou a arrendar muitas terras. Quando veio o 25 de Abril ocuparam-lhe tudo e ele marcou como reserva para ele uma terra. Como lavrador também tinha direito. A proprietária não gostou, chamava-lhe comunista. Ele depositava a renda no banco em nome dela. Ela pô-lo em tribunal, ganhou e ele teve de lhe dar uma indemnização. Ele estava a ganhar dinheiro e comprou uma herdade muito grande. Agora vendeu-a, há pouco tempo, para pagar dívidas. Ele perdeu tudo. Agora está falido. Quando eu comecei a fazer lavoura julgava que ia dar uma lição àqueles senhores e passei a tratar a terra como os comunistas. Intensivamente, culturas intensivas, a cultivar ao máximo. Isto dá um prejuízo bestial, é um erro crasso. Portanto, aquilo estava a ser bem explorado pelos lavradores do concelho. Não havia 31

terras abandonadas. Mesmo os que eram absentistas tinham rendeiros. E os rendeiros tinham de explorar ao máximo para tirar rendimento. E a terra que eles diziam abandonada está provado agora que estava a ser explorada no extensivo, que é a única maneira da terra dar lucro no Alentejo. Os lavradores, quando tinham pastagens a mais para os gados deles, deixavam correr os gados dos que tivessem menos pastagens. Para lhes limparem as terras, prevenir os fogos. Isso não era problema. O problema é que os comunistas julgavam que todas as terras iam dar trigo. Eu vi aqui ao pé de Setúbal, a seguir às ocupações, trigo já desfeito, em areia, em sítios onde era impossível ir ceifar com máquinas, porque os sobreiros eram tão pegados que as máquinas não cabiam no meio deles. Semearam trigo que depois não conseguiram colher de maneira nenhuma, porque à máquina não se podia fazer: as máquinas não cabiam entre os sobreiros. E à mão não valia a pena porque era muito mais caro. Vi trigo estragado, lavraram fundo, partiram as raízes aos sobreiros, só prejudicaram. Porque hoje é proibido lavrar onde há sobreiros. E eles quiseram semear de trigo todos os sobreirais. A ignorância é que fez a Reforma Agrária. Julgavam que iam tirar dinheiro a todo o lado. Lembro-me de ir com um comunista daqui para Portalegre, um colega meu farmacêutico, que se maravilhou de ver tudo cheio de trigo naquela zona de pedras ao pé de Portalegre. É claro, as pedras não dão trigo. Na altura das ocupações eu estava em Lisboa, não acompanhei. Ia lá, mas não via nada. Começaram a soar ideias de que iam ocupar as terras que não estivessem bem tratadas. O chefe dos comunistas da vila era um indivíduo extraordinariamente simpático, porque era, mas aquele espancamento ao capitão, quando estava na tropa, em África, mostra que ele tinha pancada. Desobediência em combate era caso de facto para conselho de guerra. A reacção dos ricos foi começar a fazer mais. Embora achassem que não era necessário. Fizeram grandes investimentos, na esperança de não serem ocupados. Quase todos os que tinham possibilidades compraram máquinas novas, começaram a investir. Nessa altura era com o dinheiro deles, ainda não havia créditos bonificados, não havia nada disso. Depois é que começou a haver. O que acontece é que pensaram: “Eu vou dar um passo em frente, mostrar que quero investir, que quero continuar, eles vão ocupar só as coisas que não estão exploradas…” Eu nunca fui obrigado a meter pessoal porque eu tinha gente a mais. Cheguei a ter lá alguns sindicalizados. O sindicato ia para lá para obrigar a fazer greve. Eles não queriam fazer e eles obrigavam. Chegaram a ir com armas obrigá-los a fazer greve. Eram greves gerais. Alguns trabalhadores meus foram obrigados a fazer greve 32

geral porque foram lá indivíduos do sindicato com armas, com uma caçadeira a apontar para as pessoas. Sei que numa greve geral um dos chefes estava com os piquetes de greve à saída da vila, estavam ali e não deixavam passar ninguém que ia para o trabalho. O que eu notei que me prejudicou muito não foi obrigarem-me a meter mais pessoal porque eu tinha pessoal a mais. O que me prejudicou muito foi que eu tinha 29 vacas quando foi o 25 de Abril e proibiram-me de vender as velhas. E quando me chegaram a autorizar a vender, eu já tinha mais de 100. E eu fui obrigado a investir também sem querer. E isso encravou-me, arranjou-me dívidas, quando os juros estavam altíssimos. E isso ajudou-me a ter prejuízos também, porque eu não tinha realizado dinheiro suficiente. Vender as velhas era considerado um crime de sabotagem económica18. A primeira ocupação no concelho foi numa terra que não prestava, uma terra que não tinha valor nenhum, não estava lavrada, porque era uma terra onde iam os rebanhos pastar e mais nada. Eles ocuparam-na, começaram a lavrá-la, e depois desocuparam-na sem mais nada. Largaram-na e começaram a ocupar as outras. Houve uma que, quando a ocuparam, três ou quatro dias depois estavam a colher tomate a dizer que o tinham semeado eles e que tinham feito aquilo tudo. Eu acho que a iniciativa partiu do Partido Comunista que deu ordens lá na vila ao chefe local, que logo a seguir foi chamado para o comité central. Não é a brincar que o indivíduo era um dos mais novos representantes do comité central. Ele foi presidente de tudo: era o presidente da câmara, presidente da cooperativa agrícola e presidente da UCP. Alguns indivíduos que tinham parques de máquinas participaram nas ocupações. Entraram para as cooperativas com os tractores e as cooperativas deramlhes o dinheiro dos tractores. Quando eles se apanharam com o dinheiro, largaram. Essa gente estava numa ascensão fantástica e depois estagnaram. O processo das ocupações foi pacífico, mas muito doloroso para muitas pessoas. Para mim a ocupação mais dolorosa foi a de um indivíduo que herdou aquilo de um estranho, que era um padrinho. Os direitos de transmissão são tanto maiores quanto menor é o laço de parentesco. Herdar de um estranho significa pagar uma taxa alta de imposto sucessório. Ele pagou e endividou-se para o pagar. Tinha acabado há pouco tempo de pagar a dívida que tinha arranjado para herdar. Estava a começar a 18

O conceito de sabotagem económica foi definido pelo Decreto-Lei nº 660/74, de 25/11/1974, que estabeleceu a intervenção do governo na gestão das empresas e a política de nacionalizações. Na agricultura foi utilizado para os casos em que se considerou que o agricultor tinha as suas terras subaproveitadas. Foi completado com o Decreto-Lei nº 207-B/75, de 17/4/1975: Conceito de crimes de sabotagem económica por parte do patronato. Prevê sanções, como a confiscação de bens e prisão.

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investir, já tinha uma lavoura muito mais intensiva do que devia ter. Tinha terras arrendadas além das dele, onde tinha rebanhos e outras coisas, tinha bastante gado. Empregava muita gente. Mais que o normal. Com aquela quantidade de terra tinha mais do que os outros com a mesma quantidade. Ele tinha a terra toda explorada, estava a investigar, a arranjar nascentes, a criar regas de aspersão, a criar novos sistemas de rega e de exploração mais… Quando foi ocupado estava lá, estava com o dinheiro para os pagamentos do fim-de-semana, tinha o dinheiro dentro de uma lata, tiraram-lhe a lata da mão. Tiraram-lhe o dinheiro todo, não lhe deixaram dinheiro para a gasolina para ele ir embora. Ele tinha a mulher médica, directora do Hospital de Santarém. E ele vinha ali todos os dias. E ao fim-de-semana ia a Santarém ficar com a mulher. Ele não tinha um feitor, o feitor era ele, ele é que trabalhava, ele é que mandava. Nesse dia roubaram-lhe o dinheiro da mão, uma vergonha. O homem a seguir a isso teve uma trombose e veio a morrer, o que é uma tristeza. Tinha ainda um filho a lutar no Ultramar, na Guerra. Ainda lá estavam militares e o filho mais novo dele estava lá como oficial. Quem encabeçou aquilo foi um homem de confiança dele, um empregado dele. Eram sempre os infiltrados que faziam isso. O principal encarregado dele, o gajo que trabalhava com as máquinas mais novas, o homem que ganhava mais na casa dele. É um ganda malandro, fez esta gracinha. Não havia hipótese de resistir às ocupações, quando se sabia pelos jornais e pela televisão que estavam os militares, como aconteceu aliás numa herdade de lá, onde foram os militares ajudar os ocupantes a ocupar a coisa. Os militares do Sr. Pezarat Correia. Era um gajo da Revolução que se armou em esquerdista. E contra isso o que é que se podia fazer? Se eles não tivessem as costas quentes com o Pezarat Correia, eles não iam lá. Ele mandava lá as tropas. No mesmo dia havia ocupações em vários sítios. Ninguém resistiu porque os que resistiram, uma família qualquer em Évora deu para lá uns tiros, um rapaz ficou ferido e depois foram presos pelas tropas do Pezarat Correia. E houve um que morreu em Évora. E no meu concelho houve uma família que fez constar que resistiriam até ao fim e não foram ocupados. Os outros não fizeram nada porque tinham as costas quentes, porque tinham alguma coisa. Pelo dinheiro que tinham, embora estivesse congelado nos bancos19, e dos outros bens que tinham: dinheiro, bens, prédios, etc., noutros sítios. Agora esses rapazes, o pai tinha morrido, eram rapazes novos, estavam dispostos a morrer por aquilo. Os outros não estavam dispostos a morrer.

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O Decreto-Lei nº 185/74, de 6/5/ 1974 congelou as contas bancárias, promoveu a intensificação do uso de cheques e estipulou a impossibilidade de levantamento de mais de 10.000$00 por semana.

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Todos tinham outros bens. Tinham muitos milhares de contos no banco que haviam de ser descongelados algum dia. Só lhes tinham ocupado umas terras. Porque se fosse um caso de vida ou de morte, eles resistiam também. Nem sei se tinham dinheiro fora do país, não faço ideia. Mas admito que sim. Mesmo quando se falou na hipótese de me ocuparem a casa da vila eu não fui lá porque achava que não valia a pena arriscar a vida. Acho também que é uma questão de idade, porque o bom senso se adquire com a idade. Mas também quem é que ganhou mais? Foram os que foram ocupados, ou os que não foram? Posso dizer que o resultado final foi muito mais lucrativo para os que foram ocupados do que para os que não foram. Mas isso ninguém podia prever na altura da ocupação, pois ninguém sabia se o processo seria reversível ou não. Os que não foram ocupados e que tiveram que suportar os prejuízos inerentes aos boicotes que eles fizeram, fizeram prejuízos a todas as lavouras, ficaram muito mais lesados do que aqueles a quem foram restituídas depois as terras e que foram indemnizados. Basta não terem tido prejuízo. Porque eu, por exemplo, cheguei a ter 8.000 contos de prejuízo por ano numa lavoura tão pequena. Admito que eles poderiam ter tido prejuízos enormíssimos, a ter de suportar aquele pessoal todo que lá lhes punham. E não os tiveram. E depois entregaram-lhes tudo outra vez. Eu ainda fui a duas manifestações da CAP, com o meu cunhado e com um primo. Fui a uma em Braga e a outra em Aveiro no Verão de 75. Eram manifestações contra a Reforma Agrária, contra as ocupações. Durante aqueles anos muitos baixaram o nível de vida. Especialmente aqueles que tinham as contas congeladas e tinham oito contos por mês20. Com aquela verba, indivíduos com casas com três filhos, alguns a estudar em Lisboa, com muitas despesas… Havia casas com dois lavradores, deviam receber oito contos ele e outros oito contos a mulher. De qualquer maneira, tinham de baixar o nível de vida. Notou-se que alguns ficaram sem vida. As pessoas deixaram de conviver. Foi uma desgraça para toda a gente. Deixou de haver associativismo, os clubes fecharam todos, deixou de haver Sociedade Artística e os outros. Fechou isso tudo. Os cafés, as pessoas não iam ao café com medo de encontrar outras. Houve pessoas que deixaram de sair de casa. Houve pessoas que abandonaram a vila o máximo, estavam lá o menos tempo possível. E há pessoas, ainda hoje há um rendeiro que praticamente não sai de casa. E era um rendeiro com uma lavoura pequeníssima. Mesmo assim esse homem ainda hoje não sai de casa. Sai uma vez por semana para ir à propriedade e voltar. Continua 20

Decreto-lei nº 489/76, de 22/6/1976: atribuição de subsídio de manutenção mensal aos agricultores ocupados ou expropriados.

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a ser rendeiro. Mudou completamente a vida das pessoas. O ódio entre os comunistas e os não comunistas foi tão evidente que ainda hoje há um resto. Houve famílias que se separaram, houve um rapaz que foi posto na rua de casa por ser socialista, muito de direita. Mais tarde o pai adoeceu, passaram dificuldades em casa e tiveram de fazer as pazes porque foi o único filho capaz de os ajudar. Porque o outro filho que era comunista não tinha dinheiro para os ajudar. Houve muitas ameaças para ocuparem a nossa casa. Fui contactado pelo representante da comissão de trabalhadores, dizendo que eu tinha de reservar para mim umas determinadas divisões e arrendar as outras todas, senão a casa seria ocupada. Eu disse-lhe assim: “Manuel, estás a dizer-me isso a mim, tudo o que acontecer, eu responsabilizo-te a ti. Portanto, quando um dia tivermos de acertar contas, é contigo que eu acerto as contas, não é com mais ninguém.” “Mas eu estou aqui porque me mandaram!” “Não interessa, pá, estás a dar a cara. Tu, para mim és o responsável, e tudo o que acontecer na minha casa, o responsável és tu. Portanto é a ti que eu peço responsabilidades mais tarde. Eu não quero a casa ocupada por ninguém, não arrendo a ninguém…” Foi assim a conversa. Era grande de mais para uma pessoa só e eu devia arrendar partes da casa a várias pessoas. Quanto aos montes, tive conhecimento da destruição que houve nalguns montes, principalmente de viaturas de tracção animal antigas. Vi fotografias de um onde havia uma espécie de um museuzinho, com várias viaturas antigas. Foram queimadas e venderam as partes de ferro para o ferro-velho. Havia trens e outras viaturas muito bem conservadas, muito bem tratadas e que foram pura e simplesmente queimadas. Como sei de alguns animais machos de raça apurada, que estavam para procriação, que foram abatidos porque eram fascistas também. No dia em que eu parti a perna, no 1º de Maio de 76, havia uma grande festa no monte onde estava a sede da UCP e tinham abatido um touro de reprodução. As ambulâncias andavam a transportar gente para a festa e eu não tive ambulância para ser transportado para Lisboa. Foi emprestada a ambulância da fábrica do leite. O ano de 76 foi um grande ano agrícola para todo o país. Foi um ano em que o clima foi extraordinário, as searas tinham sido semeadas ainda antes das ocupações. Havia muitas searas e o clima foi excepcional. Não batemos o recorde nacional de produção de trigo porque se colheu o trigo tardiamente. Porque se se tivesse colhido o trigo todo a tempo… Foi tardio porque estava em vigor o horário de trabalho para a lavoura igual ao dos escritórios. O horário de trabalho era das oito ao meio-dia e da uma às cinco. E a ceifa não se pode fazer às oito horas. A ceifa tem de começar quando não houver humidade, que impossibilita a debulha até às 10, 11 horas da 36

manhã. E costuma-se debulhar dessa hora, que está tudo bem seco, até começar a haver humidade, já de noite. Era frequente, antes do 25 de Abril, ver-se debulhar até às 11 horas da noite e meia-noite, com faróis acesos, ia-se debulhando. E a debulha fazia-se em dois meses, no máximo. Eu lembro-me que no ano de 76, vinha de carro nos últimos dias de Setembro, andavam a debulhar trigo. Eu a certa altura parei o carro, fui ver o trigo que andavam a debulhar, e verifiquei que só havia 10% de espigas em cima da planta. Os outros 90% já tinham caído para o chão e era impossível a debulhadora apanhá-los (só se tivesse um aspirador). Ficaram no chão caídos. A debulha começa em Junho e no princípio de Agosto está acabada, mas trabalhando as horas todas que a máquina dê. Os horários agrícolas não se coadunam com horários de trabalho de escritório. Eles iam para lá às oito horas da manhã com a máquina, sentavam-se à espera que secasse. E às 10 e meia, 11 horas, experimentavam, se já estava bom começavam. Mas ao meio-dia paravam. E à uma começavam outra vez e às cinco paravam. Iam-se embora com as máquinas todas, faziam festas! Por exemplo, houve um ano em que eles acabaram a lavoura mesmo encostados à minha propriedade. E eu andava com os empregados a ver qualquer coisa ali à extrema e estavam eles com 19 ceifeiras-debulhadoras a fazer a festa de acabamento. Depois acabaram de fazer aquilo, foram todos em fila, entraram na vila, subiram ao largo, foram dar a volta lá acima e voltaram para baixo com as 19 máquinas em fila. Isto foi logo no primeiro ano das ocupações. Isso foi um dos factores de falência das cooperativas. Muito má gestão porque tinham pessoal a mais a fazer o mínimo possível. Porque eles, como eram donos, em vez de trabalharem mais, e dedicarem-se… Foi principalmente por eles não trabalharem. Eu ouvia falar que algumas mulheres a apanharem caixas de tomate, de empreitada, apanhavam normalmente 40 caixas por dia. E no tempo antes do 25 de Abril pagavam, por cada caixa de tomate apanhada, 2$00. E quando as jornas dos homens, a certa altura, eram de 40$00 por dia, as mulheres na apanha do tomate apanhavam 40 caixas por dia, faziam 80$00 por dia. Ganhavam o dobro da jorna dos homens e trabalhavam assim. Eu ouvi dizer que na UCP era normal apanharem seis caixas por dia. Ganhavam o mesmo ordenado quer apanhassem muitas, quer poucas. Eles queriam fazer uma agricultura intensiva. O que exige muita mão-de-obra e muita eficiência. Eles tinham muita mão-de-obra, o que era contrário à tendência internacional, que era pelo mínimo de mão-de-obra com o máximo de produtividade. Quando eu já estava a ter prejuízo com 100 vacas, a UCP fez uma vacaria enorme, com umas centenas largas de vacas de baixa qualidade, a dar menos de metade do leite das minhas, estabuladas, com produção intensiva. Se eu tinha prejuízo, eles 37

tinham muitíssimo mais. Além disso tinham muitíssimos trabalhadores na vacaria. E o leite tinha o preço estabelecido e ficava ao dobro ou ao triplo do preço a que o vendiam. Depois havia uma greve geral no país, por um motivo qualquer, e eles faziam greve, mesmo a trabalhar para eles. As desocupações também foram muito pacíficas. Eles não resistiram. Além disso eles abriram falência. Já estavam todos brigados uns com os outros, eles zangaram-se todos. Mas as desocupações mais graves têm sido as dos arrendamentos do Sá Carneiro21. Foi por 19 anos. A renda baixa foi fixada pelo Estado. A agricultura agora é dominada pela CEE. O trigo passou a ser produzido só nas zonas que eles entenderam. Há muito menos área para semear trigo. Os comunistas ainda arrancaram muitas árvores para aumentar a área do trigo. Eu tenho 4.000 contos de prejuízo por ano, ganho lá em Lisboa na farmácia para estragar aqui. Cada homem custa 1.000 contos, com as previdências quase 2.000 contos. O subsídio e os borregos vai tudo para eles, as pastagens são por minha conta, etc. Os custos sociais dos trabalhadores são um problema nacional que fez com que a mão-de-obra encarecesse e impediu de contratar mais pessoal. O setaside tem grandes possibilidades para os grandes proprietários. Mas nos pequenos e mesmo nos médios já é complicado. Porque no set-aside não pode entrar sequer o gado a pastar. E não só lhes rouba um grande bocado de pastagens, como às vezes corta a passagem do gado de uma pastagem para a outra. E o gado tem de andar às voltas, tem de ser transportado. Por exemplo, há quem tenha os gados num aramado. O set-aside pode chegar só a metade do aramado. Mas depois os gados não podem entrar no aramado. Há inspectores e se quebram têm de pagar multa. E havia serviços que se faziam e eram rentáveis, que agora deixaram de ser. Por exemplo apanhar a azeitona sem estragar a árvore, à mão. À pancadaria, estragase a árvore toda. Dantes a azeitona era ripada à mão. Mas não é só isso. Faziam-se mondas e outras coisas do género e já não se fazem. Ficava caríssimo. Usa-se a monda química, o que é poluente, e agora já há uns cereais geneticamente alterados que têm a qualidade de combater ele próprios as ervas daninhas e as doenças. A agricultura no Alentejo é muito bem paga. Ganha-se muito mais do que no norte. Dizem que os alentejanos são muito mais pobres, mas não é verdade. Em determinados serviços da agricultura são mesmo muito bem pagos. Quando chega à 21

Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro para entrega de partes de terras a pequenos rendeiros, iniciadas com a Portaria nº 246/79, de 29/5/1979, que definiu os princípios que presidem à entrega para exploração dos prédios nacionalizados e expropriados mediante contratos de uso privativo. Foi alterada pela portaria nº 797/81, de 12/9/1981.

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apanha da azeitona, as empreitadas… Um homem não trabalha por menos de cinco contos por dia. Mas quando é a apanha da azeitona o homem quer ganhar sempre mais de 10 por dia. E só aceita apanhar a azeitona a um preço que ele possa apanhar num dia os quilos suficientes para lhe dar um rendimento de 10 contos. E como vai ele e a mulher, quer ter um rendimento diário de 20 contos para o casal. Quem vende na árvore, tudo o que vem é lucro. Por isso foi-se tudo embora. Os filhos dos agricultores foram estudar e não voltam. São todos licenciados, têm as suas profissões, não podem perder tempo com a agricultura nem com a política local.

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3 – Trabalhador rural, caseiro. N. 1928, 70 anos. Somos três, ficámos sem pai tinha eu cinco anos, o meu irmão tinha 11 meses. O meu pai trabalhava ali numa casa22. Dizia naquela altura o médico aqui da terra, ele era azeitador da máquina23, punha azeite para dentro da máquina, e depois estava muito calor, ali naquela herdade. O meu pai desceu lá de cima cá para baixo, no carvão, ligou o cabo, deu-lhe uma ansiedade muito grande, levaram-no para o monte, morreu. O mê pai tinha 35 anos. A minha mãe trabalhava no campo. Trabalhava à jorna lá na casa: ceifava, cavava milho, apanhava azêtona, apanhavam a buleta24, esses serviços. Passou muitas, muitas dificuldades. Aquilo, então, toda a gente passava. Não teve ajudas nenhumas, de lado nenhum. Os avós era a mesma coisa, tudo a mesma coisa, eram do campo todos. Não tinham nenhum ofício, o ofício que tinham era cavar terra para cima dos pés25. O patrão deixava morar lá a gente no monte, dava lenha. Quando chegava o corte dava uma mancheia de lenha, uns ovos nos feriados, foi assim que a gente fomos criados. Levámos porradazinha26. E era assim. Não fui baptizado, nem nunca fui à igreja. Mesmo quando casei também não casei pela igreja. Só pelo civil, mais nada. Não fui à escola, ná havia escola nenhuma. Só havia escola na vila. Para lá ir era uma hora e tal, não era uma hora, para os rapazes era um dia inteiro. E então ninguém ia à escola. A malta da minha idade ninguém aprendeu a ler. Só aprenderam a ler alguns depois quando foram para a tropa. Eu fiquei apurado para a tropa, mas depois à chamada fiquei livre, e nã fui. Estava lá um filho dum médico, ele tinha a minha idade. Éramos muito amigos e ele diz-me assim: “É pá, queres cá vir? Eu peço ao mê paizinho e ele livra a gente os dois.” E foi. Eu comecei a trabalhar com seis anos, a guardar porcos. Ganhava 15$00, um alqueire de farinha, litro e meio de azeite. O meu irmão ódepois, quando começou a ter idade de trabalhar foi guardar porcos ou guardar ovelhas. A minha irmã também trabalhava no campo. Ceifava, cavava milho, cavava feijão, enfim, era a vida dela. Comíamos mal, mas íamos comendo! Íamos comendo umas sopazitas, enfim… A minha mãe fazia a comida lá em casa. Cá de fora havia uma mulher que era cozinheira, todos os dias era uma. Essa mulher é que tratava do comer. Mas era da gente e de todas as pessoas que lá andavam. Era um rancho: havia 30 ou 40 mulheres, isto era o menos. E havia 15 ou 20 homens. Aquilo era uma casa que dava 22

Casa agrícola, constituída por monte de habitação e terras. Oleava a debulhadora fixa, que funcionava a carvão. 24 Bolota, para alimentar os porcos nos períodos em que já não havia nos campos. 25 Mais risos. 26 Risos. 23

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muito trabalho a toda a gente. Todos os dias havia uma mulher para tratar do comer dos homens e das mulheres. Comíamos aquilo que a gente apanhava: umas batatas, umas couves, um feijão, umas coisas assim. A sopa punha-a a gente dentro da panela e ela aquecia as águas. Depois a gente ia ao almoço, fazia uma açorda, ou fazia umas migas, ou chouriço, uma morcela, uma farinheirazita, um bocado de toucinho, e tal, aquilo era poucochinho. Não comia peixe. Lá no monte tínhamos umas galinhas, tínhamos uns ovos, tínhamos uns frangos. O patrão só o que deixava comer aos empregados era figos. Atrás do monte havia lá aí umas 15 ou 20 figuêras, nã quêra saber! Aquilo era cabazadas de figos para a gente comer, para a gente e todos. Depois havia a quinta-feira de ascensão, conde27 mandava matar umas ovelhas, cinco ou seis ovelhas. Depois fazia lá uma grande festa. Tudo comia, os empregados e toda a gente que lá fosse. Quem queria fazer uma horta, ele dava um bocado de terra aí ao pé dum ribeiro. E os ovos!28 Olhe, ainda hoje nã gosto de ovos por causa disso. Tivemos muitos domingos, mas muitos domingos, era lá arreeiro29, fui lá arreeiro muito ano, com uma parelha de mulas. E tínhamos lá um caldeiro que levava 10 litros de água para as mulas. A gente tratávamos das parelhas lá na quadra, dava-lhes ração, davalhes palha, ia dar uma volta a umas malhadas de porcos onde tinham palhas ou coisas assim. E então havia lá um sítio que aquilo era só ovos30. A gente, aos sábados ou aos domingos, um velho que ali havia, que era lá o cozinhêro, estava sempre a dizer assim: “Comam!” Levantava-se cedo e a gente também se levantava cedo. E depois fritava muito ovo, fazia omeletas de 15 e 20 ovos. Éramos muitos, éramos seis, sete, oito, todos a comer. Não passávamos fome. Passava-se mal, havia casas com muita gente que passavam um bocadinho mais mal porque tinham muitos filhos. Havia lá pessoas que tinham aos sete e aos oito filhos. Na minha casa cada um tinha lá a sua cama. Roupas! Isto a gente lá se ia ajétando, umas calças, umas camisas… A minha mãe fazia aquela traquitana toda. Havia ali perto uns velhotes que tinham uma venda e tinham lá os tecidos. Era lá que as pessoas iam comprar para fazer. Depois ela costurava. O calçado: eu calcei muito ano, talvez até aos 12 anos, umas sapatilhas que eram compradas na Espanha. Umas sapatilhas que eram de pano por cima e com solas de borracha encarnada, trazidas pelos contrabandistas. Os mês primeiros sapatos! Eu tinha para aí os meus 15 anos

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Quando. Mais risos. 29 Arreeiro, equivalente ao carreiro e ao mulateiro, conduz as mulas e lavra a terra, ver Martins e Monteiro 2002. 30 Mais risos. 28

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já. Quando chovia, nessa altura quando tive os mês sapatos, eram umas botazitas, e depois uns sacos enrolados ali aos péis. Vivia-se muito mal naquele tempo. Toda a gente vivia mal. Uns mais, outros menos. Ao domingo não se trabalhava, mas ao sábado trabalhava-se todo o dia. Não se podia vir à vila, era muita longe! Ninguém tinha beciclete. Ninguém tinha nada. Todos os domingos havia um baile lá naqueles montes. Havia muito homem que tocava concertina. Havia muita gente a pedir! As pessoas andavam mal e começavam a andar à pida. A pedirem um bocadinho de pão aqui e além. O meu patrão era assim: havia ali vários homens que tinham uns dias para ir lá ao monte. Chegavam lá comiam uma açorda. Davam-lhes um pão, azeite, água quente e um queijo para a pessoa comer. E azeitonas. No outro dia essa pessoa que dormia lá nessa noite arrancava, ia-se embora, levava um pão, um queijo. Era gente que andava desempregada, andava por aí. Por onde calhava. Havia um que era mudo, foi quem fez os móveis do médico. Esse homem estava lá quase sempre. E ele para ler e escrever era para diante. E não havia semana que ele não ia lá uma vez ou duas. E tinham lá uma casa para ele dormir. Lá quem mandava era o feitor. Ou o feitor ou o patrão. O feitor distribuía o serviço pelos empregados. Havia o maioral das parelhas31, havia o managêro d’hómes, que mandava nos hómes32. Depois a outra pessoa é que mandava fazer ao pessoal. O das parelhas a mesma coisa, o abegão a mesma coisa, o boieiro a mesma coisa, era tudo assim. O patrão não morava lá, mas ia lá todos os dias com um automovelzinho pequenino que ele tinha. O carro só pegava barreira abaixo. Era daqueles carros que tinha uma manivela grande, um ferro comprido. Eu lembro-me bem. Assim à volta tinha um gancho. Metia-se assim, dava-se à manivela para pegar. Havia lá alguns que eram afilhados dele. Todos lhe tiravam o chapéu. Ainda ele vinha lá além naquele cabeço, já lhe estavam a tirar o chapéu! Trabalhê lá até aos 23 anos, com parelhas de bois. Umas vezes era ganhão33, outras vezes trabalhava com as mulas. Morava lá, depois casei, vim morar para a vila. 31

O maioral das parelhas era o encarregado principal das parelhas de muares que trabalhavam ao carro, arado e grade (Picão 1983: 74, Vasconcelos 1980: vol. V, 661, Martins e Monteiro). 32 O manageiro era um trabalhador eventual que dirigia os trabalhos característicos da grande lavoura alentejana, que utilizava grandes quantidades de mão-de-obra sobretudo na época das ceifas, mas também para outros trabalhos, realizados de empreitada. Também podia ser um criado da lavoura, anual e com comedorias, que eram parte do salário em géneros (Picão 1983, Martins e Monteiro). 33 O ganhão é um criado da lavoura, um trabalhador justo, do sexo masculino, indiferenciado, mas vocacionado para a lavoura de cereais (Martins e Monteiro 2002).

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Moro aqui há quase 50 anos. Viemos viver lá para aquelas casas onde a gente mora agora. Aquelas casas eram do mê sogro. Ele comprou aquilo por 11 contos. Mas 11 contos naquela altura era muito dinheiro. Ele era pastor. Foi 55 anos pastor. Já não ficou nada mal! Naquela altura… Quem arranjava 10 ou 12 contos, faz de conta que era um homem rico. Ele lá arranjou aquele dinheirito, lá comprou aquelas casinhas. Eu fui trabalhar lá para o monte onde ela morava, era lá ganhão, depois lá começámos a andar um com um outro. A minha mãe ficou a morar no outro monte onde sempre viveu. Na mesma casa, até que morreu com 78 anos. Eu fui sempre ganhão. Depois casei e vim para a vila, trabalhava onde calhava. Tive sempre trabalho. Havia muito desemprego. Havia aí homens que passavam o ano além à esquina, sentados ali naqueles degrauzinhos, porque eles eram ruins para trabalhar. E como eram ruins, pouca gente lhes dava trabalho. Quem queria trabalhar tinha sempre trabalho. Sempre trabalho, sempre. Ainda andei a trabalhar ali na fábrica do leite, mas eu não gostava daquilo. E ganhava mais dinheiro cá fora do que ganhava lá na fábrica! Eu fui para Lisboa trabalhar, muitos sítios, muitos. Aqui há uns 30 e poucos anos, para ganhar algum dinheiro. Deixei cá a mulher e as filhas. Andei lá a trabalhar ao pé do campo da aviação de Sintra, em Rio de Mouros. Estive lá uns três meses. Quando aí foram feitos esses prédios todos que lá há, andámos lá eu e muitos de cá. Tive duas filhas, chegavam bem. No outro tempo havia muita gente que tinha mais. As pessoas governavam-se muito mal. Só duas chegavam muito bem. Andaram à escola, fizeram a 4ª classe e depois foram estudando à medida que elas quiseram. À noite, de dia trabalhavam. Trabalharam como costureiras, muitos anos. Uma delas tirou o 2º ano34. Eu sabia que havia por ai reuniões e comunistas, mas isso a mim nunca me interessou. Eu não queria lá saber do Salazar! O Salazar era o Salazar, olhe, era um rico. Ele até nem era mau. O Salazar nunca foi para nação nenhuma estrangeira passear. Veja estes, agora, não param nisto! Estes nã param. E quando vão, não vai só um sozinho: levam logo um comboio cheio. Nunca participei em greves. Achava que aquilo estava mal. Os pobres continuavam pobres, e os ricos continuavam ricos à mesma. Ora, se isto assim era, não valia a pena andarmos a fazer greve. A gente, quanto mais greves fazia, menos tinha. Se aquilo não chegava de maneira nenhuma, se realmente aquilo não chegava trabalhando todos os dias, se fôssemos a fazer greve não pagavam os dias à gente! 34

6º Ano de escolaridade.

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Eu era pequeno e bem pequeno, isto dos comunistas, estas coisas assim, isto não é moderno, isto é antigo. Eu lembro-me de um homem cá da vila que picava pedra para fazer calçadas, e fazia um lume no buraco onde arrancava as pedras, punha uma panelazita com o comer e em acabando de comer vinha logo para a sombra de uma árvore qualquer a ler o jornal do Avante. Já naquele tempo! Ele fazia aquilo às escondidas! Esse é que era comunista. Agora esta gente que há agora aí não é comunista. Ele era boa pessoa. Tratava toda a gente bem. Tinha lá aquelas ideias dele e só ele é que as podia manter. Antes do 25 de Abril toda a gente já tinha um bocadinho de pão para comer quando tinha fome. Já estávamos melhor. Toda a gente estava melhor. No 25 de Abril eu estava aí numa herdade a engordar uns bois. Então isso era uma história muito grande, que eram fascistas! Quem trabalhava por conta de outro era logo fascista. Era só o que se ouvia, não se ouvia mais nada. Fomos chamados fascistas porque tínhamos uma filha a trabalhar na farmácia do antigo presidente da câmara, como ajudante, e outra filha a trabalhar no colégio, que era de outro que também foi presidente da câmara. Andava tudo: este queria uma herdade, aquele também queria outra, as herdades já não chegavam para tanta gente! Faziam as manifestações, eu não fui a nenhuma. Eles não me ligavam, e eu também não me fazia diferença que eles não me ligassem. Nesse particular, não. Vivi sempre sozinho. Nunca dei para essas cowboyadas. Nunca trabalhei para a cooperativa. Nunca. Nunca fui a lado nenhum. Via-os passar, dum lado para o outro, tanto os da tropa, como cá os civis, mas nunca fui a lado nenhum desses. Nas herdades partiram aquilo tudo, roubaram aquilo tudo. Os montes estavam um lixo. Esfarraparam tudo. Queimaram uma enfardadeira, partiram-na. Queimaram tudo. Queijos, carne, azeite, eles comiam tudo, esfarraparam tudo, deram cabo de tudo. Houve alguns que ficaram cheios de dinheiro, outros ficaram cheios de fome. Continuaram na mesma. Na altura deram por aí umas terras, uns bocados de terra a este, uns bocados de terra àquele35. Agora, quando aquilo organizou bem tiraram aquilo tudo à mesma, ficaram sem coisa nenhuma à mesma, não ganharam nada em andar por aí a ladrar. Os parvos. Depois mandaram-me prender. Fui preso para a Ponte de Sor. Prenderam-me porque eles queriam que eu entrasse lá para o partido deles e ê na quis. Não me trataram mal, nem eu tratê mal ninguém, nem coisíssima nenhuma. Queriam era que eu fosse para lá e eu não quis. Saí do posto e fui para Lisboa. Estive lá uns dias, depois voltei. Fui trabalhar para um monte que não foi ocupado, fui caseiro.

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Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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Quem estava bem continua a estar bem, e quem estava mal continua a estar mal. Os novos têm uma vida melhor, muito melhor, tem sim senhor. Toda a gente tem uma vidazinha melhor. O responsável é a pessoa própria, a pessoa. Por trabalhar mais e por tentar fazer a vida de outra maneira. Assim é que a gente pode andar para diante, caso contrário não há nada para ninguém.

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4 – Trabalhadora rural, caseira. N. 1933, 65 anos. Nasci num monte. O mê pai foi lá pastor 40 anos. E nascemos lá debaixo dos telhados deles. Havia uma horta lá. A minha mãe foi cozinheira do monte. Éramos só quatro filhos: duas raparigas e dois rapazes. O meu irmão tinha moléstia de pele, mas começou logo a trabalhar a ajudar o pai no rebanho. Aprendeu a ler atrás das ovelhas. Ele não foi à escola. Quem lhe ensinou foi a minha irmã, que foi à escola, a mais velha. Ópois fazia-lhe os números e as coisas, e ele ia aprendendo. Só ela é que foi à escola e eles foram trabalhar. Ela ficava em casa da avó aqui na vila. Eu só fiz a 2ª classe. Também vinha do monte aqui à escola, pois, a pé. Era a minha vida, dantes. O mê pai às vezes ia para longe, estava aos três meses sem sabermos onde ele andava. Chamávamos “andar de mal andar”, era andar pelas pastagens que compravam lá muito longe. Depois iam andando até que lá chegavam, andavam dois, três meses sem a gente saber deles. Depois vinham, voltavam ali para as terras do senhor. Com 11 anos fui trabalhar, comecei a mondar ali numa herdade. Depois comecei a apanhar legumes, deixei a escola e fui para o campo. O senhor vendeu o rebanho e depois o meu pai pensou que metia-se por conta dele. Mas depois aquilo nã dava, senhotôra, por conta dele, comprar pastagem, que ele era uma pessoa muito honesta, não devia nada a ninguém, e comprar pastagens era muito caro. E depois ainda foi uns anitos ali para outro monte e lá estivemos, foi quando eu conheci o meu marido, tinha 14 anos. Depois, coitadinho, começou a ser velhinho, foi para outro monte, tomar conta. Foi ali que a minha mãe morreu, coitadinha, tinha uma angina de peito. No tempo que a minha mãe esteve doente veio cá logo um senhor com um burro chamar o patrão, e ele veio buscar a minha mãe. Quer dizer, eu não tenho razão de ninguém, de ninguém. Por isso é que eles dizem que eu que sou amiga dos ricos. Ninguém me tratou mal. Toda a gente foram bons para mim. E então os meus patrões, isso então, nem falar nisso, a Senhora Doutora, o Senhor Doutor. Mas tinha mais à vontade com a Senhora Doutora, porque era mulher, e eu tinha problemas, às vezes, qualquer coisa que não me estava a calhar. Eu desabafava com ela, pedia a opinião. Porque a gente não tem cultura nenhuma, e gostamos às vezes de uma pessoa que nos encaminhe, faz-nos falta. E então gostei muito do convívio com uma pessoa assim, gostava de apoio, deram-me apoio. Eu vivia muito mal foi quando casei, por que eu na altura que era solteira, a minha mãe era cozinheira, o meu pai era pastor, nunca tivemos necessidades. Depois 46

eu guardava os pirúns, o patrão comprava-me vestidos e dava-me rebuçados. Tinha sapatinhos, tinha roupas, tinha tudo, graças a Deus. Comia bem, matava um porquito, tínhamos hortas, tínhamos essas coisas, nunca tive necessidade. Agora, quando casei, passei muito! O meu pai comprou esta casinha. Então, vendeu as ovelhinhas, poupou dinheiro. O meu pai tinha o rebanho já aquase todo, vendeu aquase todo, e depois foi deixando umas borreguinhas para fazer novamente rebanho, e vender. As ovelhas dele andavam junto das ovelhas do patrão. Ganhava poucochinho, mas tinha aquelas ovelhinhas, davam-lhe azeite, davam legumes, era de outra maneira, era diferente, os ordenados eram diferentes. Mas como estávamos todos em conjunto, vivíamos lá no monte, e nunca tive dificuldades. Quando casei fiquei aqui nesta casa. Tinha 19 anos, aos 20 anos tive a primeira filha. Aos 21 tive um menino que nasceu morto. Partos terríveis, que andava para me esgotar em sangue, tinha de levar soro, soro, soro, e o mê pai é que tinha de ir pedir fiado ao farmacêutico para levantar os remédios. Eu tinha as crianças bem, mas depois tinha hemorragias que nunca mais sabiam o que lhe fazer. Depois do parto. E ficava desgraçada. Eu tinha leite, mas muito fraquinho, depois não era capaz de me mexer, só que me mexesse, aquilo era… Tinham de me levantar os pés da cama… Depois vinha cá o médico mais que quantas vezes! Aos 22 tive a nha segunda filha. Até que elas se equilibrassem ali, tirei a maminha aí aos nove meses, foram para a minha mãe, lá para o monte, e eu comecei a trabalhar. Foi assim. Eu sofri mais foi em casada. Em solteira nunca tive dificuldades. Trabalhava no campo. Não estava ainda feriada. Eu, graças a Deus, ninguém mo deu chorado, ia como qualquer pessoa trabalhar. Depois não tive mais filhos, não, já viu, se fosse assim, daqui a nada estávamos desgraçados. Evitava, pois. Sempre cheia de medo e ai! Nessa altura estava muito fraquinha e quanto mais fraquinha estava mais depressa engravidava. Havia muitas que faziam abortos. Mas a gente tinha medo, a gente tinha medo. Faziam, faziam abortos, mas também era dinheiro e eu também nã tinha. Tinham de ir para fora. A gente dantes também se envergonhava de dizer às pessoas mais velhas, senhotôra. Isto não é como agora. Eu até me envergonhava de dizer que estava de bebé. Isto era um atraso de vida! Podia ter problemas, a gente não queria que ninguém visse, não estávamos preparadas. Isto a gente vê isto hoje… Agora é mais fácil, então não é? Então as crianças têm outra abertura. A gente íamos dizer qualquer coisa, a minha mãe, coitadinha, que Deus lhe tenha a alma em descanso, dizia logo: “Olha que estão a falar de baixo.” Pronto, a gente ficávamos logo ali sem saber nada. Nada, nada, nada. Eu casei, chiii! Punha tudo de outra maneira, não sabia mesmo nadinha, nadinha. Era uma ceguinha. Andava sempre com a minha mãe, 47

sempre a trabalhar com a minha mãe, que dizia logo: “Então isso são conversas de cachopas, ou quê?” E eu não sabia! E eu, para as minhas filhas, às vezes já me abria com elas mais, porque vi que eu fui muito ceguinha. Pois, fui muito ceguinha para a vida. Mas agora as minhas raparigas já têm outra abertura, têm outra vida. As minhas filhas já estudaram. A mais velha fez a 5ª classe, depois a professora pediu ao farmacêutico se a metia na farmácia. E então com 13 anos foi para a farmácia. E a mais nova andou a estudar também de noite para ficar ali contínua no colégio. Andava a aprender à costura, essa. Quando o colégio fechou ela foi trabalhar para a fábrica do tomate, o que calhava. Nessa altura ela foi para lá e eu pedi aqui ao Senhor Doutor se deixava lá ficar os meus netos, e os rapazinhos andavam lá. Agora ela trabalha aqui na escola secundária, é a encarregada lá do pessoal, é a mais velha, e o meu genro está na parte lá do escritório, é a reparar nas comidas, nas crianças, mas é serviços de escritório. Pois, com certeza que as minhas filhas estão melhor, graças a Deus! A minha filha tem um ordenadinho, o meu genro também trabalha num escritório, também tem um ordenadinho escapatório, e é bem melhor do que eu vivi. O tempo que trabalhei em nova nã andava nesses grandes ranchos. Era sempre ranchos mais pequenos. Eu nunca fui afrontada com essas conversas de política, eu cá não percebia nada disso. Dizem que falavam. Uma vez é que andei à monda com umas que levavam um rádio para ouvir uma coisa qualquer lá de fora. Eu nem percebia nada. Nunca ninguém me disse nada. Elas sabiam bem que eu não ia. Só depois é que elas se conheceram. Tudo era amigos, tudo bem dispostos uns com os outros. A gente, às vezes, se levava umas azeitonas numa latinha, repartia. O pouco que a gente tinha dividíamos com os outros. Éramos todos amigos. Éramos sim, senhotôra, a política é que trouxe isto tudo. O meu marido era caçador. Tinha uma espingarda, ia às vezes com o Senhotôr… Não havia vedas nenhumas nessa altura36. Ele passava por onde queria, chegavam a andar semanas lá dentro daqueles matos. Depois vendiam a caça ao homem da taberna. Depois do 25 de Abril caçou pouco, começaram a estar as terras mais vedadas. A caça é pouca. E tive mesmo de lhe tirar da cabeça que… Porque ele nunca mais teve siso. Uma coisa qualquer podia-se alterar, já viu, com uma arma na mão, aquilo era uma corda para o enforcar. Ele estava muito queixoso. Eu não andei nas ocupações porque achava que aquilo era roubo. Eu também não gostava me que roubassem as minhas coisas, que eu trabalhei tanto para as ter. 36

Não havia vedações.

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Depois do 25 de Abril ninguém me dava trabalho e eu fui trabalhar ali numa pensão. Estive lá seis meses. Depois fui fazer a azeitona à da minha irmã e depois voltei para trabalhar a dias. Tive de ficar a dias porque ninguém me queria no trabalho porque era da reacção. Eu não estava habituada, tive de aprender tudo, e era difícil. Eu não quis ir para o sindicato e por isso não me davam trabalho. Só estava uma cooperativa formada, não é? E como eu não podia lá andar, que era da reacção, eu tive de ganhar a vida com qualquer coisa. Graças a Deus tive sempre de comer. Trabalhei honradamente. Depois fui para à do Senhor Doutor, que foi muito meu amigo, e lá estive 18 anos como caseira. Foi assim a minha vida. Eles diziam que eu era da reacção porque eu não era comunista, eu não sou comunista. Eu ia trabalhar para a azeitona. Depois foi um, que já morreu, com um pau, e fez-me voltar para trás. E depois pagaram, às pessoas da cooperativa pagaram os dias todos, que eram 180$00, naquela altura que a gente ganhava. Quando eu casei ganhava, o meu marido 18$00 e eu 12$00. Depois, naquela altura, ganhávamos já 180$00, mesmo ao pé do 25 de Abril. E então o meu marido pediu ao chefe da cooperativa para me fazerem entrar, e para me pagarem o dia que não me deixaram trabalhar; se havia condições para pagarem a um, pagarem a todos. E então um dia, eles diziam que a gente estávamos errados, estávamos na reacção, que andávamos iludidos com os ricos. E isto, e aquilo, era só a conversa deles. Quer dizer que depois eu voltei para trás. O meu marido vai, duas vezes procurou lá ao chefe. À terceira vez foram ao posto dizer que o meu marido queria matar o chefe da cooperativa, vieram buscar o meu marido. Começou às oito da noite, até às cinco da manhã. “Corta-se o fascista às postas! É o lacaio”, é isto, é aquilo. Eu, como fui criada e nascida na terra, julgava que se fosse ali pedir que me atendiam. E então, isto era uma quantidade de gente que aqui estava. Gente com paus, a gente nem passava ali, diziam que o matavam… E eu sempre e as minhas filhas37. Estas coisas, a gente até… Uma situação que a gente até… Quer dizer que depois lá saiu, às cinco da manhã… E então abalámos, fomos para a Ponte de Sor. Depois um senhor agarrou nas minhas filhas e foi com elas atrás. E então ele estava no posto. Esta cena aqui em casa, sem sabermos onde havíamos de ir, sem fazermos mal a ninguém. Aquilo tanto podia o homem bater no meu marido como o meu marido bater nele, que eram dois homens, então, foi uma multidão: “Abaixo a reacção, é amiga dos ricos todos, ela e as filhas!” Foi o que me deram na minha terra! Nunca me fizeram mal, nem às minhas filhas. E depois no outro dia a gente vai de manhã, ele estava todo suado, tinha andado a trabalhar todo o dia, levámos-lhe a 37

Chorou.

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roupa. Ó senhotôra, a gente agarrou no dinheirinho que tinha em casa e abalámos, todas três. Elas tinham lá estado toda a noite com o pai. Fomos para a Ponte de Sor. Sem sabermos para onde íamos. Agarrámos no dinheiro, o meu genro ainda namorava a minha filha e abalou connosco para irmos não sei para onde! Eu tinha que ir para Abrantes, e a minha pequena lembrou-se… Fomos no carro do mê genro. A minha pequena lembrou-se que em Lisboa estava um amigo nosso e então: “Vamos para casa do Maltês!” Chamavam-se eles Maltês um ao outro, porque eles são muito amigos. Chegámos a Mora partiu-se o carro do mê genro. Ficámos debaixo de uma azinhêra sem saber o que havíamos de fazer. O carro partiu-se, já não andava mais para diante, depois veio a reboque para aqui. O homem do reboque até ia com pena da gente. Voltámos com caras de parvas, tudo calado, dentro do carro, sem saber, já viu, para a gente irmos resolver a vida, para irmos embora, que eles não nos queriam cá. Dizem que a gente somos a favor dos ricos. Pois somos, porque nunca ninguém me fez mal, nunca, nunca, tudo me tratou bem. E então, ópois lá abalámos, o que é que a gente havia de fazer? Fomos lá, muito bem recebidos, eles eram muito amigos, esteve lá uma semana em Lisboa. Nós voltámos para casa, sem saber o que havíamos de fazer à vida. Mas então, que deixámos o dinheiro que levámos, deixámos o dinheiro, os casacos, tudo no carro de praça de Mora. No outro dia aparece aqui o senhor, o homem chorava, chorava agarrado à gente. Veio-nos trazer o dinheiro, e chorava, que nunca viu nada no 25 de Abril tão chocante como foi a gente. Porque era só o que a gente tinha, então a gente éramos pobres, vivíamos do trabalho, tive de deixar o meu marido em casa das outras pessoas, mas ele era muito teimoso. Veiome trazer o dinheiro, e os casacos e tudo. Veio-nos trazer aqui. Hoje é poucochinho, mas era 70 contos, naquela altura era bom dinheirinho. Hoje não é nada. Muito honesto. Depois íamos muito caladas, e nisto vinha uma excursão, daquelas manifestações muito alegres, coitados. Eles até podiam estar certos, mas eu é que estava ferida. Voltei-me e digo assim: “Ai, maldiçoados, por causa de vocês é que eu aqui vou!” Foi então quando a gente se abriu com o senhor e lhe contou. O meu marido esteve lá em Lisboa oito dias. Tínhamos comprado um bocadinho de terra e diz o mê Manel: “Eu volto para a terra!” “Ó pá, nã vás, nã vás!” Mas ele é teimoso até dizer chega. “Então eu não matei ninguém, não roubei ninguém, então agora só porque eles nã querem que ê lá esteja. Pois ê vou. Se me matarem, é só uma vez!” E veio. E eu sempre cheia de medo por causa dos problemas, não é? Nunca espreitei o meu marido senão no 25 de Abril. Depois fomos a gente para o monte. E isto passou. E hoje, graças a Deus, já ninguém nos trata mal. Mas sofri 50

muito, Senhora Doutora, muito, muito, muito. E foi assim o mê 25 de Abril, por isso, da Reforma Agrária não sê nada, senão isto.

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5 – Alugador de máquinas, rendeiro agrícola. N. 1929, 69 anos. Nascido e baptizado e vivi sempre aqui na vila. Tenho um anexim38 que vem do meu bisavô da parte do meu pai. Os meus avós maternos trabalharam muito no campo: andavam, como a gente diz cá, à jorna. Porque eles também tinham uma courela, que eles tinham herdado. E também faziam trabalho para fora. Mais tarde, quando eles já não puderam, venderam. Aquilo era só um bocadinho, não dava para eles se governarem. Faziam ceifas e tinham uma tradição que era: no Verão faziam tábua e bunho, que é aquela coisa que faz os assentos das cadeiras. A minha avó andava pelos ribeiros a cortar, a pôr a secar, e depois faziam esteiras para levar à feira da Ponte no 5 de Outubro. Não havia transportes, eu ainda fiz isso com eles, na companhia dos meus avós. Punha-se um esteiro e ficava-se ali pela noite fora, era um divertimento como não há agora, cantava-se e balhava-se39, e às tantas comprava-se uma esteira e dormia tudo lá. Até tenho uma fotografia de nós a dormimos na esteira. Era aí que eles faziam algum dinheirito para sobreviver no Inverno, que era aquela fase que não havia trabalho cá por fora. Houve um ano que o meu avô já tinha vendido as esteiras, já tinha o dinheiro no colete, e foi assaltado. Já havia aquilo que ainda há hoje, mas hoje ainda há mais. E então um tipo cortou-lhe o bolso e a carteira caiu. Tinha feito um conto de réis, que na altura era muito dinheiro. Ele lá encontrou a carteira com os documentos, mas sem o dinheiro. Nesse Verão seguinte, como não tinham o dinheiro, tiveram que ir ceifar. Já bastante velhos. Foi no ano que eu aprendi a ceifar. Os meus pais também trabalhavam no campo. Por vezes o meu pai andava justo, andava ao mês. Também havia os encarregados que andavam ao ano. Ele trabalhava com mulas, era arreeiro. Trabalhava com uma parelha de mulas. Eu passei a minha infância num monte, fui ajuda, fui ganhão, fui arreeiro. Comecei a trabalhar com 11 anos, a ajudar a porcos. Havia o moural40 que tinha um ajuda. O meu pai trabalhou ali muitos anos com as parelhas. Eu fui para ajuda, de ajuda passei para ganhão, o que trabalhava com uma junta de bois a lavrar, a gradar, a fazer o serviço que hoje os tractores fazem. Depois passei para arreeiro. Isto tudo com 18 anos. O arreeiro trabalhava com uma parelha a lavrar, a transportar com um carro, no Verão carregava o pão41 que era cêfado42 à mão e fêto ós molhos43, e depois era carregado

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Alcunha. Bailava-se. 40 O maioral dos porcos era hierarquicamente superior ao porqueiro e respectivos ajudas, ver Martins e Monteiro 2002. 41 O cereal. 42 Ceifado. 43 Fazer molhos ou fardos de cereais. 39

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prá eira para ser debulhado com aquela máquina fixa, a debulhadora, que só debulhava, agora é que enfarda. Hoje a ceifeira faz isso tudo. A debulhadora era de um lavrador que fazia a debulha dele e fazia algumas por fora, a esses que não tinham máquina. Ele ganhava X%. Por exemplo, trabalhava a 5% ou a 3%, tudo aquilo que debulhava, fosse trigo, fosse aveia, fosse cevada, 3% era para a máquina, que tinha o pessoal, as pessoas que metiam o pau e que aparavam o trigo, era tudo pago à conta do dono da máquina. Nós morávamos na vila, mas também dormíamos no monte. Parte das vezes levava-se o aviado para a semana e ficávamos lá. Havia uma senhora que era cozinheira e a gente deixava o comer e depois jantava. O almoço, no tempo do Inverno, era ao romper da madrugada. Depois carregava-se a semente se se andava a semear, ou o trigo, a aveia ou a cevada, carregava-se a comida para as bestas e para os bois. Ia-se para o local espalhar, enterrar e fazer a sementeira. Ao meio-dia parávamos e tínhamos o cozinheiro, que era quase sempre o marido da cozinheira, que nos ia levar o jantar lá ao local. À noite quando regressávamos era novamente na cozinha que íamos comer. Era aquase sempre uma açorda, umas migas, umas coisas assim, não havia mais nada, nem havia condições. O azeite era medido com uma colher, porque aquilo era aquela pinga de azeite que a gente levava para aqueles dias e tinha de ser bem medido para dar para os dias todos que a gente lá estava. Era com isso que a gente temperava. Fazia-se uma açorda, fazia-se umas migas, quando se podia um bocadinho de carne de porco, mas também não era todos os dias, era só dois dias por semana, que era à quinta-feira e ao domingo. O patrão por vezes dava umas azeitonas, que não eram todos que davam porque os criados eram muitos e eles achavam que era uma fortuna que davam. Às vezes lá se arranjava uma manchêa44, por vezes até às escondidas. Não comíamos queijo de ovelha, só os lavradores, só esses é que tinham ovelhas. Então vendiam o leite a um indivíduo que comprava, que comercializava esse leite, fazia os queijos e vendia. Quem tinha dinheiro para comprar um queijo comprava e comia, quem não tinha, não tinha possibilidades. Os que andavam justos, que era ao mês, ganhavam comedias45. Ganhava-se X dinheiro ao mês e ganhava-se, era alqueires de farinha, o alqueire era 15 quilos de farinha, ganhava-se ou quatro alqueires, ou três alqueires e três litros e três decilitros de azeite. E era meio alqueire de alegumes, ou fosse grãos, ou fosse feijão-frade, e era só, carne ou queijo tínhamos que comprar com esse ordenado. A fruta também era só quando a gente a apanhava, também assim sem os 44 45

Mão cheia. Comedorias, ver atrás.

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donos lá estarem ao pé, só assim é que a gente a podia comer, ou que alguém desse alguma. Era mesmo assim, não tenho vergonha de dizer, era a vida real. Por exemplo, havia um meloal, havia um melancial, ou íamos buscar uns cachos de uvas, que era só assim é que a gente tinha possibilidades de comer. Por vezes aparecia um guarda, havia sempre uma pessoa responsável, como havia também para a boleta46, para a azeitona. Não se podia mexer em nada disso porque havia um guarda responsável ou dois para não deixarem mexer. Ele por vezes ralhava, e outras vezes multava mesmo. Tínhamos que ir ao posto pagar X por aquilo. Ele comunicava ao posto e tínhamos que ir ao posto. Eu felizmente nunca fui por isso; algumas vezes fui buscar uma manchêa de azeitonas, mas felizmente nunca... Também fui buscar umas boletas para assar, para a gente comer... E havia pessoas também que compreendiam a vida. Mas havia o medo dos donos, era aquela tragédia, sempre aquela coisa com medo, e aquele que estava a guardar tinha medo, se não vinha o patrão, ou vinha o outro encarregado superior e era assim a vida. Tenho duas irmãs. São mais novas. A minha mãe também trabalhava no campo. Não havia nem creches, nem maternidades, nem nada. Tinha os filhos, estava oito dias em casa, mas depois havia ou os meus avós, ou uma vizinha que tomava conta deles, mas muitas vezes levava-os, como eu ainda fiz com o meu, que eu tenho um que vai fazer 49 anos em Fevereiro se Deus quiser, e a criação dele também foi assim. Andávamos a ceifar, tinha uma bicicleta a pedais, e ele ia sentado ali atrás no suporte e depois lá ficava com a cozinheira que estava lá a tratar do lume e a gente andava a ceifar e à noite vinha para cá, às vezes a chorar, às vezes sujo e borrado. A minha mulher tinha leite, mas arrebentarem-lhe os peitos, acabou por não ser capaz e foi criado a sopas e açordas e coisas assim, que não havia condições para comprar leite. As pessoas diziam que a dar sopas ao menino ainda arranjava um intrite47, mas felizmente não. Começou logo a comer sopas com a gente. E foi assim que ele se criou. A minha filha já foi um pouco mais dentro desta época, eles têm uma diferença de 12 anos, já foi criada com outras condições. Aquele foi ainda na época como eu fui. Eu não fui à escola, não senhora. Os meus pais moravam além num monte e de além é que eu vim ainda pouco tempo à escola. Vinha e voltava à escola. Nem cheguei a fazer a 1ª classe, porque tive de ir ajudar a porcos para ajudar a manter os meus pais. Vinha à vila aos mandados, era quase sempre numa casa que a gente se aviava e depois quando tinha dinheiro pagava. Eu é que fazia o serviço da casa, varria a casa, lavava a loiça, fazia as camas. Aprendi a ler já depois de casado e já tinha o

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Bolota, fruto da azinheira. Enterite.

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meu filho com oito anos quando eu fui à escola nocturna, a pagar. Foi quando eu comecei a organizar a minha vida. Até essa altura trabalhava também de jorna. E depois é que eu comecei a trabalhar com tractores e com máquinas. Eu sabia fazer o meu nome mal. Conhecia as letras, mas não era capaz de as juntar. Depois dali fui à escola à noite, depois do trabalho, e consegui fazer a 4ª classe para modos de tirar a carta de tractorista. Até tive azar porque na altura passavam a carta de tractor com a 3ª classe. E eu estava quase a fazer a 3ª classe quando saiu o decreto que só passavam a carta de tractor com a 4ª classe. E eu tive de estudar de noite e trabalhar de dia e felizmente consegui. Aí é que eu comecei a organizar a minha vida, tirei a carta, fui para tractorista do grémio, depois comprei um tractor. Tinha 400 merréis48 em casa e comprei um tractor em segunda mão. Foi um senhor que era o dono aqui destas oficinas que vendia tractores usados. Por 93 contos. O tractor, uma charrua e um escarrificador. Em 1961. Eu tinha muito serviço porque tinha saído de tractorista do grémio e os fregueses melhores vieram comigo. Eu é que lhes fazia o serviço todo. Esse amigo, foi o meu amigo principal, foi o meu segundo pai, nesse tempo nem assinei letras, nem nada. Conforme ia ganhando dinheiro, e ia tendo disponibilidade dele, ia-lhe entregando. Dei-lhe 15.000$00 porque uns tios meus, uma emprestou-me 5.000$00 e outro emprestou-me 10.000$00. Os 400$00 tinha eu para me alimentar. Depois quando comecei a trabalhar paguei aos meus tios e aquele que me vendeu o tractor, esse fui amortizando. No fim de dois anos, andava aqui a lavrar, ele apareceu-me aqui: “Temos de trocar o tractor”. Foi na altura que saiu uma linha nova. Eu disse: “Não me diga isso, então ainda nem paguei este…” E ele: “Vendo-to pelo mesmo que to vendi”. Pensei logo na maneira: o meu filho já andava a aprender a pedreiro e começou a gostar logo de trabalhar com o tractor e já mexia qualquer coisa com o tractor. Eu tinha muito serviço, isto foi em Janeiro, os alqueives tinham muito serviço, e eu pensei assim: “Vou ver se ele quer assim. Faço a troca, mas ele entregame o novo e eu só lhe entrego este no fim do mês”. Que era depois com o meu filho, éramos os dois, como havia muito serviço... E ele fez-me esse favor. Era de dia e de noite, cheguei a andar em cima do tractor 18 horas sem parar. Comia, levava um lanchezinho. Andava a lavrar terra para tomate. O tractor trabalhava à hora. Trabalhava a fretes para quem me dava o serviço. Felizmente tive sempre boa freguesia, era porque também os servia bem. Por vezes era também para acudir a essas pessoas que estavam aflitas com o serviço para fazer. Era a 50$00 à hora, se parasse uma hora eram menos 50$00 e atrasava-se o serviço para a pessoa, que estava aflita para plantar tomate. Era eu e o meu filho, fazíamos para os seareiros. 48

Mil réis, antiga designação dos escudos.

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Para acudir a todos tínhamos de roubar o nosso tempo de descanso. Esse dito tractor, entregámos o velho e ficámos com o novo. E revezávamo-nos. Lutei eu esta vida toda, do nada, fiz a minha casa com o dinheiro das máquinas, com o trabalho. Felizmente não fiquei a dever nada a ninguém senão favores. Ninguém me pode apontar o tamanho de uma unha que eu prejudicasse alguém. O que era meu era meu, e o que era do cliente, era do cliente. Nunca ninguém duvidou de mim. Eu trabalhava de noite e de dia, e nunca cobrei nem mais um minuto. Vale mais dez a menos do que dois a mais. Quem trabalha à hora como eu trabalhava, eu precisava mais do cliente do que de uma hora que metesse a mais. Se se descobrisse que eu o enganava numa hora... Para mim era melhor continuar com o cliente do que enganá-lo. O meu filho ainda não tinha tirado as sortes49, tinha 17 anos. Ele já fez a 4ª classe. Naquela altura eram poucos os donos das propriedades que tinham tractores. Havia aí dois ou três só. O grémio tinha um tractor que fazia serviço aos sócios. Tinha comprado um há pouco tempo. Depois a coisa espalhou-se. Depois do primeiro tractor eu comprei outro. O meu filho ainda não tinha tirado a carta. Depois tirou as sortes, foi para o Ultramar, esteve em Angola dois anos. Na altura já eu tinha dois tractores e duas ceifeiras-debulhadoras. Aquilo rendia para quem trabalhasse. Andava eu a carregar tomate para os seareiros do tomate, para transportar, e a minha mulher andava a apanhar e a minha filha lá atrás dela, que ainda era pequena. Só depois, já tinha os tractores, que foram o princípio da minha vida, com os tractores é que eu adquiri esta casa aqui. Foi a primeira casa que eu fiz. Foi em 1962. O meu filho tirou a carta de pesados na tropa, que dava para tractor. Veio de lá já encartado. A primeira ceifeira comprei em 1963 e a última comprei em 75, que foi quando houve a revolução. Quando foi o 25 de Abril tínhamos dois tractores e duas ceifeiras-debulhadoras. E então fazíamos as sementeiras e os regadios. Depois as acêfas50. E depois os alqueives e as sementeiras de novo. Depois quando foi o 25 de Abril a gente tinha as máquinas de aluguer que ninguém tinha o equipamento como eu tinha. Antes disso eu ainda li alguns papéis que apanhava clandestinos. Mas nessa altura só se ouvia falar no comunismo. Eu nunca fui comunista. A gente ouvia a rádio Moscovo, que a gente ouvia falar, mas um indivíduo não estava dentro do programa, nunca liguei a isso. Mas sabia. Ouve uns rapazes que foram presos porque ouviam a rádio Moscovo. A gente desconhecia tudo nessa altura, porque aquilo não estava cá 49 50

Tirar as sortes era ir à inspecção para a tropa. Ceifa.

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ainda. Aquilo era a Rússia, mas a gente desconhecia parte das coisas que eles diziam. A gente nem sequer sabia o que era o comunismo. Quando rebentou isto é que começou a haver aqueles esclarecimentos sobre o que era o comunismo. Ainda fui a algumas sessões. Foi aí que eu comecei a ver uma parte que não estava certa. Ocuparam as propriedades das pessoas que me davam trabalho. E eu ainda tinha encargos da última máquina que tinha comprado, que foi mesmo nesse ano. Ainda fui a uma ocupação, que foi a primeira e a última, mas só ocupámos as terras que estavam abandonadas, que nunca tinham sido lavradas a tractor. Respeitámos aquilo que a pessoa tinha feito e que estava explorado. Quando depois entraram a ocupar tudo a eito eu já não fiz parte. Depois formaram a cooperativa 51 e eu tive que entregar-lhes as máquinas. Fizemos uma negociação, aquilo não deu quase nada. Houve uma reunião e a gente entregou porque não tínhamos trabalho e veio ali um engenheiro. Ele é que disse: “Você vai receber X pelas prestações, X pelas suas máquinas e entrega aqui na cooperativa”. E eu não tive outro recurso. Trabalhei lá com as minhas máquinas do dia 18 de Outubro de 1975 até ao dia 16 de Agosto do ano seguinte. Entrei de férias e estou de férias até hoje. As máquinas ficaram lá. Eu dei-me sempre bem com eles, fosse comunista, fosse lá quem fosse. Até cheguei a ser chefe de grupo deles, era o meu cargo. Mas comecei a ver que havia coisas que não estavam certas. A gente andar a continuar a explorar coisas que não nos tinham entregado e que não nos pertenciam. Eu nunca fui na frente ocupar nada, mas fui sim fazer serviços a propriedades que estavam ocupadas. Mas eu achava que não estava certo andar-se a trabalhar na propriedade que o dono nem sequer tinha recebido nada e que nós não tínhamos direito. Eu recebia um pouco mais que os outros trabalhadores, porque a gente, a nossa especialidade também era com mais responsabilidade. Nunca pertenci ao sindicato. Eles já sabiam que eu trabalhava com eles, que eu respeitava a situação deles. Mesmo nessas manifestações, eu ia lá deixar os tractores para as manifestações e voltava para a minha casa. Nem fui às festas, nem às reuniões de trabalho. O meu filho também lá trabalhou pouco tempo. A gente prenderam-nos lá mais tempo porque nós tínhamos dado para lá as máquinas e não tínhamos recebido. E andámos a trabalhar com as nossas máquinas da mesma maneira. E eu quando pensei nisso disse: “Até que mas paguem eu ando a trabalhar com elas, pelo menos sei como elas são tratadas”. Mas às tantas disse para a minha mulher: “Ou eles me paguem ou não paguem, eu já para lá não vou”. Ê nã lhes disse nada, eu entrei de férias no dia 16 de Agosto e nunca mais lá fui. O chefe ainda me perguntou porque 51

Refere-se à UCP – Unidade Colectiva de Produção.

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não voltava, e eu disse-lhe: “Se eu morresse vocês passavam sem mim”. Depois arranjei umas vacas e meti-me por minha conta. Depois entrei para a Liga dos Pequenos e Médios Agricultores. A minha mulher nunca foi para a cooperativa. Essa, então, nem pó. Fez ainda serviços para pessoas, independentes, seareiros, trabalhou na fábrica do tomate. Depois ajudava-me. A cooperativa nunca funcionou bem. Por isso deu naquilo que deu. Teve sempre uma má administração. O chefe até percebia de lavoura, o que é era uma pessoa que nunca teve uma linha concreta de orientação. Não podia ter dinheiro, porque se tivesse dinheiro ele tinha de o gastar. A orientação de uma casa, seja daquilo que for, ou de uma empresa, é o principal. Apareciam aí uns engenheiros, mas era só para levarem carne e azeite. E as festas… Tanta vez. Quando era o fim-desemana era às dezenas de camionetas carregadas, e matavam-se porcos e borregos... Eu não concordava, nem podia concordar. É claro que as pessoas nem sequer eram da política. Vinham buscar as coisas sem nunca terem feito cá nada. Eu achava que a cooperativa era para os que trabalhavam cá. Queriam fazer esmola com o esforço dos outros. Tudo aquilo que vinha de lucros era desbochado para uma coisa qualquer... Eu vi que aquilo não era para o meu feitio, coisas abandonadas, pessoas que não queriam saber, não percebiam nada de máquinas e davam cabo. Eu tinha um grupo de cinco ceifeiras e duas eram minhas. E via-os a tratarem-nas mal. Foi aí que eu vi que aquilo não era para mim: eu estive 12 anos a adquirir máquinas e trouxe pessoas por minha conta e nunca tive aborrecimentos com ninguém... Disse-lhe: “O que aí está ainda é meu!” Como chefe eu não podia perdoar nem ao meu filho nem ao meu afilhado. Ainda tinha parte do dinheiro para receber de lá. Foi um ano muito bom de seara e eles tinham dinheiro aos montes. E uma vez disse-lhe: “Então vocês andam a comprar tractores novos, mas pelo menos deviam pagar aqueles à gente, que já lá os têm”. Eu fui sempre amigo dele, concordei sempre com ele porque já éramos amigos antes disso. Ele disse: “É pá, é uma coisa que está certa, a gente vai tratar disso”. Passados dois dias fui lá, fiz contas, pronto, e separei-me. Fui trabalhar para o lagar, fazer limpeza ao lagar, e nessa altura, quando eu acabei de receber o resto do dinheiro lá da cooperativa comprei logo um tractor e um reboque em segunda mão. Ainda fiz uns biscates para uns seareiros. Depois fui para a Cooperativa dos Pequenos e Médios Agricultores, estava ali uma comissão do 58

IFADAP52, e os engenheiros depois formaram uma direcção. Como eu lá andava a trabalhar convidaram-me para presidente da direcção. Estive ali três anos, mas só trabalhava na altura do lagar, ou na altura da acêfa, porque depois a cooperativa comprou uma máquina para fazer serviços aos sócios e eu é que trabalhava com ela. Foi então quando veio esta coisa das parcelas, do arrendamento, das reservas, foi quando concorri para aqui53. Tenho uma reserva numa herdade, eu e o meu filho, e mais uns senhores. Fiquei com 66,5000ha. Na altura aquilo foi ocupado e depois foi desocupado e o Estado é que nos entregou a nós. E depois tínhamos de fazer o contrato com os proprietários. Primeiro fizemos o contrato com o Estado, depois em 1987 fizemos um contrato de mais 19 anos com os senhorios. Alguns dos herdeiros queriam que nós saíssemos, mas nós dissemos que o Estado é que nos pôs aqui, daqui não saímos. Eu faço searas, tenho lá gado. O meu filho também é agricultor, tem um tractor e faz serviços para outras pessoas. A minha filha está casada, trabalha num infantário, o meu genro é enfermeiro. Com esses 66ha está difícil, por causa dos anos e das circunstâncias. Aquilo não tem água. Tem lá uma barragem que eu fiz para bebedouro para o gado, mais nada. Tudo aquilo que lá se faz dá prejuízo e se não fossem os subsídios a gente não podia. E com a reformazita...

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Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e das Pescas. Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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6 – Tractorista. N. 1938, 60 anos. Eu nasci em 1938 nuns montes que há aqui na freguesia. Era um monte muito grande. As pessoas na altura viviam muito mal. O meu pai para semear 2ha tinha de pagar 300$00. Naquela altura. E como o meu pai, muitos. Foram para lá viver, pagaram, fizeram lá aquelas cabanas, e viviam lá naquelas cabanas, e depois foram fazendo umas casas de pedra, e tal. Depois tiveram filhos, casaram. A seguir ao 25 de Abril, assim um ano ou dois, pagou-se. Aquilo é uma terra que não dá para as pessoas viverem. Aquilo é uma terra só de mato. Não havia água. A gente, o meu pai ia à água muito longe. As pessoas naquela altura iam trabalhar, demoravam duas horas para o trabalho. Trabalhavam todo o dia. Depois à noite vinham, outras duas horas. Lá onde eu morava foi uma casa que eu já mandei fazer depois de casar. Logo ao fim dum ano de ter casado mandei fazer uma casa própria. O meu sogro também tinha lá um bocado de terra, e eu mandei fazer lá uma casa no terreno do meu sogro. Depois fiquei lá. Uns montes caíram. Agora, há cerca de uns cinco ou seis anos, as pessoas começaram a comprar. Um a um, um bocado de terreno, começaram a construir casas. Aquilo hoje tem lá prédios que só visto. Eu comecei a trabalhar tinha sete anos. Nunca fui à escola. Eu trabalhei numa casa, era cachopo. Estive lá sete meses. Naqueles sete meses que lá estive só o que comi às merendas era um taleiguito com um bocadito de pão, era um quarto de um pão e era metade de um queijo. Todos os dias, todos os dias, todos os dias, veja lá. À noite comia-se outras coisas. À noite e de manhã. Não havia legumes, nem se falava nisso. Hoje já não se passa nada disso. A vida é diferente, e ainda bem. O meu pai trabalhava e a minha mãe trabalhava. A minha mãe, quando morreu, tinha eu 12 anos, fiquei só com o meu pai. Nenhum da gente quatro foi à escola. Depois mais tarde é que andei de noite com um senhor que era professor, e consegui fazer a 4ª classe. Trabalhava todo o dia, e depois ia então, estava lá até à uma hora da noite, depois vinha e depois no outro dia ia trabalhar. Depois fiz o exame na escola. Nessa altura já tinha 30 e tal anos. Tinha dois filhos, era eu a trabalhar com uma parelha, estudava à noite… Antes do 25 de Abril as pessoas daqui iam muito àqueles trabalhos do tomate. As pessoas iam para lá no princípio do Verão e faziam lá o Verão. Ficavam a morar lá… Havia lá um casão qualquer, onde ficavam cinco ou seis casais, tudo junto, ali comiam, ali estavam, enfim, era uma vida dura. Então ao domingo, porque trabalhava-se ao sábado, algumas vinham a casa. Fui jornaleiro. O meu pai era seareiro, tinha umas searas. Depois de casar comecei a fazer isso como ele. A gente ia trabalhar para aí a 30km, ia-se a pé, vinha60

se a pé com os molhos de pão às costas. Mal tratados. Não havia caminhos para os carros passarem. Levantava-me de madrugada para ceifar sem sol. Naquela altura fazia-se a comidinha lá: levava-se uma panela, uma colher, fazia-se o almoço, havia um jantar e havia a ceia. Trabalhava toda a noite. Tinha uma parelha, andava a lavrar o dia todo e a noite. Sem comer muito, porque também não conseguia comer mais. E quando chegava a casa ainda tinha de ir dar água às bestas. Também se trabalhava mais intensivamente, não havia tantos períodos para descanso e para “aguadas” como há agora. Mais tarde, quando consegui fazer a 4ª classe tirei as cartas. Depois fui para tractorista. Trabalhei durante uns anos num tractor de aluguer. Até ao 25 de Abril. Nunca pensei, como os outros, em emigrar. Já estive em França, já estive na Alemanha duas vezes, estive na Roménia… Dei umas voltas. Só depois do 25 de Abril, antes não. Não fui baptizado, nunca tive catequese, nem casei pela igreja. Nunca. Não sei lá nada disso. Tenho dois filhos que já foram à escola, têm o 3º ano54. Eles estão baptizados. Onde a gente vivia as pessoas vinha à escola aqui à freguesia, era uma escola que era a cerca de 7km. E as crianças naquela altura iam todos os dias para a escola e ia lá uma professora e quis baptizá-los todos. Antes do 25 de Abril já se falava no Partido Comunista. Eu, por acaso, nunca pertenci. Ainda fui algumas vezes às reuniões. Em 58 andávamos na acêfa… Distribuíam-se papéis. Eu não, então, eu nem sequer sabia ler… Havia outras pessoas que sabiam ler… Mas eu nunca andei nisso. Houve uma série deles que foram presos. Metiam-nos nos carros e levavam-nos e pronto. O motivo é porque eles eram contra o regime, não é? Eles queriam outras condições de vida. Na altura queria-se as oito horas. E em 58, na altura que foi o Presidente da República, foi na altura do Delgado, eram ali aquelas guerras. Eu entrei na greve das oito horas, foram vários dias e as pessoas que não foram trabalhar… Alguns chamaram a guarda, embora não me calhasse a mim, mas houve muita gente… Depois havia pessoas que… Por exemplo numa herdade havia pessoas que andavam ali com parelhas, e moravam lá. Se fizessem greve punham-lhes os tarecozinhos à porta e depois iam para onde? Alguns tinham dois ou três filhos, ficavam ali… Cheguei a passar duas e três semanas sem trabalho. Já tinha filhos. Quando trabalhava tinha que ver se sobrava alguma coisa para quando não trabalhava. Havia de se comer melhor, comia-se mais mal. Os meus filhos não chegaram a passar 54

Actual 7º ano de escolaridade.

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necessidades, felizmente Mas não era fartura como é agora. Não tínhamos ninguém que nos ajudasse, isto é tudo gente pobre, não tinham para eles próprios, como é que eles iam ajudar? Mas havia muitas pessoas que iam ao vizinho. Por exemplo, ao pé de minha casa: um tinha quatro filhos, todos do mesmo tamanho. Todos do mesmo tamanho, quer dizer, com a diferença de um ano. Era ele e a mulher. Esse, coitado, para criar os filhos trabalhava de noite. Chegou a passar cinco e seis semanas sem trabalhar. Mas como aquele viviam milhares. Quando não havia trabalho, havia aquele período, por exemplo, duma acêfa, havia outra altura que era por exemplo para fazer uma limpeza de árvores, depois havia aqueles períodos mortos que não havia trabalho. Quando precisavam de um médico, na altura já havia a Casa do Povo. A gente descontava todos os meses. Mas naquela altura não se ia tanto ao médico como agora. Faziam umas mezinhas caseiras, passava ou não passava. Quando chegou a altura do 25 de Abril, apesar de estar mau, já tinha melhorado um bocadinho. Penso eu, pela experiência que tenho, aquilo melhorou foi na altura do Marcelo Caetano. Com diferenças poucas, mas sentiu-se uma melhora. Talvez pela evolução, melhorou um bocadinho. Depois do 25 de Abril é que as coisas mudaram mais depressa. Eu já há muito tempo que ouvia falar na Reforma Agrária. Mas quando comecei a ouvir falar foi mais em 74. Falavem-se assim uns com os outros. Uns, se calhar, que liam mais… Era a divisão das terras, e tal. Quando as terras foram ocupadas, a ideia que havia era – pelo menos daquilo que eu ouvi – era das terras serem para as pessoas trabalharem. As terras estavam pouco exploradas. Deviam ser distribuídas pelas pessoas. Penso que não havia de haver dirêto de uma pessoa fazer ali 40 ou 50, ou 60.000 contos de cortiça e gastá-lo ele sozinho, enquanto os outros andam cheios de fome. Ainda hoje há muita gente… Eu não participei nas ocupações, porque ê trabalhava por conta dum senhor que tinha máquinas de aluguer, eu era tractorista. Se calhasse até tinha ido. Quando foi ao 25 de Abril, nessas ocupações, ele tinha três tractores de fretes. E depois as pessoas que ocuparam esses terrenos, essas herdades, houve um grupo de tractores, de tractoristas, que foram lavrar, foram fabricar essas herdades. Foi o caso que eu fui com este tractor deste senhor. Pronto, depois das ocupações juntaram-se os tractores todos aqui do concelho para fabricar essas terras. E quando para lá fomos fabricar essas terras, diziam assim: “a gente agora vai lavrar estas terras, e depois vamos semeá-las e depois o rendimento que elas derem é dividido pela gente todos”. Na

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altura ainda não havia cupartiva. Trabalhava-se para as terras, fabricava-se as terras e semeava-se e era para depois o lucro ser dividido pelas pessoas que lá tinham ido trabalhar. O patrão continuava a pagar ao dia à pessoa. Por exemplo no mê caso, pagava-me o ordenado à mesma. Só que depois logo daí se formaram as cupartivas. Logo naqueles tempos, logo ali no fim de um mês. Aquelas terras que foram lavradas assim naquelas condições, nunca chegou a ser nada dividido pelos trabalhadores e formaram-se logo as cupartivas. E quando se formaram as cupartivas, pronto, aqueles lucros das searas e daquelas coisas foram logo para as cupartivas, e as cupartivas começaram a pagar. Na altura tiveram um lucro bom, depois começou a diminuir, talvez… Talvez que é certo, com as dificuldades depois impostas pelo governo. Depois começou a haver vários governos… Eu tornei-me sócio da cooperativa. E depois, mais tarde, esse senhor onde eu trabalhava vendeu os tractores para a cooperativa e eu, como era tractorista, fui incluído com os tractores, a trabalhar para a cooperativa. Fui para ali trabalhar e foram todos. Nessa altura fui sempre às manifestações. Nas manifestações não havia violência. Nas ocupações praticamente também não houve problemas. Foi uma coisa assim, sei lá, apareceram três ou quatro pessoas, chegavam ali: “Pronto, isto está ocupado, isto é nosso!” Aquilo melhorou logo um bocadinho, embora não fosse uma grande coisa, mas sempre melhorou. Naquela altura ficámos logo a ganhar cinco contos por mês, ou uma coisa assim. O horário já era as oito horas. Mas isso já dantes era. Mas começou-se a trabalhar assim, em conjunto. Aqui na cupartiva chigaram a trabalhar cerca de 400 pessoas. Naquela altura, aquelas pessoas viveram naquele período melhor. Depois começaram a viver um período pior. Foram a reboque. Mas, de qualquer maneira, fica sempre mais alguma coisa. Faziam um plenário todos os meses, os problemas eram discutidos. Em todas as herdades havia uma comissão de duas ou três pessoas. E todas as semanas faziam uma reunião com essas pessoas, onde discutíamos o que é que se vai semear, o que é que se vai fazer a partir de agora, vai-se limpar aquelas áreas, ou as outras, deixa-se aquelas, enfim… Isso durou uns anos ainda. Depois, mais tarde, deixou de haver essas comissões de herdades. Começou a haver só uma direcção da cupartiva. Que eram 12 pessoas. Nessa altura já havia menos gente: as pessoas começaram a sair para outros lados, e tal. Enfim, começaram a ver outras vidas.

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Eu estava sindicalizado. Em cada cupartiva havia sempre um representante dos sindicatos. E quando havia assim reuniões, plenários, chamavam a gente, vinham sempre pessoas do sindicato, do secretariado… Também havia muitas pessoas que trabalharam ali que nunca chegaram a ser do sindicato. E nunca foram a plenários, nem a reuniões, a esses comícios. Nem eram obrigados a ir. Já se sabe: onde havia 400 pessoas, havia várias ideias. Havia três, ou quatro, ou cinco que nã tavam de acordo. E era assim. Estive ali 15 anos na cupartiva. Ia a Lisboa aquase todos os dias: advogados, e ministérios… Os ministérios eram sempre dificuldades. A gente até pedia uma audiência para falar com eles. Mas essa pessoa nunca estava. Depois estava o secretário… Naquela altura era aquase todos os dias. Eu nunca tinha ido a Lisboa! A primeira vez que fui foi porque tive um acidente num dedo. Nessa altura tinha 26 anos, estava cheio de medo. Agora já não, mas teve ali uma temporada que eu conhecia melhor Lisboa e o Porto, do que conhecia aqui a vila. Aqueles ministérios, aquela gente toda. Fui à Roménia, à Alemanha e à França como delegado da cooperativa. Gostei. Da Espanha não falo que é uma coisa que a gente vai lá quase todos os dias, se quiser. O primeiro país que eu fui lá fora foi à Roménia. Até quando foi essa guerra da Roménia vi na televisão. Tive pena de Bucareste. O que eu lá vi muito foi grandes milharadas, muito milho sem ser regado. Beterraba. Mostraram-me a agricultura, aquilo são campos encantados, sem serem regados, terras boas. Aquilo era para ali, sei lá, quilómetros e quilómetros de searas, de várias variedades. Fomos quatro aqui da cooperativa. Aqui, se a gente não regar, agora em Junho seca tudo. França já não é assim. Na Alemanha estive lá no período do gelo. Fui às fábricas. Coisas que eu nunca mais vi. Depois nas desocupações começaram a tirar as reservas, aí é que já foi pior. Aí é que já teve guarda, já metia, sei lá… Aqui no concelho participei nas desocupações todas. As pessoas estavam lá que era para dizer que não queriam entregar as terras. Parte delas até estavam semeadas, outras estavam de regadios, enfim. Havia uma lei, segundo diziam, que obrigava a devolvê-las. Os donos, quando apareciam, quando chigavam, iam acompanhados da guarda. E as pessoas estavam lá de braços a abanar. Depois aparecia a guarda com espingardas, e tal e tal. Depois saíamos. Chegou a haver tiros. Eu, por acaso, ainda me deram umas lambadazitas. Os guardas. Porque eu estava ali assim encostado a uma coisa, à beira de uma estada, e eles chegaram lá, toma! Por exemplos, estavam aqui 300 ou 400, ou 500 pessoas, numa herdade qualquer. Então eles: “A partir de agora está entregue ao sr. Fulano Tal…” Vinham uns indivíduos da Reforma Agrária, 64

com uns documentos nã-sê-quê, e tal. E depois: “Olhe, este terreno, aqui…” Às vezes até faziam um rego com um tractor: “Isto aqui já está entregue.” E depois as pessoas nã queriam, e no outro dia estavam lá outra vez. E depois vinha a guarda… E depois as pessoas no outro dia iam lá outra vez… Depois vinha a guarda… E depois às tantas criava-se conflito. Fomos sempre resistindo, até que às tantas não se justificava. A cooperativa tinha muitos encargos. O pessoal era muito. E depois já nã tinha rendimento para pagar às pessoas. Porque começaram a tirar os terrenos, começaram, como diz o outro, a cortar as pernas, e depois já não tinha condições para sobreviver. E assim foi: elas acabaram praticamente todas. A culpa foi do governo que nunca lhes deu apoios. O governo nunca apoiou as cooperativas, elas tiveram que se ir abaixo. Por exemplo esta cooperativa tinha uma dívida de 7.000 contos. Depois mais tarde teve de pagar 70 e tal mil! Foi juros sobre juros. Se tivesse apoio do governo, as coisas teriam funcionado de outra forma. Como não houve, as coisas foram-se degradando. Quando acabou a cooperativa comecei a trabalhar por minha conta. Ainda fui tractorista. Andei com uma pessoa uma temporada. E agora tenha as porcas, tenho aqui este bocadito de terra e vou vivendo assim. Comprei, isto é meu. Comprei porque vendi noutro lado lá o tal terreno que eu tinha. Não fiquei melhor por causa da cooperativa: quando fui para a cupartiva trabalhava; e agora saí da cupartiva tenho de continuar a trabalhar. Isto não dá quase para nada. Não chega a 2ha de terra. Dá para a gente ir passando. De vez em quando a minha mulher trabalha no campo… Isto, a vida hoje está muito cara, mais do que era dantes. As pessoas também ganham mais, mas se calhar se formos ver à proporção daquilo que as pessoas ganham, é capaz de não ganharem bem para o custo de vida que está. Naquela altura ganhava-se bem, mas as coisas também estavam mais baratas. Ficou-se pior. Na altura da cooperativa as pessoas viviam melhor porque tinham onde ir trabalhar, pronto, sabiam que iam trabalhar naquela altura e que recebiam. Enquanto agora… Pronto, depois também há muito menos pessoas que trabalham no campo, não é? É assim. As pessoas chegavam ao sábado, despegavam e sabiam onde iam à segundafeira. E hoje há muita gente que não consegue ir. Os meus filhos tiveram uma vida melhor có que eu tive, sem comparação. Eles são os dois mecânicos. As pessoas vivem melhor, embora não vivam bem, bem, mas vivem melhor. É muito diferente. No meu tempo a gente começava a ser ajudas logo aos seis ou sete anos. A gente hoje, as pessoas, ainda bem, quando nascem já têm

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uns sapatinhos. Naquela altura não havia nada para ninguém. É verdade. Eu mesmo aos meus filhos já não tenho dito certas coisas, ainda eles se começam a rir. Não acreditam naquilo que a gente sofria dantes. Dantes sofria-se muito. A vida hoje é outra. Com este já são oito carros que eu compro. Naquela altura, nem para uma bicicleta as pessoas tinham. A primeira que eu tive já tinha os meus 18 anos. Depois quando passou a motor já era melhor. Quando passou ao carro ainda melhor55. De formas que a vida tem melhorado um bocado.

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Sobre o fenómeno da aquisição da primeira mota como passo fundamental na vida de um rapaz ver Almeida 1996: 54.

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7 – Trabalhador rural, seareiro. N. 1929, 69 anos. Eu sou operário agrícola. Nasci aqui na vila e a minha casa foi sempre aqui. Também andei muito pelos montes, depois de casado morámos em muito lado. O meu pai era trabalhador rural, trabalhava sempre no campo. Andava uma semana a trabalhar para um, outra a trabalhar para outro. Foi das pessoas que mais ou menos sempre teve trabalho. E podava árvores, trabalhava ali com os pinheiros. Fazia estes trabalhos nas carvoeiras. Isto era uma coisa que havia aí, do artesanato, que acabou aqui, que até havia bastante. Aquilo eram umas fábricas, se é que lhes possam chamar fábricas, trabalhavam aí umas quatro ou cinco pessoas. Cavar mato, arrasar mato, secar ao sol, depois metiam no forno para cozer, metiam o lume por baixo, aquilo era tudo armado, tudo feito aqui na ribeira. Os carvoeiros tinham o alvará dos donos das herdades, deixavam abrir lá os fornos, ao longo da ribeira. O meu pai trabalhou muito nisso. Quando a gente éramos pequenos andávamos sempre a guardar umas cabritas aí por essa ribeira. As cabras eram do meu pai, mas eram poucas. Também eram umas três ou quatro. Mas ajudavam: havia sempre um leitezinho para ajudar a criar. Eu comecei a ir para as herdades aos oito anos. Fui para uma onde o meu avô era cozinheiro. Aquilo, naquele tempo a vida era diferente do que é agora. Os lavradores faziam tudo sem máquinas, metiam muitos homens, uns para lavrar, outros para guardar gado, e eu, como era pequeno, tinha oito anos, o meu avô era lá cozinheiro e a minha mãe deixou-me ir lá para casa do meu avô, que eu tinha mais irmãos. A gente éramos cinco. Depois de ir para lá para as sopas, deixaram-me ir para lá. Mas eu não parava no monte, queria era brincar, havia uns ajudas e eu abalava com eles atrás do gado. Às tantas foi preciso um ajuda e eu fui ganhar 30$00 por mês, e meias comedorias, para ajuda de porcos. Farinha, azeite, grãos. Trazia isso para minha casa aos fins-desemana. E na semana ficava lá com o meu avô. Depois o meu avô abalou de lá e foi para esta herdade onde o pai da minha mulher foi feitor. De maneiras que o meu avô foi para ali para porqueiro e eu fui para ajuda dele. Lembro-me de fazer os 10 anos, foi um dia que nunca mais me esqueceu, porque havia lá uma mulherzita que não sabia fazer nada de comer. O meu avô estava sempre deserto que a gente se viesse embora de lá. A gente andava sempre a ir para os cabeços com os porcos e lá havia o milho, e havia as abóboras que eles punham que era para o gado comer. Aquilo tinha ali à volta de 100 porcos. Eu fui à escola, mas também tive um episódio por causa da escola. O mê pai disse: “Olha, vais aprender a ler, vais para a escola.” Nã gostas, vais gordar porcos. Saí da escola porque eu um dia fui ali a uma loja aviar um mandado à minha mãe e eu 67

já era grande, já tinha à volta de nove anos quando me meteram na escola. Já os rapazes da minha idade andavam na 4ª classe. E os mais diabinhos… Um desses agora é médico, e o outro é já reformado da tropa, também foi major. Mas naquele tempo eu sentia-me mal. Grande a ir para a escola, não gostei daquilo. Depois a senhora a aviar o mandado perguntou-me a idade e então eu senti-me mal na escola, cheguei ao pé do meu pai e disse-lhe que não queria ir mais. Então o meu pai mandou-me para o meu avô. Só aprendi a ler mais tarde, fiz depois a 4ª classe aos 24 anos. Mais tarde andava a arrancar pedras, a gente trabalhava no campo, com picaretas e marretas, para as estradas. Ganhava-se mais qualquer coisa a arrancar pedras de empreitada. Era por conta do empreiteiro aqui da câmara. E eu andava lá arrencando pedra de dia e à noite vinha e ia lá para a escola nocturna. No primeiro inverno fiz a 3ª classe, e no segundo fiz a 4ª. Depois andei lá por fora, a trabalhar para o Instituto Geográfico durante 13 anos. Trabalhei no aperfeiçoamento do cadastro. Saí daqui para ter um trabalho um bocadinho mais rico e ganhava mais. Já estava casado nessa altura, casámos aqui. Ela morava num monte quando nós nos conhecemos. Eu fui para lá à acêfa. Fizemos lá a acêfa e depois casámos. Foi pela igreja, mas eu geralmente só vou à missa do Natal. Às vezes já lá tenho entrado. Eu não sou religioso, nem deixo de ser. Eu tenho uma fé própria. Fico ali à porta, fico, a gente entretêm-se ali na fogueira, mas vou lá dentro uns bocados… Tivemos duas filhas e elas são baptizadas. Nessa altura havia muitas crises de trabalho, mas eu não, porque o meu pai era um homem que sabia trabalhar e toda a gente parece que gostava do trabalho dele, os patrões. E o meu pai começou a puxar-me para o pé dele. E aprendi a fazer os trabalhos com ele, no mesmo ritmo. Mas eu não gostava muito de andar pelo campo. Tinha a impressão que ganhava, e ganhava, mais dinheiro sem andar com ele. Trabalhava para eles à mesma, mas era quase sempre de empreitada. Eu fazia tosquias de ovelhas, fazia dois, três meses a tosquiar ovelhas, de empreitada. Ganhava-se muito mais de empreitada. Depois ia para os arranques de pedra, eu cheguei a andar aos cinco meses ali na Chança, ali a arrancar pedras às estradas, que era tanto à tonelada de pedra, que dava mais dinheiro, eram assim de empreitada. Depois vinha à azeitona, também era de empreitada. Eu praticamente andava quase sempre de empreitada, embora houvesse… Mas era de empreitada, ninguém me mandava, não tinha horários certos de despegar, e trabalhava mais.

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Os patrões aqui não eram maus, eram pacíficos com os criados. Quando estavam satisfeitos com eles, estavam; quando não estavam, tinham muitos, despediam-nos e pronto. Havia um que era uma excepção. Eu nunca trabalhei para ele. Trabalhei a arrancar pedra, mas diziam eles lá que quando um trabalhador qualquer queria trabalhar para ele, chegava aqui a uma distância de 10 metros e tinha de tirar o chapéu. Se não tirasse ficava à rasca com ele. Havia aqui um patrão que era dos melhores que aí havia. Ele fazia a ceifa toda aqui com o pessoal da vila. Chegaram lá a trabalhar 100 pessoas no monte. E os outros traziam lá os galegos do norte. A gente achava que eles, coitados, os ratinhos vinham para cá sofrer. Tinham necessidade também. A gente também ia ceifar para fora. Os ricos nã tinham as ajudas que têm agora. Os ricos daquele tempo parece que eram pobres. Havia um que tinha um automóvel, outro que andava a cavalo. Mas muitos deles não eram capazes de adquirir um automóvel. Só nos anos 70 é que eles começaram a desenvolver, a ser capazes de comprar um automóvel. E os tractores começaram a aparecer mais ou menos… Era tudo feito com bois. Houve outros daqui perto que deram um impulso bom a isto por terem posto muita oliveira. Eu ainda lá abri covas de oliveira, a X cada cova. Ele pôs para ali à volta de 60.000 pés de oliveira. Se aquilo hoje está tudo a dar azeitona… Há para ali uma riqueza! Hoje aquilo tem sido uma beleza porque muita gente leva-se a apanhar a azeitona ali. Havia também uns grandes proprietários que não tinham possibilidades de limpar as terras todas. Não tinham tractor. A mão-de-obra, embora barata, também ficava dispendiosa para eles, que eles não tinham ajudas nenhumas. Às vezes alguns também não eram ricos. Era capaz de haver já mais terra bem tratada. O que é que havia mais terra matagosa, com muito mato. Os caçadores governavam-se aí. Eu agora caço, naquele tempo não. Nã tinha vagar. Mas havia aí mais caçadores que se governavam na caça. Vendiam à comissão. Havia muita caça derivado a haver tanto mato. Muitos coelhos, lebres, perdizes. Eu depois, para ganhar mais algum dinheiro e pagar os estudos das minhas filhas, arrendei uma terra para fazer regadio. Eu era seareiro: era só a plantação e a colheita. Depois acabava isso e pronto. Mas também andei 15 anos por fora, e as minhas filhas andaram sempre a mudar de escola, porque aquilo era a campanha, tão depressa estávamos numa freguesia, como estávamos noutra, noutro concelho. Era em Alpiarça, era em Sines, tantas. Morávamos aqui quatro meses de Inverno. Ainda pensei emigrar, mas não dava. Uma pessoa abalava daqui sem lá ter casa e as miúdas eram pequenas. Eu só queria ir se levasse a família. Elas já estavam cá a estudar. O meu irmão foi para Lisboa, trabalhou na Sumol, tirou uns cursos de 69

desenhador na tropa. Depois passou a instalar máquinas e assim é que foi trabalhar para a fábrica da Sumol. Outro irmão também saiu e foi trabalhar para a Carris. Agora é o presidente daqui da junta de freguesia, voltou quando se reformou, logo a seguir ao 25 de Abril e dedicou-se à política. Outro estava ao pé de Sintra, trabalhou numa empresa de camionagem. Depois abriu lá um café. Eles estiveram melhor. Por exemplo, aprenderam… Assim que fizeram a tropa começaram a procurar outras vidas. E a gente não sabíamos ler. Só depois de ter tirado a 4ª classe com dificuldade é que consegui ter uma vida melhorzinha. Mas isto aqui era muito mau. Inscrevi-me na Caixa de Previdência em 1973. Com o 25 de Abril deixámos de ser sócios da Casa do Povo, que acabou a Casa do Povo, e integrámos na Assistência Social. Quando foi aquilo das oito horas nós não estávamos cá, mas soubemos. Houve manifestações, mas eram todas clandestinas. As greves foram programadas de noite, clandestinamente. Por acaso não fui a essas reuniões. Quando eles chamavam para trabalhar ao nascer do sol, eles começaram a querer começar às oito da manhã, porque os outros operários, os pedreiros, também começavam e eles acharam que haviam de ter os mesmos direitos. Começaram a lutar por elas e começaram a ser presos. Até que o governo teve conhecimento e não houve mais obstáculos sobre isso, até eles começarem a dizer que eles eram obrigados a dar as oito horas. E também o patrão queria dar um X de jorna, e o pessoal achava que era pouco. Não dava quase para comer. E ali é que eles se começaram a organizar. Quem ia pedir mais ao patrão, esse quase sempre era logo despedido. E vieram cá dizer: “A gente semos poucochinhos, vocês haviam de fazer o mesmo…” Assim foi. Apareceram aí ao fim-de-semana a ver o pessoal. Eles apareciam aí. E sabíamos quem eles eram. Mas eu só fui para o Partido Comunista depois do 25 de Abril. Mas como eu também andava na luta por uma vida melhor… E já se ouviam as emissões clandestinas da Rádio Moscovo, ouvia-se aqui. Eu nunca ouvi, mas ouvia os companheiros a falarem. Eu só tive um rádio já depois de casar, mas ouvia os homens no trabalho a dizer que ouviam a Rádio Moscovo. E esses já falavam que isto havia de levar uma volta. Havia uns panfletos que eles arranjavam, clandestinos, não sei se era o Avante, muito mal escritos, uma imprensa muito borrada, às vezes apareciam uns papéis desses de noite. Eu lembro-me uma vez que era rapaz, tinha aí os meus 21 ou 22 anos, andava à ceifa aqui na herdade ao lado, um homenzinho que tinha andado na guerra da França, olhava muito para os acontecimentos, para a história das coisas. E dizia-me ele uma vez, que eu apanhei uns papéis que cheguei a ler, essas coisas clandestinas, esses panfletos escolhiam sempre quando a gente ia para o trabalho, era aí que eles iam largar esses folhetos. E 70

os trabalhadores, é claro, viam esses papéis: “Olha, aquilo é o Avante”. Metiam no bolso e nem os podiam ler, como era de noite. Uma vez apanhei uns e mostrei àquele homem, que era o nosso capataz e ele esteve a ler o papel e disse assim: “Ó Tonho, fica-te com esta: um velho, um rico velho tem gozado, mas um rico novo já vai ter mais preocupações com o Alentejo. Estes panfletos e essas emissões clandestinas vão dar uma volta a isto.” E foi assim que eu também comecei a acreditar que isto ia dar uma volta. Mais ou menos já estava a esperar. No 25 de Abril já eu tinha a 4ª classe. Estava a tosquiar ovelhas nos Foros de Almada, ali ao pé do Biscainho, que é ao pé do Porto Alto. Por acaso vim-me embora, mas não foi por causa do 25 de Abril, foi porque acabámos lá de tosquiar naquela casa. Aqui o pessoal, os senhores lavradores estavam à espera daquilo também. Mas estava lá no ano das ocupações, no 25 de Abril de 75 eu andava aqui na fábrica do tomate quando eles fizeram as ocupações, mas apercebi-me que as iam fazer. Os patrões estavam preparados para qualquer coisa, que chegavam lá três ou quatro trabalhadores e diziam: “Viemos ocupar isto” e eles agarravam neles e iam-se embora. Aqui numa herdade ao pé foi um rapaz de bicicleta à frente, disse lá ao rendeiro – aquilo já não estava por conta dos patrões, estava arrendado – “Vimos ocupar isto, vêm lá outros atrás, e a gente vem ocupar isto.” Meteu-se no carro e foi-se embora, já tinha tirado as coisas, as alfaias, já tinham tirado os valores. Deixaram as terras, não as levaram porque não tinham para onde as levar. Os sindicatos é que vieram mais. E os militares. Nas ocupações eles vinham dar ajuda. Se houvesse algum problema eles vinham. Os trabalhadores é que mais tarde começaram-se a organizar. E acho que vieram também uns membros do Partido Comunista. A dar informações. Depois também fui sócio do sindicato. Paguei cotas até agora que me reformei. Eles vinham cá ver a opinião dos trabalhadores. Não davam ordens. Os trabalhadores é que lhas davam a eles. Eles só vinham cá dizer: “Vocês tenham cuidado!”, porque havia uma herdade aqui que não tinha pontuação para ser ocupada. “Vocês tenham cuidado, que as herdades têm de ser latifúndios, têm de ser herdades grandes, porque estas que estão aqui na mata é que vocês podem ir ocupar e tomar conta delas.” Porque depois eles expropriaram isso tudo, mandaram os papéis, mas depois de estar ocupada. Mas eles vinham prevenir, para não passar a vergonha de ter de sair da terra, que era preciso uma certa pontuação, tinham de ser herdades grandes. Então as pequenas não foram ocupadas. Quando acabei a fábrica já estava isto mais ou menos tudo ocupado. Fui para a cooperativa, tanto ia para uma herdade, como ia para a outra. Os trabalhadores organizaram-se. Com a ajuda do sindicato, também. Os trabalhadores ficaram todos 71

satisfeitos… Mas os ricos começaram a lutar por outros meios, começaram a dizer… Os bons trabalhadores estavam nas cooperativas. Começaram a dizer que davam terras. Mas a terra que sobrava era aquela da pontuação dos patrões. Eles aproveitaram para tirar as terras aos trabalhadores. Se aquilo dura mais seis meses, digo-lhe que eles já não conseguiam pôr os trabalhadores fora. Todos se entenderam bem. Quase todas as duas semanas as pessoas faziam plenários. Eu de princípio não estive na direcção, depois, a certa altura também, mesmo não estando na direcção, participava. As decisões eram tomadas por maioria. Todas as cooperativas se davam bem umas com as outras. Eles conseguiram dar a volta porque não deram mais seis meses, porque isto estava a andar de uma maneira que quando os pequenos agricultores viessem para o lado dos trabalhadores, os trabalhadores sentiam que davam conta da terra. Tinham começado a mobilizar os pequenos agricultores para tomarem conta de terras. Havia aí muitos que precisavam de terra. Se aquilo dura mais seis meses, eles já estavam a distribuir terras pelos seareiros. Fomos a muitas manifestações, de camioneta e também de tractores, fomos muita vez de tractor a Portalegre. Nesses dias a cooperativa pagava o dia de trabalho. Mas também trabalhavam mais nos outros dias. Faziam campanhas de horas a mais a apanhar grão, a apanhar tomate. Vinha muita gente. Chegaram a estar aqui holandeses a trabalhar. Não ganhávamos mais, mas era melhor porque se ganhava sempre. Quando se andava por conta dos patrões trabalhava-se três ou quatro vezes por semana e às vezes nem se chegava ao sábado, começavam logo a despedir pessoal. Nunca houve distribuição de lucros, porque foram sempre acumulados. Fizeram barracões para o gado, fizeram duas barragens, desbravaram os campos, havia herdades que estavam aquase todas mato. Então o dinheiro tinha de ser assim investido. Eles diziam que isto tinha mesmo de ser, era para ter o seu posto de trabalho garantido. Essas barragens que fizeram aí, foi dinheiro que lá ficou enterrado. O desentendimento foi porque começaram a tirar as terras e a dar aos carpinteiros e aos caixeiros. Foi a lei dos arrendamentos56. O pessoal ficou na cooperativa. Aquilo estava tudo desorganizado, não tínhamos para onde ir trabalhar. Embora fossem alguns para a câmara, outros para outro lado. Depois ficaram aí à volta de 80 trabalhadores na cooperativa. Já não tinham terra nenhuma, só já tinham umas poucas. Depois a cooperativa arrendou herdades. E 80 pessoas a comerem de duas herdades pequeninas… Já de sabia que aquilo tinha de dar bronca. E deu. Começaram-se a endividar, tinham as máquinas para pagar, as letras. Começaram a 56

Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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dever à caixa de previdência. Começaram a pedir crédito, a dever ao banco, os juros eram a 22%, era muito caro. Gastaram-se os dinheiros todos que havia em barragens, em limpar terras, investiu-se muito. Deram a pontuação aos donos, e a terra que sobrou deram aos outros de fora. As cooperativas, com aquela quantidade de trabalhadores, as despesas eram sempre certas… A culpa foi… não sei de quem, mas naturalmente daqueles governos que estavam na altura, que quiseram desalojar os trabalhadores e quiseram submeter os trabalhadores outra vez a trabalhar por conta dos patrões. Fizeram tudo para desmantelar as cooperativas. Se tivessem auxiliado como, enfim, fizeram tudo para acabar, a coisa tinha corrido bem, ainda hoje havia cooperativas. A cooperativa foi penhorada por causa da dívida, vieram as finanças buscar as máquinas e aquilo tudo. Eles estiveram à espera que as máquinas estivessem todas pagas para depois as levarem. Foi assim que a vida nos calhou. A gente tentámos fazer uma nova. Saiu em Diário da República, foi aprovada e começou a funcionar bastante bem. Agora só tem terras arrendadas e o supermercado é outra cooperativa à parte. Fizemos a cooperativa de consumo com a mesma direcção. Eu continuei lá até ao ano passado, já estava reformado há três anos e ainda lá continuei mais três anos, como tractorista, motosserra, o que fazia falta. Nas cooperativas a gente ali concorria aos subsídios, a cooperativa tinha pouca terra, mas tinha de ter 10 membros para se formar a cooperativa. E a gente apelava, ia aos centros da Reforma Agrária para pedir os subsídios, e eles: não trabalham lá os 10 cooperantes, não têm dinheiro. Íamos ali para as searas, fazíamos um bocado de seara. Mas o subsídio era sempre muito mais baixinho, porque tinha sempre muitas azinheiras. Eles até subsídio para o pastor têm. O subsídio da motomecanização, era a mesma história, de serem precisos 10 cooperantes. As minhas filhas já tiveram uma vida muito melhor. E a gente teve de fazer muita ginástica, muitos sacrifícios para elas chegarem lá. Às vezes quando falam notase que elas são agradecidas à gente pela ginástica que a gente fez. Elas também ainda fizeram campanhas ali na fábrica, souberam o que era o campo, carregaram caixas de tomate, apanharam tomate, regaram, apanharam azeitona, apanharam grãos, elas faziam essas coisas todas. Para poderem estudar tinha de ser assim. Agora moram em Lisboa, já têm cursos, tem lá os empregos, o marido também é professor na escola onde ela está. A geração delas foi-se quase toda embora.

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8 – Trabalhadora rural. N. 1929, 69 anos. Eu morava num monte, ao rés da ribeira. O meu pai era de lá e a minha mãe era de uma vila lá próxima e estava a servir noutro monte. Depois o meu pai andava ali a trabalhar, conheceram-se ali, depois casaram. A minha mãe estava em casa e o meu pai trabalhava com mulas, com parelhas, como maioral de parelhas. Trabalhava muito, até às tantas da noite. Abalava de madrugada, ia para lá de madrugada trabalhar para o campo. Só muito tarde vinha jantar. Eu lembro-me de estar à espera que ele viesse. E era roupeiro, antes disso, quando era solteiro trabalhava com alavões, fazia queijo57. Ele trabalhava ao mês. Nesses casos era quase sempre assim. Depois mudou para mais patrões. Mas enquanto morámos lá foi sempre com o mesmo. O meu pai trabalhava o ano inteiro. Estivemos ali, tinha eu dois anos quando abalei, que eu não me lembro de ali morar. Depois dali foi para outro patrão. Falta de trabalho ele nunca teve porque era uma pessoa que andava sempre a trabalhar no campo, com parelhas. Quando mudava era porque os outros patrões o convidavam. Ia ganhar um bocadinho mais… Eu não sei ler, o meu pai não deixou. Podia ter ido à escola, porque a gente morava ali a 10 minutos a pé, era um monte assim muito grande, morava lá muita gente. Mas ele não deixou por ser mulher. Eu tenho só uma irmã. Se tivesse um irmão, ele deixava-o ir à escola. Eu queria ir, eu chorava. Porque eu queria era a escola. Mas o meu pai não deixou. Dizia mesmo: “Se fossem rapazes, eu deixava, mas raparigas não”. A minha mãe também não sabia. Só me ensinou a coser. Mas eu comecei logo a trabalhar no campo aos oito anos, a fazer tudo: quando era o tempo andava a apanhar feijão-frade e milho. Eu é que quis ir. O meu pai não queria que eu fosse, mas eu queria era ir trabalhar. Como não ia à escola, queria ir para o campo trabalhar. Ia com as mulheres de madrugada. A minha mãe não ia. Eu levantava-me e ia com o rancho das mulheres todas trabalhar. Depois vim morar para outro monte. A trabalhar no campo, a regar, a fazer tudo. Apanhar, ceifar. Todo o ano trabalhava, quer chovesse, quer não chovesse… Ganhava dinheiro. Comedorias só o meu pai é que tinha. Os maiorais de parelhas, de gado, de porcos, de ovelhas, essa gente é que ganhava. As mulheres que andavam no campo não. O dinheiro era todo para os pais. A gente nunca passou mal. Lá na minha casa não porque éramos só duas irmãs, sou eu e a minha irmã. E a gente fome nunca passámos. Tivemos sempre as comedorias, farinha para o pão, azeite, matávamos todos os anos um porco. 57

O roupeiro era o empregado da lavoura que fabricava os queijos com o leite das ovelhas e das cabras, para a casa e para vender. O alavão ou alavões de ovelhas era o leite das ovelhas para o fabrico de lacticínios. Ver Martins e Monteiro 2002 e Picão 1983.

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Tínhamos uma horta, tínhamos galinhas. Não passávamos mal. O que é é que nunca me lembra assim de beber leite… Queijo também comia, só não era bom. Quer dizer, a gente comia, não passávamos fome, mas não se comia, não havia tudo como há agora. Fruta só no tempo dela… A roupa era eu que fazia. Ninguém me ensinou, mas eu fazia tudo. Ia comprar os tecidos. A minha mãe também fazia, mas como era cozinheira dos homens, tratava das galinhas e dos perus, e de patos que o patrão tinha, ela é que tratava dessas coisas, então ela não tinha vagar de ensinar à gente a fazer. Andava a trabalhar, a fazer o pão no forno… Eu e a minha irmã, a gente não aprendemos nada, mas a gente fazia tudo. Fazíamos a nossa roupa ao domingo, porque andávamos sempre a trabalhar. Tínhamos sempre sapatos. O que é eram grossos, tínhamos outros finos para calçar assim ao domingo. Quem tinha muitos filhos tinha mais dificuldades. Eu casei pela igreja, vieram cento e tal pessoas… Foi o meu pai que quis fazer uma festa. Tinha só a gente as duas. E, como tinha o ordenado certo, quis fazer uma festa muito grande. Eu não andei à escola, mas eu fiz a comunhão! Fiz a comunhão solene, fiz o crisma. Mas não vou à missa. Gosto de ir, mas não vou, de vez em quando vou, mas pouco. Tive duas filhas, nasceram cá as duas. Baptizei-as. Quando elas nasceram fui trabalhar para o campo, da mesma maneira. Eu às vezes andava com o meu marido, éramos os dois de empreitada. Era o casal. Era um rancho grande, mas andavam as famílias: os pais e os filhos, ou o marido e a mulher. Quanto mais apanhasse, quanto mais ganhávamos. Era ao quilo. A gente não teve mais filhos porque não quis. Achámos que com as duas ficávamos bem. A primeira foi mesmo porque a gente quis. Agora a segunda já foi uma coisa não planeada. Quando estávamos doentes vinha cá o médico da Casa do Povo, naquela altura. A gente pagava uma quota. Elas andaram à escola, a primária fizeram aqui. Depois a mais velha fez aqui o 2º ano na telescola58, mas ela o que queria era ir à escola, foi pedir à professora para voltar para a 4ª classe outra vez, a chorar. Queria ir. Depois a professora veio dizer que ela devia ir à telescola, porque ela aprendia tão bem, e era tão inteligente. Mas a gente trabalhava no campo e não podia, porque era a pagar. A telescola custava 200$00 nessa altura. Mas depois já tinha começado e ela foi à escola. Fez o 2º ano. Depois veio a segunda e foi para o colégio de uma vila distante fazer o 2º ano. Havia uma camioneta. Era a pagar, a gente tinha de pagar todos os meses, o 1º ano era 450$00 por mês. Isso era muito e a gente éramos trabalhadores rurais, a gente era só do ordenado que a gente vivia, a gente não tinha mais nada. Era porque o pai 58

Actual 6º ano de escolaridade.

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trabalhava muito, andava sempre de empreitada. E eu também trabalhava sem poder, que eu sou doente. Mas pronto, andava também sempre a trabalhar. Depois aqui havia um padre que era ali o director do colégio da vila mais próxima, que era a pagar da mesma maneira, depois elas passaram para lá para fazerem o 2º ano. Mas a mais velha, cada vez que via a mais nova a chegar do colégio chorava que queria ir para o colégio. Mas a gente não podia. Mas ela meteu-se-lhe na cabeça, ou alguém lhe disse, tinha ela 12 anos… Que eu fiquei doente e ela foi fazer a azeitona de empreitada com o pai… Ela começou a trabalhar com 12 anos. E o pai não queria que ela fosse, mas ela é que arranjou as coisas todas. Eu estava doente, não podia trabalhar. Acabou a azeitona foi para a costura. Eu queria ser costureira e o meu pai não deixou, então ela foi para a costura, dois ou três meses. Mas depois lá alguém lhe disse e pensou escrever uma carta ao Presidente da República, que era o Marcelo Caetano (sic). Escreveu uma carta a dizer que queria estudar, mas que os pais que não podiam. Ele respondeu logo. Ao fim de oito dias já tinha a resposta, do ministério da educação, a dizer que mandava resposta. Ao fim de mais algum tempo, pouco, mandaram dizer que lhe davam ajuda. Não diziam quanto era. Depois foi-se matricular no colégio. Nesse entretanto, o meu marido, para ver se ganhava mais alguma coisa, arrendou aqui esta terra à frente para fazer regadio, para a gente trabalhar ali, mais eu e ele, a gente trabalhou ali, a ver se conseguia que elas estudassem. Lá do Ministério da Educação eles disseram que davam a ajuda, mas não disseram quanto era. Passou-se o ano, eu tinha de pagar a mensalidade das duas todos os meses, mais o transporte, que eram 100$00 da camioneta. O comer levavam de cá feito, o almoço. Porque elas foram sempre em jejum para a escola, nunca comiam nada de manhã, nem foram capazes de comer. Depois tinham de comprar lá um paposecozinho, levavam um pacote de manteiga, que tinham lá no frigorífico do colégio. Às 10 horas eram o que comiam. E o almoço levavam de cá feito. E o dinheiro nunca mais apareceu. E ao fim do ano veio uma carta do colégio, a dizer que o dinheiro tinha ido para o colégio, três contos. Davam três contos por ano, que não chegava nem para os livros. Se fosse num liceu, a gente não sabia, tinham direito mesmo as duas a ter bolsas de estudo, porque elas dispensavam sempre. Se fosse no liceu. Mas aquilo era a pagar, era um colégio… Não havia aqui nenhum liceu perto. Quer dizer que assim foi um sacrifício. Trabalhar muito, elas nas férias também trabalhavam. Todos os anos mandavam os três contos e elas já lá estavam, a gente fizemos o sacrifício, tiraram as duas o 7º ano59. No último ano já não mandaram nada. A mais velha dispensou dos exames porque tinha notas para isso. 59

Actual 11º ano de escolaridade.

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Nos últimos anos já íamos trabalhar para as fábricas, e elas também, porque nas férias elas trabalhavam ca gente na fábrica dos tomates. Sempre era melhor, ganhava-se um bocadinho mais. Depois elas iam mais a gente, e quando era do regadio iam colher pimentão, colher tomate, regar, iam com o pai durante as férias. Durante a azeitona, que eram 15 dias, lá iam com a gente. Mas elas já tiveram outra criação que a gente não teve. A mais nova casou, ela não foi estudar, porque a mais velha tirou o curso, mas foi a trabalhar, a dar aulas. Ela inscreveu-se logo e teve a sorte de apanhar logo colocação. Então tirou o curso de Línguas a trabalhar, a dar aulas no secundário. E ficou lá. E a mais nova casou cá, esteve cá ainda uns poucos de anos, mas o marido andava a trabalhar como pedreiro e no campo. Depois inscreveu-se para os serviços prisionais e então é condutor no hospital de Caxias. Ela é escriturária, faz contabilidade numa fábrica, tem uma filha e diz que quando acabar de criar a filha ainda vai tirar um curso superior como a irmã. A minha neta está a tirar Psicologia.

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9 – Proprietária agrícola. N. 1916, 82 anos. A minha mãe mandava vir o padre e mandava-os casar e baptizar. Era uma coisa que não estava mesmo no espírito deles, serem casados pela igreja ou não ser não os preocupava grandemente. A minha mãe é que tinha interesse nisso, depois mandava vir o padre e casava-os todos, e aos filhos baptizava-os. Os proprietários não iam à Igreja, nem muito nem pouco, não iam. Tinham até uma certa de vergonha, pensavam que era uma fragilidade, que era uma coisa que os aproximava das mulheres, percebe? Um machismo. Não tinham interesse nisso, não tinham preocupações religiosas absolutamente nenhumas. Hoje é diferente, hoje muitos homens já vão à missa. No norte há muito mais religiosidade, mas não é só nos campos, é em toda a parte. O norte é muito mais religioso. Agora o Alentejo é assim. Os homens no nosso tempo não iam à missa. Iam às procissões, iam atrás do Senhor dos Paços. Mas isso até os comunistas iam atrás do Senhor dos Paços quando foi o comunismo. Eles têm uma grande fé naquela imagem, o povo. E portanto, quando veio o 25 de Abril, no primeiro ano nem conseguiram fazer a procissão, no segundo ano, quando fizeram, eles mesmos já iam atrás do santo. Eu não pude estudar. Eu também fui uma das vítimas porque, nem foi o meu pai, era mais a minha mãe que fez barreira a que eu não fosse para Lisboa. Eu queria tirar um curso. Tive um grande desgosto, nessa altura. O meu irmão formou-se em Veterinária, mas era homem, abriram-lhe o caminho todo para ele se formar, mas a mim não me abriram. Tive uma professora em casa, ainda estudei com o meu primo. Mas fiz a 4ª classe com a professora da vila. E a 4ª classe da D. Clara era uma 4ª classe… Valia por um 3º ou 4º ano do liceu60. Todos os anos ia um mês para a praia, para a Figueira. Eu vivia na vila e nunca ia ao monte, nem para passeio. Isto não me dizia nada, hoje é que me diz. Hoje é que eu percebo que estou enraizada, que as minhas raízes são daqui. Mas nessa altura não. Só lá ia na Festa de Espiga, no Dia da Espiga. Era um concurso de chitas, de aventais, depois arranjavam dois tronos, um para mim, outro para o meu irmão, mandavam-nos sentar nos tronos, cantavam-nos cantigas, e elas andavam com aqueles aventais… Dançavam, eles com um lenço bordado para não mancharem as blusas delas quando lhes punham as mãos nas costas. Nessa altura havia o rancho para a ceifa, e isto era tudo feito com as mulheres, que ceifavam à mão. As mulheres e os homens. E depois esse rancho todo se juntava na festa, fazia um grande número. Os trabalhadores fixos eram umas 20 pessoas. Ficavam cá os vaqueiros, ficavam os 60

Actuais 7º ou 8º anos de escolaridade.

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caseiros, ficava o feitor. Ficavam para aí umas 15 ou 20 pessoas sempre. Havia montes para todos, a minha pena é vê-los a cair e não poder recuperá-los. Os ranchos eram contratados para as ceifas e para a azeitona. A princípio ainda vinham os ratinhos. Vinham da Beira fazer as ceifas. Houve uma época que eram eles que vinham fazer. No tempo do meu pai havia só a debulhadora. Depois o meu irmão comprou as ceifeiras. Ele é que introduziu as máquinas. Tínhamos uma debulhadora muito antiga, que eu dei agora ali para o museu de Évora. A nossa herdade era uma das terras mais bem tratadas do concelho. E por isso foi uma das primeiras a ser ocupada. A eles interessava-lhes ocupar era as que estavam bem tratadas. Foi em Outubro de 75. Só cá estava o feitor. Eles comunicaram que vinham ocupar e… Eu lembro-me da desocupação. Na ocupação creio que não viemos cá. Não. O clima era muito tenso na altura para os donos virem assistir às ocupações. Eu morava em Lisboa. O meu irmão tinha morrido em 73, era ele que administrava. O meu marido era médico e depois ele é que vinha aqui. Trabalhava em Lisboa, e íamos à vila ao fim-de-semana. Todas as pessoas que precisavam dele iam lá e ele fazia a consulta para eles aos fins-de-semana, para todo o povo que quisesse lá ir. Ele era médico dos olhos e não levava nada a ninguém. Ficava serões inteiros a ver as pessoas. Depois quando ele morreu é que foi mais difícil. Ele morreu e eu fiquei sozinha, com os três filhos ainda a estudar, com mais três pessoas em casa, éramos sete ou oito pessoas. Isto aqui tinha o feitor e continuou sempre na mesma, com o mesmo ritmo. Até que em 75 ele morreu, em Maio. Nem um nem outro viram a ocupação. Ainda bem. O meu irmão morreu em 73 e meu marido morreu em 75. Em Maio e eles ocuparam em Outubro. O meu filho e o meu genro, foram eles que vieram aqui. A iniciativa das ocupações partiu dos de cima: era o Vasco Gonçalves, era o Otelo Saraiva de Carvalho, era essa gente toda que fazia aqueles discursos nas televisões que inflamava esta gente. E os locais com certeza que ajudavam, esses chefes das cooperativas. Ao povo disseram-lhe que o dinheiro é de todos, e porque o banco é nosso, porque faziam aqueles discursos e a própria tropa lhes dava força para eles virem. Isso ouvia-se na rádio. Nessa altura só cá estava o feitor. Ele ficou cá, veio dizer-me que ficava. Não era porque estivesse contra mim, mas porque fosse para onde fosse ia trabalhar, porque ele não era comunista. Ele não tinha outro sítio para trabalhar, valia mais ficar aqui. E foi o que valeu, foi ele ficar, porque todos os que vieram ele já os tratava por tu, conhecia-os muito bem e eles tinham-lhe um certo respeito. Para eles continuava a

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ser o Sr. Manuel, o Sr. Manuel Feitor. Nunca perderam aquele jeito de ele ser uma pessoa que estava acima deles. Ele não tinha regalia nenhuma, era um trabalhador como os outros, mas os outros é que olhavam um bocadinho assim para ele. Na cooperativa não havia feitores, todos trabalhavam em igualdade. Por exemplo, no gado… Até é engraçado que, às vezes, eles estavam a mexer assim em qualquer coisa e o tal homem, o feitor, dizia: “Está quieto, não mexas nisso, que isso tem dono!” Ele falava assim para eles. E foi o que nos valeu. Quando ocuparam fizeram uma acta das coisas todas que faziam parte, as alfaias… Eu nunca pensei que o vaqueiro ocupasse a casa. Ele veio morar para cá. Esta casa andava em obras, eu andava a aumentar a casa. E ele ocupou a parte da casa que não estava em obras. Mas eu não sou uma pessoa que possa ter muitas queixas. As queixas que tenho são da ocupação em si, não é? Da lei que foi feita daquela maneira. Propriamente, até da cooperativa, eles nunca me trataram mal, conversaram sempre comigo com delicadeza e correcção. A casa da vila foi assim: eu tinha duas casas na vila, porque ficámos com a do meu irmão, que não tinha filhos. Eu e o meu marido falámos e dissemos: “Nós temos aqui duas casas, esta é a nossa, que arranjámos, nós só temos uma solução: ou nós entregamos a casa do meu irmão para qualquer fim, ou nós somos ocupados, que acho pior. Porque nós temos duas, ao pé uma da outra, uma provavelmente vai ser ocupada.” E para não ocuparem a nossa, que andávamos a arranjar… Foi entregue sem violência e foi restituída sem violência também. Avisaram-me com 48 horas de antecedência. E eu despejei quatro andares numa noite. Fizemos um contrato de cedência exclusivamente para a creche e sem renda61. De maneira que eles não puderam utilizar a casa para mais nada nos anos posteriores. Mas ainda a usaram também para aquelas excursões de comunistas que vinham aqui, ficavam lá sempre. Também recebiam os hóspedes de fora. Mas depois isto serenou e eles entregaram a casa. Eles tiveram que acabar com a creche. Mediante o contrato eles não podiam fazer mais nada, devolveram a casa. A casa estava a precisar de obras, o telhado tinha um buraco, era um encargo grande, devolveram passados 17 anos. Enquanto isto esteve ocupado eu não vim cá. Vinha a só à vila aos fins-desemana. Eu fui realmente aborrecida com as viagens, quando vinha cá, com as pessoas que mandavam parar. Ali no Couço. Pessoas que não me conheciam, não é? Miúdos com paus na mão e velhos. Mandavam-nos descer do carro e revistavam o carro. Sem autoridade nenhuma, era a autoridade do povo. Ele estava na rua, não

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Ver entrevista nº 15.

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era? Nem eles sabiam o que procuravam, era só para achincalhar. Era o povo: eram miúdos, eram velhos, não tinham consciência do que estavam a fazer. No dia da desocupação eu fiquei na vila com a minha filha e eles vieram os dois para aqui, o meu filho e o meu genro. Vieram os da cooperativa, mais um militar que se pegou com um primo meu. Eram comunistas, era o que veio fazer a ocupação, foi ele que a veio fazer. Depois veio fazer a desocupação também. Era do MFA. Claro, o MFA é que fez isso tudo das ocupações. Os trabalhadores estavam todos presentes e houve uma lista do que nós… A propriedade não comportava o número que ali estava. Tivemos que ficar com um número que a propriedade comportava. Foram-se embora os que não estavam na lista. Nós mencionámos os nomes que eram os nossos antigos e que continuaram aqui. Nós tínhamos o direito a despedir os trabalhadores que não queríamos cá. Ficámos só com aqueles que queríamos. Quando tomámos conta disto não íamos ficar com aquele pessoal todo que nos tinha ocupado. E então ficámos só com os nossos antigos. Depois o feitor ficou, o mesmo, os antigos ficaram… O feitor ainda é vivo, foi-se embora há pouco tempo. As máquinas estavam estragadas, tiveram quatro anos de uso, não é? Tive de repor tudo outra vez. O que estava, estava cá com quatro anos de uso e tratado por eles, que não eram os donos. Mas não faltava nada. Fui várias vezes à cooperativa com o meu filho ou com o meu genro ter conversações com eles. Eram as vacas, eles queriam vacas e eu não lhes queria dar as vacas. As vacas já cá estavam. A vacaria foi feita pelo meu irmão. O meu filho nessa altura andava com exames. Ia com eles tratar destes assuntos das vacas e como era e como não era. Eu às vezes entrava cheia de medo naquelas escadinhas pequeninas. Tudo cheio de povo cá fora, e lá dentro as mesas e as cadeiras onde eu me ia sentar. E passava por aquele povo todo e às vezes ficava… Mas eles não foram incorrectos comigo, eles tinham trabalhado sempre para o meu pai, conheciam isto tudo. É aquela tradição, aquela coisa. Eu não fui insultada, nem me maltrataram muito nas coisas que fizeram. Ocuparam. Eles, coitados, disseram-lhes que a terra era de todos. Não foi a culpa deles, a culpa foi de quem fez o 25 de Abril, não é? Candidatámo-nos às indemnizações. Estamos agora à espera que estes dêem. Eu sei que outros já receberam. Já houve duas pessoas que eu conheço que me disseram mesmo que as tinham. Isto está entregue ao advogado, eu não sei. O advogado diz que está tudo bem. Eles não pagam, eu não sei porquê. Na altura tivemos de usar o Crédito de Emergência. Porque as alfaias estavam velhas. Não é que eles as tivessem estragado. Eles trabalhavam com elas, não as podiam estragar. Mas estavam desgastadas pelos anos de uso. 81

O meu filho depois tomou conta disso. Era o meu irmão, depois passou para o marido, depois passou para o filho. Não sei realmente como eram os juros. Os juros foram sempre altos para a lavoura. E continuam. E agora a vida da lavoura é fictícia, vive de subsídios. Quando eles acabarem, ninguém sabe para onde vai. Agora temos de tudo um pouco. Temos a vacaria, para leite. Temos ovelhas e semeamos quando o tempo deixa. Este ano não deixou. Tenho olival, tenho vinha, tenho milho. A caça da herdade está arrendada a uma sociedade turística que toma conta disto. O meu filho é médico e vem cá ao fim-de-semana. Toma conta da administração, do escritório, dos dinheiros. O hospital ocupa-lhe muito tempo. O médico é um sacrificado a trabalhar. Trabalha muito e ganha pouco. As outras filhas tiraram os cursos, tiveram filhos, já fizeram muita coisa. E tenho uma neta a tirar Psicologia.

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10 – Médico, proprietário agrícola. N. 1953, 45 anos. Houve uma altura que eles vieram aí com a tropa. Veio aí um primo meu, andaram aí à batatada. Nesse episódio a tropa veio aqui perguntar como é que isto estava, se a gente explorava, se não explorava. E quando viram que a gente explorava mesmo, não tinham razão nenhuma para pegar nisto, então fizeram um comício aí com os trabalhadores. E apontavam-nos a nós: “Aqueles fascistas…” Nessa altura juntámo-nos aqui todos, eu, os meus cunhados e mais uns primos meus. E houve um primo meu que se chateou e deu um murro num furriel qualquer. Depois o homem queria-nos prender todos, queria-nos matar todos com G3. Não tinham era armas. No dia da ocupação telefonaram-nos para Lisboa a comunicar que tinham ocupado, mais nada. Eu estava em Lisboa e os empregados de cá é que me telefonaram a comunicar que já cá estavam os homens. Já se esperava que eles viessem, não é? O que é que a gente vinha cá fazer? Estavam alguns 500 gajos aí. Eram muitos. E tinham o exército. Houve casos pontuais em que isso aconteceu. Mas eu era sozinho, não tinha mais ninguém na família que me ajudasse. O meu pai já tinha morrido, tinha a minha mãe e as minhas irmãs. E eu sozinho, o que é que vinha fazer? Armar-me em estúpido para levar um tiro? Quem foi o responsável? O Partido Comunista. Foi tudo organizado pelo Partido Comunista. Na época que se vivia, o Partido Comunista tinha a força que tinha, estava encostado ao Bloco Soviético e de lá é que vinham as instruções todas. Os líderes, o sindicato, tudo aqui era pró-soviético. Eles diziam que davam emprego a toda a gente, depois já não tinham dinheiro para lhes pagar. Fizeram crédito atrás de crédito, tinham dívidas brutais aos bancos. Falharam como falharam nos outros sítios. Só que isto aqui foi apanhado numa altura, politicamente falando, relativamente ao mundo inteiro, foi apanhado numa altura já muito avançada. Ou seja, se a revolução do 25 de Abril se tem dado, quanto a mim, 10, 15 anos antes, nós hoje éramos capazes de ainda ser um país comunista. Só que nós, já foi numa época em que era muito difícil escamotear essas coisas, porque havia já informação, havia antenas de satélite, toda a gente viajava a Espanha e via-se televisão espanhola em Portugal. Havia comunicação de rádio. Quer dizer, as pessoas já dificilmente iam naquela demagogia fechada e naquele tipo de regime. E portanto houve uma reacção e as pessoas não deixaram avançar. As pessoas já sabiam o que era o comunismo. O comunismo em Portugal já chegou atrasado. Porque, de facto, nós não queríamos o comunismo. Já tínhamos essa noção.

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Mas aquelas eram pessoas desinformadas. E aqui no Alentejo as pessoas que viviam completamente fora da cidade e do mundo viviam o seu dia-a-dia no trabalho rural e sempre a serem matraqueados por aquele tipo de ideias. Assim como as tropas que iam para África faziam-lhes lavagens ao cérebro. Eu conheço amigos meus que iam para lá e vinham de lá comunistas e drogados. Depois do 25 de Abril é que disparou a propaganda comunista. Antes disso era clandestina. As pessoas que iam para a África, lá muito longe deste meio de controlo de propaganda pelo Salazar, facilmente eram expostas. Eu assisti a amigos meus que depois de virem de lá vinham pessoas diferentes. Amigos meus, pessoas mais civilizadas, vinham de lá completamente virados ao contrário. Isto foi uma revolução comunista. Eles quiseram implantar o comunismo através do Alentejo. Tudo o que fizeram aqui foi com motivação comunista. Era a partir daqui para o resto do país. Só que chegaram ali a Rio Maior e não conseguiram avançar para o Norte. Porque os nortenhos não deixaram. Mário Soares que tire o cavalinho da chuva porque ele não fazia nada sem o resto das pessoas. Ele encabeçou, mas foi oportunista, aproveitou uma determinada reacção das pessoas. Se o Sá Carneiro não tem sido morto, o Mário Soares não tinha feito nada. Porque o Sá Carneiro era uma pessoa com uma inteligência, com uma cabeça! O Mário Soares é um fantoche, é um bom actor. Gosta de mostrar, gosta de exibir. O comunismo foi combatido não pelo Mário Soares, foi combatido no Verão de 75 quando começaram a incendiar, a própria população a incendiar as sedes do Partido Comunista pelo Norte todo. Isso não foi o Mário Soares que mandou fazer. Quem virou isto completamente em 1980 foi o Sá Carneiro. Esse virou isto completamente do avesso. Ainda hoje se fazem sentir as coisas que ele fez. Como por exemplo a entrega disto aos rendeiros62. Foi uma coisa do governo dele. Mas ele, ao entregar estes bocados aos rendeiros, e nós ainda somos vítimas, desmantelou num ano tudo o que era comunismo. Desapareceu. Porque estimulou outra coisa que é a ganância do lucro. Que é o que todas as pessoas querem. É uma ideia genial. O gajo entrega estes bocados de terra às pessoas. Vai tudo, comunistas e não comunistas, PDS, PS, ia tudo buscar aqueles bocados de terra de renda, e tendo uma coisa deles, tornavam-se totalmente diferentes dos comunistas. Aí já não queriam partilhar as coisas. Já tinham uma coisa que era deles, então, a partir daí, as mentalidades, as filosofias transformam-se completamente. Quanto a mim foi o grande motivo para o fim das cooperativas. Desmantelou o comunismo, mas prejudicou-nos a nós.

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Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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Nas desocupações veio a GNR, estavam aí os comunistas. A regatear mais vaca, menos vaca, mais fardo de palha, menos fardo de palha… Mas tivemos sempre um trato cordial, entre eles e nós. Houve pessoas mais complicadas que nós. E as indemnizações ainda não foram pagas. Temos o processo todo pedido. Estamos à espera a todo o momento. Mas já lá vão estes anos todos e ainda não foram pagas.

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11 – Proprietário agrícola. N. 1951, 47 anos. Eu estudei interno num colégio de frades em Abrantes. Depois andei em Agronomia em Lisboa, mas não acabei. Entrei para a tropa em 72 e não cheguei a ir para a África. Em 74 estava mobilizado para Macau. Entretanto deu-se o 25 de Abril e eu não fui. Depois da tropa voltei para a vila e vivo aqui. Agora quero ir morar para o monte, estou a fazer lá obras. Quando foi o movimento das oito horas, aquilo provavelmente nem houve nada. Essa história foi lá para Beja, para o Sul. Aqui não houve nada. Isto era um povo pacato. Eu tenho grandes amigos aqui na vila e nunca dei por nada, nem senti rigorosamente nada. Sempre passei cá as férias, e convivia com todos. Nunca ninguém me faltou ao respeito, nem eu a eles, porque somos educados e acabou. Mais nada. Depois do 25 de Abril começaram as colocações obrigatórias de pessoal e puseram-nos aqui uns homens e umas mulheres. O meu pai disse-lhes que não havia trabalho para lhes dar e que eles podiam ir, mas “ficam aí sentadinhos, não fazem nada, não estragam, não fazem nada”. O meu pai não lhes pagou e foi ocupado, foi a sequência lógica. Eles impunham primeiro pessoal, para estrangular economicamente a pessoa, depois ocupavam a seguir. Isto na propriedades que o meu pai administrava. Nas do meu tio-avô foi diferente. Ele era considerado um homem bom, mas depois ocuparam na mesma... Ele tinha a herdade de topo do concelho. Estava lindamente, não havia mais nenhuma igual. E foi ocupada no mesmo dia. O chefe local devia 500 fardos de palha ao meu tio, era amigo, ia lá pedir-lhe coisas emprestadas. A ordem veio de cima, o Álvaro Cunhal manda, executa-se. Quando o patrão manda eles fazem, eles eram estalinistas, não há nada a fazer. No dia da ocupação não estava lá ninguém. Ninguém tentou resistir, porque havia uma lei que dizia tacitamente: quem resistir ao MFA nunca mais vê as suas herdades63. Nas casas da vila ninguém tocou em nada. Só por cima do meu cadáver. A lei não previa isso. Se eu vivesse no monte, se a minha casa fosse no monte também não ocupavam o monte. Comigo não ocupavam. Podiam matar-me. No monte o pessoal entrou com os tractores, com aquela feira toda montada. E as mulheres sempre na frente, sempre na frente... O Pezarat Correia fornecia-lhes apoio. Com costas quentes é fácil.

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Refere-se ao conceito de sabotagem económica, definido pelo Decreto-Lei nº 660/74, de 25/11/1974, e completado com o Decreto-Lei nº 207-B/75, de 17/4/1975, ver atrás. Os agricultores foram ameaçados com esta legislação, que previa até prisão, caso tentassem reaver as suas terras.

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Eu até acho que esses tipos não são comunistas, são uns invejosos. O maior defeito deste país é a inveja. Eles pensavam que iam ficar ricos. Os feitores apoiaram os patrões. O nosso saiu imediatamente. Foi para casa, nunca foi para a cooperativa. Já morreu. Manteve-se o tempo todo fiel à família. Completamente. Ele ia a Lisboa com a mala cheia, frutas, couves, borregos, tudo para o patrão. Ele arranjava-os, levava-os do seu quintal para os patrões. Ia de táxi a Lisboa, pago por ele. Todos os feitores que eu conheço ficaram do lado dos patrões. Os mendigos, os malandros, os bêbedos, esses é que ocuparam. Nas cooperativas não faziam nenhum. Eu tenho conhecimento disso, o que fazia um faziam cinco. Faziam grandes almoços, grandes banquetes, ao princípio, depois já nem tinham dinheiro para isso. Enquanto delapidaram todo o património existente a coisa correu. Quando acabou o património, acabou. Foi uma delapidação de todo o património fundiário. Houve muito má gestão. Porque quem ocupou foram os malandros, os bandidos, eles foram pró petisco, pensaram que era uma festa. Há casos em Portugal onde as cooperativas se aguentaram, geridas por homens que sabiam. Em Outubro de 75 foram cerca de 300 ou 400 proprietários a Elvas exigir a entrega das reservas aos agricultores, porque havia uma lei que previa as reservas, com 50.000 pontos64, que nunca foi posta em prática. Existiu no papel. O homem com mais coragem foi o António Barreto, esse fez uma lei e pô-la em prática65. A CAP despertou o associativismo no Alentejo, porque o alentejano é muito individualista. Esses anos das ocupações andámos na burocracia, com os papéis, a caminho de Portalegre todas as semanas. Tivemos o subsídio dos 8.500$00 mensais, para manutenção. O meu pai era Agrónomo, foi dar aulas para o liceu na Ponte de Sor. Foi ocupado, tinha tudo investido na terra, é um facto, investia-se no que se fazia, teve de ir dar aulas. Eu também saí daqui e fui para Lisboa trabalhar com o meu sogro na empresa dele de construção civil e imobiliária. Depois ainda montei um aviário, aprendi muito sobre galinhas. Estive em Inglaterra a estudar galinhas e aviários. Um dia destes ainda monto um aqui. Mas sempre que cá estava ia às propriedades. Passear. Ver aquilo que era meu. O meu tio-avô não passou dificuldades, mas não tinha dinheiro. Ele não tinha filhos e entregou-me tudo em 80. Eu sabia tudo o que ele tinha e ele não tinha dinheiro. O irmão dele é que era rico, porque era um forra, por 50$00 despedia um empregado. A mulher dele gritava cá em casa: “Eu deserdo-te!”. E eu: “Por amor de 64

Decreto-Lei nº 406-A/75, de 29/7/1975: Lei Oliveira Baptista: declara sujeitos a expropriação os prédios rústicos pertencentes a proprietários com mais de 700ha de área ou 50.000 pontos. Tem consagrado o direito de reserva até aos referidos 50.000 pontos, excepto para os proprietários absentistas. 65 Lei nº 77/77, de 29/9/1977: "Lei Barreto". Lei da Reforma Agrária que introduz o conceito de Agricultor Autónomo; reservas aumentadas para 70.000 pontos; introdução do conceito de majoração.

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Deus, minha senhora, deserde-me à vontade, não preciso de si para nada”. Mas o meu tio era excepcional. Tinha muitos sobrinhos e afilhados que o quiseram lá em casa. Ele já tinha 76 anos e estava viúvo. Nunca chegou a sair de casa, onde morreu quase com 100 anos. Esteve uns tempos no consulado em Zurique, porque ele tinha lá um afilhado. Na Segunda Guerra Mundial ele era casado e sem filhos e tinha recebido em casa um refugiado, e então esse afilhado, que foi cônsul austríaco em Zurique, assim que soube disto veio cá buscá-lo. Agora já morreu. O meu tio, que nunca viajava, começou a viajar com o 25 de Abril, deu uns passeios. A primeira desocupação foi em 79 e depois em 80. Tivemos de fazer um pedido de reserva, com a Lei Barreto: 70.000 pontos. Éramos co-proprietários, porque havia indivisos. Cada um que tivesse uma cota podia pedir 70.000 pontos. E foi o que nós fizemos. Os processos andaram para trás e para a frente. É igual ao que se está a passar agora com as indemnizações, o esquema é igual. Foi um processo político que teve a ver com as condições para a entrada na CEE. Quem entregou o Alentejo todo foi o Cardoso e Cunha. Activou a GNR. Fizeram a coisa como Deus manda. “O processo está completo? Entregue-se”. Vontade de cumprir o que estava no papel. Depois o Dr. Sá Carneiro um dia lembrou-se de ganhar votos no Alentejo. Coitado, não lhe serviu de nada. A maior parte desses rendeiros são tipos que não eram sequer agricultores66. Foi nas terras que estavam para entregar. Para as entregas recebi um telegrama para ir desocupar. Houve protecção da GNR. Vieram jipes. Vinha o Ministério da Agricultura, os comunistas e a GNR. A comissão deles, que devia estar presente, muitas vezes nem aparecia. Quando eles vinham entregar perguntávamos: “Onde estão as coisas?”. E eles: “Não sabemos”. Depois tínhamos de andar à procura dos gados, etc. Nós tínhamos a nossa equipa montada nessa altura. Eu tive aqui comandos. Porque esta herdade era a coqueluche da cooperativa. Eu desocupei aquilo no dia 15 de Maio de manhã. Eu levava armas e eles não, estava lá o povo todo no monte. Fez-se a acta de desocupação, da entrega da propriedade aos proprietários. Era meio-dia 50 tipos cercaram-me com caçadeiras. Eram da cooperativa, com o chefe à cabeça. Eles tinham caçadeiras, era dia de caça. Eles dormiram ali. Eu estava sozinho, só mandei vir os comandos depois. Disse-lhes que estava aflito. Eles mandaram um rádio e dois tipos para estarem comigo. Ele disse que eu tinha de manter a desocupação. Eu era o único rapaz da família. Não ia lá pôr o meu pai com 60 e tal anos e o meu tio com 80 anos. Fiquei lá, dormi lá e o meu pai levou-me lá comida de manhã, uma feijoada. E afastei-os à bala. Eles fugiram. Houve um que ficou com o carro todo 66

Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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desfeito, fugiu e deixou-o lá. A geração do meu pai era uma geração de legalistas, pensaram que a GNR desocupava. Demoraram quatro anos. Depois não havia animais, o que havia estava tudo estropiado, máquinas destruídas, em estado de sucata, sem possibilidade de arranjo. Estávamos descapitalizados, foi necessário recorrer à banca. Cá em casa não havia um tostão, comecei tudo com a banca. Só que a banca em Portugal sempre foram agiotas. A CEE já os mandou baixar, mas até há uns quatro ou cinco anos atrás era puro agiotismo. Os primeiros anos foram muito difíceis. O que nos salvou foi a cortiça para tapar o buraco do banco. A cortiça ainda continua hoje a tapar buracos. Agora tenho 22 empregados permanentes. Eu pago, entre salários e caixa de previdência, cerca de 4.000 contos por mês. Mas tenho uma lavoura topo de gama! A lavoura hoje sem a cortiça não se aguenta, nem havia investimentos nem nada; se não fosse a cortiça já tinha vendido. Também recorri a todos os subsídios. Agora tenho um parque de máquinas invejável, regas invejáveis. E tomo conta das terras de toda a família. Não tenho nada de renda, exploro o património da família. Os montes são a última coisa que eu estou a fazer agora. Mas turismo não faço. Estou agora na fase de lavar a cara aos montes. Mas é com o meu dinheiro. Eu sou agricultor e não sou hoteleiro. Tenho um primo que é um cozinheiro incrível, um homem que gosta de culinária, agora está ali dia e noite, fins-de-semana, agora é hoteleiro, anda com as chaves penduradas na cintura. Sou um grande amigo dele. Com a CEE e a PAC67 fomos completamente enganados. Deram-nos o tapete, “invista”, e depois tiraram-nos o tapete. Eu odeio depender. O agricultor não é obrigado. Mas em 60% dependo do Estado. Os produtos têm um terço do valor que tinham antes do 25 de Abril. E com custos maiores. Tenho quatro filhos. Tenho dois rapazes mais velhos, um quase formado em Direito, outro está no colégio, tem 13 anos, gosta de andar de mota, andar a cavalo, jogar ténis. E tenho duas filhas pequenas. Eu julgo que a nova geração vai ter interesse nisto. Esta casa vale muito dinheiro, a contar com a cortiça. A cortiça está escalonada para sair todos os anos. Se tudo correr bem, o meu filho é bom aluno, vai tirar um mestrado aos Estados Unidos em Gestão e depois vem para cá. A vida dele está aqui, tem a máquina montada, não pode parar. Isto é uma máquina computorizada. Tenho contabilistas, tenho tudo informatizado. Todos os homens preenchem papéis, quem não preencher não recebe. Penso que esta lavoura tem futuro. Eu não concebo um país sem agricultura própria. E quem produz somos nós. 67

Política Agrícola Comum.

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Há que produzir intensivamente. Com pivots. Eu tenho de estar optimista, isto é a minha vida, eu tenho muito dinheiro enterrado aqui. Tenho de defendê-lo. Eu não caço à quinta-feira porque não tenho tempo. Estou a chegar ao fim do meu plano de investimentos. Eu vou ser rico. Isto dá para quem investir. A agricultura alentejana vai ter que dar a volta. Senão fechamos as portas. Quem anda a comprar herdades é só para caça e para fazer uma boa casa de férias. Aliás, muitos agricultores alentejanos sempre foram uns preguiçosos que preferiam caçar e comer a dedicar-se à agricultura a tempo inteiro como deve ser.

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12 – Veterinário, proprietário agrícola. N. 1940, 58 anos. Na minha família, para os filhos estudarem, por volta de 1910, arrendaram uma casa em Coimbra e uma tia solteira foi para lá viver com os sobrinhos todos para eles fazerem o liceu. E no verão passavam férias em Espinho, onde compraram casa e levavam daqui parelhas de mulas para levar a comida para os três meses de verão. A família e algumas empregadas. Também iam a Lisboa, e lá gastavam muito dinheiro, pois durante todo o ano não tinham despesas nenhumas e quando iam a Lisboa gostavam de ficar em bons hotéis e ir à revista. Nessa altura a lavoura consistia em porcos, ovelhas, azeite só para consumo. Eram umas oliveiras desalinhadas, porque só foram plantadas nos anos 30, assim como a cortiça só se começou a tirar para vender a partir do anos 30, pois antes era queimada e tirada apenas para a árvore ficar mais leve. Azinheiras valiam mais pois davam a bolota para os porcos. Depois dos anos 30 a agricultura passou a produzir muitíssimo mais, mas a ter encargos muito maiores, por isso a dar menos rendimento. Nesta herdade havia lagar para produzir azeite e passou a vender-se depois de terem plantado os olivais. Mas até aos anos 40 os grandes produtos eram a lenha, o carvão para Lisboa, a lã e os queijos de ovelha, a carne de porco, o azeite. O carvão ainda é um produto importante que é exportado para os países da África onde não há combustível. A minha avó matava um porco por cada empregado fixo e depois a carne e a banha eram conservadas em sal e distribuídas pelos empregados. Os meus avós viviam no monte e tinham a casa na vila para os filhos estudarem, mas havia Invernos inteiros em que não tinham passagem para a vila, porque não havia pontes nem estradas e eles ficavam presos nos montes. Vida de lavradores, nunca se mudaram inteiramente para a vila ou para a cidade. Mas os que tiraram cursos mudaram-se para Lisboa e Coimbra, só este ramo cá ficou. Alguns lavradores da geração deles eram agiotas: iam buscar dinheiro aos bancos a 3% e emprestava a 8 ou a 20% e assim compraram muitas herdades, até em Espanha. Como não havia bancos faziam eles de bancos. O problema do Alentejo não é o desemprego, mas a falta de mão-de-obra, por isso é que eram precisos os ratinhos. Havia um grupo de ovelhas posta à parte, para ordenhar, para fazer queijos desse leite para a casa. E havia outro grupo de ovelhas que era o alavão para vender68. Os queijos que sobravam do alavão da casa, vendiam-se ao comprador que vinha aqui, comprava o resto dos queijos. Que a casa, como tinha de dar de comer ao pessoal, o queijo fazia parte da alimentação. Os justos levavam as comedorias e o ensacado do S. Miguel, que era uma importância em dinheiro ou em géneros, em 68

O alavão era o leite das ovelhas para o fabrico de lacticínios, ver atrás.

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moios de trigo ou em outros géneros, em grãos, em azeite, em farinha… O ganhão era um empregado de ano, que trabalhava todo o ano, ganhando um salário baixo e a comida. Era pau para toda a obra. Comia cá na casa. Eram empregados de ano que tinham como base a alimentação. Eram solteirões, eram velhos, eram pessoas que não tinham família. Tinham como base a comida e depois um irrisório ordenado mensal. E o homem de jorna era o homem que era metido ocasionalmente, era o eventual, a salário, sem comida. O que é interessante é ver a diferença que existe entre uma máquina montada pelo homem rico do Alentejo e aquilo que foi transformado num negócio de miséria no tempo do Estado Novo e no Pós-25 de Abril. A organização do mercado das compras e dos preços. Enquanto, por exemplo, no tempo do meu avô isto era uma máquina de vender… repare: não se usavam adubos que não existiam; não havia tractores, porque eram as mulas nascidas cá em casa; não havia pneus, porque havia um ferreiro que calçava as mulas com ferraduras; não havia que comprar reboques, porque havia um carpinteiro que fazia aqui os carros com as madeiras de eucalipto e de azinho. Era um empregado do ano. Não se compravam sementes, porque eram as sementes que se colhiam dum ano para o outro; não se comprava gasóleo, porque era a ração para as bestas, que eram favas e aveia produzida cá em casa. Não havia praticamente inputs, tudo o que sobrava era output, era para vender. Veio a “Revolução Industrial Agrícola”, como eu lhe costumo chamar, a partir dos anos 40. Em 45, 50. Começou a usar-se a debulhadora fixa, que até aí não havia. Esta casa comprou uma que era a meias do meu avô e do meu tio Joaquim. Uma Claison inglesa e o respectivo grupo móvel. Ela andava entre as duas herdades, ela era uma caminheira, tinha uma caixa de engrenagem. Ia daqui até ao outro monte, a pé, puxando a máquina de debulha e o farilheiro, que era a limpeza da palha. Ia o Tio Joaquim à frente e o meu avô atrás a cavalo. Sorteavam a debulha, primeiro era uma, depois era outra. Era um esquema completamente diferente. Isso diminuiu a mão-deobra. Então a mão-de-obra de fazer uma debulha… Como é que o cereal era debulhado? Era numa eira com cascos feitos com água e as patas das ovelhas. Regava-se o barro e passava-se com o rebanho de ovelhas e umas três ou quatro pessoas davam voltas, voltas, voltas, para fazer o casco duro no chão. Para o cereal enterrar-se na terra. E era aquele casco tipo betão, feito em barro. Era o cereal espalhado, era debulhado pelas patas das mulas, ou então com parelhas com trilhos espigados. Eram os carrinhos onde o homem ia sentado, com dois rebordos cheios de ferro a trilhar a palha, a desfazer a palha. Depois eram os homens com as pás. Por exemplo agora não há vento, os homens iam-se deitar; às dez da noite o patrão ia

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chamá-los e dizia: “Rompeu a maré”, quando o vento norte começava. Eles iam trabalhar e atirar o cereal com pás. Era assim, eu sou desse tempo ainda. Eu era miúdo, via os outros fazerem. Via o meu avô, o Tio Joaquim à frente. A atirar a palha ao ar, a palha ia com o vento e o cereal caía ali. Depois era ensacado. A máquina debulhadora veio encurtar o tempo de debulha e fazer com que se pudesse aumentar a produção, porque ultrapassava o limite da mão-de-obra. A máquina puxada por essa locomóvel tinha um defeito, era o maquinista, que era um homem caro, era uma espécie de mão-de-obra qualificada. O combustível era lenha, tinha uma caldeira. O próprio lagar, o lagar do tempo da minha bisavó, aqui o nosso lagar, era um lagar de varas. Havia uma caldeira que aquecia as águas, movimentava um eixo comprido na parede, que fazia a alimentação do veio com vários tambores movimentada pelos apetrechos do lagar. Tinha uma correia que fazia andar o moinho, tinha uma correia que fazia andar a prensa, tinha uma correia que fazia a separação. Tudo com a lenha. A lenha era o calor que formava vapor que era a energia da alimentação. Também havia sempre umas searas de verão, que era o milho de sequeiro, que era semeado por volta de Abril; tinha de ser cavado, para manter a humidade da terra. Era um milho curto e era uma seara que as pessoas gostavam muito de fazer e tinham de cavar aos sectores. Alqueirava-se a terra, um alqueire revestido com milho, e eles depois vinham cavar o milho, faziam uma colheita, ficavam com dois terços e davam o terço ao patrão. Era parecido com os seareiros. Mas eram seareiros só de milho, não eram de tudo. De qualquer maneira era uma fonte de ingressos. Eles levavam o terço deles com que alimentavam as galinhas, os patos e nã sê quê, sem pagar, e a casa ficava com esse milho que dava ao gado. E também às galinhas, e às ovelhas e às cabras. Quer dizer: era uma cultura barata, que saía duma preparação muito grande para a seara de trigo seguinte, uma vez que era um alqueire de lavoura revestido. Um alqueire chamado a revolta da terra para a preparação da semente outonal. E há alqueires revestidos com uma semente: com grãos, com favas, com milho. Ou alqueires de nu ou de nada, que é só a lavoura e a queimada pelo sol. Para quê? Para revirar a pouca matéria orgânica que existe e preparar a terra sem sementes para a próxima cultura. Não era preciso comprar nada. Eu hoje por exemplo tenho 12 tractores aqui no monte. Cada vez que mudo quatro rodas são mil e muitos contos. Cada vez que mando vir 18.000 litros de gasóleo são 2.000 e tal contos. Cada vez que mando vir ferragem para as charruas são 600 ou 800 contos. Hoje é tudo a pagar e aquilo em que a produção aumentou em quantidade, desapareceu em despesas. Era preferível produzir 10% do que se produz hoje… E sempre se empregava mais gente. A 93

Revolução Industrial, quando atingiu a agricultura, foi a destruição da economia dumas empresas que eram rentáveis e hoje estão completamente entregues aos indivíduos dos inputs. São os gajos do gasóleo, são os gajos dos pneus, são as oficinas, é tudo. A conta pior que eu tenho é a conta oficinas, por exemplo. A seguir é a conta adubos, depois é a conta química, monda química, desinfecção de oliveiras. Depois é as máquinas vibradoras para apanhar azeitona. Vamos ver uma série de invenções feitas pela parte industrial da sociedade, que veio destruir uma coisa que estava equilibrada durante milhares de anos. E a parte que sai não compensa, de maneira nenhuma. E então com a política de adesão à Europa, foi um desastre. Foi a destruição da economia de uma região que é o Alentejo. Foi pré-concebida? Não sei. Calculo que sim, calculo que uma das maneiras de destruir o homem rico do Alentejo foi a orientação da destruição das suas casas. Não falando no resto do país. E hoje no Alentejo não há ricos. Entretanto foi compensado pela saída dos postos de trabalho para as grandes cidades, para as grandes indústrias, para o comércio, para o sector dos serviços, etc. Há uma compensação automática. O que se lixa é um sector. O meu pai estudou Letras e Direito em Coimbra, mas não acabou, porque veio tomar conta da lavoura quando o pai morreu. Os estudos eram consoante a disponibilidade económica e o número de filhos e a necessidade dos filhos na lavoura. O meu avô adoeceu, o meu pai teve de vir para cá e não acabou de se formar. E Regente Agrícola nunca foi considerado um curso, era mais um recurso. Quem não tinha capacidade de entrar na faculdade, ia para Regente Agrícola. Já era uma amostra de bacharelato, uma certa ilustração, alguma cultura geral. E é verdade, porque eu fui professor da Escola Agrícola em Coimbra depois do 25 de Abril e o nível intelectual dos indivíduos da Escola Agrícola eram os que não tinham capacidade para entrar para a faculdade. Tirando as honrosas excepções do desgraçado que não tinha dinheiro para ir para a faculdade e que era espertíssimo. Por exemplo, um filho de um contínuo que estava na Escola Agrícola. Mas na generalidade eram os falhados do liceu. Eu fui para Veterinária por causa da agricultura. O meu pai tinha dois filhos e disse: “Um tem de ser veterinário e o outro agrónomo. Mesmo que vocês não precisem de trabalhar, ficam em igualdade de circunstâncias para falar com os agrónomos e os veterinários do Estado, que são colegas”. Já se notava nessa altura, nos anos 50, a ingerência dos serviços oficiais dentro da economia das casas privadas. Já vinha o veterinário da Direcção-Geral pôr directrizes sobre o saneamento

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dos porcos e o saneamento das ovelhas. E já vinha o engenheiro agrónomo dizer que a seara de trigo tinha de ser assim ou de outra maneira. Isso não era bom porque era uma exigência. Normalmente os técnicos do Estado trabalham mal, como se sabe. O Estado é o pior patrão e vai para o Estado, tirando também honrosas excepções, quem não é capaz de trabalhar por conta própria. Aliás, se recuar no tempo, a maior parte dos indivíduos que como agricultores faliram, sem serem capazes de gerir a sua exploração, foram empregados do Estado. Há muitos. Desde sempre que houve aqui comunistas. Não tinha nada a ver com a Reforma Agrária, nem com o 25 de Abril. Eram comunistas na medida em que havia um partido na clandestinidade que, mentindo… Nós ouvíamos aqui no monte a Rádio Moscovo. Era a maneira de saber o que andava pelo mundo. Falava português correctamente. Entre as sete e as nove da noite. E diziam por exemplo isto do Alentejo: a grande propriedade, o latifúndio, onde o trabalhador come fava seca e pão negro. E nós ríamos, porque não correspondia à realidade. Nesta casa e no monte do meu tio o trabalhador comia a mesma comida que o patrão, feita pelo mesmo cozinheiro. Eles ouviam a Rádio Moscovo na cozinha e admitiam que comiam o mesmo que os senhores. Era o mesmo pão, que fazia o padeiro aqui no monte. Era a mesma comida, a gente só não comia com eles nos dias de carne. Porque o meu pai achava que tanta gordura fazia mal ao fígado dos meninos. Essa história da meia sardinha, isso é mentira. Não digo que não houvesse. Tem de fazer a diferença entre os dois tipos de agricultura. Há a agricultura do dono da terra e a agricultura do rendeiro. Enquanto o dono da terra vivia principalmente do produto do rendimento da sua exploração, mantendo o seu grupo de pessoal com um nível económico bom, o rendeiro tinha de se aguentar a ele e aos trabalhadores e pagar a renda ao patrão. Daí uma falta de dinheiro para viver bem e manter o pessoal. Quando começou a haver as reivindicações das oito horas, a primeira pessoa a dar as oito horas neste concelho foi o meu pai. No dia em que eles disseram: “É patrão, queremos as oito horas.” “Sim senhor, é já amanhã.” Acabou, não houve discussão, nem greve, nem nada. Normalmente era o manageiro que dizia: “Olhe, patrão, eles já falam por aí que querem oito horas…” Olhe, é uma sorte para mim, não tenho de lhes dar de comer. Porque as oito horas tinham a reivindicação do encurtamento do tempo de trabalho e tinham a reivindicação de não quererem comer cá. Porque era uma vitória para eles trazerem a lancheira. O cozinheiro ficou cá à mesma, passou a cozinhar para a família e para o patrão e a amassar o pão para a gente, e libertámo-nos de ter 40 indivíduos aqui a comer todos os dias. Havia uma

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directriz de alguma organização de trabalhadores que dizia que as oito horas e comer por sua conta eram uma grande vitória. Nessa altura já havia Casa do Povo. De tal maneira favorecidas pelos patrões que o meu avô teve o retrato dele sempre na Casa do Povo e ainda hoje lá está, em agradecimento por ter ajudado a formar a Casa do Povo. Os justos da casa tinham uma amizade, que é uma coisa que hoje não existe, pelo patrão. O patrão era tido como protector. Era o protector de várias famílias que aqui se governavam todo o ano. Havia o homem que era empregado de ano e mantinha a sua família aqui. Inclusivamente, no tempo em que comiam, vinham comer os filhos e a mulher sem serem empregados. Era uma espécie de organização conjunta para manter a principal força de trabalho da exploração. E o jornaleiro era um indivíduo sem amizade nenhuma à exploração, que vinha e ia. E era contratado, verdadeiramente proletário, por um salário. Mas o espírito de reivindicação foi geral, porque diziam-lhes que era uma vitória da classe trabalhadora. Foi aí que começou a tentativa de criar inimizade entre o trabalhador e o patrão. Porque até ali era uma relação de amizade e de compadrio. Patrão hoje em dia é uma palavra com um significado feio. E dantes era o pai. Era o que organizava e protegia e que alimentava com trabalho ou sem ele. Porque não havia previdência, não havia nada. No dia em que houve previdência, os meus trabalhadores foram todos inscritos, nenhum ficou fora. Mas o sistema de previdência da agricultura é escandaloso. Somos obrigados a ser recolectores das finanças e a recolher o dinheiro. Nas vésperas do 25 de Abril as pessoas viviam muito melhor do que vivem hoje. Por exemplo, o ordenado do pastor no dia 24 de Abril: ganhava 3.000$00; 7,5kg de farinha; 5 litros de azeite; 3,5kg de grãos; e chegava ao S. Miguel tinha as escusas, que eram 60 borregos. E isso era para a família, porque ele comia aqui. Tanto que os pastores, e os porqueiros e os vaqueiros, tinham um nível económico acima da média dos trabalhadores. Isso vê-se naquilo que foi programado por eles próprios para a sua descendência: não há filho de pastor que venha para o campo. Há um advogado em Alter do Chão que era filho de um porqueiro. O porqueiro era compadre do meu avô e conseguiu pagar-lhes o liceu em Portalegre e mandá-los para Coimbra. Chegava-lhe e sobrava-lhe. Porque os porcos, nessa altura, eram um grande rendimento da exploração agrícola, uma situação que hoje não existe. Agora voltou a fazer parte da alimentação porque o aproveitamento turístico do Alentejo está na moda, e assim as pessoas já 96

comem. Mas naquele tempo foi banido da alimentação por conselhos pseudo-médicos por causa da gordura e do colesterol. Isto move milhões. Pagaram aos jornalistas, e os jornalistas são capazes de tudo, são autênticos incendiários… Em determinadas notícias de nível científico, que eu domino, vejo que há um exagero acintoso contra determinado sector da economia. Se alguém o paga ou não… Eu estou convencido que sim. São as vacas loucas e o borrego é com a tal da BSE. É tão estúpido, sob o ponto de vista científico… Que um animal que está entre quatro paredes e só coma ração, farinhas, onde são metidos subprodutos de origem animal, eu até admito que tenha BSE. Agora uma ovelha ou uma vaca que do dia 1 de Janeiro ao 31 de Dezembro come pastagem e bolota, qual o produto da alimentação que lhe pode transmitir a BSE? Nenhum. Essa diferença nunca foi feita nos jornais. Embora cientificamente seja provável. Há o chamado encabeçamento. Esta herdade tem X hectares de pastagem. O encabeçamento é saber quantos animais cabem lá a comer. Suficiente para se alimentar o ano inteiro com os recursos da herdade, um bocado de feno, um bocado de bolota, sem recorrer a comprar sacos de farinha ou granulado. Houve um atacar e um meter medo que é intencional para destruir. Eu vendia um bezerro desmamado antes da BSE por 140 contos, com seis meses. Hoje vendo-os por 40 ou por 50. E pago mais ao pessoal. Atacar um sector e atacar um tipo de alimentação… Quem sabe alguma coisa de alimentação, sabe que é muito mais perigoso comer um frango, que está confinado e só come farinhas com hormonas, com vitaminas, para crescer em dois meses o que crescia em dez. Com os porcos das pocilgas industriais é o mesmo. Comem tudo o que lhe derem, até se comem uns aos outros, tal é a fome. Isso tem de se transmitir ao seu físico. O nosso porco alentejano é extensivo, só come cereais. Há denominação de origem controlada e protegida. Fomos obrigados a pertencer a estas associações para nos defendermos. Mas a dona de casa compra o mais barato em vez de comprar a carne escura, vermelha, com gordura amarela, por causa das ervas que comem. Esses grandes industriais e grandes distribuidores… Dizia o meu avô que grandes fortunas, ou herdadas ou roubadas. Eu ainda me lembro do 25 de Abril na Feira de Alter, que era nesse dia. Quando chegámos lá de manhã, que tínhamos lá uma partida de vacas, começámos a ouvir dizer que os bancos estavam fechados, que havia uma revolução em Lisboa. E toda a gente apoiava a revolução, era uma coisa engraçada. Juntou-se ali um grupo de agricultores a dizer: “Tinha que ser, o pessoal estava aí de uma maneira que a gente já não os aturava! Isto tinha de dar a volta.” Pensaram que era uma mudança a nosso favor. Não sabíamos de nada. Até que ao fim de uma semana ou duas se 97

inteiraram que era ao contrário. Os trabalhadores nessa altura não fizeram nada. E os poucos que fizeram alguma coisa, seis meses ou um ano depois, foram picados e levados pelo Partido Comunista. A ocupação desta herdade, que foi no dia 11 de Agosto de 1975, um ano e tal depois, não teve a colaboração dos empregados da herdade. Foi ocupada pela malta de Vendas Novas. Às sete e meia da manhã, os meus pais não estavam cá, porque andavam com medo do que se passou aqui à volta, das ocupações, dos roubos, do caso dos nossos primos, então foram-se embora para a casa da vila e eu fiquei aqui no monte com o meu irmão, que me veio dar uma ajuda. Nesse dia às sete e meia da manhã entrou por aqui um carro da Reforma Agrária. Já estávamos à espera. Era a única herdade do concelho que não estava ocupada. Tinha de ser. Era a ordem. Esta herdade estava toda aproveitada. Veio cá várias vezes o chefe da cooperativa, com o sindicato dos trabalhadores agrícolas do concelho, corria a herdade toda e dizia: “Não pode ser, a gente não pode pôr aqui pessoal, os homens têm tudo feito.” Nós tínhamos pessoal a mais. Eles tinham um encabeçamento de homens por hectare. Aqui havia pessoal a mais, como toda a vida houve. Nesta casa houve sempre uma certa protecção aos trabalhadores da freguesia. Inclusivamente, e isso está registado na Casa do Povo, o meu pai e o meu avô, de Inverno, nas crises de mão-de-obra, mandavam um grupo de mulheres e homens para outra herdade, alindar e fazer filas de pedra por baixo das oliveiras. Para lhes pagar o salário, para que não houvesse crises de trabalho. No dia 11 de Agosto de 75 entrou uma carrinha com dois engenheiros da Reforma Agrária. Estes daqui foram joguetes nas mãos do Partido Comunista, que era quem lhes dava as ordens e quem lhes pagava. Os trabalhadores da herdade não vieram à ocupação. Quem vinha era a turba-multa! Era o carro da Reforma Agrária com os engenheiros… Eles eram de Campo Maior. Eram funcionários do Estado que faziam parte do Comité da Reforma Agrária. A organização política do país desapareceu. Aquilo era tudo feito em cima do joelho, as estruturas foram quebradas. Eles eram colocados nos pontos-chave com uma missão: destruir a economia nacional. Eu estava sentado ao fundo deste passeio com uma carabina que eu tinha de caça grossa. Se eu quisesse matar alguém, tinha-os morto todos. Atirando como eu atiro, com as armas que eu tinha… Dois meses depois das ocupações eu podia ter vindo aqui, eles andavam a lavrar com os meus tractores, eu parava o carro na estrada e limpava um a um. Agora, nunca foi intenção de ninguém, nem deles, matar ninguém. Aqui foi completamente pacífico, porque vinha no Diário da República. 98

Quando chegaram os engenheiros mostraram-me o Diário da República e atrás deles vinha uma GMC de Vendas Novas com 20 ou 30 indivíduos fardados de tropa, com G3, de cabelo comprido e com barbas que vinham dar protecção aos engenheiros da Reforma Agrária. A maneira de tirar isto foi nacionalizar, porque ninguém queria tomar conta disto. Porque isto não é brincadeira, isto é uma exploração com peso. O Centro da Reforma Agrária devia ter um contacto directo com a tropa, com o exército, e requisitava os seus serviços, conforme depois se passou com as desocupações. Ora veja o que é o ridículo: a mesma tropa e a mesma guarda republicana vir apoiar… São uma espécie de paus-mandados: vieram apoiar as ocupações e vieram apoiar as desocupações. Estão sempre do lado que sopra o vento. Então foi assim: “Bom dia Sr. Dr., nós somos da Reforma Agrária de Campo Maior, de Elvas, trazemos aqui o decreto do Diário da República, a nacionalização da herdade.” “Posso levar as minhas coisas? A casa de habitação fecham-na?” “Sim, senhor. Nós só podemos tomar conta da parte agrícola.” “E a ficha de ocupação e o inventário?” “Nós depois mandamos.” E eu fui-me embora. No 25 de Novembro, quando cá voltei, tinham-me arrombado a porta e tomado conta da casa. Havia coisas que não tínhamos podido tirar. As taças de prata do meu pai, que era um bom atirador, não pudemos tirar. Ficou lá tudo, excepto o que os convidados do Partido Comunista roubaram. Vieram muitos para cá, o Almirante Vermelho, o Álvaro Cunhal, era a casa de fins-de-semana, com matanças de porco, matanças de borregos. Dizem-me os trabalhadores da herdade, que são os mesmos de antes da ocupação. Assim que eu tomei conta veio tudo para cá, excepto dois ladrõezinhos que eu mandei embora. Que eram realmente ladrões. Eu tinha aqui trabalhadores que davam vivas ao Marcelo Caetano todos os dias por ter feito a previdência social, que foi a coisa melhor que lhes aconteceu, que quando veio a Reforma Agrária davam vivas ao Partido Comunista porque se convenceram estupidamente que eram os donos de tudo. Eles convenceram-se que isto era deles. A maior parte deles, os empregados da casa, não teve trabalho até eu voltar, ao fim de quatro anos. Mas houve dois que aderiram. Eram dois tractoristas. E um deles é uma besta, é um estúpido, um indivíduo com uma craveira intelectual abaixo da média, com uma cultura nula, que não sabe ler, mas tem carta de condução, tirada pelo Partido Comunista. Anda a guiar automóveis. Não sabe ler. Não sabe um sinal de trânsito. Ele anda aí. Esses indivíduos davam vivas ao Marcelo Caetano na véspera da revolução, porque lhes tinha dado o benefício da Segurança Social. E no

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dia a seguir à revolução davam vivas ao Partido Comunista porque lhes tinha dado a terra. Esse, dizem aqui os trabalhadores, no dia em que isto foi ocupado ele veio, foi dos poucos que veio, os outros foram todos postos na rua. Convenceram-se que isto era deles. E havia aqui um espanhol, das ilhas Canárias, que era um desertor da Guerra Civil de Espanha, vindo de Badajoz, e que eu aguentei aqui toda a vida clandestinamente, era vaqueiro, foi primeiro mulateiro, andava com as mulas, depois foi ajudante de vaqueiro, depois foi vaqueiro. E pós-25 de Abril continuou a ser meu trabalhador e eu fui com ele ali a Portalegre à secção de emigração legalizar a sua situação. Esse, que trabalhava cá nessa altura, dizia para eles: “Vocês estão enganados. Olhem que isto volta tudo para trás. Se vocês fossem inteligentes, viam que isto não é vosso.” “Cala-te, tu és um parvo, és um velho, isto é nosso!” “Vocês não pagaram isto aos homens, como é que querem que isto seja vosso?” Eles estavam muito convencidos que iam ficar mesmo com as terras. De tal maneira que a esse primeiro chamavam-lhe o Dr. Zé. Porque não fazia nada, fazia de patrão, e andava com uma mala com os meus objectos de clínica, andava cá, via as ovelhas e dava injecções, coisa que ele não sabia fazer. Mas arrogava-se em clínico da especialidade. Nessa altura, ocuparam-me isto tudo, eu fui para Coimbra, onde tinha o meu sogro, e mês e meio depois fui a Escola Agrícola como professor, porque me convidaram, e depois fui para presidente do conselho directivo. Nós não tínhamos nada. As lavouras do Alentejo têm um gravíssimo defeito: tudo aquilo que se ganha é novamente retornado em programação para lucros futuros. De maneira que nós fomos apanhados de surpresa. O trigo estava metido na Federação dos Trigos dessa altura, na EPAC, veio a ordem nessa altura de não pagar aos agrários que podiam ter dívidas à Previdência. E o trigo não vinha. Os nossos cereais restantes, foi tudo ocupado. Tínhamos pago, não devíamos um tostão a ninguém. Tínhamos as contas todas pagas, tínhamos o adubo para a campanha seguinte; tínhamos 18.000 litros de gasóleo no depósito… Ficou cá tudo! Tínhamos tractores acabados de comprar, novos, e de pagar. Tudo ficou aqui. De maneira que havia que sobreviver. Se alguma coisa sobrasse, era para o meu pai e para a minha mãe e para a minha avó, porque não estavam em idade de trabalhar. No verão quente (de 75) eles foram para Valência de Alcântara, onde alugaram uma casa. E depois passaram, a partir do 25 de Novembro, para Caminha. Era outro país: do Tejo para cima não houve Reforma Agrária, no Norte ninguém acreditava. Quando eu contava a história da nossa herdade aos meus colegas de Coimbra, eles riam-se. Julgavam que eu estava a exagerar, não pode ser assim. As pessoas não se 100

aperceberam do que se passou cá em baixo. Os meus pais ainda receberam o subsídio de emergência, 2.500$00 a grande custo69. Eu tive de meter cunhas, porque o chefe desses serviços era comunista. E quando se tratava de latifundiários, ele não… Deixaram de ter o nível económico que tinham para andar ali à pressão dos 2.500$00 a cada um todos os meses. Era diferente. Ainda fui a uma manifestação ou outra, fui a Braga. Passei o dia a tirar latifundiários da frente da televisão e a explicar-lhes que eles aparecerem era negativo. Porque na zona em que eles eram proprietários toda a gente ficava a saber que eles ali estavam a fazer pressão. De maneira que: “Escondam-se, desapareçam daí!” Sabe que as pessoas todas têm uma memória curta e uma pior compreensão. Não se apercebem dos problemas. Vence-se mais por trabalho de sapa que por exibicionismo em frente das câmaras da televisão. Na manifestação da CAP, em 24 de Novembro de 75, em Rio Maior, aquilo foi realmente uma força para combater o avanço do Partido Comunista. Mas tiveram tanta sorte ou tanta inteligência, que o foram fazer no único sítio onde era possível. Porque se eles fizessem essa manifestação aqui entre Évora e Beja estavam tramados. O Alentejo foi uma experiência que se fez para acabar com o grupo dos latifundiários. No Alentejo não havia comunistas, o que havia era ladrões. E havia uma boa implantação do PCP, o núcleo duro que foi utilizado. No Ribatejo não conseguiram impor o PCP, porque não havia motivação, porque todos os empregados trabalhavam a terra do patrão, tinham direito a fazer um meloal, uma pequena horta, etc., onde tinham a família numa coisa que eles consideravam sua, e de onde retiravam uma produção para si próprios. Assim não se sentiam tão operários, tão abandonados, como os jornaleiros do Alentejo que passavam períodos de desemprego. A desocupação foi em 5 de Março de 79. As cooperativas faliram. A teoria única e real sobre isso, que eu conheço de perto, porque eu entretanto fui assessor do Vaz de Portugal, Ministro da Agricultura durante três anos, é que roubavam e não trabalhavam. As cooperativas só funcionavam para enriquecer alguns dos seus dirigentes. Numa lavoura como esta, enquanto havia um patrão passou a haver cinco, que era a Comissão de Trabalhadores. Portanto eram cinco senhores que não produziam nada, nem com cabeça, ao passo que o patrão deste monte também trabalhava de mãos. Eu fiz várias debulhas com o meu irmão, à frente de uma ceifeiradebulhadora, e a conduzi-la e a dar as voltas ao reboque que lá estava. E cheguei a debulhar até às quatro da manhã com o guarda da carroça, por exemplo. O pessoal 69

Decreto-lei nº 489/76, de 22/6/1976: atribuição de subsídio de manutenção mensal aos agricultores ocupados ou expropriados.

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vinha-se embora às cinco e meia, eu ficava a debulhar com a ceifeira debulhadora, movimentava o reboque. Quando eles chegavam na manhã do dia seguinte estava tudo cheio para eles levarem à herdade. Embora não fosse essa a minha missão, a minha missão era de gestor e técnico veterinário. E eles não só não trabalhavam, como nem cabeça tinham para a parte de gestão. E tinham uma preocupação que era meter ao bolso. Segundo dizem, um dos chefes da cooperativa comprou uma herdade aqui perto, a meias com um outro, que era o guardador de gado lá da cooperativa. Agora queriam matar-se um ao outro, porque o primeiro dizia que o dinheiro era dele e o segundo pôs a propriedade em nome dele. Porque eles não pagavam nada, eles metiam era ao bolso. Eles iam buscar crédito, o pouco que produziam e vendiam metiam ao bolso, e depois não pagavam nem à previdência, nem aos bancos, nem a ninguém, porque os lucros eram divididos pelo comité de trabalhadores. Nunca dividiram os lucros pelos trabalhadores. Os intermediários também foram altamente culpados. Nas ocupações ficaram com os gados que os donos venderam pelo preço da uva mijona. E depois nas desocupações ficaram com os gados que os comunistas venderam à pressa pelo mesmo preço da uva mijona. A maioria dos intermediários. Há honrosos casos que não entraram nesse jogo. Compravam e vendiam. São todos aqui da zona e continuam a maior parte deles vivos. A cortiça foi toda roubada. Os industriais roubaram a cortiça toda desta herdade na véspera da desocupação. Houve até uma acção posta em tribunal pelos Serviços Florestais por eles terem roubado a cortiça toda desta zona. E a comissão de trabalhadores recebia uma gorjeta de 50 ou 100 contos cada um e lá carregavam a cortiça. As entregas foram relativamente pacíficas. Guarda Republicana, cães, um aparato bélico. Vinham as mulheres, coitadinhas, que toda a vida foram umas galinhas, aos gritos: “Fascistas! A reacção não passou!” Os guardas punham-nas a mexer, largavam-lhes os cães, davam-lhes uma mordidela no rabo, iam-se logo embora! Eram paus-mandados. Era triste ver a falta de personalidade das pessoas. Ainda que não concordassem, vinham com medo de perder o emprego. O problema do Alentejo foi sempre o medo. Era o medo de perder o emprego no tempo do patrão; era medo de perder o emprego do outro patrão. São uns serviçais natos. Trabalham para alguém, querem é a estabilidade. Fazer pouco e ter estabilidade.

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Depois ainda houve a questão da lei dos arrendamentos de Sá Carneiro: isso foi um verdadeiro disparate70. Deixou uma batata quente que nunca mais se resolve. Pode-se lá aceitar num país democrático, num estado de direito, que eu tenha terras minhas durante 20 anos nas mãos de um rendeiro? Que foi escolhido a dedo, nem sequer agricultor era. Isto é um verdadeiro escândalo a nível nacional. Andaram a inventar rendeiros que não eram rendeiros. Eram pessoas que se diziam da cor do PSD para tomar conta das terras que eram tiradas ao Partido Comunista. Havia uma UCP, havia ordem de a desfazer, mas tinham de arranjar agricultores e não havia agricultores. Inventaram uns velhos, que se constituíam como futuros agricultores. E distribuíam a cada um 70 ou 80ha. Ficavam na terra e punham na rua os comunistas. Eles tiveram um certo valor na altura da coisa quente, porque fizeram frente à ameaça do Partido Comunista. Mas atenção: estavam a defender a própria barriga e a própria economia. Dava-lhes uma coisa de mão beijada, que eles não tinham. Aqui houve só dois ou três casos, mas que se resolveram amigavelmente. Quando nós tomámos conta, entregaram tudo. Saíram e honra lhes seja feita. Mas era outro tipo de gente, eram mesmo agricultores. Tinham consideração e respeito pela casa. Então ficaram 10, 12, 15 anos. Ainda há um a fazer uma seara este ano, com o bocado de terra que tinha. Mas noutra herdade que eu tenho eles ainda lá estão: como era gente que não era agricultora e não tinha consideração por nós, deram uma relação diferente. Houve alguns que entregaram, por honestidade, por pouca capacidade económica, agora tenho lá quatro que são um verdadeiro escândalo nacional. Tenho um em tribunal porque subarrendou a terra a dois indivíduos. Eu tive de recorrer ao crédito, recorri sim senhora. E foi a segunda Reforma Agrária. Porque eu recorri ao Fundo de Melhoramentos Agrícolas. E eu fiz um empréstimo de 19.800 e não sei quantos contos para comprar tractores, para comprar vacas, ovelhas, porque tinha tudo destruído. As máquinas agrícolas estavam completamente gastas: quatro anos chegam para escavacar um tractor, tive de comprar tudo novo. O gado era metade do que eu cá tinha deixado, porque eles venderam a outra metade, para fazer dinheiro. Havia um projecto elaborado pelos serviços oficiais do Ministério da Agricultura e esse projecto era aprovado ou não. E o ministério transferia o capital para o tal fundo. Enquanto o projecto se fazia, porque os serviços oficiais demoram meses, os técnicos só trabalham quando lhes apetece, mandavam-nos ao Crédito Agrícola de Emergência buscar o dinheiro, que depois seria transformado em Fundo de Melhoramentos Agrícolas. Mas esse fundo nunca mais foi transformado, entretanto foi extinto, e o dinheiro, que era para vir a 6% a 20 anos, 70

Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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acabei por pagar 32,5% ao ano. De maneira que eu, 10 anos depois de ir buscar 19.000 contos ao Crédito Predial Português, paguei 79.000 contos. Andei 10 anos a trabalhar para os bancos. Tive uma segunda Reforma Agrária por via financeira. Quanto às indemnizações, promessas chegam todos os dias. E agora eu telefono para lá e dizem-me que as prioridades são as coutadas. E vão ser pagas a valores antigos. Com a cortiça a 2$50. Estão melhores hoje, porque houve algumas negociações, com a CAP e os sectores interessados. Para a casa de habitação do monte tive ajuda porque a faço turismo rural. Mas só da casa de habitação. O resto não. Tudo o que é montes, instalações agrícolas e armazéns não vão para o turismo rural, fui eu a pagar. O turismo é só um complemento. Ajuda-me. Eu tenho a minha casa na vila. O meu irmão tem a casa no Ribatejo. Morre o meu pai, morre a minha mãe, fica esta casa. Se eu a fechar, em três anos está degradada. Se eu a mantiver aberta, ela paga a sua conservação. Não é um peso sobre a economia agrícola. Lucro? Não dá nenhum, porque daqui a 10 anos está outra vez tudo partido, e é preciso tornar a gastar dinheiro para pôr isto como deve ser. As construções são assim, vão-se degradando. Eu quero é que isto não seja um peso sobre a economia agrícola. À custa do meu próprio físico, porque não tenho cá ninguém. Ainda este fim-de-semana tive o monte cheio, e sou eu o cozinheiro. Só não ando a limpar os quartos, tenho uma empregada que vem, a quem eu pago e dá uma ajuda, ou um estagiário da Escola de Turismo Rural, alguém vem. Mas de resto eu não posso sair daqui, eu sou escravo. Há três anos que não vou à minha casa do Algarve. Desde que abri isto que não posso daqui sair. Tenho um compromisso com a Direcção-Geral de Turismo que quero honrar, em que o atendimento tem de ser personalizado. Ou eu, ou a minha filha, ou a minha mulher, alguém tem de aqui estar. A nossa associação de “Montes Alentejanos”, são 14, todos têm a porta aberta. E eu gosto de conversar, gosto de conhecer novas personalidades, novas culturas, novas ideias. Até porque têm uma ideia do Alentejo que eu consigo transformar para a realidade. Têm uma ideia errada, têm a ideia dos mass-media. As pessoas vêm aqui, estamos serões inteiros a conversar, e eu mostro-lhes os livros, conto-lhes histórias. A PAC, para mim, foi a confirmação da destruição da economia agrícola do Alentejo. Nós hoje em dia não sabemos o que havemos de produzir, nem temos directrizes para o fazer. Somos uns administradores de subsídios. Ninguém nos diz, do ministério, o que devemos ou não fazer. Ninguém nos orienta sob o ponto de vista técnico. Então andamos aos baldões. E como todos somos individualistas, e cada um de nós é mais esperto que os outros, vivemos como se fôssemos os maiores, quando

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não somos. O borrego é um desastre, o bezerro é outro. Fui ao mercado a Alter fazer o aprovisionamento para uns hóspedes que queriam almoçar. Não posso usar os produtos da casa, isso é muito complicado. Se eu matar borregos aqui, tenho duas falhas. Uma é a inspecção veterinária. Apesar de eu ser veterinário, o borrego não foi inspeccionado por um inspector, é uma ilegalidade. Se me aparecerem as actividades económicas espetam-me logo com um processo em cima. Esse é o primeiro erro. E em segundo lugar, ao fim do ano tenho uma inspecção das finanças. Suponha que eu matei 50 borregos durante o ano aqui. Não me aparece como venda 50 borregos. E eles julgam por tabelas. Por isso não posso consumir os animais que produzo. Os animais não, agora a fruta, os figos, as ameixas, o tomate, o pimento, o melão, a melancia, sim. Mas animais que estão no inventário não os posso gastar, porque faltam-me nas vendas, depois. E ao faltarem-me nas vendas, eles presumem que eu estou a sonegar ao IRS. Posso usar os produtos aqui da horta. E eu brinco de hortelão. Tenho uma rega gota-a-gota, tenho 50 pés de melão, 50 de melancia. Divirto-me de madrugada a abrir a torneira e a pôr adubo, faço umas curas com pesticidas… Não compensa pagar um ordenado a um hortelão. De maneira nenhuma. Um ordenado hoje em dia tem uns encargos sociais enormes. Ninguém ganha menos de 70 ou 80 contos por mês. Mais os impostos. O que é que esse indivíduo produz que possa competir com a fruta que vem de Espanha? Aquilo que eu como em casa, 1kg de tomate, 1kg de pimento, 1kg de pepino, custa mais de um conto de réis. É mais barato ir comprar. É muito difícil manter uma lavoura. E não vejo futuro nenhum, no actual estado da situação. O futuro que eu vejo… Eu tenho cinco filhas, vai cada uma ficar com um cagagéssimo disto. Já tenho dez netos… A propriedade pequena não é viável economicamente, no sequeiro, não. A grande de cortiça sim, essas vão resistindo e vão tender a anexar as do lado. As minhas filhas e os genros, ninguém tem actividade para a terra. Todos vivem muito melhor do que eu. Os ordenados deles são mais altos do que o que a lavoura produz, mas sem comparação. Dou-lhe outro exemplo: o meu genro que é major da GNR tem 32 ou 33 anos. Eu estou no topo da carreira como funcionário público, sou Médico Veterinário dos serviços do Ministério da Agricultura. O ordenado dele é maior que o meu, eu no topo da carreira e ele no princípio. Como anda aí um surto de estrangeiros a comprar por preços altos… São pessoas com milhões de contos lá fora, que vêm um país despoluído, por enquanto, e vêem para aqui viver sem fazer nada. Uns fazem agricultura, outros não. Eles vieram

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destruir a economia da região, porque inflacionam os preços. Agora toda a gente que quer vender, quer 1.500 contos por hectare. Só uma lavoura muito grande é que tem viabilidade. O difícil é encontrar quem administre bem. Porque, por razões óbvias de política, os filhos dos lavradores foram obrigados a sair da terra. E não voltaram. Mas há casas que não vão falir. Pode-se aguentar 200ha, se for de cortiça e o dono for esperto, não faz lá nada e come durante nove anos da cortiça. 200ha podem dar 40.000 arrobas de cortiça, em zona boa. Tem de gerir bem o capital.

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13 – Trabalhadora rural, empregada doméstica. N. 1924, 73 anos. Ai, menina, deixe lá ver! Eu nasci no mês de Outubro e tenho 73 anos fêtos. Nasci numa vila do concelho, numas casas arrendadas. A nha mãe trabalhava no campo, e o meu pai era ganadêro. Ganadêro é górdar gado. Guardar vacas, guardar ovelhas, guardar porcos. Pode-se pôr mesmo ganadeiro, que era o nome. A minha mãe ceifava, apanhava azeitona, mondava. Eram estes serviços que se faziam e hoje não se fazem. Outras vezes trabalhava lá em casa da senhora onde a gente estava. O mê pai às vezes tinha patrão por dois e três anos, depois ia para outros. Às vezes ele mudava porque eles não lhe queriam dar mais dinheiro, os outros davam-lhe mais e ele, coitado, ia para onde lhe davem mais. Ficava um ano ou dois, mas uma vez o mê pai esteve 12 anos numa casa. À jorna nunca andou, foi sempre justo. Ganhava-se pouco. Quando eu me lembro, a primeira vez que eu ouvi dizer ao meu pai, ganhava 60$00. Depois foi subindo. Agora quando ele se reformou, que já não podia, tinha uma angina de peito, já ganhava 1.000$00. Eu já era casada quando o meu pai se reformou. O meu pai morreu com 80 e tal anos, já tinha eu uns 50. Ele às vezes ganhava só dinheiro, outras vezes tinha casas onde ganhava 50$00 por mês, mas ganhava quatro alqueires de farinha, três litros de azeite… Que eu lembro-me bem, depois passou para cinco, mas já muito tarde, já quase em vésperas do 25 de Abril. Poucos anos antes do 25 de Abril já era mais, mas ele já não trabalhava. E eram cinco litros de grão e quatro alqueires de farinha. Por exemplo, se houvesse uma vara de porcos gordos, ganhavam os porcos gordos. Mas ele tinha que o comprar, só o que lhe davam era o comer. Depois os porcos andavam juntos com os do patrão. O meu pai comprava um porco, que custava aí naquele tempo alguns 50$00, e ele andava por lá, comia a mesma bolota. Depois a gente não o matava. A gente ódepois vendia-o para ocupar aquele dinheiro, comprar uns sapatos para um, ou outra coisa para outro. Era raro comermos carne de porco. Nesse tempo, quando éramos pequeninos, vá lá que a gente comprasse às quartas. Uma quarta era 150g. Comprava-se um bocadinho de toucinho para se comer ao domingo, só a gente sabe. Durante a semana comíamos couves, feijão, grão. Aquilo que a gente podia apanhar. E pão, e batatas. Que as batatas semeávamos a gente. Tínhamos uma horta lá onde o meu pai andava a trabalhar. O patrão dava uma horta para a gente. Fazíamos cebolas, batatas, umas couves. O pão tínhamos que o comprar. Quando era justo, apanhavase a farinha, que eram os grãos, eram quatro alqueires de farinha e os três litros de azeite. E eles davem. Depois era a gente que fazia o pão. Amassava a minha mãe, que tinha habilidade para amassar. Depois cozia-se no forno. Íamos à forneira, havia fornos. Se estávamos no monte, cozíamos no forno dos senhores. 107

No dia dos anos, ora, às vezes umas fatiazinhas com ovos. No Natal e na Páscoa, isso sempre se matava qualquer coisinha para a gente comer. A minha mãe sempre fez umas costas, que são uns bolos. Nem que ela fizesse só três fininhas, mas fazia. E lá isso umas galinhas tínhamos a gente sempre. E comíamos os ovos, pois. O que é que a gente agora come uma galinha a toda a altura, não é? Mata-se uma galinha, ou vai-se comprar. E naqueles dias não, naquele tempo só se comia pelo Carnaval, pelo Entrudo, pelo Natal. Se a gente não matasse ia-se comprar um bocadinho de febra, pequenino, que desse um bocadinho para cada um, foi sempre assim. Quando éramos pequenos, tinha que a minha mãe estar em casa. Assim que a gente começava a andar, a minha mãe ia para a azeitona e levava a gente todos. A gente estava no monte. Íamos à azeitona. Por isso começou tudo a trabalhar cedo. O que eu guardei dos montes foi ter ido guardar porcos quando os meus irmãos estavem doentes. Eu era a mais nova, a minha irmã estava em casa do meu avô. Não fui à escola. Nem havia dinheiro para a gente ir para a escola. E era muito longe. Não aprendi a ler. O meu irmão sabe, mas aprendeu depois de grande. Eu comecei a trabalhar com 10 anos e eu ia com umas sopas de cebola dentro de uma marmitinha de lata para comer lá. Não havia mais conduto. As azeitonas eles davem lá. Se a gente pedisse, eles davem um cesto de azeitonas para a gente arrepanhar71, para a gente comer. Quando já éramos todos a ganhar o tempo começou a mudar, não é? O meu irmão Joaquim começou a trabalhar com oito anos. O meu irmão Chico começou a trabalhar com sete, tudo a ajudar ao meu pai. Foi quando a gente começou a comer melhor. A gente éramos quatro, mas uma estava sempre em casa da minha avó, porque a minha avó era doente do coração. E o meu avô mandava nas ceifas, mandava as pessoas na azeitona. Era managêro. E depois, para a minha avó não estar sozinha, a minha irmã estava lá. Era o pai da minha mãe. O do meu pai nunca o conheci. Enforcou-se. Era muito coxo, não podia andar, isto contava o meu pai e a minha tia. Ele já era viúvo e estava em casa de uma tia minha. A partir aí dos 15 anos da gente é que a gente começou todos a viver melhor. Até aos 15 anos é que a gente ali sofreu um bocado! Melhorámos porque, sabe, os meus irmãos depois começarem, um ia para as bestas lavrar, outro ia para os bois. Deixarem de ser ajudas. Depois tudo começou a melhorar. As roupas fazia-as a minha mãe. A minha mãe sabia coser, e a minha avó. Compravam-se os tecidos nas feiras e nas lojas da vila. Eu também aprendi com a 71

Apanhar.

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minha avó. Andávamos calçados com umas sapatilhas e uns sapatos, o que servia a um, servia a todos. Assim sempre descalços nunca andémos. Nunca andei descalça. Nem que fosse com umas sapatilhas, mas descalça nunca andei. Havia sempre nas lojas umas sapatilhas com a sola de corda. No Inverno eram umas botas de borracha. Eu lembro-me que ainda não tinha casado quando usei as primeiras. Casei com 18 anos, mas ainda usei estas botas. Conheci o meu marido lá no monte. Ele andava a lavrar. Umas vezes era justo, outras vezes era à jorna. Quando casámos ele estava na tropa em Elvas. Parece que havia uma guerra nã sei onde. Casámos depois quando veio, depois ainda o chamaram, mas esteve poucochinho tempo. Eu nunca saí daqui. Só tenho saído depois, para ir lá para Lisboa fazer operações. Quando casei fiquei com a minha mãe. Depois arranjei uma casa, ao fim de poucochinho tempo de estar casada. Arrendei na vila. Continuei a trabalhar no campo, pois, então o que é que eu havia de fazer mais? Ganhávamos pouco, mas tínhamos sempre, a gente tínhamos sempre trabalho. Havia alguns que não tinham trabalho. Às vezes nã se queriem sujétar, como à gente, como o meu pai se sujétava. O meu pai passava semanas que nem ia à vila. E a gente estávamos lá no monte. E outras vezes ia a minha mãe górdar os porcos e o mê pai vinha à vila, comprar coisas para a gente comer, não é? O que eu lhe sei dizer é que na minha casa vivemos pobres porque ganhávamos pouco. Mas logo que vimos que os meus irmãos tiveram idade, um começou a guardar, o meu pai levou-o. Depois ajuntávamos. O meu pai ganhava quatro alqueires e os rapazes ganhavem três alqueires de farinha cada um, eram logo seis alqueires dos dois, não é? Com quatro, do meu pai, erem 10. Portanto, fome nunca passámos porque tínhamos aquela coisa junta. Mas há outras pessoas que não tinham, que nã se sujetaram, há outras pessoas que nã sabem guardar varas, ou gado, ou… E passavam mais mal, porque trabalhavam, acabava-se a azeitona e já não tinham mais nada donde vir, não era? E a gente sempre tinha, mesmo que a minha mãe não tivesse onde trabalhar, logo vinha o pão e o azeite, sempre a gente tinha, e os grãos. Olhe, ainda me lembro que uma vez a minha mãe estava muito doente. O meu pai tinha abalado do trabalho. E depois estava lá uma prima minha a trabalhar numa herdade e disse que a prima estava doente. E a senhora disse-lhe: “Diz lá a ela que venha cá!” Fui lá, vim de lá carregada. Deu-me carne, deu-me azeite, deu-me grão, deu-me feijão. Não truxe mais porque eu não podia trazer mais. Depois quando elas começarem lá a meter gente para o trabalho… Aquilo, acabava-se a azeitona, até vir as mondas não havia trabalho. Depois íamos mondar. Depois acabava-se as mondas, até vir a acêfa estava tudo em casa. Não ganhávamos. Mas nessa herdade ainda hoje 109

tenho, por acaso, tinha lá dois irmãos a trabalhar e um deles ainda lá está. A mulher que metia lá as pessoas morava lá na nossa rua. Chamava-se uma manageira. Morava na nossa rua e ia lá falar com a gente. As criadas, as que estavam com a senhora, essas é que trabalhavem sempre. A gente era às temporadas. Vinha a azeitona, apanhávamos a azeitona. Depois vinha a boleta, apanhávamos a boleta para os porcos. Depois esperava-se, não havia mais nada que fazer. Os homens que estavem justos trabalhavem sempre. Os que andavem à jorna, que é ao dia, umas vezes ganhavam, outras vezes não. Nós fomos baptizados pela igreja. Está tudo baptizado pela igreja. Eu casei pelo civil, mas já casei pela igreja cá na vila, uns anos depois. A minha irmã também estava e eu também queria. Na altura, a gente estávamos no campo. Pouca gente casava pela igreja. Depois é que começou tudo a casar pela igreja. Depois tive o meu filho e ele foi baptizado por uma igreja católica. Só tive um porque a vida estava muito cara, e eu evitava. Havia muitas que faziam abortos e sofriam toda a vida. O meu filho foi à escola aqui na vila. Fez aqui a 4ª classe. Depois foi para a Fundação. Ele ficava lá. Aquilo tem lá umas casernas muito grandes onde eles dromiem. E comiem lá. Depois tirou lá o 5º ano72 e com 16 anos foi para a aviação, para Lisboa, para os Capuchos. Ele ficou lá, só cá vinha de férias. Mas ele não é aviador, ele é das notícias secretas, não sei como se diz. Ele era primeiro-sargento e agora subiu outra vez, não sei o que é que ele é. Agora falta-lhe um ano para ser reformado. E foi à tropa em África, foi duas vezes lá fora, não sei para onde, uma foi para Moçambique, a outra não sei. Agora já tenho um neto e um bisneto. No campo não se falava de comunismo. Mesmo que alguém falasse era aos segredos. Só houve um que me disse assim uma vez: “Então não dá nada para o nosso partido?” E eu disse assim: “Não senhora.” E o homem ali ficou a saber que eu não era. Nunca mais me disse nada e fala-me muito bem. Aí um ano ou dois antes do 25 de Abril comecei a trabalhar em casa de uma senhora. Trabalhava lá a dias. Nessa altura já tinha casa cá na vila. A gente governava-se com o dinheiro que o meu marido ganhava, que era 300$00 nesse tempo. Não gastávamos mais nada. O trigo que ele recebia, esse dinheiro estava sempre guardado. E depois tenho um primo que era construtor civil em Almada. E um dia, morava eu naquele monte ao pé do cemitério, e a minha prima disse assim: “Tenho tanta pena da minha prima, que tudo tem uma casa menos ela!” Porque os meus dois irmãos, já todos tinhem uma casa. Só eu é que não tinha. E depois ele 72

Actual 9º ano de escolaridade.

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disse-me: “Diz cá ao teu marido que compre cá uma casa até 35 contos. E depois só me tem a dizer que quer o dinheiro tal dia. E depois você paga conforme puder pagar.” Eu comprei e paguei 32 contos. E então fazia assim: eu o dinheiro da casa não tinha, nunca podia ter 32 contos. O dinheiro do trigo. Em três anos paguei a casa. O dinheiro para a escritura da casa quem o emprestou foi o patrão do meu marido. E depois em dois meses pagámos-lhe. Porque eu governava-me com o meu. Ia trabalhar todos os dias, todos os dias já era uma ajudinha. Gastava só do meu. E depois o senhor, que tinha uma grande horta, dava sempre couves, batatas, dava isto, dava aquilo, ora, tudo quanto ele dava, já a gente não íamos comprar. Assim é que eu paguei a casa. Quando foi o 25 de Abril andava eu a pintar a casa de banho da senhora. Ai Jesus, o que elas me disserem por eu não ser lá do partido delas. Que eu que me andava a passar para os outros, que eu que andava assim, que andava assado. Elas gritaram, e eu fui trabalhando. Nunca me fizeram mal. Também era melhor! E eu deixava? Com certeza que era preciso ser um tractor carregado para me bater! Depois tudo se passou e hoje tudo me fala muito bem. Nas ocupações aquilo era às carradas. Eram tanto os homens e as mulheres. Elas também iam, elas ainda eram piores! O meu marido andava a fazer a acêfa numa herdade. Elas chigarem lá ao monte, era tudo: “Isto é nosso, isto é nosso!” Elas e os homens. Forem todos juntos. Gritavem que aquilo que era delas! Eu nunca fui a lado nenhum. Nem eu, nem o meu marido fomos a lado nenhum. Então aquilo não era meu! Porque é que eu havia de ir buscar uma coisa que não era minha? Eu nunca andei metida nisso. Com o 25 de Abril eu fiquei na mesma, não fiquei melhor nem fiquei pior. Eu já tinha a minha casinha! Mas o meu marido ópois teve de ficar com eles, que eles apanharem aquilo tudo! Ele teve de ir para a cooperativa um ano, fazer a campanha do tomate, porque não havia mais nada, eles apanharem tudo! Eu é que me safei sempre porque ia para as casas. Ele ganhava o mesmo. Aqueles que erem lá da comissão é que ganhavam bem. Só que depois os chefes começaram a mandar os tractoristas para os comícios. E ele, que era tractorista, não foi. E depois começaram… Deixou os tractores e foi para os porcos. Porque estava nos porcos não ia para os comícios. Tinha de ficar a dar de comer aos porcos. E depois ele foi trabalhar para outro por causa dos comunistas. Quando foi das desocupações o meu marido andava lá numa herdade. Atravessarem-se diante dele com uma moto para ele parar o tractor. Para ele voltar para trás. E ele disse sempre que não. Depois fizeram uma barreira e então o outro foi-se atravessar mesmo à frente do tractor que o meu marido levava. E o meu marido

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travou e disse assim: “O que é que você queria agora? Você queria que eu o passasse a ferro?” Não é no meio de uma descida de uma barreira que se atravessa uma pessoa diante de um tractor! “Eu passava-o a ferro e não tinha problemas de o passar a ferro”. É que mesmo que travasse, o tractor sempre dá um bocado. Depois foram lá falar com os senhores da Reforma Agrária. O monte estava todo a cair aos bocados. Eles nunca mais caiarem, nunca mais fazerem nada! Foram depois os donos que o arranjaram. Eu, olhe, faz 27 anos em Junho comecei a ir para Lisboa. Foi quando fui operada à barriga, em Palhavã. Nunca tinha saído daqui. Comecei a ir para lá, agora já conheço aquilo, já sou capaz de ir a quase todo o lado em Lisboa. Isto aqui está na mesma. Com as fábricas já há mais de tudo. Está um bocado melhor. Não sou comunista, mas tenho que dizer que está melhor.

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14 – Trabalhadora rural, empregada doméstica. N. 1920, 78 anos. Eu nasci na vila. Ainda fui à escola e fiz a 3ª classe. Porque dantes era assim: deixava-se de ir à escola para se ir trabalhar. Agora é que é, não estudam, nem querem trabalhar… A minha mãe trabalhava a dias lá para as casas, e o meu pai era maioral das parelhas, lidava com as parelhas. E eu fui trabalhar para o campo. Ai, eu não fui das primeiras a começar a trabalhar. Havia pessoas que começavam aos 10 anos, mas eu comecei tinha feito 13 há pouco tempo. O primeiro serviço que fui fazer foi para a vinha de uma herdade lá perto. Agora também já lá não está a vinha. A dar água aos homens para sulfatarem a vinha. Depois vim para aqui. Vínhamos da vila, saíamos de casa às três horas da noite e entrávamos às 10, era de sol a sol. Era tudo a pé, agora é que é tudo a cavalo. Voltava à noite para casa. Sabe como é que eu fazia quando era longe? Chegava a casa, lavava-me, ia mudar de roupa, que a gente vinha suada, não é? Atravessava-me na cama com os pés pendurados que é para não me deixar dormir. Vestida e tudo, só não tinha era na cabeça o lenço e o chapéu. Quando era assim Junho andava no restolho. Para descansar tinha a sesta. Às duas da tarde tínhamos duas horas que eram para o jantar. Algumas dormiam. Eu nunca dormi, que eu nunca dormia a sesta. Passava aquelas duas horas sentada lá à sombra e depois à tarde, às seis e meia, sete horas, tínhamos meia hora para descansar. Quem queria comer, comia. Havia a merenda. Quem não queria comer, não comia. Eu nunca comia à merenda. Ia comendo uma açorda ao almoço e outra ao jantar para não ficar doente. Comíamos feijão com batatas e ficávamos satisfeitos. Mas era tudo muito alegre, os ranchos cantavam a caminho do trabalho e as pessoas conviviam mais. Naquela altura não havia as facilidades que há agora. Havia muita gente com dificuldades. Aqui havia sempre trabalho. Chigaram a andar aí pelos cabeços a ajuntar pedras para ganharem o dia. As mulheres ganhavam 6$00, os homens ganhavam 8$00. E na azeitona, para ganharmos 7 mil réis tínhamos que apanhar azeitona, ensacada. Arregávamos73 às quatro da manhã a apanhar legumes, que é grãos, essas coisas, trabalhávamos cinco horas. Quando eu comecei a trabalhar no campo ganhava 2$00. Ganhava-se pouco. Depois, quando havia aquelas crises de trabalho, tínhamos dificuldades. Sapatos? Olhe: tanta vez eu bebi água nos rodados dos carros. Onde passavam os carros quando chovia muito, naqueles invernos. Ia para casa com os pés

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Arregar ou enregar, regionalismo para iniciar o trabalho.

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cheios de lama. Tirávamos os pés para sair da lama, ficava o sapato! Lá voltávamos para trás. A carne de Janeiro comiam em Junho, na acêfa. Eram farinheiras, morcelas, chouriço. O queijo era um queijo pequeno para a merenda todos os dias, mas algumas guardávamos e levávamos para a terra, para os pais. O pão era feito ali, a seguir à porta era o forno. Era a casa que dava a farinha. Em vez de ganharmos mais, ganhávamos menos e tínhamos aqui o pão. No 25 de Abril eu não fui para a cooperativa. Eu não, então eu já há 46 anos que não estava lá no campo. Nem eu ia para a cooperativa. Nem que me dissessem, eu não ia. Não tenho partido. Eu estava lá em casa da senhora na vila. Eu fui para criada da avó, depois fui criada da mãe, depois fui do irmão, agora estou com a senhora.

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15 – Trabalhadora rural, dirigente de creche. N. 1928, 70 anos. Eu estou a ler o livro da doutora. Comprei-o e estou a lê-lo. Há ali umas partes boas. Embora eu perceba pouco, mas vejo a situação que é. Sabe que o gerente do grémio de lavoura, os lavradores não queriam os trabalhadores e ele agarrava neles e ia-os pôr nas herdades… Toda a gente gostava dele. Ele safava-os quando não tinham trabalho. A minha vida foi muito ingrata. A minha mãe, coitadinha, não tinha ninguém. Tinha um irmão, morreu, ficou sem mãe aos sete anos. E pai também não. A minha infância foi uma infância de mãe solteira. Com grandes problemas, grandes dificuldades, muita fome. Tinha muitos irmãos, mas desses irmãos, só fiquei com três, porque dois morreram. E mais tarde um foi morrer atrás de um rebanho de gado. Depois eu comecei a ter habilidade e comecei a andar a servir. Morei sempre na vila, nunca morei nos montes. A minha mãe não tinha casa. A minha mãe foi lavadeira do hospital durante 34 anos. Com três que eu lavei foram 37. Depois a minha mãe teve uma trombose e fiquei eu com o encargo da roupa para ela ganhar a casa. Porque a casa era da Santa Casa da Misericórdia. Para ela ficar lá a morar, eu nessa altura já era casada, e ela ficou lá a morar e eu então fiquei com o encargo da roupa. O contrato da Santa Casa da Misericórdia como lavadeira era ela morar na casa e davam-lhe os medicamentos para ela e para os filhos. Era só o que tinha daquele trabalho que fazia. A minha mãe não ganhava o suficiente, porque era mãe solteira. Lavava a roupa do hospital, lavava mais roupas por ai, porque nessa altura não havia máquinas de lavar roupa, lavava quatro ou cinco roupas. Depois ia para uma casa caiar e lavar. Na fonte não podia lavar, porque era a roupa do hospital. Tinha que ir lavar à ribeira. Depois eu comecei a ter habilidade e era a ajudante dela. Aqui nesta rua abaixo já toda a gente me conhecia porque eu chegava à tarde e vinha pedir o meu bocadinho de pão às casas dos senhores. Todos me davam um bocadinho de pão para a gente comer à ceia. Depois de manhã ia a outras casas, as criadas arranjavam-me uma pinguinha de azeite, fazia-se uma açorda, fazia-se umas sopas de cebola. E era o que se comia. Pedia umas azeitonas, davam uma manchêa74 de azêtonas, comia-se. Quando era no Inverno, muitas das vezes agarrava num saquinho e ia à buleta para assar e para cozer numa panela. Muitas das vezes era a nossa ceia. Eu quando comia assim um jantarinho melhor, sabe quando era? Era em casa duma senhora que tinha uma filha e uma neta que era da minha idade. E então essa 74

Mão cheia.

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filha vinha cá passar esses dias ali em casa. E então eu nessa altura ia lá para casa, lavava a louça, e então comia lá o jantarinho e o almoço. Era quando comia ou um bocadinho de pirum75, ou um bocadinho de frango. Agora a gente, mesmo com dificuldades, já come um bocadinho de peixe, já come um bocadinho de carne. Dantes a gente não… Era uma sardinha dividida por três, era um rabo de bacalhau dividido por quatro ou cinco. Fruta não se usava, naquela altura. Não havia fruta, não havia nada, porque a vida era muito miserável. Queijo, pouco. Era pão, pão com pão, quando se apanhava. Eu o que me valia é que valia-me das minhas habilidades, eu. Fui sempre uma pessoa com uma grande resistência e uma grande força. Porque tive sempre, embora seja uma analfabeta, porque tenho uma 2ª classe mal feita… Eu cheguei a ir à escola, não continuei porque fazia falta à minha mãe para lhe ajudar às canastras de roupa. A D. Clara, a professora, dizia para a minha mãe que eu que devia de ir à escola e ela dizia: “D. Clara, a minha filha faz-me falta”. Andei 15 dias na escola, não deu para aprender nada. Mas depois, quando namorei o meu marido, o meu marido foi para a tropa e eu fui servir para um monte. A menina vinha de férias e eu pedi-lhe para ela me escrever uma carta para o meu namorado. Ela ficou espantada de eu não saber escrever. A gente somos da mesma idade, temos nem chega a um ano de diferença. Ela até é minha madrinha de casamento. E então ela ensinou-me a escrever uma carta. Mas leio tudo, gosto de ler. Aprendi a ler escrevendo cartas e leio tudo quanto me vem à mão. E sei o significado das coisas. Porque eu dantes lia noites inteiras. Os meus irmãos também foram logo trabalhar. O meu irmão Afonso, que é esse que está ai, os outros já morreram todos, esse foi para uma herdade com sete anos. Foi guardar porcos. Então a minha mãe deixava-o lá uns dias, só vinha ao fimde-semana vestir a roupinha. O Ti Zé era o moural dele. Ele tinha também uma grande carga de filhos. Sabe o que ele fazia ao rapazinho? Dava-lhe grandes sovas e comia um dia, e um andava com fome. Ele era mesmo mau. Depois foi para outra herdade guardar um rebanho de piruns. Depois melhorou um bocadinho, já ficava além no monte, e já lá na abegoaria tinha a sua tarimbazinha para dormir, e já passava melhor, que já andava com a barriga cheia. Ele ia para a cozinha dos ganhões, mas o comer vinha lá de dentro. Ele guardava os perus, depois vinha, dava a voltinha, depois fechava os perus e ia brincar com o menino. Nesta altura já tinha nove anos. Ele nunca foi à escola. Ele fez a 3ª classe, mas já era homem, com um padre que esteve aqui, que trouxe aqui uns rapazes alunos, que estudaram com ele e que fizeram a 3ª classe. 75

Peru.

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A minha mãe era contra a vida de servir, porque ela tinha sofrido muito na vida de servir. Ela começou a namorar o meu pai lá da varanda da patroa e ódepois parece-me que foi lá que começou a ter vidas com o mê pai. E pronto, e começou a ser aquela vida e às tantas ele nã casou com ela e ela ficou ali, como se costuma dizer… Ele estava cá, ele era contrabandista, andava no contrabando. Mas nunca casaram. Eu depois comecei a ter mais idade, comecei a andar umas vezes no campo. Que eu estava pouco a servir, servia pouco. A minha mãe não gostava e eu também, como se costuma dizer: “Galinha de campo não quer capoeira”. Só ia para casa da senhora quando eram as férias dos meninos, quando eles vinham de Lisboa. Havia outra criada, ela fazia o comer e eu era para fazer a lida dos mandados, andar por ali, limpar a casa de banho, limpar o pó, limpar… Eu até gostava, mas eu gostava mais de andar no campo, cêfar, apanhar azeitona, mondar, apanhar favas, arrencar mato. Nas casas tínhamos um privilégio melhor: é que comíamos! Tínhamos a barriguinha cheia. Comíamos dentro daquilo que havia. Mas não passávamos fome. E no campo já era aquela receita, já tínhamos de ir assim muito bem munidas, senão… Se a gente comesse de mais ao almoço, ao jantar já nã tinha. Só davam comida em contratas a seco. Mas isso de contratas a seco eu nunca as fiz. Andei sempre ao dia. Havia aí quem fosse para as contratas, mas eu nunca fui. A minha mãe teve sempre esta vida de roupas. Eu andei sempre no campo sozinha. O patrão tinha um manageiro e dizia-lhe ao sábado: “Arranje tantas mulheres para segunda-feira.” E ele ia ver das mulheres. Batia à porta, chamava a gente, dizia assim: “Na segunda-feira, vais com fulano e beltrano, vamos para esta ou para aquela…” Depende do que o patrão quer. Eu fiz de tudo um pouco. Quando não havia trabalho, por exemplo, acabava-se a acêfa, da acêfa até que viesse os bagos de azeitona sabe o que eu fazia? Havia naquela altura grandes carvoarias, e então eu mais a minha mãe e uma velhota, que era a Ti Mariana, depois de eles levantarem o carvão a gente levava uns sacos e cavávamos o lastro do forno, que aquilo o carvão era cozido e a terra puxava sempre carvão para dentro. E esse carvão, os carvoeiros não o levantavam. A gente depois é que ia atrás, é que rabiscávamos e trazíamos esse carvão e depois vendíamos. Naquela altura havia os fogareiros a carvão e a gente vendia. Por exemplo, uma casa precisava de dois ou três cestos de carvão, a gente vendia-os a 10 tostões. Depois era com que se comprava o pão. Dava algum dinheiro… Era tudo à miséria. Era tudo à fome. A fome é que fazia andar a gente aí. Nas ceifas, as mulheres tinham um ordenado diferente dos homens, ganhávamos sempre menos 5$00. E tínhamos de dar o litro como eles davam. 117

Tínhamos de andar à frente deles a esgatanhar, porque se não déssemos eles passavam para a frente e a gente ficávamos ali num coito de trigo a rabejar e éramos despedidas. Era logo: “Nã tá a render nada, fora!” Assim é que faziam à gente, o manageiro. Esse tipo é que controlava a gente. Havia homens bons, mas também havia ruins. Havia um tal que era terrível. Uma vez a gente andava além à monda numa herdade. Os dias eram muito grandes, e a gente naquela conversa, mas sempre mondado. E ele nem queria que a gente falasse umas para as outras. Mas nós falávamos, então a gente tínhamos de falar, não éramos mudas. Na monda nós abalávamos daqui da vila ao nascer do sol, porque depois tínhamos de ir para a cozinheira do fato. A cozinheira fazia o lume, a gente metia uma panelita ao lume, dessas panelas de barro, para ferver uma pinga de água para comer uma açorda antes de enregar76. Enregávamos às 10 horas das manhã. Chamava-lhe a gente os três quartéis, como era, eles não pagavam o dia inteiro porque só começávamos às 10. E depois então é que despegávamos ao sol-posto, mas bemposto. Que esse tal manageiro roubava sempre cinco, dez minutos todos os dias à gente. Às duas horas tínhamos o jantar. E estávamos uma hora ali paradas. Depois enregávamos e já não tínhamos descanso. Se era antes de Abril nã tínhamos merenda. Depois, ao passar de Abril já tínhamos às cinco horas meia hora para merendar. Para comer uma bucha, um bocadinho de pão com azeitonas. Depois íamos até às oito, até que o sol se pusesse. À noite chegávamos cá, era tratar de comer alguma coisa. Quem era solteiro, que quem era casado tinha de chegar cá e tinha de ir à fonte aqui abaixo buscar água. Ao domingo tinha que se amassar o pão para ir cozer ao forno, tinha que se ir lavar a roupa. E ainda tentar chapas nas saias e pôr grandes palmilhas e grandes crescentes nas meias. E como eu, que sempre fui aquela mulher dos sete ofícios, também remendava o meu calçado. Eu quando comecei a trabalhar no campo, com 15 anos, o primeiro ano fiz uma acêfa com umas sapatilhas de trapo. Umas solas de borracha por baixo, uns trapos por cima. Os escaravelhos picavam-me os pés todos. Quando saía à noite, os pés vinham-me sempre a verter sangue. Não tinha uns sapatos como deve ser, nem uma foice. Eu quando fui a primeira vez à acêfa levava uma foice quase do meu tamanho, que era a foice do meu pai. O material de trabalho quem o tinha de levar era a gente. Se era preciso um sacho, levava o sacho. Se precisava de uma enxada, eu tinha de comprar uma enxada e levá-la. E a foice a mesma coisa. Quando eu fui aprender a ceifar além para aquela herdade, a primeira foice que eu tive quem ma comprou foi o patrão. Que 76

Arregar ou enregar, regionalismo para iniciar o trabalho, ver atrás.

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ele quando lá chegou que viu aquilo disse: “É, rapariga!” Abriram-se-me os pulsos, que aquilo é uma coisa que é mais preciso o jeito do que a força, mas, quando o trigo está muito forte… De maneiras que ele veio aqui ao grémio e comprou-me uma foice. E deu-ma. A minha vida foi assim. Depois fui falar com o meu tio João e ele fez-me uns sapatos de bezerro. Ele era sapateiro. Fez-me uns sapatos, mas tive de lhos pagar em três prestações, porque o que eu recebia não dava para pagar logo um par de sapatos. Depois casei. Com 23 anos. A gente éramos de cá. Ele era trabalhador rural como eu era. O casamento foi ao fim de três anos de namoro. Namorávamos durante o trabalho, falávamos no caminho, era hora e meia a bater o pé, pois, não havia transportes como há agora. Isto agora é um luxo, e ainda bem. Aquilo dava para namorar, no fundo aquilo tudo, virmos do trabalho, era uma paródia, ainda se cantava… Era uma festa, porque a gente era a mocidade. Era cantar e bailar naqueles caminhos. Era o nosso advertimento. Não havia uma telefonia, não havia uma televisão. Vínhamos cansados, mas então, a gente éramos novos. Nada custava. Éramos mais amigos. Que é assim mesmo. Se chovia, chegávamos lá, agarrávamos o comer, voltávamos outra vez para trás. Não ganhávamos nada. Se não estava em condições para o trabalho… Apesar das dificuldades, tive uma juventude boa. Havia uma mocidade, fazíamos grandes bailaradas ao domingo. Mas era a cantar. Havia também as festas da vila, ainda me lembro de haver cá umas festas que eram as festas de Santa Luzia. Eram no mês de Agosto. Depois havia a festa da Senhora Mãe dos Homens. Isso era outro divertimento. A gente andava toda a semana a trabalhar, depois arranjávamos um vestidinho de chita, ao sábado, às tantas da madrugada a gente ia a caminho das festas. Ficávamos lá de sábado para domingo. Havia baile, havia aquelas coisas todas. Também festejávamos o Carnaval. Faziam cá grandes carros. Eu nunca andei nessas festas, porque não tinha vagar. Os justos ganhavam um bocadinho melhor porque tinham casa e tinham boca forra na criação. Tinham lá galinhas, tinham lá o que queriam. Por exemplo, queriam engordar um porco, engordavam um porco. Chegavam a Janeiro e matavam-no, metiam-no na salgadeira. E eram essas coisas boas. Mas eu nunca… A gente andémos sempre em jornaleiros. Não convidavam a gente e a gente não queria. Essa gente era aquela gente como cozinheiras, eram os pastores, eram os porqueiros… O meu marido era trabalhador rural. Depois ele tinha uma deficiência, que era que gostava de beber. Mas era bom trabalhador. Porque ele era uma pessoa competente para tomar conta daquilo que lhe entregavam. Mas tinha aquele defeito. Em chegando 119

ao sábado até no domingo, até ir para o trabalho, às vezes até ia bêbado para o trabalho. Agora já não bebe. Ele ganhava 120$00 por semana. Entregava-me 100, ficava com 20. E isso era o suficiente. Uns com uns outros. Tive a minha filha no fim de um ano de casada. E depois tive logo outra no fim de três anos e meio. Quando as minhas filhas nasceram ainda trabalhava no campo. Levava-as comigo. Andavam comigo dentro da canastra para o trabalho. Pois, tinha que as levar. Uma vez deu-se um caso que eu tinha de lavar uma roupa aqui, deixei as duas lá em casa. Porta fechada, fósforos escondidos, tudo para elas não mexerem. E então, como ele tinha estado a fazer a barba, ele tinha uma caixa e deixou a caixa em cima da mesa. Eu tinha ido lavar a roupa e aparece o meu cunhado a gritar que a mais velha tinha cortado a cara à mais nova. E quando lhe perguntei: “Estive a fazer a baba à mana”! Estava toda cortada. Não fez golpes fundos, mas ainda fez sangue. A minha vida foi assim. A minha sogra também nunca foi uma pessoa que dissesse para deixar as miúdas com ela. A minha mãe já tinha morrido, eu não tinha ninguém, era levá-las às costas e toca a andar por esses ranchos. Às vezes o manageiro ajudava-me a leválas. Uma vez fiz uma acêfa e a minha Joaquina era desinquieta. Sabe o que eu fazia? Levava uma corda, prendia-a na azinheira. Tinha uma saca onde ela se deitava quando se queria deitar, deixava-lhe o cestinho com o pão, uma bilha com água. E era assim que ela estava ali debaixo da azinheira, porque nem a cozinheira tinha ordem de lhe dar uma pinga de água, que o manageiro não deixava, nem o patrão! E assim é que era o sofrimento da pobreza. Depois tive logo a separação. Já sou separada há 40 anos. Agora vamos a essa parte. Pois tive grandes dificuldades, porque fiquei com duas filhas, uma com sete, outra com três anos. Tinha de pagar a renda, naquela altura eu pagava 35$00 de renda de casa, o que para mim era muito. Primeiro formou-se aí uma creche. Esteve cá um padre que fez aí uma creche. E eu fui para essa creche: trabalhava, fazia as limpezas, reparava nas crianças. Sabe quanto eu fui ganhar por mês? 180$00 por mês. Havia uma cozinheira mais eu. E a gente as duas tínhamos de reparar nos miúdos que lá tínhamos. Porque os miúdos não eram de fraldas, eram dos três anos em diante, até à idade de irem para a escola. A paróquia é que tratou disso, com cortejos de oferendas da vila. E com o que as pessoas queriam dar. Por exemplo, chegava-se ao fim do ano uma herdade dava um pouco de azeite, dava grãos, dava feijões, essas coisas. E era com essas coisas que se alimentavam as crianças. Davam a carne, davam o queijo, davam o pão, a farinha

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para a gente amassar. A gente é que amassava e fazia essas coisas. E então eu tinha lá a minha mais nova. A outra mais velha já estava à da minha prima, que tinha uma padaria, a vender os bolos. Ela fazia os bolos e a minha filha andava com um tabuleiro aí na rua a vender os bolos que era para ganhar a papinha para não andar com fome. Depois a minha mais velha adoeceu com um problema pulmonar. Esteve internada na Ponte de Sor, lá no centro, lá havia um pavilhão dessas doenças. Aquilo foi um contágio. Fizeram-lhe o contágio a ela, mas ela não contagiava. E depois foi para lá por causa de fazer repouso. Porque eu nessa altura estava já a trabalhar no hospital. Eu trabalhei no hospital a dias e depois fui para lá justa, como criada. Para fazer as limpezas, tratar dos almoços e depois fazer as limpezas da semana. Ao sábado havia uma mulher para esfregar aquilo tudo. Eu fui ganhar naquela altura 460 mil réis por mês, sem mais nada. Neste meio tempo aparece a doença na minha filha. Depois fomos fazer Raios X. Ela tinha 10 anos quando lhe apareceu aquilo. Precisava de muito repouso e ela lá em casa não podia fazer repouso porque põe-se na brincadeira com a mais pequena. Então ficou lá internada 11 meses. Vinha só de férias. Ao fim de três meses começou a vir a casa. Fui a Lisboa só depois do 25 de Abril. E tenho lá grandes amigas. Só fui a Portalegre antes disso por causa de uma dor nas costas; e também fui a Fátima, aproveitei um bilhete de uma amiga que não pôde ir. Fui encantada com a festa, porque aquilo é uma festa. Eu fui baptizada, casada pela igreja, tenho essas coisas todas. A minha mãe ensinou-me três coisas, que foi a rezar o Padre-nosso, a Avé Maria e a respeitar o próximo, fosse uma criança, fosse um velho. Mas não ia à Igreja. Entro lá, respeito a igreja. Nem tinha vida para isso. Tenho cá a minha devoção. A gente, quando se vê aflita, “ai valha-me Deus”, que foi o que aprendeu. Não sou contra. Não sou praticante, mas sou católica. As minhas filhas também. Baptizei-as. Crismei-as. A que está casada está casada pela igreja. E fizeram a 4ª classe. A mais velha até fez a 6ª classe77. Também trabalharam cedo, coitadas. A minha mais nova foi para casa de um lavrador com oito anos. Lá é que fez a 4ª classe. Para ganhar a sopinha. Lá é que esteve até aos 16 anos que entrou para a fábrica do leite. Eu trabalhava lá mais a irmã e ela depois foi para lá também. Ganhava-se melhor e estávamos mais resguardadas do temporal e era certo. Porque eu fui uma das que fui logo para a fábrica do tomate. Porque eu tinha aí uma profissão muito jeitosa: era a de vestir os mortos e despachar os funerais. Até a agência aqui entrar 20 anos fiz esse serviço. Também era eu que declarava os óbitos na conservatória do Registo Civil; já a minha mãe fazia isso. 77

Actual 6º ano de escolaridade.

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Nessa altura já se falava muito no Partido Comunista. Ainda quando foi as eleições do Delgado, Norton de Matos… Mas só me filiei no PCP depois do 25 de Abril. Andei na clandestinidade, antes disso era simpatizante. Até lhe vou contar um passo que se deu comigo quando eu tinha 17 anos, que foi quando eu vi a primeira vez o Avante. Em casa de um rapaz que era sacristão. E casou. Ele era sapateiro, agarrou-se a essa profissão e deixou de ser sacristão. Ele morava na minha rua. Eu, como vivia com dificuldades, nessa altura ainda era solteira, tive os primeiros sapatos e depois tinha de lhes deitar remendos. Eu fui pedir-lhe um conselho sobre os remendos. E ele ensinou-me a pôr meias solas nos sapatos. Nesse convívio que a gente tinha nasceu o filho dele e eu gostava muito do menino. Eu fui sempre muito curiosa, até mesmo no meio da rua, se vir um bocado de jornal, apanho e leio. Eu vou contar como foi. E vejo o Avante em cima da mesa (do sapateiro). Não sabia que era um jornal político que andava na clandestinidade. Eram os camaradas uns para os outros que o passavam. E ele fazia parte dessa clandestinidade. No outro dia fui ver o miúdo e a Chica estava a chorar e ele estava a trabalhar para o lado da rua. Ela estava a chorar: “Ai filha, nunca digas que vistes aqui o Avante na minha casa, senão prendem o meu marido e o meu filho fica sem pai!” Nessa altura já havia aí reuniões nos cabeços, mas as mulheres não iam para lá, só iam os homens. O meu marido não era dessas vidas. Agora eu tinha um irmão que andava na clandestinidade. O meu irmão não foi preso porque não teve que ser. Mas quando foi a altura que a gente fez o levantamento das oito horas… Eu as datas não as sei. E então, o meu irmão, foi na altura da acêfa. Queríamos as oito horas. E alcançámo-sas. Então não houve problemas? A GNR ali de Ponte de Sor e esta aqui. Tudo aí em estado de sítio. O meu irmão não foi preso nessa altura porque havia cá uma casa, como lhe chamava a gente uma casa de pasto, que era uma senhora que fazia almoços e jantares, então os guardas todos comiam lá nessa casa. E eu trabalhava nessa casa. E então foram lá almoçar as praças de cá e as praças da Ponte de Sor. Então o guarda dizia: a gente temos de aberbatar78 o Preto e o Penteadinho. Já tinham prendido o Bento, e outros… O Preto era o meu irmão, porque o meu irmão é assim um bocado negro, e o Penteadinho era o amigo dele. Era trabalhador do campo. A senhora que tinha a casa de pasto ouviu isso e mandou um rapaz avisá-los. “Vai lá dizer ao Afonso que ponha uma manta às costas e que se suma daqui para fora.” E ele isso fez. Meteu-se pelos castanheiros abaixo, depois subiu ribeira acima e apanhou uma camioneta e foi trabalhar lá para umas pedreiras. E assim safou-se. O outro foi para Lisboa e lá ficou, criou lá os filhos e lá morreu. Ele e a 78

Apanhar, prender.

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mulher. E foi assim que eles se safaram da PIDE. Eles não tinham feito nada. Eles o que estavam era a protestar pelas oito horas. A gente juntava-se, os ranchos paralisavam e ali estávamos; e queríamos aquilo e aquilo mesmo. A iniciativa foi da malta, porque a malta andava muito saturada dos horários. Mas eu não sei quem organizou, porque eu não andava no campo. É capaz de ter havido alguma reunião na clandestinidade, agora quem a fez eu não sei quem foi. A guarda pôs-se em estado de sítio. A gente esteve três dias ali no posto. Depois mandaram a gente embora. Depois começaram a prender gente e a gente não se tirava dali. A gente estava a lutar por uma coisa que era nossa. Voltávamos à herdade, mas ficávamos parados. Estávamos lá a fazer frente ao patrão. Era preciso uma grande coragem a arranjámo-sa. Aqui sempre se falou de Reforma Agrária. Dizia que as terras estavam… Estavam como estão agora. Cheias de mato e de silvas, as oliveiras têm silvas até acima, ninguém apanha a azeitona, a azeitona fica aí toda podre dentro das herdades. E se a gente for apanhar uma manchêa prendem logo a gente, dizem que a gente vamos roubar. Mas eu não sei o que se passava na clandestinidade. Os homens iam e não queriam lá as mulheres. Os ricos todos maus não eram. Por exemplo, havia um que era assim: se ia com a telha, não dava a cara a ninguém, mas se ia bem-disposto dizia assim para a minha mãe: “Trás lá a bolsinha para te eu dar um alqueire de farinha para amassares para fazeres o pão para os rapazes. Trás lá a quartinha do azeite para levares algum.” Se havia feijão-frade no celeiro, se havia grão, se havia hortaliça, dava um pouco daquela coisa toda para a gente comer. Se tinha batatas espalhadas pelo celeiro dava-nos umas poucas. Havia outro, esse comia-se. Mas o irmão não se comia nada. Outros comiam-se de azeite e vinagre. A gente não dizia mal deles, tinha de dizer a verdade, porque eles não encaravam a nossa situação. Eles ricos e a gente pobres. Que andávamos aí a sofrer. Os manageiros não consentiam aprendizes, e eu não trazia a mãe para me ensinar o serviço, porque ela tinha o serviço dela para fazer, da roupa, não podia andar comigo. A vida era assim e quem sofria era o povo e eles não queriam saber. Eles iam para as praias. Eu conheço a Figueira da Foz, conheço Buarcos, mas é agora depois do 25 de Abril. Vou com a câmara. Eles levavam uma criada, mas era para estar a fazer o comer e mais nada. Com o 25 de Abril houve um período calmo, um período bom, a gente teve uma fase boa. Eu fiz parte de tudo. Eu fui espontaneamente, mas foi o partido que teve a ideia, não tenhamos dúvidas. Depois formámos a mesa da comissão concelhia e começámos a andar para a frente. Depois houve as ocupações. Eu nesse bolo não entrei. Eu entrei só no plano da creche. A dona da casa perguntava-me qual o motivo 123

que me levava a exigir uma casa para uma creche, se eu já tinha as minhas filhas mulheres. E eu disse-lhe: “Minha senhora, eu não quero que as minhas companheiras de trabalho tenham os mesmos problemas que eu tive.” Porque eu dentro de uma seara de trigo, a mondar numa herdade perdi a minha filha. E julgava que ma tinham roubado. Foi a minha filha mais velha. O manageiro pôs-me em cozinheira. E a menina ficava ali sozinha debaixo da azinheira com o pãozinho dentro do cesto e a bilha de água. E as pessoas que precisavam de água no rancho gritavam e eu tinha de agarrar na barrica de água à cabeça e ir dar água aos do rancho. E a miúda ficou ali. A oliveira estava tapada, eu atravessei a estrada e quando voltei para baixo já não encontrei a miúda. Tinham passado três ciganos e uma cigana e eu comecei a gritar que me roubaram a miúda. O manageiro veio e eu continuei a gritar que nem uma perdida. Ali andámos duas horas a bater aqueles montes. O trigo estava alto e ela tinha três anos e ficava tapada. Ela levou o cesto e meteu-se numa margem. Quando mudamos de direcção então encontrámos a miúda, já com a boquinha cheia de formigas. Estava a dormir. E eu agarrei-me a ela e já não fui capaz de trabalhar o resto da tarde. Já não larguei a minha filha. E foi isso que eu disse à senhora, por isso é que eu luto por uma creche. “A senhora a casa não lhe faz falta. Pagamos-lhe uma renda de casa e a senhora faz isso.” Depois houve uma escritura feita para ser ali a creche e a senhora ofereceu a renda da casa à creche, enquanto fosse creche79. Funcionou ainda durante alguns anos, depois acabaram com a Reforma Agrária… Agora há a creche da Misericórdia, porque foram buscar os utensílios todos que estavam lá. Nós depois formámos uma Comissão de Creche, fizemos um peditório e toda a gente deu. A mulher do advogado deu as caminhas dos filhos para lá. Muita gente deu as caminhas, as roupas, formámos a creche. Depois os médicos vinham fazer saúde às cooperativas e também davam apoio à creche. Não entrei em nenhuma ocupação, porque eu trabalhava na fábrica do leite. Nem eu nem as minhas filhas. Trabalhei sempre. De noite andava na luta quando era preciso. A gente estava a trabalhar, não podíamos largar o nosso serviço para ir para as ocupações. As ocupações eram feitas pelos trabalhadores da Reforma Agrária. E eu estava a dar apoio à Reforma Agrária na parte da creche. E também andei nas campanhas eleitorais. Com certeza, tinha de se fazer. Papéis, o partido a falar. Falei nas manifestações. Era sempre, quando era preciso. Se eu fazia parte da mesa concelhia, tinha de ser. Se uma pessoa enfrenta uma coisa que era o ideal dela, tem de a enfrentar em todos os aspectos. Para mim foi, foi o 79

Ver entrevista nº 9.

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melhor que me podia ter aparecido foi o 25 de Abril. A minha vida melhorou. Porque antes do 25 de Abril fui trabalhar para a creche antiga a ganhar 180$00 por mês e ainda tinha de pagar 30 da creche pela mais nova. Sabe uma dívida que eu fiz ao merceeiro, quanto eu lá devia? Quando eu fui trabalhar para o hospital, que saí lá da dita creche devia lá 600$00. E naquela altura era uma fortuna. Coitadinho, já lá está. Se por acaso há Deus, que lhe tenha um cantinho bem guardado. Sabe como eu paguei aquela dívida? Depois empreguei-me no hospital, que era um dinheiro certo, todos os meses tirava 10$00 para essa conta. E paguei-lhe a conta e ainda paguei as dívidas do meu marido de umas ferramentas de trabalho. A creche pertencia à cooperativa e eu participei. Eu era a responsável pelo fornecimento da creche. Tinha a responsabilidade das chaves, das compras, do que se comprava. Nas cooperativa passaram a ganhar todos o mesmo. Trabalho igual, salário igual. Os salários subiram muito. Ganhávamos 750$00, depois o salário mínimo veio aos 3.500$00. Havia hortas nas terras da cooperativa e cada trabalhador tinha o seu batatal e pequena horta. Muitos arranjaram as suas casinhas depois do 25 de Abril, que não as tinham. Eu nunca tive possibilidades para isso. Depois aquilo correu mal porque o governo esfacelou e foi tudo ao ar. A culpa foi do governo, ah, pois foi. Foi do Partido Socialista. Se o PS fosse mesmo da esquerda e se unisse com a esquerda, ninguém chegava à situação onde estamos. Quando foram as desocupações tivemos que resistir, mas não conseguimos. Em Marvão eu não fui porque estava de cama, mas foram as minhas filhas. Houve pedrada de todo o tamanho, cabeças partidas, mas a malta de cá não. Eu ia a todas, não faltava a nenhuma. O problema maior foi em Marvão e nas Vacas de Cujancas, ao pé do Gavião. Aconteceu que eles queriam arrasar a gente e a gente não deixou. Na fábrica fizemos lá um levantamento por causa do salário estar em atraso. Porque a gente havia de receber ao fim do mês e chegou ao mês e o dinheiro não vinha. E não quisemos trabalhar. Depois eu chamei a GNR. Não pensámos ocupar a fábrica porque, também, sabe, não éramos todos do mesmo lado. Porque se fôssemos todos do mesmo lado até éramos capazes de a ocupar. Mas como não éramos… Uns eram do PPD, outros eram do PS, outros eram do Partido Comunista. Portanto havia divisão. Só que o patrão foi lá e a gente não teve medo. Mandou chamar a guarda, mas o comandante do posto disse-lhe: “Então qual é o motivo que o senhor tem as pessoas encurraladas lá? E o senhor não sabe a quantos estamos? Se o senhor era para pagar até ao fim do mês, já estamos a 10 e ainda não pagou às pessoas… As pessoas podem reivindicar.” Depois houve aí uma greve qualquer, ele chamou a Comissão de Trabalhadores a Lisboa e eu fazia parte dessa comissão. Tinha um 125

escritório todo envidraçado, com um retrato do Salazar. Começou a dizer que o açúcar está caro e não sei quê. Mas era por causa duma máquina que avariou, caiu uma ferramenta lá para dento e ele estava desconfiado que foram os comunistas. Mas não foi. Foi um acidente de trabalho, porque o rapaz acabou por me confessar que se descuidou. Qualquer trabalhador tem um acidente. “Portanto, o senhor não esteja a levar isto para o lado dos comunistas.” Agora pertenço às comissões de saúde. Quando retiraram o horário completo ao Centro de Saúde eu organizei uma manifestação. Mas não deu em nada. Agora não temos cá nada que nos valha. A minha filha mais velha está emigrada no Luxemburgo. E a mais nova trabalha em Coimbra. Estão bem. O partido foi a melhor coisa que apareceu na minha vida, ia-me agora desligar de uma coisa de que eu tanto gosto? Tenho as minhas cotazinhas até ao fim do ano pagas. As minhas e as da minha filha que está emigrada. O partido é o partido. A Reforma Agrária é a Reforma Agrária. O partido não tem culpa. Os piores são os que não são comunistas, são clubistas. Têm boas casas, têm bons carros. E foi porquê? Por causa do 25 de Abril, porque eles antes do 25 de Abril não tinham nada. Alguns ficaram com o que não deviam, pois, com certeza. Eu é que não fiquei.

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16 – Trabalhadora rural. N. 1923, 75 anos. Esta casa é minha já desde vida do meu marido. Foi comprada e foi arranjadinha ainda em vida do meu marido. Eu sou nascida e criada cá na vila. Casei com 18 anos, muito novinha, não é? Mas não me arrependi de casar nova. Sempre fui pobre, sempre, a trabalhar muito, o que se podia. Mas nunca me arrependi. O meu marido era uma jóia de pessoa. Casámos só pelo civil. Naquela altura ainda não era tanto a igreja. Já havia quem casasse, mas era assim muito pouco. Os meus pais viviam numa casa arrendada. Eram trabalhadores rurais. Trabalhavam aqui onde ajeitava, no campo. E a minha mãe também trabalhava em casas de pessoas. Trabalho caseiro, doméstico. Nós éramos seis irmãos, eu era a mais novinha. A minha mãe teve nove e criou seis. E quando eu comecei a ter tacto o pai já não podia trabalhar muito, já estava cansado. Olhe, do meu pai guardei uma única fotografia, da minha mãe não tenho nenhuma. Pois não. Tantas vezes que a gente lhe pedíamos, nunca dava o jeito. As pessoas antigas… E a do meu pai foi apanhada com a grade, como se costuma dizer. Quando viu não se desmanchou. Foi assim: ao pé do jardim há um café. E noutros tempos era a Sociedade Artística. E o meu pai estava com outro fulano sentado num poial que já tinha sido uma porta. Alguém passou, até nem era pessoa da terra. Achou tanta piada aos dois velhinhos, que tirou uma fotografia. E depois essa fotografia veio para cá, tenho a impressão que foi para o carteiro, que depois deu-ma a mim. Olhe, o meu pai, já tão velhinho, com o cigarrinho na boca. A minha mãe ia trabalhar a um monte a arranjar roupa de empregados que lá havia, que a minha mãe era muito jeitosa para cozer. Abalava aqui da terra com uma canastrinha à cabeça com as coisinhas que eram precisas, levava uma das filhas que era muito doentinha ao colo e levava um daqueles meus irmãos que morreram. Havia um determinado sítio por onde passavam, onde havia muita lama, e que é que a minha mãe fazia? Canastrinha à cabeça, e uma menina ao colo e o outro às cavalitas. Está a ver? E então ali passavam aquele bocado de caminho ruim de lama, a minha mãe assim com eles, lá iam a pé. Os outros já andavam a guardar possivelmente um gadinho, uma coisinha assim. A minha mãe já tinha quase 50 anos quando eu nasci. Nessa altura a minha mãe ia fazendo umas coisinhas, mas não era como atrasado. A minha mãe tratava muito bem daqui dos nossos enchidos. Era muito falada em casa desta pessoa ou da outra e ia a casa das pessoas fazê-los. O meu irmão era moural de parelhas. Mandava no trabalho que as parelhas faziam, era ele que dirigia aquilo. E depois viveu lá no monte muitos anos. Foi criado

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justo. Ele tinha um lugar certo, pelo menos tinha as comedias80: tantos litros de azeite, tantos alqueires de farinha. E então, quando os filhos não eram muitos, essa farinha dava para um mês. Lá vinham mais uns litros de grão ou de feijão, uma coisa assim, e ajudava. Lá havia uma hortinha, o próprio patrão dava um terreninho para fazer uma hortinha. Ali se criavam umas batatas, ali se criavam umas determinadas coisas que ajudavam. Sempre era um bocadinho melhor que a pessoa que andava à jorna, francamente. Pelo menos neste aspecto. Até que os dinheiros não abonassem muito, mas pelo menos para pôr na mesa, sempre era um bocadinho melhor. Mas mesmo assim viviam muito mal. Quando a mulher adoeceu, tinha o filho três anos, a família não tinha nada. Depois os irmãos, tanto de um lado como do outro, é que tiveram de o ajudar a resolver os problemas de uma ida para Lisboa com a mulher. Que ele, coitadinho, estava muito desprevenidozinho. E quem andava à jorna tinha tempos muito ruins, sim senhora. Certas alturas iam à loja: “Sr. Fulano, dê-me cá, por favor.” Depois quando tinham trabalhinho lá iam ganhar e meter um bocadinho esta semana para ir pagando aquilo que já tinham comido. De maneiras que abonava sempre um pouco, porque, a determinada altura, para ir pagando aquilo que já tinham comido havia um remendo de sapatos ou umas botas… Tinham que se aguentar com elas muito estragadas, porque para pagar o que já comeram não dava para ir comprar as outras coisas. De maneira que era assim. Dantes usavam-se muito assim: qualquer mulher fazia um par de calças. E hoje já não é assim. Qualquer mulher arremendava81 umas calças, que até eram muito bonitas, arremendadas assim de costura a costura. A casinha dos meus pais ainda grande. Tinha uma cozinha, uma casa grande, e tinha a seguir um corredor. Havia outra casinha ao lado, que ali faziam uma casinha para uma arrumação. Havia por cima o quarto dos meus pais, havia o meu e das minhas irmãs. E o dos meus irmãos acontecia o seguinte: era uma esteira, feita de bunho, e quando eles, nem sempre dormiam em casa, mas quando dormiam, um colchãozinho ali em cima e depois umas mantas e uns cobertorzinhos escuros para se taparem. Levantavam-se, iam para o trabalho, aquilo era tudo enroladinho, tudo arrumadinho outra vez para o seu lugar. À noite, se era preciso, tornava-se a fazer o mesmo. Quando eles não dormiam em casa era porque estavam assim justos a trabalhar por fora, ou de semana, a trabalhar em trabalhos que eram de semana a semana. Abalavam à segunda e vinham ao sábado. Levavam a comida de casa. Levavam o seu aviadozinho. A mãe ou a mulher ajeitavam a coisa, lá faziam as 80 81

Comedorias, ver atrás. Remendava.

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divisões, isto é para este dia, aquilo é para aquele, e era assim. Os almoços eram umas batatinhas de azeite e vinagre, era um feijão-frade, eram umas sopas de cebola com batatas e feitas quase à hora. Sempre havia uns enchidozinhos. Pelos menos o bocadinho do toucinho ou enchido. Que nessa altura metiam na panela com um feijão, ou uns grãos ou um repolhinho. E metiam tudo na panela, um bocadinho de toucinho, com um bocadinho de morcela, que era mais barata que o chouriço. Temperavam e depois tinham um condutozinho, para comer com o bocadinho do pão em cima da sopinha. Em casa havia mais variedade. Eu fui à escola. Fui na idade própria, fui aos sete anos. Mas andei só na 2ª classe. Porque eu em casa não tinha quem me ajudasse e era um bocadinho, se calhar, burra. O meu neto diz que não sou burra, sou é pouco inteligente. Mas está a ver: eu fiz 11 anos já em casa de uma senhora. Fiz lá já os 11 anos e eu nem me lembrava. E a senhora é que me disse: “Tu fazes hoje 11 anos!” É claro, fiquei muito contente, ela lá tinha uma coisinha para me dar, e tal, dos 11 anos. Eu fui trabalhar, não foi porque fosse mal tratada, até arranjei umas pessoas muito amigas, mas não foi por gosto, foi porque a minha mãe não podia. Não é verdade? Quando uma filha se põe assim a trabalhar em casa dos outros, é porque a gente lhe custa a aguentá-la em casa. Eu dormia em casa da senhora. Olhe, ainda sei qual era o quartinho. Havia uma menina, que tinha menos seis anos do que eu. Brincávamos às vezes, não era? Tanto ela como eu. Brincávamos muitas vezes e às vezes até a calhar mal, mas a senhora fechava os olhos. Era assim, era. Acho que todas as crianças daquela idade já gostam de fazer as coisas bem feitas e de trabalhar. E já não gostava que me sujassem aquilo que eu lavava. Estive lá até talvez aos 13 ou 14. Uma coisa assim. Não me mandaram embora! Depois, é claro, comecei a gostar também de ir trabalhar para o campo, e aprendi tudo! Aprendi a ceifar, fui à azeitona. Fiz tudo, tudo o que se fazia naquela altura. Não apanhei arroz, não apanhei tomate, que ainda não se fazia, agora apanhar azeitona, apanhar grãos, mondar, ceifar, fiz isso tudo. Custava um bocadinho, mas a gente, como raparigas novas, gostávamos de fazer tudo. E então fazíamos aquele sacrificiozinho, mas fazíamos. Foi a trabalhar no campo que eu conheci o meu marido. Estávamos, por acaso, a ceifar. Quando decidimos casar arrendámos uma casinha, claro. Ele também era trabalhador rural, mas ele agradava toda a gente. Desempenhava o seu trabalho e toda a gente gostava muito dele. Já havia faltas de emprego, de vez em quando havia. Mas, como em todas as coisas, há umas pessoas que andam mais apontadas para o bem, e outras para o mal. Para aquela pessoa que era mais trabalhadeira, desempenhava melhor o seu papel, tanto nuns trabalhos como 129

noutros, havia sempre, não é verdade? E então essa pessoa… A que desempenhava mal, quando havia falta de trabalho é que andava sempre fora. E a que fazia melhor e que fazia por tudo, quando havia trabalho era sempre a mais perguntada82. Então, quando a gente estivéssemos parados, estava toda a gente. Eu tinha já 26 anos quando nasceu o meu filho. Estava já casada há oito anos. Nunca houve nenhum problema, era uma questão de opinião, porque a vida era ruim. É claro, uma vez que a vida era assim ruim, se houvesse filhos era pior, não é verdade? Então, fazia-se tudo por tudo para que não acontecesse. Chegou à altura que aconteceu e aconteceu mesmo. Nem foi de propósito, nem nunca se deu cabo de nenhum que se arranjou. Quando apareceu, apareceu. Mas às vezes também saturava. E lá na minha rua onde eu vivia, para onde eu me casei, donde o meu filho nasceu, havia lá uma fulana que tinha quatro filhos e então dizia: “Ó rapazes, sumamse daqui, vão-se embora!” Tudo satura. Por isso é que o meu filho foi só aquele e nunca tive desmancho nenhum, nunca fiz nada que desse cabo de algum que tivesse feito, mas evitá-los sempre. Porque eu até tinha pena de ver aquela maneira. Porque o meu filho era sozinho, chegava a casa da minha irmã, ele era ali acarinhado, porque era sozinho. Chegava a casa dos meus sogros, acontecia o mesmo. A casa da minha mãe, mesmo com a miséria, mas era só aquele menino. E se fossem muitos: “Ó rapazes, vão brincar, ponham-se a mexer!” É assim mesmo. Eu via o que acontecia com aquela mãe, todo o dia, ou ia ceifar, ou ia à azeitona, deixava ali quatro rapazes. À noite quando vinha, uns tinham a cabeça partida, outros estavam todos ranhosos, outros estavam… E o meu, como menino sozinho, já não estava assim. E era isso que eu tinha medo que acontecesse. E os outros, coitadinhos, viveram e tudo se passou, mas sofreram muito. O meu filho hoje trabalha em Lisboa, trabalha nos seguros. Estudou cá, tirou cá o 5º ano83, e depois foi para o Instituto Industrial em Lisboa. Mas nessa altura já a nossa vida estava um bocadinho melhor, o meu marido meteu-se a vender lotaria, e eu a ajudá-lo à mesma a trabalhar no campo quando podia. Os homens ganhavam mais, olhe, veja lá, 7$00 por dia. O que é que aquilo podia abonar? A mulher ganhava 2$50 durante cinco horas de trabalho. Em relação a hoje, o dinheiro de hoje vale umas poucas de vezes mais, mas mesmo assim 25 tostões, o que era? Quando eu me casei era assim. E a gente íamos fazer cinco horas a apanhar grãos, ou a ceifar era um bocadinho mais. As pessoas que tinham preciso do trabalho feito arranjavam uma pessoa que se encarregasse. E esse encarregado falava aos fulanos ou às mulheres.

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Procurada para trabalhar. Actual 9º ano de escolaridade.

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Eles passavam, viam esta pessoa assim, aquela pessoa amiga: “Olha, queres ir, olha que fulano veio-me falar, precisa de tantas mulheres, vê lá se queres ir também?” “Pois sim senhora, quero!” E os homens, esses então é que se juntavam nos cafés, nas tabernas, e era assim. Aparecia este fulano que precisava de dois, três homens. E diziam-lhe que fulano precisa de trabalho e outro também precisava. Era assim. O meu marido trabalhou no campo até tarde, é claro. O meu filho tem hoje 48 anos, ele devia ter uns seis aninhos quando o pai deixou de trabalhar no campo. Porque andava cansado. Cansado, porque era aquela pessoa, pronto, o trabalho rural era muito custoso, já tem ouvido mais alguém a dizer o que eu digo. Ele era aquela pessoa que não gostava que olhassem para ele e fazia tudo por tudo para ninguém ter que dizer. E então o meu sogro é que conheceu um fulano que aí havia que vendia lotaria. E depois foi o meu marido fazer isso. E foi quando a nossa vida melhorou um bocadinho. Ele andava pela rua e de terra em terra. Tinha uma bicicleta a pedais e ia daqui às outras terras. Depois quando a nossa vida melhorou um bocadinho ele tinha pena que eu andasse assim no campo. E havia além um fulano, que tinha ali uma casa, e ele, como era muito amigo do meu marido, então passou a casa para o meu marido. E ali formámos um negociozinho a matar porcos, a arranjar carne, a vender carne, umas frutas, enfim, formámos ali a nossa vidinha, que ali estivemos enquanto pudemos trabalhar. O marido ia à cidade, conseguimos arranjar um carrinho. Ele carregava o carro, trazia para aqui, vendia aqui, depois, por motivos de doença deixou de poder fazer. O meu marido era comunista, mas nunca foi a reuniões. Ele era amigo do chefe da cooperativa. Depois do 25 de Abril já toda a gente trabalhava sem medo, mas antes disso não. Pois, com certeza que as pessoas tinham medo. Que a pessoa tivesse a sua maneira de ver, mas, coitados, também tinham amizade à pele. E então tinham medo, porque até um fulano que tivesse uma taberna e que alguém falasse sobre essas coisas, estava sujeito a encerrarem-lhe a casa. Que eu tinha o marido da minha irmã que tinha uma taberna. E muitas das vezes as pessoas lá em casa falavam. E até só que se queixassem que “Isto não está bem, o nosso governo…” desta maneira e da outra, e tal. Se alguém desse por isso, era logo contado lá a quem eles entendiam e essas pessoas eram logo apanhadas, eram presas. E o meu cunhado pedia-lhes às pessoas, quando estavam com essas conversas: “Olhem, por favor, se são meus amigos, não falem assim aqui na minha casa.” E então havia muitas pessoas que eram, mas que escondiam-se, não se abriam como agora depois do 25 de Abril. Que agora ao menos sabiam que podiam falar e que ninguém lhes fazia mal, não é verdade? E eu até acho bem, porque cada 131

um tem a sua cabeça, tem os seus pensamentos, e é livre para dizer aquilo que pensa. Na altura ele como homem, e eu como mulher em casa, ia a qualquer lado como outro qualquer. As pessoas trabalhavam muito, é verdade, via-se, mas sentiamse felizes porque ganhavam mais e compravam mais aquilo que precisavam. A mim nunca me aconteceram essas coisas, não é? Não trabalhei na Reforma Agrária, não fiz nada disso, trabalhei sempre na minha casa e trabalhei para todos e com todos, dentro da minha casa. Na minha casa eram todos bem recebidos, os que eram dum lado e os que eram do outro, eram todos bem recebidos. De maneiras que toda a gente ia à minha casa. Na altura quando começaram sim, senhora, as pessoas compravam o seu aviadozinho e pagavam mais do que antes daquela altura. Agora as pessoas podem falar o que querem… Foi uma das coisas boas que o 25 de Abril trouxe. Há coisas ruins, há coisas que já abusam, mas dentro da ordem… Olhe, acabar com a guerra no Ultramar. O meu filho estava quase a ir. Foi uma das primeiras, eu já estava, eu já andava a não dormir. Portanto, essa foi a principal. E depois por aí adiante, as pessoas poderem dizer o que sentem. O que trouxe de mau foi essas coisas de faltarem ao respeito às pessoas, sem mais nem mais. Mas são as pessoas que abusam, não foi o 25 de Abril que teve a culpa. Quem teve a culpa são as pessoas que se aproveitam da liberdade que tiveram. São mal formados. Agora, se soubessem respeitar e viver como devem…

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17 – Trabalhadora rural, empregada doméstica, emigrante. N. 1923, 75 anos. Olhe, minha menina, eu vivia com muitas dificuldades, filha. Muitas, muitas. Sofremos muito porque o meu pai era muito pobre. Os meus avós eram trabalhadores rurais. O meu avô foi um homem que trabalhou a guardar gado. E depois teve uma paralisia numa perna e não pôde mais trabalhar. Andava por lá, na sopa dos pobres. Agora a minha avó já não foi do meu tempo. Quando a minha mãe estava para casar a minha avó morreu e deixou quatro filhos. Depois a minha mãe já não queria casar, queria ficar a olhar pelos irmãos. Mas o meu pai não se importou. Era tão bom o meu pai. Disse: “Não, faz de conta que são três filhos que a gente leva”. Então a minha mãe casou e os meus tios foram todos para casa da minha mãe, viveram lá sempre. O meu tio José morreu aqui em Lisboa. Era Guarda Republicano. O meu tio Germano trabalhou muitos anos à dum lavrador, a servir à mesa e fazer muitas coisas. Tinha muito jeito para fazer comer, também ajudava à cozinheira. E a minha tia Antónia foi toda a vida criada. Eu nasci num monte. O meu pai trabalhava lá com as parelhas, era moural das parelhas84. Trabalhava o ano inteiro. Eu saí do monte talvez tivesse dois anos, porque o mau pai arranjou para ir para outro lado. Desgostou de estar lá. Vim então para a vila e depois o meu pai começou a trabalhar por conta doutro lavrador. Ele tinha terras e o meu pai esteve aí 12 anos a trabalhar por conta dele. Lavrava as terras, debulhava. A eira era cá em baixo ao pé da fábrica, mesmo ao pé do lagar. Lembrome tão bem do meu pai me pôr em cima do trilho e andar com ele a debulhar o trigo. Morávamos numa casa alugada. Eu nunca tive uma casa na terra. Nunca. Depois o meu pai começou a estar doente e arranjou para ir para a Câmara. A vender água, andava a entregar água. Era aguadeiro. O meu pai morreu cá em Lisboa, dum cancro, no fígado. Ele veio aqui para o hospital de S. José, e depois ali é que ele morreu e está enterrado nos Combatentes da Grande Guerra, no Alto de S. João. Porque o meu pai fez a Guerra da França, 1914. Ele veio com aquelas coisas de estômago e assim. Quando o meu pai morreu eu tinha 14 anos. Também andei descalça, minha menina. Andei descalça e o meu irmão também. O meu irmão menos tempo, porque já veio assim numa era mais avançada do que a minha, era mais novo quatro anos. Os meus pais tiveram quatro filhos, mas morreram dois. Ainda me lembro do segundo, morreu com três ou quatro aninhos. A minha mãe já não tinha mãe e o pai não podia porque estava doente. E do lado do 84

O maioral das parelhas era o encarregado principal das parelhas de muares, ver atrás.

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meu pai a minha avó era muito ríspida, nunca quis saber de netos nenhuns. Não ajudava a ninguém. Naquela altura que eu a conheci já não trabalhava fora, trabalhava só em casa. E estava a tomar conta de quatro netos. Tomava conta daqueles, só da filha, porque nunca quis saber dos filhos dos filhos. Nunca. Nem de mim, nem do meu irmão, nem do meu tio. Não tenho boas recordações deles, nenhumas! Então, da parte da minha mãe não tinha, porque a minha avó já tinha morrido. E o meu avô, esse lá falava à gente, mas, coitadinho, andava ali com uma bengala, sempre muito mal… E morreu já eu era crescida. Já tinha aí os meus 15 anos quando ele morreu. Lá em casa comíamos uma sardinha partida por três, quando eu estava em casa. Era para mim, para o meu irmão e para a minha mãe. E um bocadinho de pão quando havia. E o café, sabe onde a gente ia buscar, minha menina? A uma mulher que tinha um café e a minha mãe ia lá buscar as borras para fazer o café. O meu pai, no princípio, quando começou a estar doente, não teve ajudas de ninguém. Andei na escola até fazer a 3ª classe. Só tive três anos de escola, menina. A D. Clara, a professora, dava-me os livros. Eu não podia comprar livros. Era a D. Clara que mos dava, isso é verdade. Era a D. Clara que me dava os livros e os lápis, já partidos, mas lá mos dava para eu poder fazer qualquer coisa. E teve muita pena de eu me ir embora da escola. Porque ela dizia que eu aprendia bem. Mas eu já não pude fazer a 4ª classe. Eu queria muito fazê-la, mas já não pude. Não pude porque o meu pai adoeceu… Quando eu saí da escola tinha nove anos. Fiquei em casa e depois aos 13 fui servir. Eu tive logo de ficar em casa porque o meu pai adoeceu e eu tinha de ir buscar o leite, tinha de ir buscar as coisas para o meu pai. Porque ele só bebia leite e a minha mãe não podia. E eu fiquei logo em casa. Eu gostava muito de ir à missa, mas quando a D. Clara dava a catequese, eu devia ser muito burra, que não entendia nada. Nunca aprendi. Aprendia as orações, mas nunca aprendia aquelas coisas que é bonito na catequese. Quando estava a trabalhar nas casas das patroas, ao domingo ia ao talho, deixava lá o pedido para ser aviado e fugia para a missa, que gostava muito de assistir, às escondidas. No fim ia buscar a carne. Eu gostava muito de ir à missa da Matriz, gosto muito daquela igreja, ainda hoje. Fiz a Primeira Comunhão. Eu hoje, vou-me deitar e posso estar muito cansada e com vontade de dormir, mas nunca me deito sem rezar os meus PadresNossos, Avé-Marias e Santa Maria, todos os dias. O meu marido não. O meu marido nem quis casar pela igreja, só casámos depois, no Norte. Baptizámos os filhos pela igreja. Mas os meus filhos foram baptizados depois no Norte, não foi aqui. Porque a senhora em que eu estava a trabalhar era muito católica e ela é que foi madrinha do casamento pela Igreja. 134

A minha mãe trabalhava no campo. Mas depois a minha mãe começou a andar doente, e eu fui servir com 13 anos. Fui trabalhar para casa de uma senhora. Era ajudante, fazia a limpeza, ia aos mandados, fazia assim umas coisas. E depois saí de lá, porque ganhava pouco. Ganhava-se pouco, pois. E então fui servir para casa do meu padrinho, o médico. Fiquei aí sete anos. Trataram-me sempre muito bem. Não tenho nada que dizer. Nas casas é que eu comia bem. Comia sopas, muitas sopas, de pão e de peixe… Não me posso queixar. Onde eu estive a servir ninguém me tratou mal, e a trabalhar a dias toda a gente me tratou bem. Quando trabalhei no campo eu ia muitas vezes lá ao monte e o patrão dizia-me assim: “Queres levar um melão para a tua mãe, queres levar uma melancia?” Pois dava-me e eu levava. Não tenho razão. E eu era sempre a primeira quando me chamavam. Quando havia trabalho. Quando não havia trabalho, certo é que não podiam dar trabalho. Mas quando havia era a primeira a baterem-me à porta a ver se eu queria trabalhar. Eu não tenho muito que dizer dos ricos. A minha mãe era doméstica, também trabalhava fora. E também trabalhava no campo, como eu fazia: ceifava, mondava, apanhava legumes, também fazia tudo. Depois começou a ser muito doente, e eu estava já na Austrália, estava na Bélgica. Embora soubesse, mas não via as dificuldades que a minha mãe passava. E foi muito ajudada pelos antigos patrões, que lhe davam dinheiro. Ela estava com o meu irmão, mas o meu irmão depois morreu e ela ficou sozinha. Só depois é que soubemos dessas ajudas. A minha mãe vivia numas casas atrás da igreja. Eu também vivi aí quando era solteira. Ainda estive aí a viver. Numa casa que não tinha condições nenhumas, tinha uma cozinha, onde se comia, onde se fazia tudo… Muito tempo trabalhei no campo. E depois quando fui para à do médico, sabe o que fazia? De manhã trabalhava, na altura de apanhar legumes, feijão, grão e assim. De manhã eu ia trabalhar, para ajudar a minha mãe. Eram cinco horas da manhã. E depois vinha às 10. Íamos a pé. Andava o manageiro, que era um tio meu, eram vários, mas aquele era o que ia sempre com a gente. Também havia um feitor, chamavam-lhe o abegão. Mas também nunca tive razão desse homem. Muita gente dizia que ele era ruim, mas eu nunca tive razão dele. A gente andávamos a apanhar uvas e roubávamos uvas, era verdade. Mas para a gente comer, não era para trazer para casa, Deus me livre. A gente andávamos a apanhar e não tínhamos ordem de comer senão à hora da refeição. A gente trabalhava e levava a gente o comer. Mas eu, e muitas, a gente apanhávamos aquelas muscateles, metíamos dois ou três bagos

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na boca… E muitas vezes abegão chegava: “Ó velhaca, não faças isso, tu estás aqui muito bem vista, vê lá, depois ficas aí mal vista por causa de uma porcaria”. E eu: “Ai, desculpe lá”. Depois tornava a ver-me outra vez. Eu fazia isto muitas vezes. Eu e toda a gente. Depois comecei a pensar: “A gente come tantas ao almoço…”. Mas é que as uvas nos tentavam, eram tão boas… Eu comia três ou quatro bagos. Trabalhava cinco horas de manhã, e à tarde ia à do médico. Ela era muito boa, a senhora. Eu deixava batatas descascadas hoje, e feijão verde para amanhã para o almoço. E ia trabalhar aquelas cinco horas. Levantava-me muito cedo, o meu tio ia bater à porta, e ia trabalhar. E depois, quando chegava, ela já tinha os lumes acesos, coitadinha, ela era muito boa, punha as águas ao lume e quando eu chegava era só lavar as mãos, mudar de roupa e começar a fazer o almoço. Depois trabalhava ali até às tantas e depois não me ia deitar sem deixar outra vez coisas adiantadas para o outro dia. Para ter dois ordenados, porque eu ganhava 75$00 por mês em casa do médico. E ganhava 2$50 por manhã a apanhar qualquer coisa, legumes ou feijão ou grão, ou milho ou qualquer coisa. Isto para ajudar a minha mãe, que era para a minha mãe se poder manter ali com o meu irmão, que era mais novo do que eu. O meu irmão era muito doente, partiu a perna por duas vezes, partiu um braço. Depois tinha ataques epilépticos. O meu irmão não podia trabalhar muito, depois é que começou a andar melhor, veio aqui para Lisboa, começou a trabalhar aqui. Meteram-no aqui. Eu tenho a impressão que foi o meu padrinho é que fez o pedido. Pediram para ele começar a trabalhar aqui nos carros da câmara. A andar no lixo. E depois fartou-se de andar aqui, começou a andar sempre com ataques epilépticos e coisas assim. Então voltou para a vila e lá é que ele morreu. Tinha 38 ou 39 anos. Há pessoas que dizem mal dos patrões por tudo e por nada, não pode ser. E dantes também havia. Eu não tenho nada a dizer dos patrões. É que não tenho mesmo nada. É porque: ganhávamos pouco. Ganhávamos todas igual. Eu não me podia queixar. A gente pedia, às vezes pedia para ganhar mais. Eles davam mais 2$50, ficávamos todos contentes, pois claro. O meu patrão era compreensivo. E diziam muita mal dele. Eu nunca tive razão daquele homem. Diziam que ele era uma pessoa que muitas vezes dava trabalho, mas era a troco de muitas coisas. E eu nunca tive razão. Chegava a estar, eu e mais pessoas no celeiro a debulhar feijão ou qualquer coisa. Ele nunca me faltou ao respeito. Eu tenho a impressão que as pessoas… Ele só faltava ao respeito quando as pessoas lhe davam trela para isso. Porque se não lhe davam trela para isso, as pessoas não se metem de cara a cara. Ele metia-se com as mulheres. Ele ainda teve duas amantes que eu conheci e saíram 136

lá do rancho. É verdade, saíram de lá. Mas se elas não quisessem ele não as obrigava. Tenho a certeza absoluta, não obrigava. Então como é que ele obrigava? Uma era viúva. Ele foi amante dela muitos anos. E foi quem lhe ajudou a criar os filhos, também. Ela ficou com três filhos quando o marido morreu e então ele ajudoulhe a criar os filhos. E a outra era a Luísa, não sei o segundo nome dela… Ela tinha uma casa e ele montava-lhe tudo. Ela tinha tudo lá em casa. Mas trabalhou sempre por conta dele. Sempre, no trabalho do campo, andava no campo. Mas a gente via, porque ela ficava para trás… A gente sabia, mesmo ela dizia que era amante dele. Ficava para trás, depois a gente deixava de a ver, e a gente já sabia que ela ia ter com ele. Ele passava no trem e depois ela ia ter com ele. Mas isso são coisas que a mim não me interessavam. Ele a mim nunca me tratou mal. Tenho mais a dizer dos manageiros, como um que era por conta dum lavrador. Ele era lá o feitor. Esse homem é que era mau, mais que o patrão. Quanto mais a gente trabalhava, mais ele queria, nunca estava contente. E, claro, ainda éramos todas muito novas, tudo raparigas novas. E a gente dizia: “É, pá, este ainda é muito pior que o patrão! O patrão está sempre contente, ri-se para a gente, está sempre contente”, mas ele era um egoísta! Esse homem! A mulher não dizia nada, essa era sempre cozinheira, estava sempre debaixo duma árvore a fazer a cozinha para a gente. Depois quando acabava a cozinha tinha de ir trabalhar. Mas eu não tenho nada a dizer dos patrões. Foram pessoas que sempre me ajudaram, deram-me sempre o trabalho que eu queria. Eu disse: “Olhe, eu cá só posso fazer as manhãs”. Porque elas faziam as manhãs, que eram cinco horas de manhã, mas depois iam de tarde para outro lado por conta do mesmo patrão. E eu disse: “Olhe, eu não posso, porque eu estou a servir e venho fazer estas horas só para ajudar a minha mãe.” Nem foi preciso falar com o meu tio, falei directamente com o patrão. Disse: “Está bem, rapariga.” Aos domingos não trabalhava. Mas ao sábado trabalhávamos sempre. Sempre. O dia todo. Desde as oito da manhã, desde o nascer do sol até ao pôr-do-sol. No Natal, estava a servir, tínhamos também um bocado da parte da tarde, ia para casa da minha mãe, um bocado. No Carnaval também. Mas quando andávamos a trabalhar no campo não tínhamos natais. Era só o dia 25 e mais nada. Andávamos a trabalhar sempre. Andávamos na azeitona naquela altura. Pois, andávamos sempre a trabalhar. A vida era assim. Minha menina, olhe: eu não sei o que é que será melhor… Agora está tudo muito bem, sim senhor, a vida melhorou muito, eu estou contente que a vida melhorasse. Mas há coisas que agora, menina, não gosto muito. Porque há muita liberdade, e a liberdade também dá cabo das pessoas. Porque quando nós tínhamos 137

mais controlo, não nos deixavam falar tanto, não dizíamos tanta coisa, era talvez melhor. Não tanto quanto no outro tempo, era talvez já demais. Mas agora também se dizem coisas horríveis. E já se faz coisas que não se deve fazer. Há muitas coisas que para mim não estão certas. Porque há liberdade demais. E a liberdade aqui para o nosso país veio depressa demais e nós não estávamos preparados. Porque agora as pessoas julgam-se todas iguais umas às outras, mas não são iguais umas às outras. De carne e osso, é claro que somos, e ao morrer somos todos iguais. Isso é verdade, mas temos de que ver que uma pessoa que teve uma vida melhor que nós, que é muito mais educada e que é muito mais civilizada… Nunca podemos estar ao nível dessa pessoa. A minha madrinha também foi muito boa para mim porque morreu-me um filho na casa da madrinha, debaixo da varanda. Eu morei aí. Lavava a roupa lá de cima, quando me casei. E depois morreu-me aí um menino com seis meses, com garrotilho85. É uma doença que não tem cura. Aquilo foi de repente: ele estava bom às seis da manhã, quando foi às duas da noite morreu. É uma coisa que dá na garganta, naquela altura morriam muitas crianças assim. E ele tinha seis meses, coitadinho. Ainda me lembro da minha madrinha. O meu menino foi embrulhado com uma toalha que ela me deu, lembro-me tão bem como se fosse hoje. Ajudou-me muito. O meu marido também esteve sem trabalho e eu estive lá muito tempo. Só que depois saí de lá porque eu não podia lá viver, porque só via o meu menino por todo o lado. E depois a minha tia deu-me uma casa. Aí é que eu morei também. Aí é que o meu filho nasceu, mas com muita dificuldade. Foi tirado a ferros. Foi lá o médico, foi. Sofri tanto quando o meu filho nasceu que não faz ideia. O meu marido trabalhava no campo. Trabalhava no lagar, também. Mas depois começou-lhe a faltar o trabalho… E depois daí fomos para Coimbra, estive lá dois anos. A minha filha já não nasceu na terra, nasceu no Norte. Porque eu saí da vila tinha o meu filho quatro meses, e fui para Coimbra, para casa do meu padrinho, o médico. O meu marido era jardineiro lá numa quinta no Norte, cultivava, apanhava a azeitona, apanhava a bolota. Fomos para a Cova de Mira, foi aí que a minha filha nasceu. Ela também nasceu em casa. Depois vim para Lisboa, trabalhei nas casas das senhoras. Quando eu fui para a Bélgica foram os patrões que me emprestaram o dinheiro. Eu depois paguei. Eu estive na Bélgica durante oito anos e estive na Austrália 30. Eu ainda hoje me escrevo com as minhas patroas, foram todas boas para mim. 85

Angina diftérica, a vacina só foi desenvolvida depois da Segunda Guerra Mundial.

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O meu filho ficou cá e a minha cunhada mandava-me fotografias. Eu punha as fotografias ao pé dum pote lá na cozinha. Tinha a minha filha comigo, ela foi comigo logo, com oito anos. O meu filho tinha nove anos, sofreu muito. A minha cunhada, Deus a tenha em descanso, bateu-lhe muito, porque ele, uma senhora meteu-o na Escola do Ardina. Porque eu trabalhei na Escola do Ardina e daí é que veio o conhecimento de ir para a Bélgica. Eu ia para lá trabalhar sábado e domingo a limpar a escola. Ela foi-se embora para a Bélgica e perguntou-me se eu queria ir. Arranjoume este contrato com uma senhora. Mas eu só podia levar uma filha. Ainda hoje tenho o contrato em casa. Está lá o nome da minha filha. Eu disse que sem o meu filho não vou. Mas depois pusemo-nos a pensar que a vida agora estava mais difícil, com duas crianças. Eu tinha 32 anos quando fui para a Bélgica. Depois eu disse que sim, que ia. Tratei do passaporte e fomos embora. Ele ficou cá, ficou em casa da minha cunhada, mas a minha cunhada foi muito ruim sempre para ele e o meu cunhado também. Porque ele trabalhava, estava na escola do Ardina e vendia jornais. Mas eles não queriam que ele vendesse jornais. Ele vendia para ganhar 10 tostões ou 2$50. Ficava muito triste quando os tios não o deixavam vender. Ele queria ser útil, queria ajudar. Depois passaram 15 meses e eu mandei-o ir. E lá esteve muito bem. Quando chegámos à Bélgica a minha filha foi logo para um colégio. A gente diz que aqui é ruim, mas quem é emigrante também sofre muito. Mas foi aí que eu sofri mais… Comecei também a trabalhar na Embaixada da França. Depois trabalhei na Embaixada da Irlanda 10 anos: quatro horas num lado e quatro horas no outro. Ia um táxi buscar-me. Estava na Bélica, fiz muito mal em ter mudado para a Austrália, porque, olhe, é muito longe, estou muito longe da minha família, ao passo que, se estivesse aqui, de uma hora para a outra, de um minuto para o outro ia lá. Assim já não pode ser. Porque é muito longe e as viagens estão caríssimas. E mesmo os belgas são muito mais acolhedores do que são os australianos. Os australianos são muitos desprendidos, não se importam que a pessoa esteja mal ou esteja bem, não são pessoas como os de cá. Tivemos sempre uma vida de muito trabalho. Mas, enfim, também ninguém me tratou mal. Mas eu gostava muito mais de estar na Bélgica. E até lhe digo uma coisa, menina, eu trocava quase o meu país pela Bélgica. Talvez porque foram os primeiros passos que eu dei quando saí de Portugal. Depois comprei o meu andar, lá na outra banda. Nunca quis ir viver para a terra. Gosto muito de lá ir, ainda na semana passada estive lá. Mas viver lá não queria

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lá viver. São pessoas já muito mais novas do que eu, que eu parte das pessoas já nem as conheço. Da minha geração já não há lá quase ninguém. Eu, como estive muitos anos no estrangeiro, já não me habituava. Gosto muito mais de viver ali onde vivo, ali ao pé de Almada, e de vir a Lisboa visitar as minhas amigas, que ainda hoje somos amigas como irmãs. Os meus filhos já são os dois muito velhos. Ele é professor daquela escola de tintas, de preparar as tintas para os carros, para ensinar os miúdos. Olhe, minha menina, mas ganha muito bem, e está todo o dia ali a uma secretária, não anda ali a pintar como ele andava dantes, porque ele era, o ofício dele era pintar. E arranja carros. Porque ele compra carros usados e depois leva-os para casa, para a garagem, e tem um outro amigo que trabalha com ele. Um é bate-chapas, o outro é pintor. O mal do meu filho é os filhos não serem como ele ou como eu, que trabalhei até aos 70. Ou até como o meu marido, que não vale nada, mas é muito trabalhador, ainda hoje. Já sou bisavó duas vezes. A minha neta agora saiu de casa, sempre foi muito trabalhadora. Trabalha e estuda. Está na Universidade. E está a trabalhar na companhia aérea, por isso é que ela veio agora cá ver-me.

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18 – Proprietário agrícola. N. 1916, 82 anos. Eu nasci num monte, perto da sede do concelho. Os meus pais eram os donos da propriedade onde eu nasci. Tinham outras de renda e tinham outras deles. Tinha uma irmã mais velha, dois irmãos mais velhos e uma irmã mais nova que vinha comigo à escola, era um ano mais nova. Íamos todos os dias para a escola de burrinha. A burrinha era o meu transporte, nesse tempo não havia muita coisa. Fiz a 4ª classe e a minha irmã também. Fiz ainda o 1º ano86, depois é que desisti. O meu pai depois arranjou-me uma herdade no concelho vizinho, e eu já não queria estudar. Queria era ovelhas e gado. Começou a comprar ovelhas e gado, coisas para levar para lá e eu andava entusiasmado com aquilo. Não queria estudar mais, queria era aquela vida. Fui ajudar nos serviços agrícolas aos meus irmãos e ao meu pai. Fazia o que podia fazer. Nós tínhamos muito empregados, sempre, todo o ano: o homem das ovelhas, o homem das vacas, o homem das cabras, o homem que trabalhava com as parelhas, o dos bois, etc. E eu ajudava, por exemplo, no monte à minha mãe, à criada, trazia lenha para casa, a água para casa, com os meus 12, 13 anos. Depois quando cheguei aos meus 15 anos, os meus irmãos já trabalhavam no campo com as vacas, ou com as parelhas, eu tentava fazer. Tentava lavrar, com as parelhas. A levar o pão87 da seara para a eira para ser debulhado. Trabalhos do ano. E quando às vezes na ceifa era preciso meter mais gente contratávamos para ceifar. Depois no tempo da azeitona outra quantidade deles para apanhar azeitona. Era assim. Os ranchos, contratava-se um rancho de cá. Arranjava-se um homem para contratar os outros. Ele era, por exemplo, um criado meu: “Arranja-me um rancho de mulheres e de homens”. E ele ia ver, ia ter com eles. Era o manageiro que manda nos outros homens. Nunca mandei vir ratinhos. Havia quem os chamava e vinham eles. Havia um que já conhecia parte dos lavradores e vinha na altura das ceifas, vinha ver qual era o lavrador que lhe dava mais dinheiro. Depois trazia o número de pessoas que esse lavrador queria. Chamavam-se os ratinhos, que eram da Beira. No meu tempo já poucos para cá vinham. Os do rancho traziam a comida. É como hoje, trazem a comida para o dia. Os criados comiam cá. Havia os criados a comer em casa do patrão. E havia os criados a comedorias. Dava-se o azeite, a farinha e os grelos ou o feijão ao fim do mês. Quando era solteiro e em casa da minha mãe e do meu pai havia os que comiam em casa e por isso tínhamos de ter uma criada ou duas para fazer a comida para essa gente toda. Eram umas açordas, era feijão com couve, dávamos-lhes tudo. Também para 86 87

Actual 5º ano de escolaridade. O cereal.

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variar, não era sempre a mesma coisa. Comiam o mesmo que nós. Se num dia se dava feijão com couve, nós lá em casa comíamos feijão com couve também. Se ia fruta para eles, ia fruta para nós também, da mesma maneira. A história da meia sardinha, isso é tudo conversa, isso não era assim. Mas quem é que ia agora cortar uma sardinha para dar a um homem? No meu tempo isso nunca aconteceu. Quando eu comecei a conhecer-me nunca vi notícia de meia sardinha. Se isso se deu, estou convencido até que deu, porque eu ouvi falar nisso, mas foi noutros tempos. A coisa foi melhorando a pouco e pouco. E hoje até já se nota uma diferença muito grande de aqui há 40 anos atrás. Já se vive melhor que aqui há 40 anos. Com o meu pai, quando eu era rapaz já tinha gente a comer. E comiam carne, comiam queijo, comiam azeite, era o que havia em casa. Por exemplo, açorda. Se a açorda era com bacalhau, lá havia postas de bacalhau para todos. Ainda me lembro, quando eu comecei a trabalhar com os meus 15 anos a dar molhos aos homens dos carros, éramos quatro, levávamos quatro carros. Éramos nós, três filhos e um criado. Eram quatro carros e depois tínhamos quatro ajudantes. Eram os que andavam a guiar os animais, que andavam lá em cima dos carros, e os que davam os molhos para lá. Portanto, éramos oito pessoas, cada carro tinha duas pessoas. Era o que conduzia e o que carregava o carro e depois arranjava lá em cima. Nós começávamos às duas horas de noite, a aproveitar o fresco da noite, do Verão, que era um calor… E depois durante o dia estávamos mais horas à sombra. De maneira que ao nascer do sol estávamos na eira a descarregar uma carrada. Em jejum. A eira era a 60 ou 70 metros do monte onde nós habitávamos. E quando acabávamos de descarregar na eira, cheio de sol, lá ia a minha mãe com um tabuleiro com oito chávenas de café com leite e um bocadinho de pão e queijo para cada um. E íamos buscar outra carrada até à hora do almoço. Só almoçávamos depois de já ter a segunda carrada. Portanto, o tratamento era igual para nós, três filhos, e para os outros cinco que andavam connosco. Era igual. Depois de descarregarmos a segunda carrada, eram oito, nove horas, à volta disso, então íamos almoçar. Comíamos o que calhava, nem sempre era açorda, nem sempre eram coentros com bacalhau. Cada dia tinha a sua coisa. Conforme o que a minha mãe destinava para a criada. Dizia: “Olha, hoje fazes isto” e fazia para todos. Era sempre à base de pão. Lá era um dia feijão de azeite e vinagre ou couves de azeite e vinagre. Mas lá ia o pão a acompanhar um bocadinho para se comer o feijão ou a couve. A carne era quando era dia de carne. Porque nem todos os dias era carne. Havia os seus dias, não é? Dia sim, dia não, quase sempre um dia era comida de azeite e vinagre, e ao outro dia era carne. Depois ao outro dia era peixe. Aquilo 142

estava mais ou menos estipulado. Aqui era a carne de porco. E borrego, mas isso era já menos, era mais era porco. Porco é que era daqui, matavam-se os porcos em Janeiro, três, quatro porcos de oito arrobas. E a carne era arranjada e preparada para comer o ano todo aos bocados. Também comíamos muita galinha. Mais galinha que carne de borrego. E os ovos, com certeza. Dia de festa era dia de comida melhor. Carne de vaca nunca. Então íamos ao talho aonde buscar a carne de vaca? Não se matavam cá vacas. Nem havia mesmo nestas terras pequenas. A vaca era morta em Évora, Lisboa, nas terras grandes. Onde é que se matava uma vaca, com o peso que se gastasse cá na vila? Só, às vezes, cá se apanhava um bocado de vaca quando uma partia uma perna que tinha de ser morta no local. E não podia ser transportada para longe. Bebíamos muito leite, mas era normalmente leite de cabra. Tínhamos as cabras que davam leite quase todo o ano. De vaca é que era pouco. Depois mais tarde é que começou a aparecer o leite da vaca aí a vender. Pessoas com duas, três vacas para vender leite. Mas, nos meus princípios, nem isso havia. Nem manteiga. Manteiga vinha feita, vinha de lá e depois era preciso comprar avulso, mas isso era para os que tinham dinheiro. O que se comia era banha de porco, azeite. E tinha-se saúde, e tinha-se saúde, mais que agora. Eu lia sempre, lia os jornais todos os dias. Não estudei agricultura, mas eu continuei a fazer o mesmo que o meu pai me ensinou e via fazer aos outros e a ver se fazia melhor do que os outros. Aos 24 anos faleceu o meu pai. Os meus irmãos e eu dividimos a casa, a minha mãe é que herdou a parte que ela tinha das propriedades, e nós dividimos a propriedade, o todo da propriedade em si e eu tomei conta do que era meu. Os meus irmãos tomaram conta do que era deles e pronto. Hoje tenho mais porque comprei, mas ficámos aí à volta de 30ha cada um. Que era o que o meu pai tinha a dividir por cinco, éramos cinco irmãos. Nesses 30ha tinha azinheiras, sobreiros, oliveiras. Também dava para trigo, dava para aveia e cevada. Porque nesse tempo, nos olivais semeávamos trigo, aveia e cevada. E grãos, tudo o que calhava semear. Agora é que isso desapareceu tudo. Todas essas sementeiras eram complemento da azeitona. Agora já não dão rendimento nenhum. Vale mais só tratar das oliveiras, que agora também já não dão rendimento. Ultimamente era só tratar da azeitona. Porque à medida que semeavam muitos cereais nas oliveiras, eram as que produziam mais mal. Porque a seiva que tiravam da terra era para a seara e não para elas todas. A seara

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começou a não dar rendimento, deixaram de semear essas coisas e ficou só o rendimento da azeitona. Este ano, por exemplo, pagava-se o apanho da azeitona, suponhamos a três tostões o quilo, ou a quatro, para o ano já era quatro ou cinco. Até que hoje se paga a 30 e tal escudos. Eu lembro-me que a primeira vez que apanhei azeitona, dantes era à jorna, 20$00 por dia, do nascer do sol ao pôr. Mas depois começaram a querer fazer de empreitada, trabalhar mais para ganhar mais. E então pediram a empreitada e eu dei-lha. Eu lembro-me que a primeira vez que paguei a empreitada ao quilo, foi a três tostões cada quilo. Pesava-se a azeitona das pessoas, e vendia, nessa altura, a azeitona a 12 tostões. Ficavam três quartos para mim e um quarto para eles. Agora já é à metade. Sempre tive criados fixos. Lá havia, por exemplo, ao fim de um ano um que não estava contente, ou porque adoeceu, ou por outra coisa, era substituído, esse saía, entrava outro. Às vezes até havia um colega meu que oferecia mais dinheiro que àquilo que eu pagava e ele ia embora e vinha outro. Eu tinha vacas, ovelhas e porcos. A exploração como devia ser. As vacas eram para trabalhar e para criar bezerros. E depois vendia-se o bezerro. Casei com 28 anos. Ela era de cá, era professora na freguesia. Conheci-a, casámos. Ela depois concorreu para a vila, depois já de casados. Ficámos então onde eu queria ficar, que era na minha terra e onde tinha as minhas propriedades. Arrendámos uma casa. Depois a minha filha nasceu. Nunca comprámos casa. Comprei foi propriedades. Fui baptizado e tenho fé em Deus. Casei pela igreja. Ao domingo vou à missa quando calha. Não vou todos os dias à missa, nem todos os domingos, mas, quando é preciso ir à missa, ser padrinho de um casamento, ou qualquer coisa, eu vou, estou lá como devo estar. Ia a todas as procissões que havia cá. Tenho a minha religião, à minha moda, à minha maneira. Quando é preciso, vou à missa. Quando a minha mulher era viva até ia muitas vezes com ela, porque ela ia todos os domingos à missa. A minha filha estudou aqui até ao 5º ano88, já havia o liceu, o colégio. Então, depois daqui foi para Évora fazer o 6º e o 7º89. E depois foi para a faculdade de Direito. Arranjei-lhe uma casa de pessoas amigas. Era um casal. Consegui umas pessoas sérias, umas pessoas honestas, onde ela estivesse bem.

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Actual 9º ano de escolaridade. Actual 11º ano de escolaridade.

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Olhe, eu só ouvi falar nos comunistas muito… Porque eu vou-lhe contar. Eu, aos 20 anos, a minha mãe tinha um grande desgosto de eu ter ido para a vida da lavoura. Ela tinha já dois filhos na lavoura e queria que eu estudasse, tirasse um curso. Teve um desgosto enorme de eu não ter continuado a estudar. Até, mais tarde, já se contactava para eu aprender um ofício qualquer. Eu não queria de maneira nenhuma, queria a vida da lavoura, gostava dos animais, gostava daquilo. Mas, aos 20 anos, eu lembrei-me de ir aprender a trabalhar como relojoeiro. E aprendi. Ao fim de algum tempo o mestre disse: “O senhor já sabe tanto como eu, já está capaz de se estabelecer”. Estabeleci-me numa vila aqui perto, que é uma terra maior que esta, e um bocadinho revolucionária. Aí é que eu comecei a ouvir falar em comunismo. Nunca tinha ouvido falar em comunismo. Foi na altura da Guerra Civil de Espanha. Só quando soube verdadeiramente o que era comunismo e fascismo foi agora no 25 de Abril. Um dia, estávamos lá, rapazes novos com 21, 22 anos, estávamos assim de conversa, e diz-me um rapaz: “Este é fascista”. Porque eu lá tinha fama de ser rico. Os meus irmãos tinham cá lavoura, e o meu pai e a minha mãe tinham cá lavoura. Tinham ovelhas, tinham porcos, tinham éguas, tinham parelhas. E lá nessa terra havia uns negociantes de parelhas, e de ovelhas e de borregos que conheciam-nos a nós. Vinham aqui comprar as ovelhas, e compravam muitas coisas, gados. Sabiam que tínhamos assim uma lavourazita. E então, um dia diz-me o homem assim: “Este é fascista”. Eu digo assim: “Fascista? Que nome é que ele me estará a chamar? Não deve ser um nome feio!” Fiquei sem saber o que era. Às vezes pensava no assunto. Só depois do 25 de Abril, já eu era casado quando isso se deu, é que apareceu o fascista e o comunista, foi só quando eu soube o que era o comunismo e o que não era o comunismo, que era o fascismo. Cá havia poucos comunistas. Sabia-se quem eles eram, mas era uma coisa ainda sonegadamente, muito calado. Só quando depois começou aqui a coisa é que se começou a saber. E deu-se o 25 de Abril. Antes não dei por coisa nenhuma. Não houve cá greves no tempo antes do comunismo, antes do 25 de Abril. Foram as pessoas a pedirem as oito horas. E deram-lhas, mas não houve assim muita coisa. Eu já tinha herdades de renda, nessa altura, era casado. E um dia cheguei lá, de manhã, era no tempo da ceifa, e os homens pediram-me as oito horas. Pediram-me as oito horas, deixaram de trabalhar, andavam a ceifar. Eu respondi-lhes: “Se vocês trabalham tanto nas oito horas como de sol a sol, então está bem”. Eu fui talvez a primeira pessoa que lhas dei. Foi tudo para o bem de todos, não houve discussões, nem houve nada de conversa. Não houve greve, não senhora. Depois começaram todos a dar. Sem haver greves. Que eu desse notícia não houve greves. Contou-me

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um colega meu que esse foi o ano em que fez a ceifa mais barata, foi nesse ano das oito horas. Porque andavam todos a trabalhar com vontade, trabalhavam que era um disparate! Havia aqui quem dissesse mal do Salazar. E eu ainda me lembro um dia de falarmos nisso. E dizia-se assim: “Um dia mais tarde, quando o Salazar morrer…” Já se dizia que havia uma facção que não gostava do Salazar. E havia outra que gostava imenso. Mas nunca houve assim nada que eu desse notícia. Nunca vi revoltados. Havia muitos, naturalmente, descontentes. Mais nada. Eu nunca me meti na política, não fiz parte de nada dessas coisas. No grémio é que ainda estive uns anos, éramos três na direcção. Eles faziam e a gente era só para assinar os papéis, mais nada. Aqui não havia absentistas. Havia alguns que iam a Lisboa tratar disto ou daquilo, estavam lá um dia ou dois, ou se era na altura de praia, iam passar um mês de praia, como é natural. Mas para o resto, faziam aqui a vida. Uma vez aconteceu-me uma coisa. Nós tínhamos ali um clube, onde juntávamos assim os lavradores, os que eram lavradores, os funcionários da câmara, e outros. Era o Clube dos Ricos. E, é claro, eu fazia parte disso. E então dávamo-nos bem com todos, não é? Um dia estávamos a tomar café… Íamos tomar café lá ao clube. E então um dia estávamos a tomar café ao meio-dia e aparecem sete trabalhadores lá à porta da travessa a chamar o presidente da câmara. E o senhor foi. O que é que eles queriam? Trabalho. Nessa altura a câmara nunca tinha dinheiro. Por exemplo, como agora eles têm muito dinheiro. Eram os presidentes da câmara que às vezes arriscavam o dinheiro deles, emprestando à câmara para os homens irem ganhar a vida. Coitado, apareciam-lhe as pessoas e ele tinha de resolver os problemas com o dinheiro dele. E o tipo queixava-se. Os presidentes das câmaras mandavam na câmara, estavam à frente dos destinos da câmara, mas com dificuldades e o dinheiro deles às vezes tinha que andar à frente. Os homens iam trabalhar por conta da câmara e eles é que ao fim da semana lhes pagavam, em vez de ser dinheiro da câmara, era o deles, porque a câmara já não tinha. Dantes a câmara era assim e nós sabíamos que assim era. Então apareceram-lhe mais aqueles sete a quererem trabalhar para a câmara, porque não havia trabalho. E eu trazia ali uma herdade de renda e trazia lá homens a trabalhar e num dos trabalhos trazia dois homens que faziam o trabalho dentro dum mês ou dois, mas se fossem mais homens fazia numa semana ou em duas. Estávamos a tomar café, assim a uma distância de 20m, a ver o presidente da câmara aflito a querer arranjar trabalho para os homens, mas sem ter dinheiro. Até que eu estava a ver, estavam outros senhores, e eu levantei-me e fui lá. Vi o senhor aflito e ele disse-me: “Estes senhores querem 146

trabalhar e têm razão, porque chega-se ao fim da semana e não têm dinheiro para comprar a comidita para eles e para a família. Mas eu também não tenho dinheiro. Agora vou metê-los a trabalhar na câmara e chego ao fim da semana e não tenho, nem eu nem a câmara tem dinheiro. Não sei o que hei-de fazer”. E digo eu assim: “Talvez eu resolva o problema aí por uma semana ou duas. Eu quero dois homens a fazer isto assim”. E lá lhe disse o que era: “E estes sete, eu meto-os lá duas semanas, em vez de aquilo demorar dois meses, demoro duas semanas. Mas pelos menos, agora, por duas semanas eu arranjo-lhes lá e eu pago com o meu dinheiro o serviço. Pronto, os senhores amanhã levam os enxergões, cada um dos senhores leva os seus e vão ter lá à herdade e os senhores começam a trabalhar. Eu devo lá estar ao nascer do sol, mas se eu lá não estiver por qualquer razão, os senhores dizem ao manageiro que vão por minha ordem e vão fazer o serviço como ele mandar”. Agradeceram. No outro dia, desses sete apareceram dois. Os outros não foram, não precisavam. Foi só para atacar o presidente da câmara. Sabendo que ele já não podia, já não tinha dinheiro e a câmara também não… Foi só para o atacar. No 25 de Abril começaram logo as ocupações por uma propriedade aqui perto, uma herdade muitíssimo grande, e muito boa, que andava desprezada. Quer dizer: o dono vivia em Ponte de Sor e não lhe ligava nenhuma. Tinha outras lá na Ponte de Sor, aqui tinha um feitor e uns criados, mas o feitor, quando queria pagar aos criados, tinha de ir à Ponte de Sor buscar dinheiro e acabava por vir e não trazer dinheiro e muitas vezes ficavam os criados à espera do dinheiro. E mal tratada. Eu lembro-me de ver lá o gado a pastar, aquilo andava abandonado e mal tratado. Foi a primeira que foi ocupada. E, então, eu tinha saído de manhã cedo, e não sabia disso. Quando cheguei, à hora do almoço – a minha mulher gostava muito que eu chegasse às horas das refeições e eu fazia o possível para isso – cheguei à hora do almoço e ela contou-me. Estavam até lá uns tipos do governo. E eu acho bem. Então aquilo estava que era uma vergonha. Uma herdade daquelas, cheia de mato, acho muito bem. E achava bem que essas ocupações se fizessem para a malta que andava aí sem fazer nada. Mas fizeram isso a uma ou duas, inicialmente, e depois, onde havia muitas ovelhas e muitos celeiros cheios de trigo, era isso que eles iam ocupar. Então porque é que não ocuparam só as mal tratadas? As mal tratadas não as queriam. Então isso faz-se? Começaram a ocupar tudo. Então, quer dizer, eles depois não eram capazes de fazer como os donos faziam. De manter aquilo tudo. Aqui perto havia uma herdade bem tratada, com uma adega enormíssima, tinha para aí uns 70 ou 80 potes de carvalho onde conservavam o vinho. Passados uns anos da ocupação, aquilo foi entregue, e eu precisava de umas carradas de lenha 147

até para dar ao pessoal da azeitona, e fui lá ver. Vou lá encontrar um monte enormíssimo de lenha dos potes de vinho aqui da adega, deixaram escavacar aquilo tudo. Duas camionetas não levavam aquilo tudo, as cintas e aquilo tudo. Deviam ser chamados à responsabilidade! Então, tomaram conta da adega para abandonarem aquilo tudo? As casas, os prédios, os montes onde eles tinham ocupado: deixaram cair tudo. Foi quando eu comecei a estar revoltado. Está mal. Deviam fazer isso, mas às propriedades mal administradas. As bem administradas, que davam muito que fazer ao pessoal, e que pagavam bem, deixavam-nas estar nas mãos dos donos! O que o proprietário não explora como deve ser, a gente ocupa. Agora, quando eles não eram capazes de fazer tão bem, não deviam ir lá mexer. A mim quiseram, mas não chegaram a ocupar. Não chegaram lá. Então, depois a coisa voltou. Aquelas reviravoltas e eles pararam. Mas estava para ser na semana seguinte. Levavam tudo a eito, o que eles queriam era levar, grandes e pequenos, levar tudo a eito. Não se ganhava nada em resistir. Eles apareciam, 10 ou 12, armados com espingardas e coisa e tal, que é que havia a fazer? Eu ou os outros, não podíamos fazer nada. Eles chegavam, tomavam conta de tudo, levavam tractores, levavam ovelhas, levavam casas, levavam vacas, levavam tudo, pronto. O que eles queriam era onde havia muito dinheiro. Celeiros cheios de cereais, para eles fazerem dinheiro e meterem ao bolso. Tanto que eles ficaram todos cheios de dinheiro. Onde é que eles arranjaram o dinheiro que têm? Os das primeiras ocupações vieram de Lisboa, mandados pelo governo. Eram pessoas da tropa. Lá, capitães e outros, enviados pelo governo. Estava o Vasco Gonçalves nessa altura no governo. E depois eram eles aí que faziam. Levavam oito ou dez pessoas e diziam: “Vamos ocupar aquele.” Pronto. À ocupação de um rendeiro assisti eu: chegaram lá oito ou dez pessoas, “Tudo daqui para fora.” Depois ele começou a dizer umas coisas e eles disseram: “Vá-se embora, senão nem o carro leva!” E ele teve de se meter no carro e foi-se embora. E o resto ficou lá tudo. Mataram um vitelo lá, assaram o vitelo e comeram e beberam. Estiveram lá dois ou três dias na ocupação da primeira herdade. Depois a cooperativa, com certeza que aquilo foi um fracasso. Porque começaram todos a comer, a comer, a comer, e cada um roubava para seu lado. Assim, ficaram aí alguns cheios de dinheiro. As cooperativas não funcionaram, não podiam funcionar. Então como é que podiam funcionar? Todas as pessoas que eles lá tinham metido saíram cá para fora cheios de dinheiro e parte deles estão ai estabelecidos com o dinheiro que eles lá roubaram.

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Depois aos proprietários entregaram-lhes as coisas já todas estragadas e todas danificadas. O que era bom ficaram-lhes lá com elas. Por exemplo, ao rendeiro que eu disse antes entregaram-lhe o mesmo número de ovelhas. Mas ele entregou ovelhas belíssimas e devolveram-lhe ovelhas estragadas que não valiam coisa nenhuma. E as vacas a mesma coisa. Ele tinha ovelhas e vacas do melhor que havia. Tinha um novilho que, naquela altura, tinha ele comprado por 200.000$00. Esse desapareceu. Não se sabia onde é que ele estava. E entregaram-lhe umas vacas que não valiam nada. Eu não as queria, cheias de fome e cheias de miséria. Estragaram tudo. Falta de conhecimento, muita estupidez. Deixaram estragar tudo. Os montes, deixaram cair tudo. Tudo a cair. A ignorância do nosso povo. As desocupações foram depois, quando foi para lá outro governo e começou a ver que isto não… Agora já é outro caso. A agricultura já é do governo. Quem está lá em cima é que abandonou a nossa agricultura. Está abandonada. Está arrumada. Porque o governo, tudo o que dantes se pagava como se devia pagar, agora paga-se por metade ou menos. Está abandonada. Primeiro foram os cereais, agora até a azeitona, o preço das carnes… Não se consegue. Eu chego ao fim do ano sempre com menos dinheiro do que tinha no princípio. E eu não sou estragado! Eu bebo o meu cafezito, mais nada. Sou a mesma pessoa que era aqui há 50 anos. Porque é que eu há 50 anos era bom administrador e era bom proprietário e agora sou ruim? Não sei. Sou o mesmo. Cheguei a ter uma vida grande: muitos rendeiros, muitos arrendamentos, muito criados por minha conta, muito gado… Tem vindo a diminuir. Eu agora até estava na disposição, e a minha filha também está-me sempre a pedir isso a toda a hora, para eu vender tudo o que tenho! É uma pena, pois é, mas eu é que nasci nisto e tenho pena. Depois de ver o que é meu, o que eu comprei e outras coisas que os meus pais me deram nas mãos de outras pessoas, tenho pena. Porque a minha filha e o meu genro, eles lá ganham mais num mês do que o que eu aqui ganhava, mesmo quando ganhava muito, num ano. Agora é que já não ganho nada. Agora perco. As despesas cada vez são mais. Os homens cada vez ganham mais dinheiro. O gasóleo cada vez é mais caro. O tractor, quando é preciso arranjá-lo, cada vez custa mais o conserto. E a gente cada vez ganha menos. A agricultura está toda a cair! Os muito grandes estão a cair que não aguentam. Eu fui 19 anos parte da administração da Fundação. Agora aquilo está na miséria. E afinal a vida é assim. E a vida da agricultura, eu não sei. Se não vier um governo que tome conta disto… Nós estamos a comer já da CEE, a CEE é que manda para aqui os trigos, é que manda para aqui a carne, é que manda para aqui tudo. Aqui já não se cria nada. Ai do país que não viva com os seus próprios recursos. Porque 149

amanhã há uma guerra mundial, talvez a haja, e eles, depois, se lá o têm, guardam-no para eles. A gente morre com fome. Já para cá não mandam nada. Devíamos produzir o suficiente para nos mantermos, que era o que fazíamos noutros tempos. Aqui havia trigo que chegava, aqui havia carne que chegava, aqui havia azeite. Chegava para nós e para a gente mandar para eles. Agora são eles que mandam para cá tudo! Eu, por mim, eu sou o mesmo que era dantes. Nunca fui pessoa de fazer asneiras, de andar na boa-vai-ela, fazer noites… Nunca saí de Portugal senão a Badajoz… Ia a Lisboa sempre que me fazia falta e a trabalho. Férias? Qual férias? Férias tive eu alguns meses que fui para a praia, de resto, sei lá o que isso era. Ia só passar o mês de Agosto quando em doença. De resto, férias era a trabalhar. Depois de casado lá fui alguns anos, mas eu não fazia praia, ela é que fazia praia e a família. Eu ia para lá, estava lá três ou quatro dias e vinha para cá. Vinha-me embora, metiame no carro e vinha-me embora. Depois tornava a ir. Ela é que fazia férias. Eu andava cá e lá. Eu tinha cá as minhas coisas, tinha as ovelhas, tinha as vacas, tinha isto a precisar de as orientar. Os grandes lavradores tinham um feitor, que era o responsável. Mas eu não tinha feitor, eu não tinha dinheiro para pagar ao feitor. Eu precisava daquele dinheiro era para mim. Era para isso que eu cá estava. As pessoas vivem todas melhor. Todas menos a pessoa que é dona do terreno. Os agricultores vivem pior. Todos, todos, seja ele grande, seja médio, porque o rendimento não lhe aparece. O que é que eu vou fazer? E depois a dificuldade que a gente tem em ter gente para trabalhar. Estão sempre para ai a anunciar que em Portugal, principalmente no Alentejo, que há falta de trabalho, há desemprego. Tudo mentira! Não há falta de trabalho para ninguém! Quer-se um homem… Eu trago quatro homens aqui, mas estão todos no desemprego. Mas agora vai ver ali ao colégio, que dantes não se via, centos de rapazes e raparigas, a sair do colégio com 16 ou 17 anos. Dantes não se via um rapaz a estudar. O que dantes víamos muito eram rapazes a aprender a carpinteiros e a ferreiros, e a pedreiros. Agora vê-se por aí algum? E então no campo? Nem um! Nem mesmo já os de 50 anos querem estar no campo. Só estão no campo os que estão desempregados. Os que estão reformados ou os que estão de baixa. Se quiserem trabalhar, trabalham. Eles lá na baixa recebem o que lhes chega para viver, não precisam de trabalhar. E nós depois, para os metermos, temos de pagar o dobro do que devíamos pagar. Estas pessoas do campo, que dantes viviam com dificuldades, agora vivem melhor que eu. Eu vou a casa de qualquer pessoa, destes que trabalham por minha conta, falar com eles à noite por qualquer coisa, apresentam-me salas melhores que as minhas. Com maples melhores que os meus, salas formidáveis. Quer dizer que 150

estão a viver bem. E ainda bem que assim é. Pronto. Do desemprego. Têm um bocadinho de horta, de onde arranjam hortaliça. Têm a lenha que querem, dada. Vivem bem. Não o gastam, não são pessoas de luxos, nem vão aqui ou vão além. Quer dizer, vivem bem e podem, com esse dinheiro que lhes sobra, comprar coisas para estarem bem instalados. E está bem assim, eu até gosto de ver. Mas cá a lavoura é que tem de aguentar isto tudo. Eu agora, se quis estes homens, tive de lhes pagar muito mais do que aquilo que devia pagar. Então deixava lá ficar o trabalho? Deixava ficar por fazer? Muito já fazem isso. Tenho ali um vizinho que me pergunta: “Então o senhor ainda faz os pés das oliveiras?” “Então não hei-de fazer? Toda a vida fiz. O meu pai ensinou-me assim.” “Eu já não quero saber delas para nada, nem as limpo, nem faço os pés, nem quero saber delas para nada!” Olhe, eu tive muito prazer, e foi muito o prazer que me deu esta meia dúzia de palavras que lhe disse!

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19 – Trabalhador rural, jornaleiro. N. 1931, 67 anos. Olhe, só o que ê sei dizer, é o que sei da minha vida, os meus pais tiverem muitos filhos, 11. Éramos 12, porque o primeiro morreu. Assim criados ainda chegámos a ser 11. Vivemos com muita deficuldade, naquele tempo nem havia dinhêro, nem trabalho, nem comer, era só miséria no tempo da minha criação. Eu nasci em 1931, na vila. Tenho um anexim90 já muito antigo, que já vinha dos mês bisavôs e dos mês avôs e continuou e continua à mesma. Eu tenho um nome, mas sou o “Lagarto”. E pronto, ficou assim. Já o meu pai também era o António Lagarto, era ferrador. Ferrava as bestas. Tenho óvisto dizer que o mê avô, que era pai do mê pai, trabalhava muito nos fornos da cal: arrencava91 mato e fazia feixes de mato e levava para os fornos para terem a cal para caiar. Era assim a vida. Na minha criação e o tempo todo que estive em casa dos meus pais, morámos sempre na vila. O meu pai tinha uma oficina: iam lá os lavradores que tinham bestas, levavam lá; e os que não podiam ir vinha ele cá ferrar aos montes. Assim trabalhar afectivo92, quem trabalhou fui eu. A minha mãe esteve sempre em casa, porque mal tinha tempo de tirar um filho da mama para dar mama ao outro. A casa era à renda, sempre. Hoje não pago renda porque a minha filha me deixa lá morar na casa dela. Assim não tenho de pagar renda. Toda a vida trabalhámos muito tempo, o tempo que a gente éramos gaiatos, no lugar que havíamos de ir para a escola, íamos gordar gado93. Dantes havia muitos rebanhos de gado, hoje já não há, mas dantes havia muitos e a gente ia guardar gado, olhe, com seis, sete anos, oito anos, e pronto. Eu cá nunca cheguei a ir à escola, fui lá meio dia. Entrei no primeiro dia de manhã e ópois quando saímos ao lanche já estava lá um senhor que precisava de um ajuda, abalou comigo, até hoje nunca mais entrei dentro duma escola. Fui para ajuda de porcos, foi o gado que eu gordei mais, foi porcos. Os meus irmãos faziam o mesmo. Porcos. Depois começámos a ter 14, 15 anos, um ia para ganhão, que era obrar com uma junta de bois, outros tinhem 16, 17 anos iam trabalhar com uma parelha. Enfim, assim governámos a vida e chigámos à vida que temos. Tenho quatro irmãs, eram sete rapazes e quatro raparigas. Também nenhuma foi à escola. Ah foram, sim senhora. A mais nova foi à escola. De resto foi tudo criado no campo. Elas faziam tudo quanto era trabalho do campo: ou à monda, ou arrencar94

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Alcunha. Arrancava. 92 Efectivo. 93 Guardar gado. 94 Arrancar. 91

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o mato e no tempo da azetona íem à azetona, noutro tempo céfáva-se à mão com uma foice… Elas trabalhavam quando tinham trabalho. Eu trabalhava sempre, pois, porque a gente sempre tinha mais trabalho naquele tempo, porque era um arreeirozito95 ou uma coisa assim, andávamos sempre trabalhando. E as mulheres paravam algum bocadito porque se acabava qualquer serviço que andavam a fazer, a azêtona ou a monda e depois tinha de esperar que viesse a acêfa, e essas coisas assim para trabalhar. Quando elas não trabalhavam ficavam em casa a ajudar a mãe. Então, o trabalho nã chegava para um, quanto mais para quatro. Nesse tempo ganhava-se muito poucachinho. Era em dinhero. Quando ê fui para ganhão, ganhava 15$00 por mês e ganhava as mêas comedias96: dois alqueires de farinha, 2,5 litros de azête, parece-me que era 7,5 ou 6,5 litros de alegumes, grão ou feijão, por mês. E outras casas erem a de comer. Era meia comedia porque não completava a intêra, que era por exemplo desses homens que erem os mórais97, esses já ganhavem mais, uns quatro alqueires de farinha, ou cinco, ou nã sê quê. Sempre ganhavam mais e a gente ganhava menos. Então eu trabalhei com uma parelha, depois fui para os trabalhos do campo e pronto. Era onde calhava! Porque os patrões, chegava a uma certa altura e despediam a gente, tinham criados de mais, ou uma coisa assim, e pronto, despediam sempre os mais novos. Mesmo eu também cheguei a andar justo, mas porque outras vezes, ou apanhava trabalho de outro lado, ou ganhava mais alguma coisa, ou porque me agradava mais ir para outro lado, abalava daquele e ia para outro. Trabalhei em quase todas as casas do concelho. Nós falávamos era com o feitor; era o homem que mandava. Era o fétor, e antes do fétor ainda tinha outro empregado: se era com bois chamava-se o homem do gado, se era com parelhas era o móral de parelhas, depois esse é que via se tinha preciso de arreeiros, se tinha preciso de ganhãos, e esse é que falava à gente. Eu via o patrão, tã nã via? Mas nã tinha lá nada a falar com o patrão, porque estavem ali os empregados. Se havia qualquer coisa, os empregados é que vinham falar à gente. Depois casei, sim senhora. Nã sei com que idade, mais ou menos, devia já ter aí 30 e tal anos. Conheci a minha mulher mesmo no trabalho, porque, quando era altura de azetonas ou de acêfa, ajuntávem-se homens com mulheres. E havia festas,

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Arreeiro, equivalente ao carreiro e ao mulateiro, ver atrás. Comedorias, ver atrás. 97 Maiorais das parelhas. 96

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havia a fêra98, havia o Carnaval, havia essas coisas todas. Juntávamos mais era na cêfa, havia festas, e pronto, e os domingos, naquela altura custavam muito a passar porque a gente trabalhávamos de dia e de nôte. Nã é como agora que o sol está “meia-tarde” e que se arrega99 a quase ao meio-dia. No nosso tempo não, no nosso tempo arregávamos antes do nascer do sol e depois do pôr-do-sol, e trabalhávamos aos sábado, nã tínhamos fins-de-semana, nã tínhamos feriados, nã tínhamos nada dessas coisas. Ao domingo descansávamos, mas aos sábados e feriados trabalhávamos. Nã tinha nada. Eu não ia à missa. A gente às vezes… Se os novos iam era só por causa de ver as raparigas ou uma coisa assim. Comíamos lá no trabalho. Se a gente era justo, também era das duas maneiras, se era a comedia, levávamos a comida de casa, outros era à de comer, então davem o comer lá à gente, a trabalhar à jorna, que era ao dia, levávamos o comer de casa. Chegava-se às nove horas, ou coisa assim, tínhamos uma hora de almoço, fazíamos uma açorda, fazíamos umas migas, uma sopa de cebola, e azeitonas, e comíamos. Trazíamos toucinho, morcela, chouriço… Pouco! Naquela altura era caro e o dinheiro era pouco. A base era o pão, ainda hoje. Os alentejanos é mais o pão. Ovos e galinhas, isso, só em casa quando, às vezes, um dia de molhado, as nossas mães lá podiam comprar uma galinhazita, ou meio quilozinho de carne do talho, mas era só em dias especiais. As casas onde a gente morou nem quintal tinham. Eu não tive filhos, a minha mulher é que as teve! Duas. Elas foram à escola, têm o exame da 4ª classe. Agora, mais a mais eu sou um homem analfabeto, nã sei uma letra de tamanho nenhum, nã sei nada, nem muito, nem pouco. E então tenho mais dificuldade em dizer as coisas e de pôr as coisas no sítio onde elas há-dem ser ditas. Porque sou um homem todo analfabeto. Ainda pensei aprender, pois pensei sim senhora, e havia, naquele tempo já havia escola de adultos. Havia cá o professor, mesmo da terra. Mas como a gente naquele tempo andávamos saturados com tanto trabalho, e então chigávamos à nôte não tínhamos vontade. Porque a gente arregávamos de nôte e chegávamos de nôte, a bem dizer que nã tínhamos horário. Era só trabalhar, trabalhar, trabalhar. Pronto. E ódepois, a que horas me dêto? Às tantas tenho que me levantar, tenho que ir trabalhar, pronto. E foi assim. No mê tempo já houve essa coisa da escola para os adultos, mas ê nunca fui. Porque era assim. E como eu, milhares… 98 99

Feira. Ver atrás.

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No mê tempo, agora é que há desemprego, no nosso tempo nã havia desemprego100. Quem tinha trabalho ganhava e quem nã tinha andava encostado à esquina. Era porque não havia, noutro tempo o trabalho também era custoso de apanhar. Ê inda andei, inda passei por lá uns dias bons. Nã era assim muito tempo, mas calhava, por vezes acabava-se o trabalho onde ê andava, os patrões despediem sempre os mais novos. Passei algumas dificuldades. Íamos à mercearia até que o merceeiro se fiasse na gente. E ópois quando calhássemos a ir trabalhar, pagávamos. Quando havia alguém doente, a gente lá íamos gemendo conforme podíamos. Era tudo miséria, era tudo pobre. A minha mulher ainda hoje anda a trabalhar. É uma rapariga que eu para aqui tenho! Quando nasceram as gaiatas ela pagava a uma velhota. Dantes havia umas velhotas. Hoje é que vai tudo para os lares e para os asilos, mas no nosso tempo, se havia isso, era pouco. Lá na minha terra então não havia. E então havia uma velhota que ficava com uma criança ou duas e as mães das crianças davam o dinheiro de um dia a essa velhota para ficar com a criança. Antes do 25 de Abril já havia umas coisas, mas eu nunca dei importância a isso. Quando foi das oito horas participei. Nã sei quando foi. A gente andávamos numa acêfa, além num monte, e ópois corrompeu-se duns ranchos para os outros, por causa disto das oito horas, e então disserem a uns e outros para nã ir regari101, nã trabalharem até que os patrões nã dessem as oito horas. Houve uns que derem logo, outros tardarem mais, enfim, nã foi logo tudo de repente. No monte onde eu estava demorou aí três ou quatro dias. O homem precisava da acêfa fêta… Ninguém foi preso, que eu desse notícia nã senhora. Se foi, foi noutra zona, aqui na nossa zona não. As condições eram as mesmas. Pronto, ganhava-se aquele dinhêro, trabalhava-se as oito horas, arregávamos às oito horas, ao mê-dia tínhamos uma horazita de comeri. Era só ao mê-dia que tínhamos a hora e às cinco horas soltávamos. Eu só me filiei no PCP já dentro do 25 de Abril. Depois houve aquela coisa de alusionismo102… Pois, hipotenizam103 as pessoas, esses que queriam ser mais espertos! Os que queriem ser mais espertos hipotenizavem-nos, ê nem sê dezer a palavra bem, as pessoas e pronto, a gente, como julgava que era verdade as pantomices104 que eles pregavam, então vá, vá para aqui, talvez seja melhor. Ora

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Refere-se ao subsídio de desemprego. Arregar ou enregar, ver atrás. 102 Ilusionismo. 103 Hipnotizam. 104 Pantomimas. 101

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aquilo, ê nem sei bem quantos são; erem todos: os que queriem ser mais espertos enganarem sempre os mais parvos. E eu como me tinha por mais parvo naquela altura, deixei-me ir na cantiga! Mas também foi pouco tempo. Apenas que ê comecê a ver as coisas a mudarem para trás, disse logo: “Alto! Isto nã é o que as pessoas dizem. Isto cada um quer-se amanhar.” Aquilo foi comícios, foi manifestações, “isto é tudo nosso!”; e “isto é desta maneira”, e “os lavradores o que querem é assim”, e “venhem para cá”, e “a gente paga-lhes isto”… A gente à nôte, diziam que às tantas horas há um comício, ou na Casa do Povo, ou ali num largo qualqueri… E a gente íamos, então, a gente julgava que era verdade. Ocupei sim senhora. São as tais coisas que os portugueses fazem muito fácil. E fez-se muito fácil porque naquela altura, não… Pronto, não havia ninguém que mandava. Era as tropas é que mandavem, nem a guarda mandava. Eu andava lá a trabalhar, estava lá no trabalho do campo, a fazer o que calhava. E eles disseram que aquilo que era nosso, e o que se lá criava e o que se colhia que era dividido pelos trabalhadores, e a terra era de quem a trabalhava, e o dinheiro era de quem o embolsava, e assim é que foi a ocupação!105 Veio aí um fadista que se chama, como é que é? Ele ainda está vivo, eu quero-o matar, mas a mulher nã dêxa. Esses é que sabem tudo, nã sou eu. Esses é que sabem o que fazerem ao dinhêro, esses é que sabem o que fazerem à produção cáquilo teve, porque eles é que ficarem cheios de milhares de contos. E ê fiquei na miséria como eu tava anteriormente. Eles ficarem bem amanhados. O dono não fez nada, o homem nã resistiu, não senhora. Então as pessoas naquela altura nã tinham força nenhuma, os comunistas é que erem donos do país. Ele inda lá foi uma vez ou duas, mas ópois viu que a gente nã lhe entregava aquilo, pronto, desistiu. Ele ia a querer aquilo que era dele e a gente dizia que não e coisa, que aquilo era nosso e que a terra era de quem trabalhava e o dinheiro era de quem o embolsava, e pronto, e foi assim a vida, a minha Reforma Agrária. O trabalho era o que se fazia naquela altura. Naquela altura já nã se céfava à mão, era tudo lá as máquinas. Apanhava-se era uma azétona, ou fazia-se um tomate… Também íamos às manifestações, eram nos dias de trabalho. Só ganhavam os dias os que iam; os que não iam nã ganhavem nada. Os chefes da cooperativa é que nos mandavem ir. Depois lá iam os gafanhotos todos atrás, pareciam uma rebanhada de pintos atrás das galinhas. Mulheres e homens e tudo. Aquilo tudo queria ser rico! Eles deziem que aquilo que era tudo nosso! E quanto mais a gente produz, mais a gente ensaca! Ê nunca dezia nada. Ópois fazia cá o resumo cá para comigo. 105

Gargalhadas.

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Ao fim de um certo tempo, quando comecei a ver o engano, ópois também deixei de ir, já sabia que aquilo que era só pantomices. E eles eram sempre os mesmos, então acabei de ir. No fim, de resto, não me mataram numa fêra em Estremoz, em que ê tive de fugir… Senão era lá morto pelos ciganos, os negociantes de gado e essa coisa toda, porque ê ia lá vender umas éguas que a gente tinha ocupado além num monte. Eu nessa altura nã era cá de comissões, pronto, andava iludido como os outros, e então eles pensaram “vamos primeiro vender uma data de éguas pa comprar umas vacas e coisa, que sempre dão outra produção, do cás éguas” e coisa. A gente ajunta as éguas desta herdade cás106 da Fundação e vamos a caminho da fêra. Eram praí umas 50 ou 100, eu não sei exactamente. Ajuntámos as éguas, e fora, a caminho da fêra. E ainda nã tínhamos entrado bem dentro de Estremoz, o pessoal era grave: tanta gente, tanto tendeiro, tanto cigano… Mas os donos daquelas éguas da herdade aparecerem lá. A Fundação nã apareceu porque nã tinha dono. Era de nã sei quem, que mandavam lá naquilo. Mas nã tinha dono bem como tinha a herdade, pronto, que tinha o dono verdadeiro. Pronto, o dono foi à frente, lá convidou aqueles ciganos, aqueles tendeiros, aquela gente toda que vinham aí umas éguas dele, que tinham sido roubadas. Lá pagou não sei o quê aos tendeiros. Pronto, lá os ciganos e os tendeiros caiu-se tudo com a gente! A quererem matar a gente e a não deixar vender as éguas. Pronto, e ê fugi, os outros fugiram… Ê nem sei contar. Ê sê lá quem eram, a gente só via machados pelo ar e: “matamos-le” e “tiramos-lhe a pele”. De maneiras que o eguariço fugiu, o outro companheiro dele fugiu, eu fugi… mas eu nã conhecia nada em Estremoz e eles conheciam; e então fugirem para o quartel da tropa. Ê nã conhecia, fiquei ali, lá passa um gajo com um carro, abre a porta do carro e diz: “Fuja para aqui, se não matam-no”. Abre-me a porta do carro e eu bumba!107 Até hoje inda nã sei quem é. Inda hoje nã sei quem foi o homem. Pronto. Levou-me lá à praça onde havia carros de alugue, lá passei ao pé de um carro de alugue e: “Agora vá-se daqui embora”. Apanhei um táxi e voltei para casa. As éguas ficarem abandonadas e os outros conheciam Estremoz e a tropa também os conheciam; forem pró quartel da tropa. Chigarem lá, comunicaram ao comandante o que se estava a passar (mas eu já nã vi isto), o comandante mandou reunir as tropas, forem lá ver das éguas (estavem já os ciganos e os tendeiros de posse das éguas) para as levarem para o monte delas. Então a tropa formou-se e agarrarem as éguas e levarem-nas para o quartel. Para nã as dêxarem levar aos donos. Pronto, aquilo levou

106 107

Com as. Bateu palmas.

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alguns três ou quatro dias. Mas naquela altura estava lá um comandante da tropa, também diziem que fazia parte do comunismo, e antão mandou lá a tropa, os carros, uma contidade de tropa a acompanhari as éguas dentro duma camineti, e foram lá descarregá-las à herdade. Pronto, acabei as éguas. Elas ficarem lá, então, depois abalei também de lá, fui para a Fundação. Eu nunca fui às reuniões da cooperativa. Na Fundação ainda lá fui uma ou duas vezes. Eles deziam à gente: “Amanhã há um plenário na Casa do Povo, ou lá em cima na escola ou lá no adro da igreja”, faziam os plenários em qualquer lado. Eles lá apresentavam aquilo que lhes parecia; nã podiam apresentar tudo senão assim não enganavam a gente. Porque vê-se mesmo que eu fui bastante enganado. Quanto mais a gente produzia, mais ganhava, mas nunca deram o dinheiro no fim do ano, só davam os ordenados e o dinheiro nunca chigava, vendiam tudo, nunca chigava… Vendia-se borregas, não chigavam, vendia-se azêtona, vendia-se o trigo, e o dinheiro nunca chegava, nunca sobrava, eles iam juntando, juntando… O ordenadozinho forem sempre pagando. O que é que aumentos nunca os vimos, os aumentos erem para eles. Fiquei pior que antes do 25 de Abril, fiquei sim senhora. É a mesma coisa: vivo na miséria, vivo na casa duma filha minha, e pronto. As filhas: a mais velha ainda lá foi uns dias, ópois abalou para fora… agora a mais nova não. A mais nova nunca engraçou com aquilo. Eu votei no PCP, votei, até descobrir o engano, fui sempre votando. Depois, descobri o engano, acabei com aquilo. Quando saí da Fundação fui para a Junta. Fui para lá guardar ovelhas. Na cooperativa até lhes convinham, eles até os empurravam para eles abalarem. Portanto, apenas abalaram aqueles que eles lhes parecia… Olha, fui eu um de lá a abalar. Como lhe digo, eles foram os próprios que abandonaram a herdade, andonarem a herdade, devedirem o dinhêro, venderem as alfaias, venderem os tractores, venderem um casão que lá têm que agora é da Câmara, e eles meterem aquele dinheironho todo no bolso e nã derem contas a ninguém. Nessa altura os ordenados também começaram a alevantar. Já se ganhava mais uma coizita. Dantes, os lavradores, ninguém dava férias, nem feriados, nem nada. O trabalhador só começou a ter feriados e férias e 13º mês e essa coisa toda, depois do 25 de Abril. Antes de 25 de Abril isso não existia. Agora tenho uma reforma, mas qualquer pessoa é capaz de ver que não é suficiente para uma pessoa pagar tudo, água, luz, nã pago renda da casa porque tou às obediências duma filha minha. Ela anda a trabalhar no campo e o marido é que é pedreiro. Lá conseguiram comprar uma casa, lá fazerem a vida nã sei como. A situação das vidas é muito diferente, porque mudaram os tempos. A outra, coitadita, abalou para além, está para além para 158

a Inglaterra, já lá está há uma data de anos. Emigrou, senão já tinha morrido com fome. Nã sei o que ela lá faz, mas já ganha mais alguma coizita, tem duas filhas, trabalhem todos, trabalha a mãe e a filha e o marido, nã sei lá como é que é a vida de lá. Eu nunca lá fui. Eles vêm cá todos os anos. Eu nunca saí daqui. Ainda estou a trabalhar neste monte, é uma ajuda. Agora isto para falar bem e depressa e verdade, isto uns estão melhor, outros estão pior, outros estão na mesma e pronto. Isto a vida dum trabalhador, dum pobre, pouco mais ou menos é o mesmo. Mesmo a época é outra, sempre se melhorou alguma coisinha. Pouca, mas sempre se melhorou. Muito melhor do que no mê princípio. No mê princípio era muito pior có que é agora. Agora, enquanto eu viver, para mim a política está arrumada. De vez, de vez. Não me venham cá com política, nem com votos, nem com… Não voto para ninguém. Quem estiver bem deixe-se estar, e quem estiver mal auguente-se que ê também me tenho auguentado. É só o que ê digo e nã digo mais nada!

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20 – Trabalhador rural, jornaleiro. N. 1923, 75 anos. Nasci em 23. A minha mãe dizia que era o dia 17, mas eles lá no governo vem como dia 18, do mês de Junho. Nasci na vila. A minha mãe trabalhava aqui na vila, a dias, fazia umas horas aqui, outras horas ali, e o meu pai trabalhava ali por conta daqueles senhores da herdade. Ele trabalhava nas vinhas, e isso tudo. Era jornaleiro. Bem, ele morreu tinha eu seis anos. Não morreu muito novo. Deixou oito filhos, quatro raparigas e quatro rapazes. Morreu de uma bronquite que tinha. Ele estava acamado. Eu é que agarrei-me à samarra: “O pai não responde, o pai não responde!” E então estava já morto. Os outros estavam todos a trabalhar no campo. E as minhas irmãs até já estavam casadas nessa altura. Já tinha pelo menos duas casadas. E então fui lá para os montes, tinha seis anos ainda, fui logo para a lida dos porcos. Para ganhar só o comer, fui só para ganhar o comer. Davam-me uns bocados, umas coisas. Uns grãos. Não levava dinheiro para casa. Era só pelo comer. Eu, quando chegava ali à noite, ao escurecer, metia-me dentro da saca e lá dormia dentro da saca. De manhã chegavem os outros que andavem a górdar gado, agarravem-me na boca do saco e levavem-me às costas. Eu ia depois muito zangado com eles, era pequenino, tinha seis anos. Nunca fui à escola. E então fui para ajuda de um homem para guardar porcos. Ele era o maioral dos porcos. Ele ainda era solteiro e era a mãe dele que fazia a comida. O pai era lá hortelão. Chegava às nove horas tínhamos de ir tratar dos porcos, dar água cá abaixo à ribeira. Aqui mesmo à saída da ponte havia duas azinheiras grandes com os pés iguaizinhos. Os porcos começavam a estar gordos e pesados e chegavam aí e deitavam-se. Eu chegava lá, levantava os porcos e ia atrás dos porcos. E um dia aparece ali à minha frente uma pessoa assim embrulhado num cobertor branco. No Inverno. Fugi. “Apareceu-me uma coisa branca!” “Então e os porcos?” “Os porcos vêm aí.” Os porcos já vinham aí. Deu-me uma porrada, chorei. No outro dia, fui buscar os porcos. Ia à rasquinha. Ele sai de trás de um tojo grande, que pica, e sai de lá ele com o cobertor branco que era meu. Dei-lhe com um pau, abri-lhe a cabeça. Era um que já andava na tropa e tudo, a fazer aquilo a um garoto, só para assustar. Parti-lhe a cabeça e levei uma sova. Com sete anos! Passou-se, ao fim de dois ou três dias lá levei os porcos, os porcos eram grandes, andavam à boleta, e ele veio ter comigo, deu-me uma porrada, derrubou-me logo. Eu disse “Isto não pode ser!” Atravessei a ribeira, cheguei a casa todo molhado. A minha mãe, assim que me viu, pequenito: “Ai, o meu filho…” Andei aí uns dias parado. Mas ópois o Tio Agostinho, que era um velhote que havia aí, veio ter comigo… Era o maioral dos porcos de outra herdade. Veio buscar-me. Todos os dias me dava uma sova. Comia sopas, açordas, 160

feijão-frade, couve. À terça tínhamos bóia, que era um bocadinho de carne, um bocadinho de toucinho, um bocadinho de morcela, um bocadinho de farinheira. E à quinta-feira também era bóia. E eram sopas de cebola ao almoço. Sopas de cebola com azeitonas. Açordas com azeitonas, feijão-frade com azeitonas. Fruta? Não havia! Nem nada. Nem fruta, nem doce, nem nada. Pão comíamos, pão tínhamos sempre. A gente cortava à vontade e comia à vontade. A comida que apresentavem à gente todos os dias eram as azeitonas. Azeitonas, isso nunca falhava. Havia umas cabras para leite, mas isso, o leite era todo para vender. A gente trabalhava de dia e de noite. Os porcos, durante o Verão, dantes, comiam toda a noite. A gente tinha de andar toda a noite com eles. E de dia os malandros dromiam a sesta e a gente tinha de ir buscar o comer, tinha de ir buscar o almoço. Depois tínhamos de ir buscar o jantar e a ceia. Fui para lá aos sete anos e estive lá até aos 18 anos, no mesmo patrão. Depois abalei. Depois, quando passei para ganhão… Sabe o que é ganhão? É andar a lavrar com uma junta de bois, aí é que tinha o domingo livre. O domingo da parte da tarde. Aos 14 anos fui para ganhão. De Verão arregávamos108 a trabalhar às três horas da noite. A acarretar pão para a eira. Ao nascer do sol tinha que já ter duas carradas. Está a ver, o caminho era quase de uma hora. Depois do almoço, até ao meio-dia, tínhamos de pôr outras duas carradas. E de tarde tínhamos que pôr outras duas carradas. Às vezes era já de noite escura é que a gente despegava, é que a gente descarregava os carros outra vez. Quem dava as ordens aos ganhões era o abegão. E quem dava as ordens ao abegão era o patrão. O patrão falava lá com os empregados dele, mas com a gente nunca dizia nada. E então eu, quando entrei para ganhão disse: “Vou todos os dias à vila!” Vinha a pé, para ter convívio, por causa das raparigas. Andava pelas ruas, mais a rapaziada da minha idade… Havia uns rapazes que tocavam concertina. Quando era pelo Carnaval, chegou aqui na vila a haver quatro e cinco bailes por Carnaval. Sábado Gordo, Domingo Gordo, e eram sempre bailes de dia e de noite, sempre. Naquele tempo, agora já não há nada. Só o monte. Mas naquele tempo havia… Pela Páscoa havia sempre bailes. Eu tinha uma tia, que era a minha Tia Idócia, então chegava lá: “Empreste aí a casa.” “Olha o cabrão! Some-te daqui já!” “Ó Tia Idócia, deixe lá!” “Então vá, só se amanhã lavarem a casa.” Pronto, ópois havia baile toda a noite. Depois de manhã havia a cafézada, ela fazia uma cafézada para a rapaziada toda. Ela gostava muito de mim, era minha tia, era irmã do meu pai. Então ela gostava muito de mim, fazia tudo quando eu lhe pedia. 108

Ver atrás.

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Eu também ia a casa dos meus irmãos. Não podia vir à vila sem visitar os meus irmãos. Nunca fui à igreja. Nunca fui à escola, nunca aprendi, não sei rezar, não sei nada. Aprendi a ler mais tarde, mas isso já faz lembrar outra coisa. Mais tarde, descontente com a situação que estava, fui preso. Com 38 anos. Tinha duas filhas… Casei com 23 anos. Fui viver para um monte, andava à jorna. Trabalhava para onde calhava. A minha mulher também andava à jorna. Não se parava. Ela teve as crianças, deixou de trabalhar hoje, amanhã teve a criança. Depois criou as crianças de qualquer maneira. Muitas vezes levávamos as meninas para o trabalho. E depois tínhamos a minha sogra, a minha sogra às vezes podia ficar com elas. A minha sogra chegou a ter lá nove netos. Um pulava para aqui, o outro pulava para ali. No meu tempo era assim, não havia ajuda de lado nenhum, não havia creches, não havia nada. Às vezes elas iam para o campo. E a gente íamos carregados com o avio e levávamos elas; lá andávamos a ceifar, levávamos as duas. E até lá aconteceu uma coisa. Um dia a mais velha diz-me: “É pai, está aqui um bichinho muito bonito!” Era ali ao nascer do sol, ia lá para o pé da gente. E deixou a irmã deitada lá ao pé dum monte. Vai o António a ver o que é que a garota queria. Voltou de lá aflito. Era uma cobra, aquase do comprimento desta mesa, enrolada. E ela a achar o bichinho muito bonito. Elas depois andaram na escola, já tiraram a 4ª classe. Mas não estudaram mais, porque não havia. Depois de fazerem a 4ª classe foram trabalhar. Ao tempo não havia fábricas, trabalhavam na costura, mandei as duas tirar um curso de costura. Foi assim e o dinheiro que elas ganhavam era tudo para elas. Elas já tiveram uma vida muitas vezes melhor do que a minha. E as filhas delas agora já não passam o mesmo que elas. Que elas ainda passaram alguma fomezinha, porque eu não era capaz de arranjar dinheiro para elas. Aos 11 anos foram para as fábricas do tomate, para Coruche, Benavente. Elas ficavam em barracões. Dentro de uns barracões que eles lá tinham para elas dormirem. Iam mais a mãe. A mãe fazia tudo. Depois foram viver para a Baixa da Banheira. O marido de uma delas tinha lá um emprego. E a outra tem uma sapataria. As minhas netas andam a estudar. Ao pé das mães, elas já são milionárias. E eu depois fui preso, porque era um descontente da sociedade. Via que isto não estava bem. Não ganhava… Pensava assim: eu trabalho até me cansar. Desde de manhã que saía, até à noite que entrava na minha casa, ganhava 17$00, trabalhava 17 horas. A 10 tostões a hora! Nessa altura quando eu comecei a ser descontente foi na vida da tropa, em 1944, 45, 46. Na tropa havia uns que comiam alguma coisa, e eu com fome… Eu fui para a tropa para o Campo Grande, em Lisboa. 162

Estive lá dois meses no Campo Grande, depois fui ali para o Campo da Ota. Depois, quando jurei bandeira, fui para Moçambique. O primeiro bife que comi foi em Moçambique e foi de popoto109. De Moçambique fui para Timor. Estive em Timor oito meses e tal. Corri três partes do mundo. Mas aquilo em Timor era mau, mau, mau. A gente amolecia a roupa toda com tanto suor. À sombra era 40º quase sempre. Quase todos os dias estava a 40. E pronto, dei-me sempre bem. Porque, está claro, ganhava algum dinheirinho, e tudo quanto ganhava, eu queria lá saber de juntar. Comprava latas de manteiga, comprava cervejas, comprava várias coisas que podia apanhar. E lá comi três meses por minha conta. Aquilo, o rancho estava tudo podre. O calor era tanto! Havia lá era uma melga, quem apanhasse uma mordidela daquela melga já sabia que ao fim de poucas horas estava no hospital. Nunca mais me esqueci, segunda-feira de Páscoa de 46, vinha a atravessar o Canal de Suez, apareceram no prato três batatas assim do tamanho de um ovo, e uma posta de bacalhau. Eu não gosto de bacalhau, dei o bacalhau a outro. Comi as três batatinhas, fiquei tal e qual como estava. Com 20 anos, fiquei tal e qual. Protestei. Apareceu às tantas um padre. “Querem uns bolinhos?” “A gente quer é encher a barriga. Não tem preciso de bolos. Suma-se com isso. Eu não preciso lá de bolos, eu preciso é de encher o estômago.” Na 1ª classe havia bandejas de bolos. Aquilo é que me revoltou. Porque é que aqueles têm? Mas a gente não podia protestar, senão ia para o calabouço. Eu revoltei-me por causa disso. E continuei revoltado. Filiei-me ao Partido Comunista em 1950. Era às escondidas, tudo, mas havia pessoas já filiadas. Aqui na vila uma meia dúzia deles. Era tudo secreto. O controlo trazia credenciais. Uma pessoa que vinha falar com a gente tinha de trazer uma credencial. A gente já cá tinha uma e era assim. Depois descobriram-me. Eu espalhava papéis. Não sabia ler, mas espalhava. Eu só aprendi a ler alguma coisa dentro da prisão. E fiz a 4ª classe aos 60 anos, aqui na escola da vila. Os que foram presos é que falaram em mim, pronto. Vieram aqui da PIDE, arrombaram a porta às três horas da noite. No dia 29 de Outubro de 61 levaram-me. Eu fui preso para Lisboa. Não matei, não roubei, estive lá cinco anos, cinco meses e 25 dias. Fui condenado por ter reuniões aqui e ali e, está claro, eu fui condenado porque não assinei nada do que eles queriam que eu assinasse. Julgaram-me, com testemunhas e tudo. Tinham lá as testemunhas deles. E por causa das oito horas. Eu fui mais condenado por causa das oito horas. O Juiz disse-me: “Lutou pelas oito horas? Veja lá se quer um advogado.” Aqui houve greve, sim senhora. Houve uma greve no dia 28 de Maio de 58. A gente pedia as oito horas e 35$00 e eles não deram nada. Os patrões chamaram a guarda. 109

Hipopótamo.

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Com certeza. Eles é que pagavam à guarda e à polícia, e à PIDE. Estava aí tudo cercado. Até logo aí levaram 18 presos. Nessa vez não me levaram a mim. Mas isto foi em 58, e eu fui preso em 61. E só em 62 é que eles as deram. Na prisão é que aprendi a ler, não porque eles quisessem. Tive um professor. O primeiro professor que tive foi um senhor que tinha sido preso por causa da libertação de Goa, Diu e Damão. Esse começou a dar-me escola. Ele e mais, andavam lá muitos. Falava 14 línguas e escrevia 14 línguas. Era muito boa pessoa. Enquanto estávamos lá dentro fazíamos planos para fugas. Então não sabe dos 10 lá de Caxias, e dos nove lá de Peniche? Nesse tempo a minha mulher trabalhou muito, coitadinha. A família ajudava, mas ela trabalhava todos os dias. Tinha pessoas que tinham o cuidado de lhe arranjarem sempre trabalho para ela trabalhar todas as semanas. Se ela precisava de ajuda recorria a um homenzinho que já morreu. Era um homem que tinha uma venda, onde a gente se aviávamos, fiado. De maneira que, quando eu fui preso, ela chegou lá e ele disse-lhe: “Então, dantes não comias? Agora continuas a comer!” Quando saí estava sempre marcado. Tive muitas dificuldades em arranjar trabalho. Eles não queriam dar-me, está claro… Eu não tenho culpa, então, eles é que me fazerem assim! O presidente da câmara um dia disse-me: “Você vai é fazer greve, você assim e assado. Eu tenho de lhe arranjar é patrão para uns anos!” Cheguei a andar nove semanas sem trabalhar. Passei pela praça e vinha o lavrador para quem eu trabalhei durante anos e disse-lhe: “Sr. Fulano, tenho as minhas filhas sem pão.” E ele meteu a mão no bolso, puxou um maço de notas e deu-me 50$00. Nem uma palavra me voltou. Eu só disse: “Obrigado.” Isto em 50, mais ou menos. Em 61 pediume esse dinheiro. 50$00! Em Fevereiro de 61. Eu sei isto porque dias depois fui para a boca do túnel arranjar cascalho. Fui quando começou a barragem. E depois em 61 pedi-lhe trabalho, em Fevereiro, e ele: “Nã te esqueças que ainda me deves 50$00.” Para quem foi para lá aos sete anos e abalei de lá aos 20 e tal... As obras da barragem vieram melhorar um bocado a vida das pessoas. A gente entretia a arrencar pedra. Arrencar a pedra para o paredão, aquilo é tudo pedra. Arranjei muita pedra para a barragem. Nessa altura nunca mais houve desemprego. Em 59 comprei uma bicicleta a prestações. E tive de deixar de fumar para a comprar. Antes era tudo a pé, era hora e meia para lá, hora e meia para cá, a andar. Aí em 70, quando começaram aqui as fábricas, começaram os arrenques aqui das árvores, já a gente ganhava aí 50$00. Nunca tive período de férias, nem descanso, nada. O descanso que tinha era obrigado, quando não tinha patrão. 164

Quando se deu a revolução eu estava a trabalhar em Lisboa. Estava a trabalhar no quartel do Paço do Lumiar. No quartel da força aérea. Aqui não me davem trabalho, fui para lá trabalhar. Trabalhei lá três anos e tal. Então um dia estávamos lá, estava mais um rapaz daqui perto dentro de uma barraca. E tínhamos um aparelho de rádio, daqueles de bolso. Às seis horas começo a ouvir “Atenção, atenção, forças motorizadas, atenção forças motorizadas: não façam derramamento de sangue, que Lisboa está cercada! Atenção, atenção.” E eu ouvi isto: “Ó Zé, ó Zé, estás a ouvir?” Assim que ouvi: “Calma aí, pá, que a gente não sabe o que é isto.” Então ópois fomos trabalhar ainda, mas eu não estava bem. Só fiquei descansado quando ouvi dizer: “Atenção, atenção, as forças, o povo de Peniche está a ir para a prisão para libertar os presos políticos.” Aí é que eu fiquei descansado. Ainda lá fiquei nessa semana, e depois eu vinha cá de 15 em 15 dias. Depois vim esse fim-desemana, ainda lá tornei a ir, depois nessa altura fui para Oeiras, e de Oeiras vim-me embora. Eu participei nas ocupações. Estive numa herdade aquase quatro anos e fiquei lá a mandar e a organizar o trabalho. Enquanto lá estive não me calhou dizer nada… Cada herdade tinha uma comissão. E a certa altura começou a haver problemas de falta de dinheiro por alguns andarem a embolsar dinheiro. E depois a coisa não correu bem. Esses não eram comunistas a sério, erem os fingidos. Naquela altura não sabíamos, agora é que temos descoberto. Muitos arranjarem casinhas para morar. E eu, que andei em tudo, não tenho uma casinha para morar. Estou a pagar renda. Nunca me dei mal com o chefe da cooperativa. Foi ele que me disse assim: “Queres vir mais eu?” “Adonde?” “Vamos ali aquela herdade, vamos ocupá-la.” E fui mais ele, cheguei lá, tomei aquilo! Quando chegámos os operários que lá andavam ainda não tinham despegado. Cheguei lá e ele disse lá para a malta que lá andava a trabalhar: “Rapaziada, isso acabou lá para o patrão, e agora somos a gente!” Não levámos nada, nem mais ninguém. As pessoas estavam todas satisfeitas, e trabalhavam, ganhavam mais, andava tudo contente… Nunca mais aquela herdade deu tanto azeitona como quando a gente lá esteve. Quando houve a desocupação da herdade também não houve problemas. Mas muitas pessoas foram para o desemprego. Eu depois fui trabalhar para o bar da cooperativa e logo a seguir reformei-me. Eles queriam que eu lá ficasse mais um ano. Eu tive uma zanga e já lá não voltei. Nunca mais trabalhei para ninguém. Tenho uma horta, trabalho na horta, lá mais o meu sobrinho. Arranjo feijão, arranjo batatas, arranjo tudo.

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Agora a terra está parada! É culpa dos proprietários das terras e é culpa do governo.

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21 – Pastor. N. 1937, 61 anos. Eu tenho uma alcunha, sou conhecido pelo “Fala-pouco”. Dantes eu falava pouco, lá nos montes, a gente envergonhava-se. Já morreu o homem que me deu o nome. Moro na vila, numa casa à renda. Nasci num monte. Os meus pais trabalhavam lá, morreram lá. O meu pai morreu lá. Comecei lá no azeite. O meu pai trabalhava à jorna. Éramos três filhos, duas raparigas e um rapaz. Nasci lá e de lá casei. Casei e depois abalei de lá com 27 anos. Comecei a trabalhar pequenino. Nunca fui à escola. Comecei a trabalhar… Fui guardar gado, era a única coisa que sabia. Primeiro andei com porcos. Depois andei com umas vacas. Depois comecei com ovelhas. Agora ando só com ovelhas. Nessa altura, a gente éramos três irmões, era uma sardinha partida pela gente os três. E era quando havia. A primeira vez que me calçarem sapatos andava agarrado à porta, não sabia andar. Tinha para aí seis ou sete anos. Era descalço. A minha mãe tinha uma horta, ao menos comíamos legumes. E pão. Tínhamos lá umas galinhas, matava um bacorito110, engordava-o. Fazia chouriço, morcela. Mais ou menos. Mas sempre poucochinho. Havia piores. Eu nunca passei assim fome. Depois quando comecei a andar em ajuda o comer era ruim. A minha mãe trabalhava. Trabalhou sempre até quase… Até morrer. A gente trabalhava para vários patrões, onde se apanhava: umas vezes para aquele, outras vezes para outro. Era onde se apanhava. Tínhamos que levar a comida. Às vezes levava-se o comer e fazia-se lá. Havia uma cozinheira para fazer o comer. Mas quando começou isso das oito horas, é que já levava fêto. Eu nunca fui à tropa. Fui apurado e depois livraram-me. Quando houve as greves eu estava no monte, eles vinham nas camionetas para me prender. Quando viram o pessoal parado foi lá com a guarda, mandou-os carregar todos para cima das camionetas outra vez para os levar para o posto da guarda. Levaram umas porradas ainda. E foi também no posto que levei as oito horas. Depois no outro ano a seguir, em Maio foi as oito horas, também. Tivemos de fugir que a guarda queria bater na gente. Nesse dia cheguei lá e disse que não trabalhava e depois o patrão abalou logo para o posto da guarda. Fomos para o posto e tomaram o nome, só. E mandaram a gente embora lá dessa herdade. Nunca mais lá trabalhei, tinha o nome escrito, nunca mais a gente trabalhou nessa herdade. Não havia desemprego nessa altura111, fomos para outro lado. Arranjei logo. Já havia assim algum trabalhozinho.

110 111

Cria do porco. Refere-se ao subsídio de desemprego.

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Quando casei fiquei lá nesse monte onde o meu pai morreu, e nas mesmas casas. Tenho um filho. A minha mulher também trabalhava no campo. Nessa altura já havia reuniões de trabalhadores, de noite. Eles abriam os olhos à gente, vinham dar instruções à gente: que era assim, que era assado, que era desta maneira, que era daquela. Eram do partido. Do Partido Comunista. Eu depois foi para o partido, só deixei de pagar há pouco tempo. Havia alguns que distribuíam papéis, ópois erem apanhados, levavem porrada. Eu nunca distribuí. Nessa altura queria trabalhar, ganhar mais. Essas coisas assim, era as oito horas. Era de sol a sol. E depois do pôr-do-sol… Esses que abalavam, esses que refilavam, mandavam-nos embora. Fui pastor com 17 anos. Já podia ter os provilhais do gado. O gado que a gente tem nosso é o provilhal. Anda junto com o rebanho do patrão. Também andei justo, ali numa herdade, andei em ganhão, a gente lidava com bois. Era a comer, pão de milho com azeitonas, dessas bem azedas. Ainda pensei ir para fora. Deu-me uma vez de ir para a França, a salto… Depois tinha gastado o dinheiro numas ovelhas que comprei. Não tinha dinheiro, não me davam nada por elas, fiquei cá. Quem para lá foi, foi para ganhar melhor. Antes do 25 de Abril, mais ou menos nessa altura já estava assim um bocadinho, um bocadinho melhor. Eu estava num sítio que ganhava já assim um bocadinho melhor, era pastor e tinha direito à casa. Até gostava do patrão. Depois deu-se o 25 de Abril, e depois aí zangarem-se. Apanharem as herdades, depois ele não gostou! Eu tava lá na ocupação e fiquei. Nesse dia parámos. Depois continuámos todos a trabalhar, com vontade, e pronto. Foram lá uns do Centro da Reforma Agrária, fazer a escrita, as coisas. A tropa também lá foi. Havia uns que eram do sindicato, mas eu não tirei a carta, eu não sabia ler, também, por isso não me inscrevi. O dono da terra nunca apareceu, só lá apareceu o feitor, a gente botou-o a andar lá para fora. Mas não se tratou mal ninguém. Nessa época eu fui votar, fazíamos parte dos comícios, essas coisas. A gente ia a todo o lado. A minha mulher já tinha morrido. A minha mulher morreu antes do 25 de Abril. O meu filho foi criado em casa da avó. Eu fiquei pastor à mesma. Formou-se uma comissão de quatro ou cinco. Esses é que mandavam. Eu pertenci à comissão, mas foi pouco tempo. Havia umas reuniões, aquilo correu bem, até um certo ponto. Eu falava um bocadinho, mais ou menos. Depois quando começámos a ser menos, eles deixaram de pagar à gente. Começaram a metê-lo ao bolso. Eles começarem a dar cabo de tudo. Começaram a 168

abalar um, a abalar outro, para onde apanharam trabalhos. Os outros não pagavam. E eu andei lá quatro anos sem receber. Vivi do dinheiro do gado que tinha, do meu provilhal. Passei dificuldades. Depois mudei-me. A entrega foi pacífica. Tudo o que lá estava dentro da propriedade ficou lá, gado, ficou tudo o que era dele. O dono tomou conta de uma parte, depois mais tarde tomou conta de outro bocado, depois houve mais cinco gajos que tomaram conta do resto. Eram daqueles agricultores… Esses é que lhe apanharam lá a herdade, que tomaram conta do resto. Ainda hoje ele lá não entra. A cooperativa não ficou com nada. Foi uma lei que saiu: tirarem à cooperativa para dar àqueles gajos112. Aquilo, nunca mais o apanha. Ele nunca mais é dono daquilo. Esses é que deram cabo disso tudo. Quando foi entregue o monte eu fui lá para baixo, para o pé da barragem, para uma herdade que a cooperativa trazia à renda. Estive lá 20 anos naquele monte. A gente nunca se zangámos. Fomos indo embora. Abalava um, abalava outro… E eles forem ficando. Ópois eu tive de me vir embora, porque já o último que lá estava. Houve um que ficou lá com tudo. Eu queria era matá-lo! Metemos aquilo em tribunal, o tribunal nunca mais disse nada. Já vai para três anos. A terra estava à renda. Aquela terra que a gente tinha só já estava à renda. Ele tem tudo, estivemos todos a trabalhar para ele, estivemos aí uns 400 a trabalhar para ele. Tudo abalou! Ficámos lá três. Os outros dois forem-se embora também, fiquei eu. Ainda não tenho casa própria, vivo mais ou menos, mal. Isto não deu em nada. Não deu em nada porque eles forem malandros. Quando eles começarem a botar o dinheiro para o bolso, foi quando se estragou tudo. Era limpar-lhes o sebo. Eu ainda sou comunista, mas deixei de pagar as cotas no ano passado. Penso que a culpa foi desses que se faziem comunistas e que não erem. Eles roubarem a gente! Enquanto eu lá estive a propriedade estava bem tratada, estava sim senhora. Estava melhor do que ó que está agora! Eu com o patrão ganhava mais, e podia mandar em mim. Com a cooperativa já não estive tão bem. Eu até gostava dele. Por acaso aquele trazia muita gente a trabalhar e não era mau. Mas saiu aquela lei e teve de ser. Ele é que não gostou de mim, nem da ocupação. O meu filho foi para a freguesia, é lá escriturário. Ele fez o 12º ano, parece-me. Depois não quis estudar mais, que ia para a tropa e que estudava lá. Tinha que ir para Lisboa ou para Évora. Depois teve azar na tropa, teve um acidente, partiu uma perna, um maxilar, e depois já não pôde ir para a tropa. Ele já teve uma vida melhor, já 112

Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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casou, viveu em casa da avó. Depois a avó morreu, foi para casa duma tia. Depois casou-se há dois anos, está em casa do sogro. O sogro tem lá duas moradas. Está ele numa, o sogro noutra. Está melhor.

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22 – Empregada de escritório duma Fundação agrícola. N. 1951, 47 anos. O meu pai era porqueiro e trabalhava aqui para a Fundação. Havia uma grande exploração de suínos. Ele trabalhava numas malhadas que entretanto foram demolidas porque elas estavam já dentro da povoação, depois saiu uma lei que não podiam estar as malhadas ao pé das povoações. Ele ia com os porcos para o campo e depois à noite regressavam para as malhadas. A minha mãe também trabalhava no campo. E as minhas irmãs. Eu sou a mais nova, por isso é que sou a única que não fui ao campo. Eu fiz a instrução primária, porque havia aqui uma coisa na Fundação, que o proprietário também deixou em testamento, que os filhos dos empregados iriam estudar e que a Fundação dava uma ajuda. Era para os funcionários que tivessem umas certas regalias, que eram os assoldados, os trabalhadores fixos. E os que não eram fixos eram considerados eventuais, eles davam-lhes o nome de jornaleiros. E eu tive a caridade de poder estudar. As minhas irmãs não estudaram. Entretanto eu aos 13 anos comecei a fazer costura. Depois estudei à noite, acabei por tirar o 2º ano113 e pronto, depois tive uma formação ligada com contabilidade mesmo dentro da Fundação. Isto tudo antes do 25 de Abril. Ainda fui para Évora três meses e meio. Porque na altura quem dava apoio contabilístico aqui era um senhor que ainda foi director-geral das contribuições e impostos. E esse senhor achava que eu ainda era nova e que devia aprender umas coisas. E eu fui para Évora ter explicações de contabilidade com uns senhores que se tinham formado em contabilidade. E foi a Fundação que pagou. Depois vim, tirei o curso de dactilografia, o sistema de treino durante cinco anos. As minhas irmãs trabalhavam no campo, faziam tudo na altura: azeitona, ceifa, ainda ceifaram à mão. Depois casaram, deixaram de trabalhar no campo. Os maridos tinham empregos, podiam sustentá-las, e abalaram daqui. Os meus cunhados tiraram cursos de agricultura na Paiã. Depois um outro curso que a Junta de Colonização Interna deu e depois o próprio Estado colocou-os em herdades para explorar. Eram herdades de lavradores que tinham ido à falência e o Estado tomava conta delas. Era mais no Baixo Alentejo. Havia muitas, uma ao pé de Beja. Houve outros rapazes daqui que foram para lá. Eu nunca liguei muito a essas coisas da política. Também no ambiente da minha casa nunca deu para me aperceber dessas coisas. Eu ouvia falar, eu era nova e lembro-me que havia aí pessoas que de vez em quando iam presas e depois diziam que eles eram comunistas. Lembro-me que durante o trajecto para a escola víamos 113

Actual 6º ano de escolaridade.

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panfletos e muitos papéis e as pessoas mais velhas diziam: “Ai filha, não apanhes isso!” Era assim, despertava mais a atenção, era quando a gente mais apanhava e lia. Nessa altura era a reclamar as oito horas. Mas nunca dei por haver greve. Eram só as pessoas a passarem os papéis. Lembro-me de ouvir lá em casa falar que a Fundação deu as oito horas. Na altura os salários não eram muito grandes, mas a Fundação era a casa que pagava melhor e dava melhores condições de vida. A casa empregava cento e tal pessoas, mas havia campanhas em que metiam mais gente, mas não era muito. Eles tinham mesmo muito pessoal, não havia desemprego. As pessoas, umas recebiam ao mês, outras recebiam à semana. E havia as comedorias: as pessoas tinham um salário e mensalmente davam-lhes azeite, farinha e grão ou feijão. Era aquilo que houvesse. Os meus pais moravam numa casa arrendada. Houve uns que tiveram casas. Por exemplo, a Fundação deu um terreno lá em cima ao meu sogro, e ele fez o sacrifício de lá fazer uma casa. Depois eles não compravam o terreno e todos os meses pagavam um foro à Fundação e depois acabavam por ficar com a casa, fizeram escritura e tudo. Os meus pais nunca chegaram a ter, também éramos três filhas, havia muito sacrifício. Eu casei em Outubro de 75. O meu marido era mecânico, também aqui da Fundação. Ele tinha feito a tropa, foi ao Ultramar, depois quando regressou casámos. Depois de cá chegar pôs-se assim um bocado revolucionário. Ele tinha a ideia dele e eu tinha a minha. Eu também não o influenciei. O meu sogro também era assim uma pessoa muito revoltada. Eles não davam o nome de revolucionários: não estavam bem com o regime. Mas depois deu-se o 25 de Abril... O meu sogro também trabalhava na Fundação. Ouço dizer que ele era muito reguila, quando achava que isto não estava bem dizia. Ainda foi castigado algumas vezes. Depois eles faziam castigos aos trabalhadores: por exemplo havia um mês que descontavam um dia. Não os punham na rua, mas iam-nos castigando assim. Depois, passados uns tempos, a Fundação passou a dar umas gratificações, distribuía os lucros do ano agrícola e depois fazia uma festa e distribuía, chamavam eles, as gorjetas e por vezes havia um que não se portava tão bem, do ponto de vista deles, e em vez de receber digamos 500$00, só lhes davam 400$00. O presidente da Fundação acabou por ser saneado após a ocupação. Mas antes, o tempo que eu estava no escritório, entrava o presidente da Fundação e eu tinha de me levantar. Ele cumprimentava. E eu não me sentava sem ele autorizar. Eu costumo dizer que esta geração... Podia não estar bem, mas a gente era educada no

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respeito uns pelos outros. E eu tinha um grande respeito por aquela gente. Comigo ele sempre foi muito simpático. O anterior presidente é que era daqueles que chegava aqui… Eu lembro-me de vir aqui e ele estava a chegar na altura e todo o pessoal tinha de vir ao pátio tirar o chapéu. E as senhoras que trabalhavam lá em cima na casa tinham de vir cá abaixo para o cumprimentar. Quando ele saía do carro, os funcionários que usavam boné ou chapéu, todos tinham de fazer a vénia. E houve uma altura, presenciei eu, tinha vindo fazer umas compras, era gaiata, e há uma funcionária na cantina que não veio fazer os cumprimentos. Ele foi lá e perguntou-lhe: “Ó Manuela, porque é que não vieste cumprimentar-me?” Ela depois teve de dar uma desculpa. Ele era assim, chamava a atenção. Por isso foi natural algum sentimento de revolta por causa disso. Quando foi a ocupação houve muitas pessoas a dizer que a Fundação foi ocupada porque ele foi assim ou porque ele foi assado. Tinham um ódio muito especial era aos ricos: eram os latifundiários e eram os reaccionários. E eram os fascistas. Eram as palavras que a gente começou a ouvir. Para mim eram palavras novas, porque eu nunca tinha ouvido falar. Em relação ao último presidente, eu acho que foi uma grande injustiça. Na altura a Fundação já dava férias, já dava subsídio de férias. Como era uma instituição particular de solidariedade social, a certa altura saíram umas leis para essas instituições em que eram obrigadas a cumprir isso. Em 74 começámos a receber esse subsídio. E ainda existe a casa de repouso. A intenção quando ela foi feita era precisamente para quando os trabalhadores fossem velhinhos e não pudessem trabalhar irem para lá. Quando houve o 25 de Abril, naqueles primeiros meses de 74 a Fundação continuou a trabalhar normalmente. No Verão de 74 as pessoas começaram um tudonada já a agitar-se. No 1º de Maio houve uma grande manifestação aqui na vila. Vieram pessoas de Lisboa. Mas tudo bem, até foi uma festa bonita. Ninguém falava, ainda não tinha havido tempo. Foi uma semana depois. Em Agosto, até ao fim do ano, as coisas começaram a complicar-se, as pessoas começaram a andar agitadas. Há um senhor que esteve muitos anos preso, era esse que espalhava os papéis. Ele é que ajudou a agitar isto. Eu só assisti a um comício, na Casa do Povo. Mas comecei assim a ter, não era bem medo, sentia-me mal. Porque eu comecei a ver que as pessoas estavam a mudar a maneira de ser. Os sentimentos. Eu comecei a andar assim um bocado... Andava tudo doido.

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Os meus pais nunca foram pessoas destas ideias da política, eram considerados da reacção. Eu já namorava com o meu marido desde antes do 25 de Abril e ele era do lado deles, daqueles que tinham ocupado. Ele só agora é que começou a ver que realmente as coisas não andavam tão bem e deixou-se dessas coisas. Mas naquela altura ele ajudou muito também a agitar as coisas. A ocupação deu-se em 21 de Fevereiro de 75 e logo nas semanas seguintes começaram a ocupar outras herdades. A ocupação foi numa noite de sexta para sábado. Isto estava fechado. Isto tinha um guarda do portão e tinha umas senhoras que dormiam no prédio. Elas tinham direito à estadia. Eles bateram à porta, elas estavam deitadas. Veio um grupo de homens. Por aquilo que me disseram, na altura veio um senhor, que não trabalhava na Fundação, mais dois ou três funcionários aqui da Fundação. Disseram-lhes que elas estivessem calmas, que não se assustassem, mas que eles vinham aqui ocupar a Fundação. Claro que nessa noite elas tiveram que ir para as casas delas. A GNR nessa altura para eles também era reaccionária. A própria GNR não tinha força nessa altura para dizer: “Deixem-se lá estar sossegados, não façam isso”. Eles avançavam simplesmente. Quando eu me apresentei ao trabalho, na segundafeira, o portão estava fechado, tinham que mo abrir para eu entrar. Só entrei eu, o tesoureiro, e mais outro funcionário. Ao chefe de escritório não o deixaram. A partir daí era só eu e outro rapaz a trabalhar no escritório. O presidente já andava desconfiado, ele estava à espera a todo o momento que houvesse aqui qualquer coisa. Pelas reacções das pessoas... Não o insultaram porque ele não veio cá. Eu estou convencida que se o senhor aparecesse nesse dia insultavam-no. Os contactos depois foram através do governador civil. Nessa altura estava lá um senhor que também apoiava isto tudo. Depois passados uns dias esse senhor veio cá e fez um discurso ali na varanda com o pátio cheio de gente. Depois formou-se um género de uma comissão, chamada Comissão ad-hoc. Fazia parte um senhor que agora é o presidente da câmara. Quando isto foi ocupado ele exercia aí funções técnicas. Até era uma pessoa que eu sinceramente nunca pensei que ele enveredasse por esses caminhos. Era uma pessoa que eu considerava uma pessoa honesta. A Fundação era uma instituição diferente das herdades aqui à volta, porque tinham donos, esta não tinha donos. O proprietário tinha deixado isto aos trabalhadores. Depois passado uns tempos veio-se a saber. Isto foi uma euforia. Parece que até no PC eles ficaram bocado incomodados e chateados porque isto não era para ser ocupado. Mas é natural que o sistema cá dentro mudasse.

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E começaram a ouvir-se aquelas palavras de ordem: “Abaixo a reacção”, depois passava-se ao “mata-se” e “esfola-se”. Eu não assisti, mas ouve uma manifestação na rua, e depois chegavam à porta das pessoas que eles consideravam que não eram do lado deles. As pessoas diziam que os quiseram matar. As pessoas juntavam-se às portas e gritavam. Chegou a haver violência: quando veio cá o Dr. Mário Soares houve violência. Ele veio em Fevereiro de 76. Na altura fundaram aqui o Partido Socialista, e ele veio visitar a sede, que por sua vez era uma casa da Fundação. Arrendada. E ele veio visitar. Era uma altura que eu até tinha medo de sair à rua. Eu vinha ao escritório, mas ao fim-de-semana fechava-me em casa. Tinha medo, porque as pessoas provocavam, mandavam bocas. E o Mário Soares estava no largo do café a discursar e houve um grupo de comunistas que começou a organizarse e começou a haver pedras no ar e ele ainda levou uma pedra na cabeça. Ele fugiu, levaram-no, ainda entrou ali em casa de uma pessoa ali perto. E deram-lhe um capote. Quando ele voltou à Fundação, veio visitar a Fundação como Presidente da República, houve pessoas que assistiram ao outro espectáculo, e batiam palmas e estavam eufóricas. Quando a Fundação foi ocupada em 75, nesse 1º de Maio de 75 fizeram uma grande festa lá em cima nas instalações da escola profissional. E a adega é ao lado. Na altura ainda não tinham ocupado uma das herdades mais distantes. E havia lá veados. E eles foram buscar um veado ou dois, mataram-nos e comeram-nos. Havia carne com fartura. Matavam porcos debaixo de uma azinheira, isso lembro-me eu, cortavam aos bocados... E mataram touros reprodutores. Matavam tudo nessa altura. Por exemplo, havia uma quantidade de porcos, em vez de os venderem, faziam estas festas assim, matavam e comiam. Eles de noite comiam e bebiam com fartura. Eles uma noite esqueceram-se de levantar a mesa. Um dia eu entro e vejo aquilo tudo, restos de queijos, chouriços, os copos de vinho... A Fundação tinha os armazéns cheios de azeite. Havia algum cereal nos celeiros. Ali no prédio faziam-se matanças de porcos, portanto a Fundação tinha muitos enchidos. Faziam-se queijos, a Fundação tinha muitas ovelhas e cabras. E os queijos eram para vender e também para consumo ali do prédio. As pessoas iam ali almoçar. Por exemplo, o feitor da Fundação tinha direito ao pequeno-almoço e ao almoço. Ele ficou cá, mas deixou de exercer as funções de feitor porque deixou de existir feitor. Mas ninguém reagiu à ocupação, porque quem tentasse reagir sofria consequências: depois de terminarem o trabalho não lhes davam trabalho. Uma pessoa a trabalhar uma vida inteira aqui na Fundação e começaram a mandá-los para 175

outras herdades. O meu pai foi um dos que sentiu muito. O meu pai foi colocado numa herdade que eles tinham ocupado e ele nem nunca lá tinha ido, era muito longe. O meu pai adoeceu, teve um problema de saúde, esteve internado no sanatório de Portalegre e esteve uma quantidade de meses que não podia trabalhar. Depois quando teve alta teve de se apresentar. Entretanto o meu pai estava nos porcos. E o médico tinha-lhe recomendado mudar de serviço, que os porcos não eram muito aconselhados para o problema que ele tinha. Então nesse trabalho ele ia à segundafeira de manhã e só vinha ao sábado à noite. Dormia lá, tinha de levar comida para toda a semana. Ele dormia mal, o monte estava abandonado. Como o meu pai não era apoiante deles, era considerado da reacção, então foi desterrado. Eu dirigi-me a um senhor que na altura fazia parte das comissões e que por acaso era tio do meu marido, e perguntei-lhe porque é que tinham mandado o meu pai, uma pessoa que tinha que ter uma alimentação diferente, tinha de tomar medicamentos a tempo e hora, e perguntei-lhe porque é que tinham mandado o meu pai para a herdade do “Não vás lá”. A resposta desse senhor, que pertencia à comissão: “Então, querias que eu pusesse o tê pai aqui no escritório?” Claro que eu fiquei embuchada, fiquei nervosa, cheguei a casa e chorei, fiz as queixas ao meu marido. Não gostei, e perguntei-lhe: “O que é que nós fazemos?” Ele então, chegou ao sábado e choveu muito. E há um ribeiro que encheu e não dava para ele passar. Já eram 11 e tal da noite, de Inverno, foram buscá-lo num jipe. A partir daí já ficou a trabalhar mais perto. Aqui era mais o medo. Por exemplo eles apresentavam-se com espingardas às costas, mas nunca apontaram espingardas a ninguém. Mas impunham respeito. Eu entrava ali ao portão quando vinha trabalhar e as espingardas metiam respeito. Eu tinha 20 e poucos anos e tremia sempre! As condições de trabalho aqui no escritório ficaram muito más. E deixei de atender telefones. Como eu era considerada reaccionária não podia mexer no telefone, eles é que passavam o dia inteiro ao telefone. Eu comecei por escrever cartas que acabavam: “A bem da Nação”, e agora as cartas tinham todas: “Saudações democráticas”! O meu marido continuou a trabalhar no mesmo sítio, na oficina. Ele era mecânico e continuou lá, ainda hoje continua. Na altura havia muitos trabalhadores. Isto chegou ao ponto que as pessoas eram tantas que, quando chegávamos ao fim do mês para os pagamentos, já ninguém conseguia controlar ninguém. No ponto semanal eles apresentavam-se e eles é que diziam o tempo que tinham. Nós estávamos a fazer recibos à mão e depois estava aqui um senhor que puseram aqui no escritório a

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supervisionar como é que as contas eram feitas. Eles entravam um de cada vez e depois estava outro senhor para pagar. Havia vários encarregados. E aí é que eles se começaram a desentender. Por exemplo, havia um que trabalhava aqui e queria mandar aqui. Depois vieram outros estranhos à Fundação que começaram a ser eles os mandões. Os que cá estavam começaram a não gostar. Nós aqui ficámos a ganhar mais ou menos o mesmo que ganhávamos antes. Mas eu acho que as pessoas não estavam mais satisfeitas por estarem na cooperativa. Eu pessoalmente não estava. Outros… As pessoas andavam eufóricas. Depois foi então que foi desanexado. Porque entretanto os funcionários que não estavam de acordo com a ocupação da Fundação começaram a movimentar-se e a organizar-se. Mas tudo secretamente. E começaram a fazer um abaixo-assinado para pedir que a Fundação voltasse a ser Fundação. Foi feita essa recolha, eu vim a ter conhecimento disso, mas nunca o disse a ninguém, principalmente lá em casa. Os meus pais foram chamados a casa de um desses senhores. Perguntaram-lhes se estavam de acordo, se queriam assinar. Eles assinaram. A minha mãe assinou porque sabia assinar. O meu pai não sabia, mas pôs o dedo. E eu fiquei com um bocado de receio se ele ainda era mais lesado do que andava a ser. Mas eles tiveram que arriscar. A mim nunca me disseram nada, por causa do meu marido. Depois quando chegou antes do Natal foi quando veio mesmo uma notificação do ministério a dizer que tinham de sair, eles tinham de deixar as instalações, e a Fundação tinha de voltar a ser Fundação por manifesto dos trabalhadores. Eu ainda vi esse documento. Dever estar no Governo Civil, pelo menos uma cópia deve lá estar. Isto foi desanexado, veio a GNR, que nessa altura a GNR já tinha assim um bocadinho... Eu também não vi, nem saí de casa porque eu tinha medo daquelas coisas. Era frio, era de Inverno. E então dividiram-se logo aí, uns a querer a Fundação, os que estavam do lado deles e os que estavam no outro. Depois no dia 1 de Janeiro a Fundação voltou a ser Fundação. Depois perguntaram-lhes se queriam cá ficar, para eles saberem com quem podiam contar. Aqueles que assinaram, à partida ficaram todos. E depois havia aqueles que eram considerados os comunistas. Mas muitos deles começaram a andar inseguros e a ver que as coisas realmente não andavam para o lado deles. Os que pertenciam cá ficaram cá todos. Depois portaram-se bem, foram bons rapazes, as coisas organizaram-se. Depois já não houve grandes problemas. Claro que financeiramente a Fundação ficou a zeros. Tinham os celeiros cheios, a abarrotar, mas 177

o gado não estava em muito boas condições, tinham-se desfeito de uma manada de éguas, houve alguém que ficou com a massa... Quando isto foi desanexado houve o levantamento dos bens e viram o que existia na altura da ocupação. Eles tiveram de repor o gado. A Fundação tinha gado bom, saudável. E o gado estava pelas herdades, tudo doente. O parque de máquinas eles tiveram que repor. Algumas máquinas um bocadinho cansadas... Durante o período da ocupação acho que foi tudo assim à rédea solta, cada um puxava para seu lado. Eu não tinha acesso à contabilidade. Eles não me puseram na rua, mas eu só me limitava a fazer aquilo que eles me mandavam e o serviço que eu fazia anteriormente, quando o chefe do escritório foi saneado, deixei de o fazer, que era parte da contabilidade. Nunca mais tive acesso a nada. Não tinha acesso aos estratos bancários, nem nada. Não tenho noção nenhuma se eles fizeram desvios, se não. Falava-se que muitos iam fazer compras para Lisboa e que levavam cheques em branco. E houve uma vez que assisti a uma discussão entre um senhor que na altura estava lá no escritório e um dos que era chefe, que pertencia à direcção, e que abalou para Lisboa com um cheque em branco para fazer compras. Porque entretanto eles tinham um género de um supermercado lá na escola, na Casa da Malta. Ele ia abastecer-se a um armazém a Lisboa. Quem ia fazer as compras era esse senhor. Eles é que sussurravam. Dizem que esse pelo menos que ficou bem. Se ficou ou não, são coisas que a gente não sabe... Depois quando isto foi desanexado vieram uns funcionários do Estado, ali da Zona Agrária, intervieram aqui no que era preciso fazer, no crédito agrícola de emergência, para isto começar a funcionar. Durante pelo menos dois anos foi para arrumar a casa. Depois fez-se um género de uma comissão de trabalhadores da Fundação. Entretanto era necessário um advogado para este sistema todo começar a funcionar, para ir ao ministério, para os acompanhar, para saber as coisas legais. São pessoas que... Um era o carpinteiro, outro era o feitor, quer dizer, com poucos conhecimentos. Era preciso uma pessoa que fosse a determinados sítios. Depois veio um senhor técnico agrícola. Durante sete anos as coisas também não andaram bem. O crédito tinha juros altos e a dívida sempre a subir. Até que a dívida foi perdoada. Como era uma instituição de solidariedade social, houve muitas coisas a favor da Fundação, e eles conseguiram ultrapassar isso. As coisas mais ou menos equilibraram-se, o lagar funcionou, venderam azeite, mas depois começou a estar o parque de máquinas velho, a precisar de ser reparado. Os gados... Era o gado vacum e as ovelhas, a vacaria que dava leite. Neste momento a Fundação está com muitas dificuldades financeiras. Em 1984 ou 86 começou a haver os fundos comunitários, 178

tudo bom na agricultura. A Fundação em 87 estava em pleno. A Fundação fez projectos, foi feito um projecto para uma barragem, instalações que estavam degradadas foram todas restauradas. Electrificações rurais, que não havia nada, foi tudo feito. Depois nos anos seguintes os pagamentos começaram a vencer-se e aí depois é que começou o problema todo. Depois houve má gestão de outras pessoas. Mas eles aguentaram sempre os trabalhadores, não se despediu ninguém. O problema era aí, era a sobrecarga de salários, de encargos, tudo. Chegava ao fim do mês as coisas eram um bocado complicadas. Mas nunca ficámos sem receber salário. Eu sou pessimista por um lado, mas sou optimista por outro. O governo tem ajudado a Fundação. É uma instituição sem fins lucrativos, é para os funcionários. Depois houve aqui uma grande reestruturação. Tiveram de dar categorias a todos os trabalhadores, passámos a ser considerados função pública. O sindicato começou a andar aqui, a inspecção do trabalho, desde há uns quatro, cinco anos. Agora os parceiros sociais decidiram que as instituições particulares de solidariedade social teriam de ser integradas na função pública. E como tal tinham de se cumprir as categorias, os vencimentos, as diuturnidades. Agora está a ganhar-se como deve ser. Eu ainda tenho filhos em casa. Eles estudam, mas estão desmotivados. Não há nada para fazer aqui. Por exemplo: há uma escola profissional que os prepara nos cursos que lá dão. Mas depois a saída para emprego? Não há aqui empresas, não há aqui indústrias...

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23 – Engenheiro técnico agrário, presidente de câmara. N. 1944, 54 anos. Os meus pais eram trabalhadores rurais. Eu sou natural da sede do concelho, mas depois morei num monte. O meu pai era ganadeiro e a minha mãe trabalhava em serviços indiferenciados. Recebiam parte do salário em comedorias, o provilhal. Ainda me lembro do meu pai receber por mês 3$00, o que correspondia a um tostão por dia. Nasci em 1944. Somos três irmãos, eu sou o mais novo. Enquanto eu e a minha irmã fomos mais pequeninos, e o meu irmão era solteiro, e estava em casa, e o vencimento dele também revertia para o agregado familiar, talvez fosse fácil de aguentar. Logo que o meu irmão saiu, casou e constituiu família, fiquei eu a minha irmã que tem mais sete anos que eu. Logo aí começaram a surgir algumas dificuldades. O posto de trabalho, o meu pai tinha-o garantido, a nível de compensação havia algum descontentamento. Não havia regalias sociais, segurança social. Quando comecei a escola primária com sete anos eu vivia no monte e depois de ter estado lá até aos nove anos voltei para a vila. Para ir à escola primária tinha de vir todos os dias para a vila. Na altura não havia transportes como há agora. Mas havia aquela vontade de aprender e nós fazíamos esse sacrifício. A minha irmã também estudou até à 4ª classe. A seguir à instrução primária, como era normal, todos os jovens geralmente aprendiam um ofício. Eu não fugi à regra. Saí aos 10 anos e meio da 4ª classe e até aos 13 anos e meio andei a aprender um ofício que hoje praticamente já desapareceu: ferrador. Só quase com 14 anos é que fui para uma escola técnica agrícola, propriedade da Fundação. E foi aí que continuei a estudar. Fiquei lá interno. A minha irmã foi aprender o que também era normal na altura: a costura. Com essa escola, a Fundação anualmente mandava aqui para o colégio da vila alguns alunos, dois de cada ano. E eram aqueles que tivessem melhor aproveitamento. No primeiro ano não calhou, mas no segundo ano de estar na escola técnica calhou-me vir estudar para o colégio. E fiz aqui o 5º ano114. Depois a seguir fui para Escola Agrícola de Évora. Estive lá em 1965-66. Entretanto chegou a altura de prestar o serviço militar, fui, e de 66 até 1970 cumpri o serviço militar. Estive 17 meses cá na recruta, na especialidade, e a prestar serviços, depois fui mobilizado para Angola. Estive 26 meses e meio em Angola. Quando regressei fui concluir o curso de Regente Agrícola em Évora, em 1970. Em 71 vim novamente aqui para a Fundação, para fazer o estágio, que já era remunerado. Na altura os trabalhadores ganhavam 60$00 diariamente, e eu ganhava o mesmo que as mulheres, 114

Actual 9º ano de escolaridade.

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40$00 por dia, que dava 800$00 por mês. Defendi o estágio em 1972 e fiquei como funcionário da Fundação. E aí passei a ganhar o que era normal para um regente agrícola. Eu não estava integrado no Partido Comunista Português, mas tinha algumas ligações, até mesmo através de familiares, tinha ligações com o partido. Acompanhei algumas prisões, muita gente. Houve pessoas que tiveram lá cinco meses, outras que tiveram cinco anos... A ida à África era uma interrupção na vida dos jovens, e alguns ficaram marcados, fora aqueles que perderam a vida. E penso que isso terá contribuído para que alguns jovens tomassem consciência… A Fundação tem uma área de mais de 3.000ha de terra e chegou a ter na ordem dos 200 trabalhadores permanentes. Era um modelo para as estruturas agrícolas que estavam na posse dos agrários e causava alguns descontentamentos à população, uma vez que nem todos os que trabalhavam nas outras herdades tinham a oportunidade de ter o seu posto de trabalho assegurado. A Fundação já dava algumas regalias sociais, além de um prémio no final do ano, mas não quer dizer que isso não saísse do trabalho deles ao longo do ano. E já havia descontentamento entre aqueles que tinham trabalho o ano inteiro e os assalariados eventuais. Já existiam conflitos. Pode haver pessoas que dizem que não, mas de facto existiam. Como existiam trabalhadores que eram melhor remunerados, porque eram especializados, havia outros que não o eram. Eu tive oportunidade, como técnico, de acompanhar alguém da comissão paritária que foi nomeado pelo Ministério da Agricultura, que visitou todas a herdades que a Fundação tem, e todas foram dadas como subaproveitadas no relatório da comissão. Na altura tudo tinha a ver com a gestão e as condições existentes. Os trabalhadores, tanto os da Fundação como os de fora, estavam organizados politicamente. E houve várias reuniões, houve abaixo-assinados... Mas a iniciativa da ocupação partiu dos representantes políticos, neste caso o Partido Comunista. As reuniões eram realizadas com a população, com os quadros que estavam envolvidos a nível das freguesias. A população teve uma participação grande. A data surgiu quando estavam criadas as condições, e depois marcou um movimento colectivo de trabalhadores. A ocupação foi pacífica. Houve depois um despacho do Ministério dos Assuntos Sociais que nomeou uma comissão para administrar a Fundação, e com a função de, no prazo de um ano, alterar os estatutos, o que não se chegou a realizar. 181

Eu estava incluído nessa comissão, onde só havia um técnico com curso de regente agrícola; os outros eram todos trabalhadores, ligados à pecuária, às máquinas, mas pessoas com muita experiência. Nós aumentamos os efectivos pecuários... A agricultura não deixou de ser extensiva, mas houve algumas áreas que não estavam a ser aproveitadas e foram colocadas a produzir. Tratava-se de áreas com terrenos com aptidão para outras culturas e que não estavam a ser aproveitadas. Nessa altura o que se fez de forma intensiva foi aproveitar todos esses terrenos que tinham aptidão agrícola. E aumentámos os postos de trabalho. Não havia desemprego. Depois alguns trabalhadores foram junto do governador civil. A desanexação foi decidida pelo Ministério da Agricultura e de uma forma negativa. Na altura havia trabalhadores do Partido Socialista que trabalhavam na Fundação e que tiveram orientação do Partido Socialista. Foi um processo político. Na altura eu fui convidado por um grupo de pessoas para integrar a comissão administrativa da câmara. Estive de acordo. E fiz parte até 1976, quando houve as primeiras eleições. Depois fui sempre eleito.

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24 – Engenheiro Agrónomo. N. 1942, 56 anos. Em Junho de 1974 foi criada uma Secretaria de Estado da Agricultura, com o Dr. Esteves Belo, que era oriundo do PCP. Apareceu também o Prof. Pereira Amaro, como presidente do INIA, foi ele que foi recrutar no Alentejo, porque ele era alentejano. Eu tinha estagiado com ele na Estação Agronómica Nacional, ele conhecia-me a mim e conhecia mais dois ou três, e veio a constituir um grupo de sete engenheiros agrónomos jovens e com a característica – que foi isso que nos baralhou completamente – a maior parte das pessoas que constituía esse grupo tinha grandes propriedades no Alentejo. E no meio deste grupo apareceram três senhores, um deles veterinário de Beja, muito mais politizado que os outros, e este grupo foi nomeado com o nome pomposo de Comissão de Intensificação Cultural. Propunha-se detectar no Alentejo todos os casos de subaproveitamento. Fizemos um trabalho técnico bastante bom, exaustivo. Eu fiquei com a coordenação dessa comissão e depois houve outras em Beja e em Évora. Começou a trabalhar em Outubro de 74 e até Março de 75 nós tínhamos verificado 70 ou 80.000ha. Há zonas completamente distintas: umas com solos de boa capacidade para fins agrícolas, onde a propriedade está dividida. Isto vem do tempo dos árabes, com os olivais, com as courelas... E essas estavam bem, tinham aproveitamento. Depois há outras com solos fracos, com os grandes montados de azinho e de sobro, que não tinham aproveitamento, era o extensivo, e aí havia de facto as grandes propriedades. E esse subaproveitamento foi definido a partir de critérios muito relativos, portanto tudo isto era relativo. Nós fizemos um trabalho exaustivo nesses três distritos, esse levantamento estava feito, e dava-nos uma ideia de que em termos globais poderia haver 30 ou 40% de área subaproveitada. Este grupo trabalhava em termos técnicos. Mas nós depois começámos a despertar. Nós éramos todos politizados, éramos da geração de 60. Este trabalho foi feito, tivemos muitas reuniões com o Secretário de Estado, na casa dele, e começou a haver conflito porque os objectivos eram distintos. O nosso objectivo era um objectivo técnico, concordávamos em absoluto que aquilo que estava subaproveitado com certeza havia que fazer produzir. Do outro lado começou a haver posições completamente distintas, de tal forma que o grupo desapareceu assim rapidamente, sem honra nem glória, quando o trabalho estava produzido. Todo esse trabalho foi ter ao famigerado IRA115. Esse trabalho desapareceu todo de Évora. E serviu depois para programar, escalonar as ocupações pelo Partido Comunista Português. As ocupações começam em Évora em Outubro de 74 com a herdade de

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Instituto de Reorganização Agrária.

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Pombal. Foi a primeira ocupação de terras no Alentejo e não teve nada a ver com as ocupações que vieram a seguir. Essa era de facto uma herdade subaproveitada, porque tinha uma capacidade de uso agrícola muito baixa. Com uma aptidão agrícola muito baixa. Quem ocupou esta herdade foram os alugadores de máquinas. Esses fulanos ocuparam a herdade de Pombal alegando que não tinham terras para cultivar. As herdades estavam a ser analisadas pela Comissão de Intensificação Cultural, parou praticamente tudo, os senhorios deixaram de fazer os arrendamentos de campanha, porque foi alterada a lei do arrendamento. E eles viram-se numa situação que não sabiam bem qual era o futuro. Eram pessoas de trabalho e fizeram aquilo para chamar a atenção. Depois entrou-se num esquema que não tinha nada a ver com isso. Quem controlava todo o processo de ocupações de terras em Évora, numa primeira fase, e muito moderada, era o sindicato, que era liderado pelo PS. Até Março de 75. E a esquerda mais radical, a UDP. Em Beja estava o José Soeiro e foi ele que comandou o processo. Em Portalegre, numa primeira fase, o processo foi muito semelhante ao de Évora. Eles não conseguiram arranjar líderes na maior parte do país. Tiveram grandes dificuldades para o Norte. Em Alter do Chão tiveram grande dificuldade em entrar; em Fronteira nunca conseguiram entrar; em Sousel também não. É o grupo do Zé Luís que vai fazer as ocupações a todos estes concelhos vizinhos, inclusivamente a Estremoz e ao Couço. Eles tinham uma milícia organizada para fazer ocupações por fora. Neste concelho houve um aproveitamento do Zé Luís e ao nível das freguesias, onde não havia essa formação política, nem pouco mais ou menos, essa penetração tão forte do PCP, eles foram buscar os indivíduos mais atrevidos, aqueles fulanos que tinham pouco a perder. A maior parte desses indivíduos tem hoje um sentimento de frustração. Eles aderiram facilmente porque convenceram-nos que os que estavam mal iam ficar bem e os que estavam bem iam ficar mal. Isto é tão linear quanto isto. A casa onde está o senhor fulano de tal vai ser vossa. Ainda hoje ali na aldeia se diz, sabe-se, que parte do mobiliário que estava na herdade X foi parar às casas dessas pessoas. O mobiliário que estava no monte Y, onde habitavam os proprietários, apareceu em todo o lado, apareceram peças em todo o lado. Portanto não há dúvida que houve quase uma pilhagem. Também é uma verdade que no Alentejo, se hoje vivem mal, naquela altura viviam pessimamente. Apesar da “Primavera Marcelista” ter melhorado qualquer coisa: antes não tinham absolutamente nada e passaram a ter alguma assistência na doença, pouca na velhice, surgiram as primeiras reformas, e a previdência.

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Com a Guerra do Ultramar também ficaram mais politizados. Se se pensar no meio de onde eles eram oriundos e depois de irem à guerra voltaram ao meio rural, depois de terem visto já muita coisa e terem outros contactos, houve uma abertura muito maior nessas pessoas para aceitar esta mudança. Com as cooperativas tentou-se uma coisa absolutamente utópica, mesmo na década de 70, que era manter uma população activa de 30% no sector agrícola. O que era uma coisa completamente ultrapassada. Na Europa já nem se pensava nos 10% nessa altura. Isto estava nos livros dos sovietes, nos kolkhozes. Eu fui ver nessa altura, fui à Jugoslávia ver a “Primavera do Tito”. Aquilo era uma miséria completa que nós cá já não aceitávamos. As próprias populações rurais cá em Portugal nessa altura já não aceitavam aquele modelo de maneira nenhuma. O que prevalecia, e o que eles transmitiam ao nível destas comunidades rurais, era precisamente a posse da terra, o colectivo, e tudo o resto vinha por acréscimo. Na altura eu vim para o Alentejo, comprei o meu bilhetinho e vi o filme até ao fim, não saí daqui. E fiquei sempre nos serviços, na direcção regional, e aqui sempre a trabalhar na agricultura. Sobre as ocupações, uma vez em Vendas Novas presenciei esta cena: andavam dois tractores com dois reboques carregados de gente com bandeiras pretas e à frente dois jipes de militares. E então chegavam a um monte, paravam os jipes, paravam os tractores, faziam um comício e diziam: “Esta está ocupada”. E marchavam para outra. Faziam outro passeio, sempre com os militares. Estou convencido que o papel dos militares foi determinante. Mas o resto das pessoas nem se tinha apercebido. Mesmo nós nas comissões fomos utilizados para a Reforma Agrária e nem nos apercebemos. Só depois é que constatámos que tínhamos dado o nosso contributo para a Reforma Agrária. Ainda agora fiz a lista dos que saíram do CRRA116 de Portalegre: foram 48. A Direcção-Geral de Agricultura do Alentejo foi criada com uma estrutura, com um organigrama próprio, e o grande objectivo para criar estes serviços era o apoio técnico à produção. Muitas dessas pessoas não tinham qualquer qualificação para isso. Outras tinham formação que ao nível de um serviço técnico agrícola não interessava: ou eram sociólogos, ou eram formados em Direito, ou eram formados em Filosofia... Na altura tinham vindo com a revolução. Essas pessoas não tiveram lugar nos quadros agrários. Esses 48, todos eles eram activistas das ocupações, eram chefes

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Os Conselhos Regionais de Reforma Agrária foram instituídos pelo Decreto-Lei nº 351/75, de 5/7/1975.

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dos comités que eles formavam. Não havia apoio técnico nenhum, nem eles tinham capacidade para isso, a maior parte deles. O problema é que aquilo não tinha gestão, não era gerido como uma empresa, nem como coisa nenhuma. Aquilo era a balbúrdia. Havia um que era um dos chefes da herdade Z e eu perguntei-lhe como é que eles preparavam as sementeiras e essas coisas todas. Ele disse-me que era assim: “hoje vamos lavrar”, então iam todos lavrar; “hoje vamos semear”... E era assim. A maior parte delas não tinha um técnico. A UCP deste concelho nunca teve, mas o chefe era uma pessoa que sabia e que tinha capacidade para isso. Depois havia na sombra algumas figuras que nunca deram a cara, nunca apareceram, e hoje aparecem com mais dinheiro do que os que deram a cara. A falência das cooperativas e o fim da Reforma Agrária foi uma questão de má gestão, mas também foi um processo político. A nossa sociedade em 1975 tinha já uma classe média com um grande peso, não só de pequenos proprietários, mas também, ao nível destas aldeias, já havia mais trabalhadores por conta de outrem, mais gente, como professores… Tinham os correios a funcionar, tinham a Casa do Povo a funcionar, tinham a GNR… Quer dizer, tinham uma série de gente que hoje já não têm. Essas aldeias foram completamente despejadas. Podemos fazer um mero exercício hoje: quanto custa um trabalhador rural? Qual é a rentabilidade por hectare? Desde as zonas mais ricas, das zonas demarcadas do Alentejo, do Redondo, ou Reguengos, mesmo isso não sustenta, não consegue sustentar o número de trabalhadores que eles tinham. Era absolutamente impossível. Nem falando nos encargos sociais, que na altura nem tinham nada disso. Mas hoje com encargos sociais de 20 e tal por cento, mais os seguros, não têm rentabilidade, não há hipótese nenhuma. Ficaram completamente falidas. Isto num aspecto. Depois há tudo o que veio com a PAC. Porque repare, eles foram fazer o quê? Aquilo que é mais fácil fazer, que são os cereais. Toda a gente faz cereais, uns bem e outros mal, mas toda a gente faz. Isso hoje ao nível da PAC não tem qualquer cabimento, não tem qualquer hipótese esse tipo de trabalho. Outras culturas que eles fizeram: tabaco, tomate. São culturas típicas do subdesenvolvimento, que têm esse percurso. O tomate começou a ser feito no vale do Pó em Itália na década de 50. Passou para a península na década de 60. Na década da 90 já vai na Tunísia e já se faz no Médio Oriente e por aí fora. Anda à procura da mão-de-obra mais barata e o que fica depois é a alta tecnologia: é o tomate que se faz na Califórnia, ou no Sul da Itália, e que se faz em Portugal hoje em dia, com sementeiras directas, com alta

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tecnologia, não tem necessidade da mão-de-obra que tinha nessa altura. Esse modelo não sobreviveu em lado nenhum do mundo. Já nessa altura da adesão à CEE se dizia que em Portugal, cereais nem pensar nisso, era uma utopia completa. Se nós estávamos a trabalhar com produtividades de 1,6 e 1,7 e os alemães e os franceses já tinham 4, 8 e 10, nem pensar nisso. Depois o gado: estávamos a trabalhar numa Europa com excedentes enormes de carne. E a carne é um subproduto, o produto número um é o leite. Há que criar condições para as pessoas virem. Projectos de desenvolvimento. As pessoas têm o direito de fugir daqui para fora. Têm de ficar alguns, mas esses têm de ficar com condições. Por exemplo esta nossa zona tem condições para poder sobreviver e passar esta onda. Isto é um ciclo vicioso: se a agricultura não dá dinheiro, se a agricultura é uma actividade que nem sequer dignifica quem cá está, é mais digno possuir a terra do que trabalhar na terra. Essa é a grande diferença relativamente aos países novos. Vai à Austrália e é tão digno o indivíduo que trabalha na agricultura como o que dá aulas na universidade. É que depois também têm a remuneração desse mesmo trabalho, e cá não. Pois o grande desinteresse hoje ao nível da agricultura... Há dois fenómenos. O fenómeno sociológico, que se verifica mais ao nível da comunidade rural pequena, da aldeia, que é a ânsia das pessoas se livrarem do sector, porque está muito próximo ainda o pai, o avô, e aquilo que efectivamente essas pessoas passaram. Eu lembrome, aqui na aldeia, eu fiz a escola aqui, e lembro-me que na escola primária nós jogávamos à bola os calçados contra os descalços. E tínhamos sempre grande dificuldade em arranjar um número de calçados para jogar contra os descalços. Esta imagem é muito próxima, são coisas de 20, 30 anos. E esses são muito mais exigentes do que eu. Ao nível das comunidades rurais criam-se castas de trabalhadores: os bons trabalhadores, os maiorais das parelhas, etc. Depois havia os porqueiros, que eram o escalão mais baixo ao nível destas comunidades rurais. Depois havia os pastores. E os feitores, os top. E eles faziam essa diferenciação. Muitos deles foram para as cooperativas porque foram mesmo obrigados. O que é interessante é que na primeira oportunidade essas pessoas foram os primeiros a sair. As primeiras desocupações foram ainda em 1978. Em Vendas Novas ouvimos tiros e houve pessoas mortas. Eu aí consegui livrar-me dessa história. Na altura isso era feito directamente. Nós fazíamos a informação, nessa divisão da Direcção Regional da Agricultura, em Évora, vinha directamente para lá e nós enviávamos para

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o Secretário de Estado da Reestruturação Agrária e era ele que despachava. E depois era publicado no Diário da República. As desocupações eram programadas semanalmente com a GNR e com um elemento do Governo Civil. Tudo isto era desencadeado pela Direcção Regional. Nós estávamos no meio daquela guerra. Porque aquilo era um processo político, aquilo era uma guerra. Não me mataram a mim porque não calhou, à minha família porque não calhou, mas ameaças tínhamos todas as noites lá para casa.

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25 – Advogado, proprietário agrícola. N. 1930, 68 anos. Eu vivo em Lisboa, sou advogado. O meu irmão era licenciado em Letras, em História. De maneira que tínhamos os nossos empregos, as nossas actividades em Lisboa. Aqui há muita gente que sabe escrever bem, há um nível de cultura grande. Aliás, é próprio das sociedades dos países subdesenvolvidos, as elites da província, na Península Ibérica e na América do Sul, são sempre formados, têm cursos universitários e muitos nem exercem a profissão. É uma coisa engraçada, não exercem porque não têm nada que o fazer. O problema é este: são de classes muito privilegiadas economicamente. Têm um curso. Depois, para exercerem esse curso tinham que descer de classe social. E tinham que ir para Lisboa. Então não se sujeitavam porque não tinham amarras em Lisboa. E aqui não há indústria, não há nada. Para onde é que pode ir um médico que tem centenas ou milhares de hectares? Tem que ir para director de um hospital ou para outra coisa qualquer. Que é para pensar, porque são espertos. Há aqui um que era o aluno mais medalhado do Colégio Militar, depois formou-se em medicina e nunca exerceu. O fim-de-semana foi uma coisa que desapareceu com as estradas. Quando começaram as estradas, eu vinha cá no meio da semana. Não me dedicava à agricultura porque aquilo não é agricultura. Isto é floresta. Aqui não há agricultura, aqui há floresta. Há uma razão de ser para o meu trisavô ter ficado com isto: para não lhe dar muito trabalho. Porque ele nunca tinha sido lavrador. Lavradores são outros primos nossos. Há aqui uma diferença muito grande entre o proprietário e o lavrador. Aqui é montado e quando havia porcos eram arrendados os porcos. Havia rendeiros com muitíssimo valor. Houve aqui um que chegou a ter 400.000 oliveiras. Tinha um escritório em Lisboa, na Av. Fontes Pereira de Melo, sem nada em cima da secretária, uma secretária de torcidos, daquelas como mandam as regras, onde ele recebia as pessoas pomposamente. Ele pouco sabia escrever, mas sabia falar com as pessoas e sabia negociar. Era um tipo superiormente inteligente. Com uma habilidade e conhecimento da vida por experiência prática. O meu avô, que foi presidente da câmara, em 1914 teve de educar os filhos. Mas o meu avô tinha outras alternativas: tinha aqui isto e tinha também uma quinta em Óbidos, onde ele gostava muito de estar e onde era advogado. Porque hoje não se pode ser só uma coisa, não dá para educar os filhos. Já nessa altura não dava, porque veio uma grande desvalorização da libra em 1914 e o meu avô fez um olival grande que arrendou. Simplesmente, com a desvalorização, nem lhe dava para comer. E ele teve de trabalhar outra vez. Como era formado em Direito, foi fazer um estágio para

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notário para ver se tomava conta de um tabelião em Lisboa, que já estava negociado. Morreu eu 1918. Portanto, esta coisa de estar cá ou não estar cá, são os proprietários de terra, não são os lavradores de terra. Nós estamos cá sempre que é preciso. Pode-se dizer: “São uns interesseiros, vêm cá buscar a cortiça.” Vimos cá buscar a cortiça, vimos cá tratar das árvores, vimos cá tratar do gado, temos cá pastores. Dá-se ordens ao pastor. Há um grupo de homens justos, que são ajustados: dá-se ordens ao manageiro. Ou dá-se ordens ao mais velho. E ele é que depois transmite as ordens. Os manageiros eram os homens que tomavam conta dos grupos que vinham tirar cortiça. Ainda hoje é o manageiro da cortiça. Nunca foi preciso um feitor. O feitor é para quando efectivamente o lavrador é absentista. Mas aqui o homem da floresta não é absentista, ele está cá sempre. Olhe que, na minha infância, em 1936, que eu me lembre, nós saíamos às oito horas de Lisboa, fazíamos um piquenique em Abrantes ao meio-dia, e à noite chegávamos aqui, puxados por mulas para atravessarmos a charneca da Bemposta. A promoção universitária, que é a promoção que há hoje em dia, está estudado que o filho do operário e o filho do camponês… Se o filho do operário em pequena percentagem consegue chegar à universidade numa geração, o filho do camponês precisa de três gerações. Porque é mais pobre. E está muito mais distante. Repare que a revolução do 25 de Abril não foi feita pelos camponeses. Serviram-se dos camponeses, mas mandaram vir os primos que já eram operários, para integrar os camponeses, para os activar. Porque os camponeses não tinham propriamente a consciencialização da sua força de grupo. Para aqui vieram pessoas do Barreiro. É por isso que eu não tenho censura a esta gente. Esta gente foi apanhada nisto. Os que vinham aí eram os de fora. Ou então aqueles de meia cultura que são os tipógrafos e os taxistas. Sabe porquê? Porque têm tempo para ler o que não devem ler. O que não têm preparação para ler. Lêem sem uma análise crítica daquilo que lêem. Que foi o que matou esta revolução, que podia ter ido muito mais longe. Estereotiparam, copiaram exactamente aquilo que vinha nos livros de cordel das teorias comunistas que leram. Foi uma cópia. Activar isto, os soldados, os marinheiros. Para atacarem uma burguesia que não sabia como é que havia de acabar com a guerra. Um exército que se convenceram que estava destruído. Os camponeses também tinham os filhos nesse exército, eram facilmente permeáveis. Há aí muita gente que esteve na guerra de África. Portanto era fácil, era um terreno fácil de agitar. Mas sem ódio. Ninguém resistiu às ocupações, porque todos nós temos instintivamente respeito pela autoridade. Sabe que o regime de Marcelo Caetano e de Salazar foi 190

deitado abaixo pelo exército. O exército tinha as armas, o exército tinha a força. Não havia nenhum regime destes regimes autoritários que não se baseasse na força. Ora essa força, esse prestígio militar foi usado para dar cobertura à desorganização laboral do operariado agrícola e urbano. Apareceram aí soldados uniformizados, em jipes oficiais, portanto as pessoas, não se pode fazer nada. Há uma expressão engraçada no povo, que nós também a temos, que é esta: “Se é de lei…” Nós temos um respeito muito grande pela legalidade e pela identidade das pessoas. E era para todos. Iam a todos os montes. Era a tropa… A gente já não distinguia entre o que era a tropa e o que era a Guarda Republicana. Sabia-se lá agora! A Guarda Republicana estava discretamente aquartelada. Vinham os tropas nuns jipes que eram iguais aos da Guarda Republicana, não havia possibilidade de resistir. Não tenho notícia de alguém que tenha sido mal tratado. Houve casos de famílias que foram para Espanha porque, cá está, eram pessoas exclusivamente dedicadas ao campo, que viviam do campo. Havia pessoas que estavam empenhadíssimas até aqui com dívidas. Estavam empenhadas porque era o seu modo de vida. Aqui, como a cortiça dava uma certa liberdade, e como havia sempre um emprego em alternativa, não era preciso fugir. Na minha família houve quem tivesse saído discretamente. Um primo meu saiu discretamente porque entrou em pânico, e estava numa empresa. Ele não saiu, ele pediu transferência. Foi muito mais cómodo. Foi para o Brasil e esteve lá quatro ou seis anos na mesma empresa, porque ele era engenheiro. Depois entrou noutras empresas, e estava lá, não era propriamente um emigrante. Em vez de receber por aqui, recebia por lá. Havia outras pessoas que eu compreendo que tenham fugido, porque ficaram sem nada. Uma tia minha, que era senhora do seu nariz, quando ficou com oito contos por mês, teve de ir para o Brasil para casa dos filhos. Porque os filhos não tinham outra coisa. Bom, mas esses aí eram por outra razão, esses aí era porque o chefe da família, nesse caso, era o chefe de pessoal de uma grande empresa, e nas grandes empresas, nas secções de pessoal, eram escorraçados. Mas esses não foi por causa de perseguição no campo, foi perseguição na cidade. Mas aqui não, as pessoas que saíram daqui eram as que viviam exclusivamente disto, não tinham mais nada. Exclusivamente proprietários e exploradores da terra. Na altura senti-me ofendido. E hoje não perdoo a certas pessoas. Sou frontalmente anti-comunista. Dizia o meu irmão: “Mas o que é que tu queres que eles sejam senão comunistas? Eles podem ser o quê? CDS?” Se lhes vêem com uma bandeira que lhes dizem que é bestial para eles, eles têm que ser comunistas. Na 191

altura senti que havia uma diferença muito grande entre os ocupantes e os proprietários de terras. E entre os proprietários de terras havia grandes diferenças. E grandes diferenças por isto: há as pessoas que estão no Alentejo de ocasião. Que o Alentejo está à venda de 80 em 80 anos. Nessas alturas vêem os ricos de Lisboa e compram o Alentejo todo. E julgam que os alentejanos são os alentejanos das anedotas. Mas o povo não é o das anedotas. E há aqueles que conhecem a mentalidade do povo, porque pertencem a esse povo, que eu pertenço a esta gente, conheço-os muito bem, conheço-lhes os defeitos, as ambições e as frustrações. Aconteceu-nos o seguinte: nós fomos os primeiros a quem nos devolveram as propriedades. Eram cerca de 1.000ha. Não estava cá mais ninguém da minha família, estava o meu irmão e eu. Aquilo não era só nosso, era da família. No dia da desocupação apareceram aí. Eram duas colunas militares. Eram 200 e tal homens com carros blindados. O meu irmão ia com uma coluna e eu ia com outra coluna, que era para representar os donos daquilo, para dizer onde é que era. Eles saíram com facilidade. E depois fomos negociar com o chefe da cooperativa. E então fecharam-me a mim numa cozinha com ele e com dois guardas, com dois sargentos da Guarda Republicana, que estavam ali a fiscalizar. Ele queria negociar comigo o arrendamento. Que nós nunca arrendámos, isto não estava arrendado, por isso é que eu digo que não somos absentistas. Nós fazíamos a exploração directa, não era preciso estar aqui. Na altura eu não quis arrendar. Até que o homem desistiu. A nós ainda nos roubaram alguma cortiça, que ainda está em tribunal. As indemnizações: pagaram qualquer coisa, fizeram uns cálculos. Aqueles cálculos que nós sabemos. Eu não tive prejuízo. Mas os roubos de cortiça não foram os Alentejanos: veja que a cidade que mais se desenvolveu foi o Montijo. Isto sem querer castigar os montigenses. Mas no Montijo é que se fizeram as grandes confusões. Havia muitas fábricas de cortiça. É entreposto de cortiça que saía daqui. E as grandes casas de cortiça vieram aqui buscar a cortiça. A cortiça só podia passar com guias, mas não respeitavam as guias. A cortiça saía sem guias. Então essas grandes casas compravam a estes patetas. Esses não ficaram mais ricos. Nas cooperativas houve incompetência, é evidente. Isto para dirigir aqui é preciso economizar muito. A minha avó era das poucas pessoas que ia passar o Verão a Vichy, por volta de 1924. Pois era, mas depois comia açorda de coentros o ano inteiro. A minha avó jantava com as chaves da dispensa. Tinha as dispensas fechadas. Havia um primo meu que tinha a mania de ir à dispensa e punha açúcar dentro da manteiga. A minha avó uma vez viu aquilo, deu-lhe um raspanete. Que

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aquilo não eram maneiras de viver e sobreviver. Porque tinha de ser tudo muito modesto, porque as coisas eram muito modestas. O contacto pessoal no campo é de uma importância extraordinária! Porque há um contacto pessoal que é diferente entre o que se passa aqui e, por exemplo, no Baixo Alentejo. No Baixo Alentejo, o tratamento entre o patrão e um empregado é quase que feudal. Tratam-nos de uma maneira como se fossem… Há uma distinção muito grande, um desfasamento muito grande entre as pessoas. Aqui não haverá, talvez porque lá há mais mão-de-obra, mais trabalhadores, os montes têm muita gente. Aqui na floresta os montes são pequenos. Comparados com aqueles arranjos agrícolas que há no Baixo Alentejo, onde o patrão, às vezes, nem conhece as pessoas! E aqui conhecemos porque é uma lavoura, a lavoura da floresta faz-se com meia dúzia de pessoas, ou então faz-se com ranchos. Acontece, lá para baixo, um distanciamento maior entre o proprietário e o trabalhador. E até há mais agressividade. Eu fui fazer uma desintervenção a uma grande casa: eram 3.000ha. Como advogado da família, em Ferreira do Alentejo. O ambiente era de cortar à faca. Eu aqui vou falar com os trabalhadores. Lá, aquilo estava quase pessoal entrincheirado. As mulheres a berrarem de um lado, que as mulheres é que são o elemento dinamizador destas coisas. E os homens e a Guarda Republicana, com a qual eu estava a representar os patrões, porque os patrões tinham tanto medo que não foram lá, fui eu! Eu é que representava os patrões! E, quando eu, de repente, ia a sair, para me dirigir a eles, veio um capitão da guarda, que comandava aquele grupo militar, agarrou-me. “O Sr. não sai daqui. Não sai que nós é que somos responsáveis!” Não me deixavam sair. “Mas eu preciso de falar com eles.” Fui com dois sargentos armados para falar com eles. “O Sr. não sai daqui sozinho!” Tinham medo! Porque a tensão nervosa lá era muitíssimo diferente. E talvez porque lá em baixo o trabalho é um trabalho mais duro, que é o trabalho do trigo e das ceifas. Havia ali umas recordações desagradáveis de outros tempos. Aqui não terá havido, porque não havia essa necessidade laboral a esse nível, de maneira que não havia essa confrontação. Mas é engraçado que vêm uns senhores de Lisboa, que não têm ligação com a terra, e não dizem os bons-dias, nem boas-tardes. Isto é muito importante, as pessoas serem tratadas como pessoas, não é como coisas. Vêem de Lisboa, é tudo estranho. Há um desentendimento muito grande. Porque é que houve aqui a Reforma Agrária, que aliás não foi Reforma Agrária nenhuma? Tenho a impressão que eles foram pelo caminho pior. Porque aqui, a colectivização, isto, se eles tivessem dado terras, como foi na Rússia aos comunistas brancos, dessem a pequenos agricultores, eles captavam-nos. Agora, fazerem 193

cooperativas, que se chamavam até Unidades Colectivas de Produção… Isto é despersonalizar tudo. Foi um erro da Reforma Agrária. Despersonalizaram… E as pessoas que querem ter identidade, que aqui as pessoas querem ter identidade, passaram a ser consideradas no grupo, na massa. Foi uma grande falha. As vacas não dão mais por estarem todas ao pé umas das outras. Um tinha quatro vacas, outro tinha oito, eles fizeram uma cooperativa com essas 12. O que é que poupavam? Não havia maior produtividade. Aqui não houve maior produtividade. Não houve, as UCP não tinham maior produtividade. Houve foi uma coisa extraordinária: a qualidade de vida e o bem-estar. Aí nesse jornal municipal preocupam-se é com os equipamentos de lazer! Não sei quando é que isto acaba! Nada produz! E com esse equipamento de lazer as pessoas ficam mais satisfeitas do que estavam. Porque não vivem melhor hoje, simplesmente as coisas são mais agradáveis, as infra-estruturas do lazer são postas em evidência pelas autarquias. Há mais automóveis: antes andavam nas motocicletas, daquelas pequeninas a apanhar frio, hoje já não andam. Mas isto deve-se ao progresso tecnológico, estas melhorias. Eles dizem que estão no desemprego. Eu até costumo dizer: “Bom, quem põe um alentejano a trabalhar arranja um inimigo! Não ponhas um alentejano a trabalhar!” Tem uma certa razão de ser, porque quando eles estão no desemprego, eles não ganham o ordenado todo, como se estivessem num emprego. Mas invocando que são chefes de família, têm depois subsídios para as mulheres e para os filhos. E arranjam ali o mesmo sem trabalharem nada. E às vezes fazem uns ganchitos cá por fora. Mas no outro dia dizia um pastor de ovelhas, falávamos nisto, da pouca-vergonha do desemprego, e eu disse assim: “Bom, eles lá de Lisboa sabem muito bem.” E o pastor disse: “Sabem e não se querem meter nisso. É porque dantes, se estivessem no desemprego, iam para a PIDA117, e se roubavam alguma coisa a Guarda Republicana dava-lhes uma trancada. Mas agora a Guarda Republicana não faz mal a ninguém. De maneira que, se eles não estão no desemprego, vão à sua casa buscar aquilo que o senhor lá tem. Isto é preciso é haver calma nisto tudo. Eu tenho a certeza que em Lisboa sabem muito bem que é assim, mas é uma maneira de aguentarem isto porque…”. Isto é observado por um homem daqui. A única cooperativa que não foi desmantelada é esta aqui da freguesia. Porquê a cooperativa ainda existe, presta serviços. É uma espécie de entreposto de trabalho, vai-se lá buscar os homens que são necessários, e tem uma propriedade que compraram. Conseguiram comprar uma propriedade de cortiça.

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PIDE: Polícia Internacional e de Defesa do Estado.

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Isto é engraçado, a hipocrisia! Nós temos que lutar para que o país não se despovoe. Mas o país tem de se despovoar. Porque chega-se à conclusão de que não há nenhuma economia europeia ocidental saudável que tenha mais do que 5 ou 6% de pessoal na agricultura. Tem que se despovoar. O que é é que aqui há outra coisa que falta: não há oferta em alternativa. Vão para os bairros de Lisboa, vão para a construção civil. Por isso é que eles agora andam atrapalhados, se a construção civil pára, isto desmorona-se tudo. Seria a indústria, se houvesse indústria neste país. Não fomos capazes de constituir uma indústria. O rendimento da minha profissão sempre foi mais alto que o da propriedade. Mas há uma coisa que dizia a minha mãe: “Olha que aquilo que eu te deixo dá para o pequeno-almoço. Um bom pequeno-almoço, mas tens de trabalhar para o resto.” É muito agradável ter qualquer coisa. Compõe muito as situações. Eu hoje estou a viver da agricultura. Eu tenho uma reformazita, mas é uma coisa que não interessa nada. Nunca descontei nada, de maneira que… Um reformado também gasta muito menos. Gasta noutras coisas. Não compra sapatos todos os dias. Eu já ando com estas camisas e estas coisas há 10 anos. Já não vou aos restaurantes do Chiado onde ia antes quando exercia como advogado. Não preciso de lá ir. O que é que eu lá vou fazer? Gosto muito mais de estar aqui. A única agricultura que eu tenho é um olival. Que eu até vou arrancá-lo. Vou arrancá-lo porque chegámos à conclusão disto: os trabalhos violentos não são para o homem europeu. Porque o homem europeu, para fazer o trabalho violento leva muito. Não há dúvida, a terra é para quem a trabalha, simplesmente já ninguém a trabalha. Eu tenho uma chácara, uma barragenzita. E fiz agora mais duas. E disse-me um vizinho meu: “Não se meta nisso, isso não dá resultado. Hoje é só o furo. E a água tem de vir electricamente. Já ninguém vai com a enxada abrir os regos.” Quer dizer: o trabalho violento já não existe. Dantes tinham que fazer força. E hoje essa força é muito bem paga, que é o trabalho da azeitona. Já não compensa apanhá-la, acaba por não compensar mesmo para eles, eles têm de procurar outra profissão. Tudo o que seja trabalho manual não dá. Sabe o que é que eu ganho com o gado? É o subsídio. E o subsídio agora diminuiu imenso. Tenho ovelhas. Para que é que me servem as ovelhas? É evidente que é necessário movimento, uma certa rotação de culturas debaixo dos chaparros, umas coisas leves, umas aveias, umas tremocilhas. Para limpar a floresta. Porque a floresta aqui não tem regeneração automática. Se não é o homem que a trata, a floresta fica uma lixeira. É preciso regenerá-la artificialmente. E o gado é uma maneira de a limpar e uma presença por ali. Senão as coisas ficam abandonadas. Mas não é para ganhar dinheiro. 195

26 – Médico, proprietário agrícola. N. 1928, 70 anos. Eu nasci em Lisboa, como todo o bom alentejano nasce em Lisboa. O meu pai morava no Alentejo. A família é muito antiga: há uma herdade que desde 1500 e tal que já é nossa. Um antepassado casou com uma irmã de um agiota, emprestava dinheiro a juros. Fundamentalmente compraram propriedades. Mas o meu bisavô era foreiro. Remiu o foro e ficou com a herdade, cerca de 1890 e qualquer coisa. Depois o meu avô teve vários filhos, que começam a formar-se, já são lavradores que se formam. O meu pai era médico, o meu tio é veterinário. Estudaram em Lisboa. Primeiro fizeram o liceu em Évora. Depois o meu pai fez o curso de Medicina. Depois foram mobilizados para a Primeira Grande Guerra. Um casou com uma francesa, o outro casou com uma alemã. Os meus primos são filhos da francesa, que viveu cá e foi muito feliz. A minha mãe era alemã – daí a alcunha de “Alemão” – e só aguentou oito anos. Divorciou-se do meu pai. As nossas terras nunca foram arrendadas. Até agora. O meu pai deixou de exercer clínica. Tinha uma grande dose de cortiça e a cortiça para ser defendida era preciso ter uma fábrica. Compraram uma fábrica no Barreiro e o meu pai veio tomar conta da fábrica. E o meu tio ficou a tomar conta da lavoura. Eu nunca exerci. Eu estou licenciado em Medicina mas nunca exerci clínica, estive sempre na lavoura. O meu pai deu-me a parte dele, entretanto fizemos partilhas em 1961 e eu fiquei com um quarto da casa – nós éramos quatro irmãos – e depois herdamos mais da tia solteira, que deixou aos sobrinhos. Eu vivia em Lisboa, mas ia sempre lá. Nunca me lembro de não passar o Natal ali na vila com o meu pai. Só nas férias grandes é que íamos para a praia. Eu estava no colégio militar, fui educado em Lisboa. Fiz a tropa em África entre 1967 e 1969: fui o subchefe dos serviços de saúde, era um trabalho administrativo. Nessa altura estava tudo indiviso, só um é que se ocupava de tudo. As nossas terras são de árvores, floresta. Aquilo é diferente. O distrito de Portalegre é uma coisa completamente diferente de Évora. Nunca fomos absentistas, a casa lá está e eu vivo lá. Isto é floresta, dava pouco trabalho. Há outras coisas no concelho ao lado, essa é que é a parte agrícola. Mas as principais são de cortiça. Tinha lá um caseiro, tinha um guarda-florestal, e havia pessoas que se deslocavam, tinha um tractorista. A cortiça era sempre tirada por nossa conta, por um rancho, tudo gente de lá, porque é preciso um pessoal especializado. Eu quando acabava uma campanha qualquer, como tirar a cortiça, dava sempre um almoço, ia almoçar com eles. Uma feijoada, por exemplo.

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Antes das ocupações ainda tivemos as colocações de pessoal. Comigo puseram duas pessoas, simbolicamente. Foi tudo ocupado. Telefonaram-me lá para casa. Nós só fomos ocupados depois de as expropriações estarem quase todas feitas. Eu fui ocupado só no dia 13 de Outubro de 75, fui o último a ser ocupado. Dia de Nossa Senhora de Fátima. E sabe quando é que me entregaram as coisas? Dia 13 de Maio de 80. Olhe que coincidência. Na ocupação nem lá fui. A atitude geral foi de não resistir. O meu primo era das pessoas que resistiria. Felizmente nesse aspecto talvez tenha sido melhor ele ter falecido antes, coitado, estava condenado. Nota-se alguma diferença entre os proprietários: na minha família eram todos formados, advogados, etc. Lá em casa está tudo formado, a geração toda do meu avô está formada, depois a minha também. Até a minha prima tirou o 7º ano118, que nessa altura para raparigas era muito raro. Depois os meus filhos, um é professor na Católica, de Gestão, o outro é Eng. Agrónomo, Florestal, o outro entrou para Agronomia. O nível cultural fazia com que as pessoas soubessem tratar melhor os empregados. Os do Baixo Alentejo tratavam francamente mal. A monocultura define o Baixo Alentejo. As ceifeiras-debulhadoras fizeram com que não houvesse nada para fazer. Eles emigravam todos para a construção civil. Depois vinham na altura da ceifa e ultimamente nem isso. Não havia contacto praticamente com os patrões, só havia com o feitor. E sabiam que o patrão vivia em Lisboa, comprava automóveis, gastava dinheiro, etc. No nosso distrito há sempre que fazer. Nós temos a cortiça, depois há a apanha da azeitona, depois havia a apanha do tomate, as podas, a apanha da pinha. Com o 25 de Abril há um empate muito grande, na construção civil deixou de haver trabalho, portanto essa gente voltava para a terra e na terra não tinha trabalho. Criavam um ódio enorme aos proprietários das terras. Na altura das ocupações o contacto com a população da vila era vê-los sempre muito envergonhados. Baixavam a cabeça e diziam: “Ó meu senhor, peço desculpa!” Na entrega fui eu ter com eles, a guarda estava lá porque era obrigada a ir... Houve muitos proprietários ocupados que passaram dificuldades, mas eu tive a sorte de a minha mulher não ser ocupada. Da herdade da minha mulher no Ribatejo conseguimos viver, tinha um grande pomar, a fruta valia dinheiro. Baixei um bocadinho o nível de vida, mas nada de significativo. Já os meus primos, uns tiveram de ser professores de liceu, outro foi trabalhar como veterinário para uma coudelaria. Mas nunca foram prejudicados nas casas, nunca nos ocuparam as casas da vila.

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Actual 11º ano de escolaridade.

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A cooperativa não teve grandes hipóteses. Aquilo no fundo tem o maior rendimento da cortiça. E o estado apropriou-se logo do dinheiro todo da cortiça. O governo tinha receio que eles destruíssem o património florestal do país. Sem a cortiça aquilo não dá. Os industriais de cortiça é que fizeram as suas casas nessa época. As entregas foram muito ásperas. Porque as cooperativas resistiram. Não houve confrontos porque a guarda esteve sempre a postos. E a guarda eles respeitavam. A guarda cumpriu escrupulosamente as ordens que tinha. Quando recebi as terras a parte agrícola estava bastante degradada. Eles exploraram mais intensamente do que deviam. Com a exploração intensiva deram cabo de tudo. Não sabiam nada de gestão técnica. O gado foi maltratado. À medida que eles iam tendo dificuldades iam vendendo o gado. Eu ainda apanhei um bocadinho. Eu tinha 900 cabeças de ovelhas. Quando foi a primeira devolução eu tinha direito a 225 e eu recebi-as. Quando foram as outras devoluções já não recebi nada. Estamos há 20 e tantos anos à espera das indemnizações. Todos os anos prometem, todos os anos dizem que sim, que está no orçamento. Agora vou-lhe contar um episódio: eu no Verão ia sempre para o Norte, para uma praia ao pé de Espinho, para onde iam as famílias importantes do Norte, do Porto. Conheci o Francisco Sá Carneiro. Estávamos no mesmo hotel sempre, em mesas ao pé. Só que eu era mais velho, já estava no grupo dos casados, enquanto ele ainda era dos rapazes. Na altura discuti a questão dos arrendamentos com ele119. A ideia que eu tenho é que ele queria fazer focos de infiltração no Alentejo e assim conseguia fazer o PSD ganhar e eliminar o PCP. Teoricamente conseguiria eliminar o comunismo do Alentejo. Mas eles eram comunistas. O que é certo é que a minha família nunca arrendou nada durante quatro ou cinco séculos e agora tenho rendeiros que ainda por cima me pagam uma renda péssima. Eu tinha muita consideração pelo Sá Carneiro, mas ele estava rodeado de pessoas de esquerda que não percebiam nada de agricultura. Não há um único arrendamento que não tenha sido feito por pessoas mal intencionadas. Veja lá, eu que nunca arrendei nada na minha vida, tenho agora quatro rendeiros, uns oportunistas. E tive seis. Consegui que dois saíssem a troco de eu lhes pagar. Mas esses quatro rendeiros estão a dar cabo de tudo. A exploração é toda anti. Anti-normal. Uma intensidade de tal ordem que as árvores morrem, todos os anos secam centenas de árvores, estragam tudo, já não há cultura, porque estão a querer tirar dinheiro o mais possível. Eu fui obrigado a arrendar pessimamente, a renda é

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Refere-se às chamadas Leis de Sá Carneiro, ver atrás.

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imposta pelo Estado. Não se mexe há 10 anos na renda. E tenho que mantê-los 19 anos. Não tive de recorrer ao crédito agrícola de emergência. Mas depois veio o subsídio. Isto foi tudo mal orientado. A política agrícola daí para cá tem sido um desastre. Agora há o subsídio das ovelhas, o subsídio disto e daquilo. Não fiz turismo rural, mas vou fazer turismo de habitação. Já arranjei a casa. Nos montes nada. Eu só tenho um monte. O resto eram caseiros pequeninos e estão a cair. Vou recuperar o monte por causa da caça. A caça complementa a floresta. Eu faço parte da Associação Central da Agricultura Portuguesa, já fui presidente. Esta instituição é que defende os interesses da grande lavoura, enquanto a CAP defende apenas os interesses do Ribatejo e dos pequenos agricultores. A CAP defende os rendeiros, mas o grande lavrador ia para a Associação. Nunca houve uma relação boa entre as duas. A CAP foi fundada pelos lavradores alentejanos e depois nunca nos defenderam. Houve concelhos onde a experiência da Reforma Agrária foi pior, o que fez com que as pessoas se desiludissem. E depois logo que puderam venderam. A minha propriedade vai ser dividida pelos filhos. A gestão tem de ser alterada: vai haver mais floresta, mais aproveitamento do meio ambiental. Acho que agora há um ataque do meio rural pelo urbanismo. Eles querem impor as suas leis urbanas onde desconhecem.

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27 – Proprietário agrícola. N. 1953, 45 anos. Somos oito irmãos, temos duas raparigas. E éramos todos muito gaiatos. Talvez uma das principais razões porque a gente não foi ocupado foi porque o nosso pai tinha morrido há muito pouco tempo, há quatro anos, em 70, e o meu irmão mais novo tinha 10 dias quando o meu pai morreu. Isto quando foi das ocupações a gente não tinha mais nenhum meio de sobrevivência. Também éramos um bocado agaiatados na altura. Dispusemos-se a enfrentar esta gente e eles aperceberam-se disso, porque nós tomámos algumas posições de força. A gente antes disso vivíamos aqui e estudávamos na vila. Jogávamos à bola com esta gente toda, portanto a gente conhecia-os. Eu joguei na FNAT, eu conhecia muito bem toda esta gente. Os meus irmãos mais velhos ainda andaram à escola aqui, vinha uma professora aqui para dar escola aos mais velhos. Depois acharam que não era pedagógico, parecíamos quase bichos. É bom o convívio. Mas ao princípio a mentalidade foi trazer a professora para cá. O meu irmão mais velho ainda fez aqui a 3ª classe. Depois a 4ª classe, já era preciso fazer exame, para ele se ambientar... Uns fizeram a primária aqui na freguesia, mas eu estudei depois no colégio da vila. As minhas irmãs, a mais velha foi estudar para Abrantes, e a outra era muito pequena à altura das desocupações, e nessa altura a minha mãe foi viver para Lisboa... A gente íamos de carroça daqui até à estrada nova todos os dias e vinha a camioneta do colégio e apanhava-nos ali à estrada nova. A minha mãe morava aqui e o meu pai. Eu fiz aqui o 5º ano120, o meu irmão o 6º, e fomos fazer o 7º121 para Portalegre. A nossa casa dava muito trabalho: na altura, as limpezas dos sobreiros, o mato à roda dos sobreiros, isso tudo era feito à mão e era feito com o machadão, que se cavava o mato... E a limpeza dos sobreiros era feita a machado, que é uma coisa que demorava muito tempo. Havia emprego. Havia sempre 10, 12 pessoas que eram os ganhões, como se chamavam na altura, que iam fazendo isso. E quando eram as limpezas, geralmente vinha pessoal especializado que aqui não havia. Eram os ranchos que vinham fazer as limpezas, porque aqui, incompreensivelmente, ainda hoje não há ninguém para trabalhar na floresta. Esta freguesia está cercada de sobreiros. A parte norte é das partes mais importantes de sobreiros aqui da zona e não há ninguém que tire cortiça hoje em dia. Não há uma única parelha de homens. E de limpeza é a mesma coisa. E foi sempre assim. É um trabalho mais especializado, mas também é mais bem pago. É como o corte de eucaliptos. É um trabalho também especializado, 120 121

Actual 9º ano de escolaridade. Actual 11º ano de escolaridade.

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que se faz de empreitada hoje em dia, e não há nenhuma pessoa que se dedique a isso. E chegam a ganhar, hoje em dia, um casal 25 contos por dia. E mesmo assim ninguém quer. Vem gente de fora. Aqui as pessoas nunca tiveram muita tendência de trabalhar na terra. Se trabalhavam eram ganadeiros. Está tudo no desemprego, os que não estão no desemprego trabalham para as câmaras, e na agricultura não querem trabalhar. No campo as pessoas não querem trabalhar. Já era nessa altura, para os montes já era difícil arranjar pessoas para viver nos montes. Era tudo gente que ao fim do dia ia para casa, já não viviam cá. Eu lembro-me quando foi das oito horas, que aqui no monte a gente tínhamos umas persianas iguais a estas, mas em madeira, e nessa altura mandou-se pôr umas portadas com madeira grossa. E apareciam aí nas árvores e nalguns sítios uns papéis escritos com as pessoas que eles iam matar. E aparecia o nome do meu pai. Era uma zona muito comunista na altura. Eles nunca chegaram a fazer greve. Depois às tantas começou a ser em todo o lado e pronto. Quem ficou a tomar conta da lavoura quando o meu pai morreu foi o meu irmão com 18 anos. Era o único meio de sobrevivência que nós tínhamos. Nessa altura eram à volta de 1.100ha, ou assim. Naquela altura a mão-de-obra também era relativamente barata, de maneira que nessa altura ainda se empregava muita gente. Aquilo das colocações obrigatórias era um estratagema simplesmente para tirar o dinheiro aos agricultores e ocupá-los depois quando já não tivessem dinheiro. Houve muita gente que pensou que talvez assim se evitasse que isto fosse à frente, e andaram a aguentar até que deixaram de pagar porque já não tinham dinheiro e nessa altura eles, com essa desculpa, ocupavam. O princípio das ocupações foi um bocadinho assim. Cá também ainda tentaram colocar, mas a gente não deixámos. Fechamo-los ali dentro duma casa daquelas e não os deixámos sair. Ficaram ali dois dias... Esse meu irmão mais velho ainda pertenceu a uma comissão que era formada por agricultores, trabalhadores, e pelo MAP122, e iam às herdades ver quanto pessoal é que se deveria distribuir para lá. O meu irmão foi para lá exactamente para evitar que se fizessem essas distribuições. Ninguém pode obrigar uma casa a ter trabalhadores só para os sustentar. Isto é uma empresa a agrícola, e não é um financiamento aos trabalhadores agrícolas. Se alguém tem de fazer isso é o Estado, como faz agora, que dá o subsídio de desemprego a quem não tem emprego, ou a previdência, ou outra coisa qualquer. 122

Ministério da Agricultura e Pescas.

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A maior parte dessa altura até passei na tropa, não era eu que estava cá mais, quem estava mais era o meu irmão mais velho, que tinha mais três anos que eu e que faleceu entretanto. E era outro irmão mais novo que eu. A gente, na altura das ocupações, éramos todos bastante novos. O mais velho tinha 21 ou 22. A gente na altura éramos um bocado agaiatados, como deve estar a ver. Eu fui para a tropa, mas ainda estava a estudar. O meu irmão mais novo estava a estudar. Não cheguei já a ir para fora. Um dos meus irmãos mais velhos foi para Angola. Veio de lá bem, graças a Deus. Morre muito mais gente cá nas estradas do que os que andaram lá nas guerras. Era uma guerra de guerrilha e havia muita gente que andava lá aqueles três anos e nunca levou nenhum tiro. Outros estavam em sítios piores e padeciam um bocado mais. Eu estive na tropa na altura, portanto conheço um bocado o ambiente da tropa. Eu sou um bocado anti-militarista desde pequeno. Nunca gostei de ir para a tropa, nunca gostei de fardas. E era o que chamavam na tropa um baldas. E as pessoas convenceram-se de que eu era comunista, lá na tropa. De maneira que a primeira reunião que houve da organização dos SUV foram-me chamar a mim para comandar a reunião, porque julgavam que eu era comunista. Como eu não batia a continência, nem chateava os soldados. A tropa era uma balda naquela altura, ninguém fazia nada. Eu fui à reunião sem saber bem o que era. Quando soube comuniquei

para

o

quartel-general.

Nessa

reunião

decidiu-se

fazer

uma

insubordinação. Só que aquilo eram tão simplórios… Mas depois perceberam logo que eu era o agrário que dizia as coisas... As ocupações aqui começaram ali no monte ao lado. Houve aqui uma altura, a gente, quando foi a ocupação... As pessoas não se capacitaram que era mesmo a sério! E sempre se pensou que com um telefonema de um oficial, neste caso até era um irmão do dono que estava nas Forças Armadas e que era lá do “Movimento dos Capitães”, e dessa coisa toda, a gente pensou que com um telefonema que aquilo se resolvia. Primeiro pensámos ir lá e obrigá-los a sair à força. Mas depois o dono não quis porque conhecia lá gente: “Isto não pode ser, isto não há-de ser assim... E com telefonemas a gente vai ver isso”, e tal. A situação arrastou-se, e acabou mesmo por se verificar. Se naquela altura se tem chegado lá e se tem posto aquela gente dali para fora, saíam todos depressa. E aquilo parava. Mas como aconteceu a primeira e se consolidou, passou ali uma semana ou duas, começaram as ocupações aí todas. Eles na altura aperceberam-se que aqui não iam ter uma ocupação pelo menos fácil. Havia de haver, pelo menos, confronto havia de certeza. Das várias vezes que tivemos ameaças que nos iam ocupar, a gente armava-se e punha-se aí às entradas para não os deixar entrar e eles acabaram por nunca vir. A gente chegámos a ir lá à 202

vila armados, e essa coisa toda. Fomos lá à missa e deixamos as armas à porta da igreja. Era um bocado assim, porque a gente também começou a sentir que a maneira de a gente ficar para trás ou de isto dar uma volta era haver alguém que se levantasse e que fizesse sangue. Enquanto havia as ocupações, a gente ia lá para cima e as pessoas diziam: “É pá, tem calma, que isto resolve-se” e tal, não acontecia nada a ninguém, ninguém se aleijava, ninguém ficava ferido, aquilo havia de se resolver. E ia ficando de lado. Enquanto não houvesse um confronto a sério, a gente tinha a sensação que isto ia tudo continuando, continuando, ninguém se queixava... Eu acho que ninguém reagiu principalmente devido à idade. E as pessoas ao princípio não se convenceram que era assim. A gente ai quando se reunia, a gente às vezes falava em ver se trazíamos uma milícia, uma coisa qualquer... Alguns da vila não vinham às reuniões, mas isso era gente que tinha outras posses e que pensou que “pronto, eu aguento-me com isto, a viver com aquilo que tenho durante uns anos, e isto há-de voltar para trás, isto não pode ser”. E realmente foi assim, mas demorou tempo demais. E havia outros que não tinham essa possibilidade. Não era organizar-se militarmente. Se viessem aqui eu telefonava e vinham seis ou sete dessa gente que estava disposta... Se fossem lá a eles a gente ia lá... E a gente chegou a ir lá a esses que diziam que vinham. Fomos lá, eles estavam lá dentro da Casa do Povo. Entrámos lá dentro da Casa do Povo, apertámos lá o tal e dissemos-lhe: “Se quiserem lá ir vais tu à frente!” E foi por causa disso que eles não vieram, não há outra razão. Eles, moralmente, não sentiam força também para... Compreendiam que aquilo também não podia ser. Agora quando aquilo se junta em grupo, aquilo é incontrolável. Um manda uma boca, outro manda outra boca, “ele é fascista”, “ele era assim, ele fazia assado, ele fez isto, ele fez aquilo”, e aquilo enfurecia as pessoas que tal maneira que... As mulheres eram as piores. As mulheres nessas coisas são sempre as piores. E depois também a gente tem uma certa dificuldade de falar com uma mulher. Com um homem, quando a gente nã se entende, resolvemos as coisas à bofatada. Quando é com uma mulher é mais difícil. Aqui nunca chegaram a vir. Tivemos várias ameaças, tínhamos um homenzinho, que já estava reformado na altura, que trabalhou cá desde pequeno, que de vez em quando aparecia ai a dizer que eles se estavam a organizar para vir. Outras vezes telefonava-me a dizer que eles já estavam em cima dos tractores para virem, e tal. Mas nós púnhamos-se aqui à porta ou à estrada nova, à entrada, com as espingardas e isso. E eles passavam. Os caseiros também eram do mais comunista

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que havia. Viam as armas espalhadas por tudo quando era lado, em cima das camas, e eles iam informá-los. O processo foi igual no Alentejo inteiro, isto era uma coisa organizada superiormente. Tinham os testas-de-ferro aqui, noutros sítios tinham outros, isto era tudo organizado. A gente pertenceu à CAP. A CAP teve uma função aglutinadora. A maneira como juntaram o grupo de agricultores activos que havia aqui e ali, isso foi trabalho da CAP, tentando convencer os governantes de que aquilo não podia ser. A ALA foi assim uma coisa que nunca chegou a concretizar-se. A gente não sabe explicar bem, mas a ideia é que houve falta de organização depois para continuar aquilo. Nós íamos a todas as manifestações. Ao pé de Marvão eu por acaso não fui, estava na tropa nessa altura, mas os meus irmãos foram. Aquilo era uma manifestação dos agricultores e que os comunistas tentaram boicotar. Os primeiros agricultores que lá chegaram levaram um enxurro. Quando lá chegaram estavam lá os camaradas todos à espera deles. E pronto, como as pessoas que iam para essas coisas, ia tudo já armado e essa coisa toda, quando se começou a juntar houve uma guerra civil. Houve pessoas que vieram de Marvão para aqui a fugir. O Pezarat Correia era na altura o militar que estava ali em Portalegre. E quando aquilo começou em efervescência ele foi lá. Ele ia lá tentar apaziguar aquilo. Só que aquilo naquela altura não dava para defender ninguém. Aquilo era tentar parar. Aquilo havia tiros lá para trás daquelas pedras que não era brinquedo. Os ânimos estavam muito exaltados. Não era só a gente a atirar aos comunistas! Eram os comunistas a atirar à gente também! O meu irmão, uma vez, cercaram-no aqui com uns tractores. Vinham uns tractores todos e ele vinha de frente. Abriram os tractores em leque para o tentar apanhar. E ele a única maneira que teve de sair de lá foi sacar da pistola e desatar aos tiros àquela gente para eles se desviarem. O exército foi responsável por não agirem. Não se compreende de maneira nenhuma as ocupações. Podia haver até casos em que estavam mal explorados, mas isso tinha de ser visto caso a caso. Mas não foi isso que se fez: ocupou-se primeiro os melhores e depois foi-se andando para os piores. Depois de consumadas as ocupações, eles expropriavam. Aquilo foi uma maneira de legalizar uma situação que já existia, era uma situação de facto. As expropriações vieram muito depois das ocupações. Não houve herdades que fossem expropriadas antes de serem ocupadas. O caso desta: não está expropriada. 204

Nós tivemos trabalhadores sempre, durante as ocupações. Eles tinham um bocado de medo, chamavam-lhes nomes. Tiveram uma certa dificuldade. Mas também, como não passaram logo para o outro lado, depois também já não podiam ir. Chamavam-lhes nomes nos cafés... Quando os encontravam a sair ou a chegar chamavam-lhes lacaios e reaccionários. Nessa altura só ficámos os mais velhos. Os meus dois irmãos viviam aqui sozinhos, depois um casou e veio a mulher para aqui também. Se a gente abalasse daqui ocupavam isto tudo. A agricultura nessa altura era uma coisa muito pobre. As pessoas hoje em dia não... Agora estamos a entrar numa outra fase parecida, mas na altura a agricultura era uma actividade muito pobre. O meu pai sempre nos tentou afastar daqui. Queria que tivéssemos empregos. A gente tinha a ideia, na altura, de ir para Angola. No dia 25 de Abril de 74, no dia da revolução, no último avião que pousou em Lisboa chegou o meu irmão mais velho de Angola, que tinha ido ver lá umas propriedades para a gente se mudar para lá. Ficaria algum aqui, a gente éramos oito, oito é muita gente. Na altura isto não dava para sustentar a família com facilidade. Depois fomos quase obrigados a ficar. Isto estava mal. Eu ainda cheguei a trabalhar fora. Na altura pensouse que era mau virmos para aqui os três, quando isto começou a melhorar ainda estivemos a trabalhar para fora. Ainda trabalhei numa empresa de barragens e autoestradas, de construção civil. Morei no Porto durante dois anos. A minha mulher também estava a acabar o curso. Isto estava mal, não dava para sustentar os três. E dividir a propriedade não tem a mínima viabilidade. Se for dividido ninguém se governa. Depois de Novembro aquilo mais ou menos começou a parar. A gente ia fazer as desocupações a essas pessoas mais antigas, e que não tinham muita capacidade. Porque isto quando era das desocupações também era o fim do mundo. E traziam as pessoas de Lisboa em camionetas e essa coisa toda, lá do Barreiro... É evidente que quando foi das desocupações, da nossa parte também houve alguns excessos. Vinham 100, 200, a chamar fascistas e lacaios, a insultar a GNR. Lembro-me bem de uma, foi uma das pessoas que a gente fomos ajudar na desocupação, que trabalhava em Lisboa, tinha um bocado de jeito para a mecânica. Porque eles depois tiravam as chaves dos tractores. Tinham que entregar os tractores, mas tiravam-lhes as chaves todas. Tinham de entregar as vacas, fugiam com as vacas. Tinham que entregar as ovelhas, fugiam com as ovelhas. Tínhamos de andar à procura das vacas. O que vale é que a gente conhecia bem a zona. Mas uma coisa que podia levar meio-dia

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chegava-se a arrastar por três ou quatro dias. Era mais por isso que nos chamavam, porque a gente éramos novos e conhecíamos aqui bem a zona. As pessoas quando foram ocupadas entregaram no Ministério da Agricultura uma relação daquilo que tinham. Tractores, ovelhas, charruas, grades... Quando era das desocupações, eles tinham de lhe devolver o que lá estava. Não havia o tractor que ele tinha, davam-lhe um parecido. Umas vezes ficava melhor, outras vezes ficava pior, porque eles arranjavam maneira. As pessoas iam tirando. O que aconteceu foi que para o fim houve alguns que já não receberam. A cooperativa tinha 1.000 vacas, mas quando foi da desocupação já só havia 700. Os primeiros tiraram as 700, os outros ficaram sem vacas. Esses serão indemnizados agora nas indemnizações definitivas. Esse processo está a correr há anos e anos. Ainda são valores altos. Às cooperativas aconteceu-lhes um bocado o que eles fizeram aos agricultores. Primeiro obrigaram a distribuição aos agricultores. Ficaram sem dinheiro. As pessoas que estavam à frente das cooperativas não tinham capacidade nenhuma para isso. E houve também o desvio de dinheiro que cada um fez. Os chefes das cooperativas... Toda a gente está bem, hoje em dia, vivem hoje bem, com bons carros, e nunca mais trabalharam desde que acabaram as cooperativas. Tirando alguns, que inexplicavelmente, não sei se eram tão tontinhos que não se soubera amanhar... Eles arranjaram as casas, e tal. A ambição desta gente também não dá para muito mais. Eles também foram um bocado ultrapassados. Uma pessoa que roubasse três ou quatro mil contos pensava que tinha roubado dinheiro para toda a vida, e com inflações de 30% aquilo, passado pouco tempo, pouco é. Houve má gestão. Mas acima de tudo era que ninguém trabalhava, e ninguém tinha força para mandar o outro trabalhar. Porque eles tinham lá as eleições e nas próximas eleições esse não ganhava. Qualquer um que tentasse fazer o papel de patrão começavam logo a dizer: “Este lacaio, este é assim...” De maneira que aquilo era tudo propício a que ninguém fizesse nada. Ao princípio, enquanto houve dinheiro estava tudo satisfeito. Trabalhavam menos, ganhavam mais, mas isso também não foram muito mãos abertas, os níveis dos ordenados ficaram quase na mesma. Só que com a liberdade de não trabalhar e de dizerem que aquilo era deles. Eles produziam menos, mas principalmente mal organizado. Tudo era mal feito, as sementeiras eram feitas fora de tempo, as debulhas a mesma coisa. Depois, tudo o que tivesse um bocadinho de especialização já não faziam. Nós nunca recorremos ao crédito. E passado um ano ou dois das desocupações foi uma das alturas boas da agricultura. Porque a inflação ajudava. A

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pessoa comprava uma vaca por seis contos e no outro ano valia 12, depois 16... Estas agriculturas deste tipo a gente compra muito pouca coisa. Elas pastam. Não é uma agricultura intensiva. Nas terras boas há mais uma agricultura intensiva. Aqui não. Aqui é produzir o que dá. A PAC é posterior a isso tudo. A PAC é péssima para os agricultores. Não para esta zona aqui, porque é uma zona de floresta e a floresta está com alguma prosperidade. Enquanto houve algum avanço na parte da floresta, na parte agrícola é o descalabro completo. Mas também não é bom, porque o que se faz no montado é o gado. E o gado, há seis anos eu vendia os bezerros a 120 contos e agora vendo a 80. Mas são subprodutos, porque a parte principal é a cortiça. Está-se a reduzir o parque de máquinas. Aumentou-se a vida útil dos tractores, que dantes era de cinco ou seis anos, agora é de 16 ou 20. O filho mais velho do meu irmão mais velho tem interesse e esse, em princípio, daqui a poucos anos vem para cá. Gosta do campo. Já o meu, por exemplo, tem 18 anos e foge daqui como o diabo da cruz. Isto é uma questão de gosto. Há pessoas que se dão aqui. A mim, por exemplo, se me mandarem para Lisboa matam-me. Para aquele barulho... E há outras pessoas que gostam do barulho, que gostam do movimento e dessas coisas todas. Nós encaminhamo-los para as distracções do campo: o andar a cavalo, o ir à caça. Os desportos daqui, uma mota de água para irem à barragem. Arranjar-lhes aqui algumas distracções. Alguns gostam, e outros não gostam, é natural, preferem ir para as boites. Já no nosso tempo havia alguns que não tinham a mesma coisa pelo monte do que eu. E enquanto se puder viver disto... Agora ainda conhecem a terra, porque estamos muito chegados aqui. Vivemos aqui, passamos aqui o Natal, a minha mãe vive aqui. Os meus filhos todos os fins-desemana vieram para aqui, todas as férias de Natal e da Páscoa. Vamos 15 dias à praia, mas todo o resto do tempo passaram aqui. Alguns ganham gosto por isto. O meu filho ainda conhece as extremas da herdade, sabe o que são vacas. Se calhar os filhos dele, quando ele viver toda a vida em Lisboa e não gostar de vir aqui, esses já não vão saber o que é isso. E nessa altura começa a ser difícil manter-se esta estrutura. Porque ele depois está lá e diz: “Tenho lá uma coisa no Alentejo que vale não sei quanto. Eu não quero saber daquilo para nada, dá-me 2 ou 4 ou 5% de rendimento ao capital, eu vendo mas é aquilo e compro aqui uma bela casa. O resto vivo do meu salário.” Ainda não chegamos a esse ponto, fomos criados aqui. A gente tem o turismo de habitação e temos a caça. É um complemento muito pequeno à agricultura. É mais importante o facto de a gente ter alguma privacidade e não nos virem cá estragar as coisas, do que o rendimento que dá a casa. Ou se faz 207

um investimento grande, que foi o nosso caso: fizemos uma rede de três metros e introduzimos os veados e os muflões, que é uma caça que se consegue mais ou menos controlar, ou então a outra caça, pelas experiências que há, ou é feita artificialmente, ou aquilo pouco sobra. Também temos o turismo só de habitação. A gente pertence a uma organização, os “Montes Alentejanos”. Foi uma coisa que organizamos aqui na Ponte de Sor, ao abrigo do Programa Líder, e arranjámos 13 montes para turismo de habitação. As pessoas pensavam em arranjar os montes e ter algum rendimento com isso. Mas há muita dificuldade de pessoal para manter essa actividade com uma certa qualidade. E o turismo também é muito de fim-de-semana. Ter uma coisa aberta e estruturada para trabalhar só aos fins-de-semana é um bocado difícil. Estamos a fazer uma tentativa para entrar no mercado internacional... Nós também não podemos estar muito ligados ao turismo. Quer dizer, eu, pelo menos, não tenho muita capacidade de receber as pessoas. Pessoas que não têm nada a ver connosco, falam de coisas completamente diferentes. Eu não tenho muita paciência, a minha irmã é que trata daquilo. Eu praticamente não vou lá. Só às vezes quando é assim uma pessoa ligada à caça, que quer ver os bichos. Que é uma das coisas que a gente faz, é passear as pessoas, a ver os veados, as lebres, os coelhos. Há pessoas que ouviram dizer que há cá veados e vêem para ver os veados, e depois levanta-se uma lebre e eles: “Olha aquele veado!” Aquilo não justifica que uma pessoa esteja muito... Se aquilo fosse uma coisa que desse muito rendimento, a gente faz tanta coisa que não gosta! Mas não, aquilo dá para pagar ao casal durante o ano e pouco mais sobra. A gente tem apartamentos, com um kitchenette. A gente dá o pequeno-almoço, vamos lá pôr o pão de manhã, manteiga, mel, essas coisas regionais. Depois, se quiserem lá comer, trazem ou vão às compras. Depois tem uma sala de convívio para as pessoas estarem. E aquilo era um monte que estava quase caído. Foi uma maneira de arranjar o monte e se daqui a amanhã aquilo não der, ou se não houver possibilidades de o manter, pelo menos ficou o monte arranjado.

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28 – Gerente do Grémio da Lavoura, proprietário agrícola. N. 1925, 73 anos. Eu era gerente do grémio. E expulsaram-me. Eu fiquei sem emprego. Olhe, ainda há dias rasguei a carta. O Partido Comunista tomou conta daquilo e passados uns dias recebi uma carta escrita do grémio, mas que não vinha assinada. Por que o indivíduo não assumiu a responsabilidade. A partir daquele momento deixei de lá ir. Nunca mais lá pus os pés. Eu também era o presidente da cooperativa agrícola, que fundou o lagar123. Eu também já estava a pensar em largar aquilo. Mesmo antes do 25 de Abril queria terminar o mandato e ir-me embora, porque já estava farto. O lagar da cooperativa só fabricava a azeitona dos seus associados, os produtores do concelho. Grandes e pequenos. Quando o lagar começou, eram só os pequenos proprietários. Depois, com a minha ida para a cooperativa, mais tarde aquilo começou a desenvolver-se, começou a dar mais rendimento, e as pessoas começaram a entrar como sócias para a cooperativa. Eu estava nos dois lados. Simplesmente, no grémio era remunerado e na cooperativa trabalhava de graça, por amor à arte. Os lavradores nem sabiam passar cheques antes de 1974. Iam ao grémio para eu lhos passar. Eu, quando estava na cooperativa, um dia recebo um ofício não sei de onde, a dizer que tinha de sair e que tinha de promover eleições. Porque todas as pessoas que tivessem pertencido a qualquer organismo do Estado Novo automaticamente estavam eliminadas124. A unidade colectiva de produção só se fundou depois do grémio ter sido extinto. Porque eles, a primeira coisa que fizeram, instalaram-se no grémio. E passados meses é que constituíram a UCP. O Verão Quente de 75: isso foi uma grande farsa, uma grande aldrabice, uma grande roubalheira. As propriedades que começaram por ser ocupadas eram aquelas que estavam menos exploradas. Mais matagosas, ou coisa no género. Começaram por fazer isso. Havia necessidade, diziam. O representante local do Partido Comunista conseguiu arregimentar todos os tractoristas, todos os indivíduos que tinham tractores de aluguer, embora trabalhassem particularmente, passaram a trabalhar para o Partido Comunista. Era o partido que lhes estava a dar ordens por trás. Aqueles lavradores que nasceram na terra, toda a vida cultivaram uma terra, tinham as propriedades bem tratadas. Essas herdades foram ocupadas na mesma data que foram as outras. Algumas que podiam considerar-se o expoente máximo das 123

A Cooperativa Agrícola funcionava desde 1965; as suas principais funções incluíam a transformação da produção olivícola dos seus associados, a colocação do azeite no mercado e a disponibilização de máquinas agrícolas. 124 Decreto-Lei nº 390/75, de 22/7/1975: Define os inelegíveis para os órgãos sociais das cooperativas, principalmente todas as pessoas que tivessem pertencido às instituições de maior poder no regime anterior, nomeadamente grémios da lavoura, casas do povo, câmaras municipais, incluindo vereadores.

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explorações aqui na região do Alentejo. Não só do ponto de vista agrícola, como pecuário, etc. Por exemplo, eu sei que um dos lavradores importou vacas Turinas ou Sementais, para melhorar os seus gados. A pecuária mecanizada, tudo isso. Havia um senhor que tinha um gosto extraordinário. Naquele tempo não havia furos artesianos, mas ele fazia minas, e tal. Na alimentação dos gados, tinha os gados muito bem tratados. As propriedades melhor tratadas no concelho eram as desse senhor. Tudo muito bem apetrechado, com máquinas próprias. Agora que as propriedades estavam mal exploradas, isso é pura mentira. Por exemplo, a propriedade de cortiça é uma propriedade, o único rendimento que lá tem é a cortiça. Um indivíduo com um tractor lavra a propriedade de nove em nove anos para matar o mato. Porque quanto menos se lavrar a terra da cortiça melhor é a qualidade da cortiça. O indivíduo trata bem ou mal as terras consoante o rendimento que aquilo dá. Se a gente vê ali uma fonte de receitas em determinada propriedade tem de explorar aquilo, explora mesmo. Neste momento, as propriedades andam muito mal tratadas, mas porquê? A azeitona nem dada a querem. Então eu vou pagar dinheiro para apanhar a azeitona? É que o Partido Comunista começou por colocar nos pontos-chave do Alentejo indivíduos partidários ou simpatizantes do Partido Comunista. Eles tomaram conta do grémio, começaram a vender farinha, rações, começaram a levar farinhas e adubos, etc., que não pagavam. As pessoas compraram todas uma espingarda. E temos aqui o caso do ourives, que veio do norte aqui vender ouro pelos montes, primeiro de bicicleta, depois de motorizada. E mais tarde já de automóvel. Quando verificou que o negócio do ouro estava falido, porque as pessoas fugiram todas do campo, dedicou-se à venda de espingardas. E toda a gente comprou uma espingarda para caçar. Não era para caçar: no caso de haver uma revolução, ou uma coisa qualquer, ter uma arma para se defender. De modo que o ourives enriqueceu à custa… rapidamente… Quando ocupavam uma propriedade, uma das primeiras coisas que faziam era saquear o monte. Há uma casa cá na vila que é uma casa muito grande. O indivíduo era um dos cabecilhas das ocupações, e então os móveis melhores eram transportados para aquela casa. Os móveis bons, de noite, eram transportados para essa casa, dos montes saqueados. E esses móveis eram para distribuir por eles. Ele distribuiu alguns e outros ficou com eles. Ainda há dias, há aí um homem que é um marceneiro que quis comprá-los. Os donos não sabiam deles, desapareceram.

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Os proprietários afastaram-se. Porque sabe? Queriam ir ocupar a propriedade X… Então o chefe deles conseguia, porque mais tarde já estavam as cooperativas formadas, era mais um passeio que iam dar. Iam porque ele pagava-lhes o salário, não iam trabalhar. No fim ainda matavam uns borregos, umas galinhas, aquilo que lá havia. Matavam uma vaca. Isto, “Com festas e bolos é que se enganam os tolos”! Numa das herdades os ocupantes comeram uma vaca premiada num banquete. No dia 1º de Maio faziam festas, todos os anos matavam um porco ou dois, o que fosse necessário. E bico livre para toda a gente, desde que fosse do partido. Esta vila passou a ser a Meca do Alentejo. Vinham de toda a parte, vinham visitar e apoiar a Reforma Agrária no Alentejo. Geralmente eram simpatizantes do Partido Comunista. Chegavam a vir cinco e seis camionetas ao domingo. Depois houve uma grande campanha contra os intermediários. Acabaram com os intermediários todos. E o chefe da cooperativa vendia azeite, vendia carne de borrego, vendia queijos, vendia aquilo tudo que produziam a um preço simbólico. E dizia: “Vêem? Se não houvesse os intermediários, vocês lá em Lisboa não pagavam a carne por tanto…” Há depois também os propagandistas que se aproveitam disso. O gado venderam. Um indivíduo do concelho vizinho fez uma fortuna muito grande a comprar os gados às cooperativas. Eles, quando precisavam de dinheiro, vendiam gado. Entretanto, surgiu um empréstimo, chamado Crédito Agrícola de Emergência. As cooperativas usaram esse dinheiro e nunca pagaram. Mais tarde, passados três anos, comecei eu a tomar conta dessa situação. E então é que eu fiquei a conhecer os podres todos da situação. Como eles não pagavam, chegaram a ter juros de 30% e 20%! De modo que contas de 50.000 contos inicialmente, quando passou meia dúzia de anos estavam em 150.000 contos. Como eles não pagaram, foilhes tudo penhorado e os casões foram vendidos em hasta pública. A cortiça era o seguinte: eles tinham de entregar uma parte da cortiça ao Estado. Tiravam a cortiça de dia, de noite desaparecia. Iam lá os fiscais, os guardas florestais, não encontravam nada. Tinha desaparecido de noite. Ainda havia presentemente, um indivíduo tem de pagar um imposto de 40%, é uma coisa muito grande. E entretanto, os próprios compradores de cortiça, os fabricantes… A cortiça valia 100, eles comprava por 50, davam-lhes lá o dinheiro e a cortiça desaparecia. A igreja ainda esteve… Aconteceu que no verão de 75 foi um dos grandes anos agrícolas de Portugal. Muito trigo, muito cereal. Aquilo foi ocupado. As propriedades foram ocupadas, e então havia que armazenar o trigo. Ainda se falou em fazerem de armazém a Igreja do Convento. Entretanto falaram com o partido. E o trigo 211

que os lavradores deixaram nos celeiros, como os celeiros oficiais não tinham capacidade de escoamento, foram para a cooperativa e ficaram nas tulhas da azeitona muitas toneladas de trigo. Sabe, aquilo estragou a saúde às pessoas. Veja pessoas ricas, pessoas donas das terras, de um momento para o outro vêem-se espoliados… As casas de um modo geral foram saqueadas. Havia aí uma capela com uns azulejos. Arrancaram os azulejos e fizeram não sei onde um talho. O balcão do talho… Vou-lhe contar o caso de uma senhora que mora na Av. de Roma. Tinha muita cortiça, rendimento só de cortiça. E essas pessoas, corticeiras, têm o hábito de gastar. No espaço de nove anos gastam tudo e então têm crédito bancário. Ao fim de nove anos tiram a cortiça, pagam aquilo tudo e sobeja algum. Passados cinco anos têm crédito outra vez. E essa senhora sobreviveu em Lisboa a fazer bolos. A vender aqueles bolos nas pastelarias, a casas particulares. Tinha muito jeito. Eram duas, três da manhã, e ela a bater ovos. Depois, mais tarde, ainda montou uma casa de pronto a comer. As cooperativas caíram sobretudo por má gestão. Não tiveram grandes lucros porque a maneira como as coisas eram administradas…. Primeiro que tudo: não havia patrões, não havia manageiros, cada um trabalhava segundo a sua consciência. E a consciência das pessoas não era nenhuma. Eu quero dizer que havia, por exemplo, numa das herdades uma seara de tomate. As mulheres apanhavam 10 caixas de tomate por dia. Resultado: aquelas 10 caixas de tomate, o valor do tomate apanhado era para pagar os salários delas. A lavoura, a rega, os transportes, os juros deduzidos ao dinheiro que tivessem contraído de empréstimo, não chegava. Eles não faziam essas contas. Ali tinham um salário certo, era preciso deixar correr. Elas ganhavam a mesma coisa. Simplesmente não produziam. Lembravam-se de dormir a sesta dentro de um rego, dormiam mesmo porque ninguém via. E se alguém visse, não lhe dizia nada. Era sobretudo má gestão. Era preciso fazer qualquer coisa: em vez de ir um empregado, iam cinco ou seis. Iam a Lisboa tratar de negócios: iam cinco ou seis. Davam um passeio, um bom almoço, apresentavam no escritório o almoço, era assim. Eu atribuo mais à má gestão. É possível que eles se tenham abotoado com qualquer coisa. Por exemplo, precisavam de dinheiro e vendiam um rebanho de vacas. Precisavam de dinheiro, vendiam um rebanho de borregos. Depois vendiam aquilo por qualquer preço, era preciso realizar capital e então vendiam. Quando foi das ocupações, eles tinham de fazer uma acta: tantas ovelhas, tantos tractores… Simplesmente, quando foi na restituição, tinham de entregar as

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mesmas ovelhas. O que é é que eles tinham ocupado ovelhas boas, de boa raça, e quando foi da restituição, ovelhas velhas, umas já a morrer, outras sem dentes, outras pele e osso, essas é que eram restituídas. Nas entregas, ao princípio resistiram. Porque era o descalabro das suas cooperativas. Agora, quando foi para o final, eles estavam interessadíssimos em que as cooperativas acabassem. Porque estavam aborrecidos já da falta de respeito dos trabalhadores para com os chefes, enfim… Além disso, por exemplo o chefe já tinha aí três propriedades arrendadas. Ora ele preferia explorar as propriedades que lhe davam lucro a ele, do que estar a aturar A e B e C. Todos os que queriam trabalhar iam para as cooperativas e, passado um ano ou dois, os bons trabalhadores fugiam das cooperativas. Foram trabalhar para aqueles proprietários que passaram a ter propriedades, ou na construção civil, ou noutros trabalhos. Porque iam ganhar mais dinheiro. Eles na cooperativa ganhavam pouco, mas não trabalhavam. A cooperativa já não tinha rendimentos. De um modo geral, todos os proprietários recorreram ao Crédito Agrícola de Emergência para comprar adubos e gado, para iniciar, porque os tractores que lhes entregaram estavam arruinados. Foi preciso comprar tractores novos, alfaias novas, etc. Davam para as pessoas limparem o mato das propriedades. Arranjar mato. A limpeza dos sobreiros, a limpeza de ribeiros. Por exemplo, os serviços hidráulicos nunca se preocuparam com a limpeza dos rios. Caía uma árvore, umas pernadas, e lá ficava. E então eles limparam ribeiros, vedaram as propriedades. Noutros tempos havia os ganadeiros, os homens que guardavam o gado. Hoje não há esses homens. E então os lavradores tiveram esses subsídios para fazer as cercas, para vedar as propriedades.

Electrificação,

construção

de

barragens:

geralmente

eram

comparticipados na quase totalidade. Tudo quanto fosse dependências agrícolas, isso é comparticipado. As residências já não são comparticipadas. A electrificação para o monte, um furo artesiano, isso já é comparticipado. Agora não querem trabalhar! Se nós formos aqui falar a uma mulher para a agricultura, ela até nos insulta. Elas não querem trabalhar na agricultura! Mas, no entanto, estão no desemprego, e estão a trabalhar na fábrica dos congelados, agora está na moda a fábrica dos congelados. Instalaram-se aqui este ano duas fábricas. Como isto é uma região desfavorecida, uma região política, montaram aqui duas fábricas. E as mulheres estão a trabalhar ali na fábrica por conta do desemprego. Em vez do desemprego estar a dar dinheiro a essas mulheres, vão trabalhar para a fábrica e eu acho que a fábrica apenas lhes paga o subsídio de almoço. Portanto, quando se diz que há desemprego aqui no Alentejo, isso é uma conversa. Há desemprego, sim, nas mulheres. Porque o trabalho agrícola é um 213

trabalho sazonal. Há muito trabalho na azeitona, há muito trabalho no tomate, mas naqueles intervalos não há trabalho. Então elas inscrevem-se no desemprego. E como o desemprego é para seis meses, na próxima campanha de qualquer coisa, elas não vão porque estão inscritas no desemprego. Quando a mim, acho que a agricultura está pior. O trigo que se produz em Portugal é de inferior qualidade e muito mais fraco do que aquele que vem da importação. Aveias e cevadas não vale a pena. A cevada que se produzia no meu tempo era para a cerveja. Pois hoje nem a cevada. Vem de fora muito mais barato e com muito melhor qualidade. Depois há os subsídios da CEE para a pessoa não cultivar. Para não meter mais gado. A pessoa aproveita o subsídio… Então todas as crianças vão estudar, todos os adolescentes andam estudar, e depois de tirar o 9º ano ou o 12º ano não vão apanhar azeitonas. Os velhos estão reformados, já não estão para isso. E na agricultura há muito pouca gente a trabalhar. Tudo o que se puder fazer com máquinas, tractores, pivots, aí é de fazer. Caso contrário, tem de se abandonar, porque não há pessoal. Tudo quanto puder ser mecanizado é de fazer. Tudo quando não puder ser feito com a máquina, é de pôr de lado. Por exemplo hoje o pequeno proprietário está condenado a morrer. Que é o meu caso, o resultado é que os meus filhos vão estudar, tiram um curso, empregamse: “Ó pai, venda isso tudo, a terra não presta para nada”. E depois, está a ver… Não querem a agricultura para nada, já não querem voltar. A pequena propriedade só é bonita naquele género de pomar. O indivíduo tem um pomar, tem pessegueiros, tem ameixieiras, tem pereiras. Agora, a oliveira… Se eu tiver 200ha de cortiça é bom. Mas, se eu tiver 200ha de olival, não vale nada. Eu dou a minha azeitona, dada, e para aí 50% fica no chão porque ninguém a apanhou. Agora só dá para quem tenha um ordenado e use aquilo para recreio. Todas as herdades hoje pertencem a essas associações que há para organizar caçadas. Sempre vendem qualquer coisa, não sei se dá rendimento. Porque depois têm de ter o guarda, aquilo dá despesas. Têm despesas grandes.

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29 – Emigrante, comerciante, director de cooperativa agrícola e lagar125. N. 1926, 72 anos. Naquele tempo todos eram iguais, sofriam todos a mesma cruz, iam juntos em ranchos para o trabalho, cantavam, aquilo era uma alegria. Havia o convívio. Isso acabou tudo. Hoje é uma das coisas que mais me choca, noto essa grande diferença. Até porque não havia as televisões. A televisão foi uma coisa muito boa que apareceu, mas roubou o convívio às pessoas, até em casa ela fez isso. Já ninguém pode falar. Não fiquei cá. Mas quem é que cá podia ficar naquele tempo? Até porque nos anos 50 havia centenas largas de pessoas, havia famílias enormes no campo. Começou a haver crises de trabalho a expulsar as pessoas. Eu fui para a loja da Vista Alegre, no Chiado, cheguei a ser chefe de armazém. Antes disso trabalhei no campo sempre. Mas começou a haver crises de trabalho. Quando saí daqui já tinha ido à tropa, tinha 24 anos. Casei quando já estava na polícia, tinha 29 anos. Cá estudava à noite, com um senhor que ai estava. Já fiz a 4ª classe em Lisboa. Depois fiz o 1º ciclo no Liceu Pedro Nunes. Depois estive 11 anos na polícia. Quando eu comecei a ter uma vida boa morava nas Amoreiras, trabalhava em Stª Marta. Não me deixavam sair da polícia. Foi em 61 quando rebentou o ultramar que passaram a ser nomeadas aquelas comissões de polícia para ir para o ultramar e eu comecei a ver as pessoas da Universidade. Eu conhecia toda a gente. Estava no trânsito e eu apanhava toda a gente. Começou a dar-me um certo convívio, evoluí um bocado. Começou a haver o movimento estudantil. À noite havia as prevenções, muita pancadaria que houve com o Humberto Delgado. Acabei por tentar ir-me embora. Eu nunca tive problemas com o regime. Não havia essa coisa da política como há agora. Mas vi balas no Chiado e pessoas caídas. E na altura do Humberto Delgado, quando eu estava em Lisboa, vários polícias apanharam uma grande sova, houve tiroteios. Os comunistas batiam nos polícias sinaleiros, só porque eram agentes da autoridade. Fartei-me. Tenho muitos louvores. Então abalei para a Austrália em 1961. Eu fui para a Austrália porque lá tenho a minha irmã. Eles emigraram, trabalharam para a embaixada da Bélgica. Fui com a minha mulher e a minha filha, que fez lá os cinco anos. Trabalhei duro, não fui turista. Trabalhei na construção de casas, muitas moradias a gente lá fez. Trabalhei em fábricas de produtos para a construção. Eu fazia steps, em inglês quer dizer degrau. Ganhava bem. Depois eu evoluí. Eu fazia desenhos do chão. E trabalhava muito mais que os outros, por isso ganhava mais. Comprei casa, comprei carro, 125

A mesma cooperativa agrícola do capítulo anterior.

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comprei televisão. A minha mulher trabalhou na cozinha da universidade. Só me vim embora por causa da minha filha. Ela estava a aproximar-se dos 12 anos. O problema foi eu e a minha mulher, tínhamos saudades, mas começámos a pensar que a nossa filha estava a crescer num país diferente, que não tinha a nossa mentalidade. Saem de casa dos pais, vão viver sozinhas. E a gente não queria isso para a nossa filha, nem queria lá ficar. Voltámos para cá em 1971 e abrimos um mini-comércio de produtos alimentares. Montei o meu estabelecimento, não queria trabalhar para ninguém. A minha filha fez lá a 4ª classe, depois fez o liceu na Ponte de Sor e em Estremoz e depois foi para a faculdade em Lisboa, tirou um curso de Inglês, está casada e tem dois filhos. Tem empresa de informática com o marido e também dá aulas de inglês. Tem os filhos no Queen Elizabeth, em Alvalade. No dia 26 de Abril houve grande comício na Casa do Povo. Eu, como era assim uma pessoa mais esclarecida, falei, julgando que o 25 de Abril vinha trazer algumas coisas, e criar uma amizade, não haver aquele separatismo. Eu fui eleito para a comissão administrativa da câmara. Houve votação. Na altura foi aquela iniciativa espontânea das pessoas que queriam dar a sua participação. Porque agora as coisas mudaram, voltaram quase como eram dantes. Hoje só se participa em qualquer coisa com uma finalidade, tirar partido de qualquer coisa. Não há a frontalidade de dizer assim: “Eu vou participar sem ganhar nada...” Naquele altura pensava-se que havia alguma coisa que se podia oferecer em benefício da terra. Porque ninguém ganhava dinheiro naquela altura. Fui vereador 16 anos. Sempre no PS. O PS é que fez tudo aqui, porque de resto era tudo do PCP. A sede do PS até foi queimada, há pouco tempo. Aquilo foi uma ilusão, foi um barril de pólvora que rebentou no período. A cooperativa agrícola foi ocupada por pessoas que já cá estavam. Fizeram uma nova administração. Eles ocuparam o grémio. Estas instalações eram as do grémio. No tempo do Vasco Gonçalves fizeram uma lei que acabou com os grémios. O que veio a ser a UCP ficou aqui instalada. O grémio foi dissolvido e instalaram aqui muitas coisas. Depois começou a haver o movimento, pessoas que começaram a aderir e a entregar máquinas e eles depois começaram as ocupações. Primeiro tomaram conta do grémio. Quando tomaram conta do grémio tomaram conta da cooperativa agrícola e foi a partir daí que passaram a ser os gestores disto tudo. E as pessoas encolheram-se um pouco. Não aceitaram ninguém dos funcionários antigos. Até houve grandes polémicas por causa disso. Os trabalhadores daqui ficaram desempregados. Depois foi aqui instalada uma comissão administrativa nomeada pelo Ministério da Agricultura. Através do Dr. Calha, governador civil de Portalegre, do PS, 216

houve movimentos para voltar a ter a cooperativa. Houve então eleições e eles foram corridos de cá. A comissão administrativa é que convocou as eleições para haver uma direcção eleita. Eu já era da cooperativa como funcionário e entrei para a direcção. Estou quase há 20 anos em frente da cooperativa. Havia uma certa dificuldade, porque nós éramos rotulados como fascistas. Tivemos de ir procurar gente para trabalhar ao concelho vizinho, porque estava tudo na UCP. Chegámos a ter aqui ciganos a trabalhar. A UCP mandava a produção de azeitona para outro lagar. Eles tinham lá o lagar deles, que também foi ocupado. Isto depois dividiu-se. Alguns associados passaram a ir à UCP. Tinham cá o nome, mas nunca mais cá vieram. Só mais tarde, como a cooperativa conseguiu resistir ao longo destes anos todos e eles faliram, acabaram depois, como agricultores, por ter de vir cá. É claro que nós não fizemos uso da política, está no direito de cada um. Os outros lagares desapareceram, este foi o único que resistiu. E eles estão todos cá. É claro que temos cuidado de os afastar das direcções. Mas hoje entra aqui toda a gente. São associados, têm tantos direitos como os outros. Nós chegámos a ter duas ceifeiras e duas debulhadoras. Nós fazíamos a prestação de serviços. Ceifávamos, lavrávamos, e cada sócio pagava o serviço que lhe prestávamos. Mas depois começámos a ter diminuição do serviço, uns começaram a reaver as terras, houve os subsídios... Os sócios só pagam a jóia para entrar. Não pagam cotas. É a produção da própria cooperativa que cobre as despesas. Com o lagar e com a distribuição e a loja. Também há um terreno e o património vale muito e rende bastante. Temos seis empregados permanentes. Associados são 400 e tal. Os outros lagares do concelho, das outras freguesias, etc., faliram todos, porque há muita gente que não apanha a azeitona por falta de mão-de-obra. Isso é uma coisa que está condenada. Porque não se vê um jovem a apanhar azeitona. Só gente de uma determinada idade. É uma questão de mentalidade, o tempo evoluiu e com a evolução os jovens têm uma maneira de pensar diferente. O tempo exclui toda a gente do campo. É a máquina, e a máquina só por si não pode. As coisas são feitas com o grande objectivo do lucro, e há coisas que a gente não pode fazer a pensar no lucro. Tem de pensar a longo prazo. E pensar que tem de investir X que só vai recuperar no fim de muito tempo. E a azeitona também. Grande parte dos olivais não tem condições, porque são olivais velhos, com grande corpulência, e as máquinas não fazem nada com eles. É preciso fazer olivais novos. Plantar árvores novas. A oliveira tem de ser moldada para se adaptar à máquina. É caro, mas também há subsídios para isso. Um tipo arranca um olival e durante cinco anos tem um determinado subsídio por árvore pela falta de produção que elas tiveram até as outras darem. 217

Houve reconversão de olivais, mas usaram a oliveira espanhola, que é de menor qualidade. E agora voltaram à galega, que é a que produz o melhor azeite. Os nossos terrenos também são difíceis, as máquinas não chegam lá. Mas muitas pessoas não aproveitam os subsídios. Porque grande parte dos subsídios só têm uma finalidade: é receber-se e evitar o mais possível de o aplicar em qualquer lado e ficar com o dinheiro. Há aí pessoas que se dão ao luxo, só pagam qualquer coisa, até aqui na cooperativa, só depois de receberem o subsídio. Deixaram de ter dinheiro deles. Não têm subsídio, não pagam. O subsídio é dado ao agricultor para ele melhorar a sua produção, para ele dar qualidade àquilo que produz, porque a qualidade é o factor principal disto tudo. E isto não é feito. Tem de morrer esta gente toda, os velhos, os já da minha idade, é verdade, e depois os novos é que aparecem. As pessoas têm de arregaçar as mangas e dizer: eu estive na faculdade e hoje estou aqui com umas botas de borracha e com uma capa a apanhar chuva, mas eu estou aqui. E esse indivíduo não tem complexos de estar sentado em qualquer lado com uma pessoa que estudou. A grande barreira que nós temos, e eu acompanhei essa transição, é: o campo outrora só foi criado para os analfabetos. A pessoa que trabalhasse no campo já sabia que estava identificada com o trabalhador rural burro. Ainda hoje se diz, a minha geração diz: o meu filho não vai ser aquilo que eu fui ou sofrer aquilo que eu sofri. E então o pai foi escravo do filho para o mandar estudar. E toda a gente estuda e depois de fazer o 5º ano126 ninguém quer trabalhar no campo. O facto é que a gente não vê ninguém novo a trabalhar no campo. É a grande diferença deste país, por exemplo, da Austrália. Quem trabalha no campo e quem aparece com a roupa suja são os tipos do dinheiro, são os gajos que fazem dinheiro. O bancário não ganha quase nada ao pé deles. São países que têm estruturas e mentalidades diferentes. A pessoa estudou para ser culto. Cá também vai ser assim, é obrigatório, a pessoa estudou e chegou à posição que gosta, tem cultura, tem conhecimento, não é nenhum ignorante, e isso é fundamental para se ser um bom técnico agrícola. Porque vai ser pago, vai ganhar bem para isso. Isso ainda não acontece, mas tem de acontecer, ele tem de passar a olhar para o campo de outra maneira. Tem de ter prazer em molhar-se e sujar as botas.

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Actual 9º ano.

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30 – Carpinteiro. N. 1936, 62 anos. Sou de cá, nasci na vila. Os meus pais trabalhavam num forno que pertencia a um indivíduo que era o dono do forno. O meu pai era auxiliar, quem era a forneira era a minha mãe. Porque a minha mãe é que tratava de tudo, desde amassar pão, cozêlo, tudo. A função do meu pai era de colaboração com ela, fornecia a lenha. O meu pai ia buscar a lenha ao campo com dois ou três burros. Não dava para sustentar, nem coisa que se parecesse. A actividade de forneiro, como todas as actividades que eu conheci na época, a rentabilidade de qualquer actividade, por exemplo do forneiro, do operário agrícola, do carpinteiro, do pedreiro, do sapateiro, etc., para uns dava para matar a fome, para outros nem para isso chegava. Nessa época os trabalhadores agrícolas, de noite, quando deviam estar a descansar para disporem de condições físicas para irem trabalhar, tinham de ir buscar bolota, azeitona, que era considerado um roubo e que a Guarda Republicana perseguia essas pessoas. Em muitas ocasiões metia-as na prisão. Bolota porque se comprava um porquinho e se arranjava um chiqueiro e a bolota servia para engordar o porquinho. Os donos das terras proibiam apanhar a bolota porque também a usavam para alimentar os seus porcos. Nós éramos cinco irmãos e começámos a trabalhar cedo, mas todos fomos à escola. Havia duas raparigas. Eu comecei a trabalhar quando saí da escola, com 13 anos. Já fui tarde para a escola, com oito anos. Eu e grande parte dos meus companheiros de rua, porque nós éramos criados na rua, ao Deus dará... Os meus irmãos mais velhos foram à escola, mas só eu e a minha irmã, que éramos os mais novos, é que fizemos a 4ª classe. Porque isso era consequência de uma evolução gradual, de uma melhoria lenta, muito lenta, mas que não deixava de ser uma melhoria. Os meus irmãos aprenderam a ler e a escrever, qualquer deles lia e escrevia razoavelmente porque eles eram inteligentes, mesmo frequentando pouco tempo a escola. Porque em casa havia problemas de falta de alimentação. Eu não me lembro de termos passado assim fome. Porque repare, quando se vive num forno, no mínimo pão há. Eu recordo-me de fazer muitas refeições à base de um bocado de pão que se abria e até deitava fumo, porque tinha acabado de sair do forno, e de se lhe deitar uma pinga de azeite e um bocado de açúcar para dentro. Cheguei a fazer muitas refeições dessas. Bebia café da brasa: feito ao lume numa tigela de barro e deitava-se uma brasa lá para dentro. Eu cheguei a encher uma tigela de café, migar bocados de pão e fazer refeições dessas, eu e os meus irmãos. Isso eram refeições muito boas para a época, porque muitas famílias nem isso tinham, passavam fome. Normalmente o porco era para vender. Por uma razão simples: é que quando o porco estava gordo já não era nosso. O comércio da época funcionava assim: o 219

comerciante tinha um livrinho de apontamentos. E as famílias chegavam ao comerciante e levavam 250 de açúcar, uma quarta de chouriço, toucinho, ia-se buscar a crédito. O porco era criado na perspectiva de que depois com o dinheiro do porco se pagassem essas dívidas que se iam criando ao longo dos meses. Normalmente as coisas estavam organizadas de maneira a que o próprio comerciante já ia fornecendo crédito às pessoas na base de alguns critérios. Ele sabia por exemplo que a minha família estava a criar um porco. E ele sabia que era ele que ia fazer a matança. Na maior parte dos casos a gente dava o porco ao comerciante e ainda ficava sempre um rabisco de dívida. A dívida dificilmente ficava nivelada. Um saldo a favor do criador do porco dificilmente acontecia. A desonestidade sempre existiu nas pessoas. Uma pessoa rigorosamente honesta e íntegra era difícil de encontrar. O comerciante tinha um livrinho e éramos nós, as crianças, que íamos lá. Ele apontava sempre mais do que nós levávamos. Os meus pais não controlavam o comerciante. Mesmo que quisessem controlar, na maior parte das casas ninguém sabia ler. Nos meios rurais o analfabetismo predominava. Até porque o analfabetismo era o método do regime. Um povo analfabeto engana-se mais facilmente. Nunca fui católico, não fui baptizado. Nem casei pela igreja. Na época em que eu casei, não casar pela igreja era uma razão para ficar marcado. Não tive educação religiosa. Eu nunca estive vocacionado para aceitar essa educação. Na escola tínhamos um determinado período semanal para a visita do padre. O que nós queríamos era ir para a ribeira tomar banho. Queríamos ir aos pássaros. Comíamos os pássaros, eles são saborosos. Havia sempre apetite, que era sempre mais do que o que havia para comer. Outros pássaros eram para meter em gaiolas. Aos 13 anos fui trabalhar naquilo que trabalho hoje. Quando eu saí da escola houve uma discussão familiar, construtiva, sobre a minha situação. Para se ver qual era o caminho que eu ia tomar na altura. Os meus irmãos tinham ido guardar porcos, depois foram jornaleiros, exerciam as tarefas que o trabalho do campo colocava aos trabalhadores rurais. Porque os meus irmãos tiveram sempre um espírito que eu partilhei, uma necessidade de nos sentirmos pessoas livres. E uma forma de estarmos livres das regras era ser jornaleiro, que não tinha de estar sujeito à repressão do patrão. O patrão, por sua vez, como não podia estar todo o dia a exercer a actividade repressiva, tinha um aparelho repressivo ao serviço dele que era uma pessoa da confiança dele, o feitor. Depois havia um abaixo do feitor, que era o manageiro. O que interessava é que ele fosse fiel ao patrão. Os meus irmãos trabalhavam nessas condições, mas só quando não tinham hipótese de trabalhar de uma forma mais livre, por conta deles. Por exemplo, também se apanhava azeitona de empreitada. Ceifava220

se de empreitada. Arrancava-se pedra para construir as estradas de macadame. Gastava-se muita pedra e um dos meus irmãos tornou-se especialista no arranque da pedra e em partir a pedra. Os meus irmãos, quando o meu pai estava com dificuldades para encontrar a solução, disseram: “Este não vai passar o mesmo que nós temos passado, este vai aprender um ofício”. Então fui para a oficina de um carpinteiro. Era um sujeito que se tinha instalado aqui há relativamente pouco tempo. Ele foi considerado o meu mestre, mas nunca me ensinou a fazer nada porque ele não trabalhava. Ele nunca estava na oficina, estava sempre ausente. Ele tinha também um carro de praça, ou estava a trabalhar com o carro de praça, ou tinha a trabalhar para ele sete ou oito operários naquela altura e limitava-se a dar as suas ordens. Andava por aí de café para café. Os colegas ensinavam uma coisita ou outra, mas eu considero que me formei à minha custa. Fui olhando para aquilo que eles faziam, como é que o faziam. Porque a gente começa logo a trabalhar, comecei a esgatanhar logo no primeiro dia. E a gente vai aprendendo, vai vendo. Com a experiência começa a dominar as ferramentas que são necessárias. Começa a conhecer as regras e forma-se. As minhas irmãs também foram trabalhar no campo. Não foram para a costura. Na altura havia isso, costurava-se e tal. As costureiras eram consideradas as meninas finas da época relativamente àquelas que tinham de ir para o campo para ajudar o orçamento familiar, que eram a sua maioria. Eu fui contratado por esse indivíduo para trabalhar quatro anos sem ganhar um tostão. Eu trabalhava para ele num regime de escravatura de tal maneira que nem pão e água tinha. Então eu fui trabalhar para fora antes de completar os quatro anos, porque eu considerei que estava em condições de ganhar algum dinheirinho. Fiquei cá na vila. Na altura havia cá uma meia dúzia de oficinas de carpintaria, todas artesanais. Na época não havia uma única máquina de trabalhar madeiras, o trabalho era todo manual e bastante pesado. E eu fui trabalhar, o meu primeiro salário era 7$50 por dia. Para quem não ganhava nada, 7$50 era melhor. Fui por conta de um indivíduo que pouco antes tinha sido meu colega, meu companheiro de trabalho nessa dita oficina, mas que tinha saído e se tinha estabelecido por conta própria na tentativa de ganhar mais algum, de melhorar as condições de vida dele. Passado pouco tempo de estar a trabalhar para ele, as coisas sabem-se, todos se metem na vida dos outros, e então aparece-me outro a convidar para ir trabalhar para ele e dava-me 25$00 por dia. Eu fiquei todo contente, fui logo falar com o outro a dizer que para a semana já não ia, porque tinha sido convidado por outro. Também um engenheiro, dono de uma herdade, criava abelhas para fazer mel e dava muito trabalho a carpinteiros para fazer 221

as colmeias. Fui para lá. Passado pouco tempo surge a construção destas pontes que temos aqui. Foram quatro pontes. Trabalhei em condições lamentáveis. Fui à tropa com 20 anos. Em Elvas. Diziam os militares da época, os comandantes, os oficiais – a gente sofremos muito – davam grandes discursos aos militares: “Rapazes, vocês não se podem esquecer que são de Cavalaria”, para incutir aos homens que ser de Cavalaria era uma honra. Era uma forma de se passar um atestado de estupidez a toda a gente, porque não se deve enganar as pessoas. Cavalaria é como a Infantaria, é tudo uma porcaria, o exército é uma porcaria. Casei com 26 anos. Fui morar para uma casa que era da Santa Casa da Misericórdia, e continua a ser. A maioria dos moradores compraram, eu ainda não comprei, primeiro porque não tinha dinheiro. Depois os preços subiram, e eu não comprei. Para mim já não vale a pena e para os rapazes aquilo já não serve. Quem fez o projecto daquilo foi o mesmo engenheiro da herdade. Só a sala de jantar dele no monte era maior do que o bloco de duas moradias daqui. Isto para ver o que é a imaginação do ser humano. Ali fez um projecto que no quarto onde eu durmo tenho a cabeça encostada a uma parede e os pés à outra. Se eu tivesse 1,90m já lá não cabia. Já tinha de pôr a cama na diagonal. A minha mulher era costureira. Mas deixou de exercer a costura porque a costura também não dava nada, não havia procura que justificasse que ela se dedicasse àquilo. Havia menos população e menos poder de compra das populações. Não havia condições. Havia uma ou duas casas de costura que se podiam considerar industriais, costuravam para fora. Era essa gente que ensinava as raparigas. Começou a surgir gente aí pelas ruas com umas carroças, a vender umas coisas, a vender calças, blusas e tal. As feiras, as pessoas aguardavam pelas feiras. A gente estava um ano inteiro para comprar as coisas, as botas, o capote, as calças, o casaco. Tivemos três filhos. Uma filha que é casada e já tem filhos. Os netos são sempre crianças encantadoras para os avós. Eu estabeleci-me por conta própria a primeira vez foi em 67, porque não havia postos de trabalho aqui na terra. Eu sempre gostei muito da minha terra e sempre dediquei a minha vida à terra. Se eu fosse para um meio maior, onde os salários são diferentes, se eu tivesse até emigrado, como muitos que foram para a emigração, eu teria conseguido ganhar mais dinheiro. Eu melhoraria as minhas condições de vida. Isso teria um preço. Ainda fiz uma tentativa, mas na altura para emigrar era difícil. Trabalhei em Lisboa, trabalhei na Serra da Estrela, trabalhei onde foi preciso trabalhar, mas sempre por pouco tempo, nunca estive mais de seis meses. 222

Aqui quem detinha o monopólio da construção civil era o sogro do presidente da câmara da altura, e que era presidente da junta, portanto o poder político aqui era deles. A influência que o poder político confere às pessoas trazia-lhe alguns benefícios. Tudo quanto era construção civil era com ele. E eu era o indivíduo que estava marcado politicamente. Sofri situações de desemprego e um certo mau estar que causa nas pessoas. Havia uma camada considerável de massa humana que tinha uma certa incompreensão, evitavam a gente. Recordo-me de um moço que chegou ao pé de mim, filho de um homem da PIDE. O rapaz trabalhava comigo como carpinteiro, e chegou ao pé de mim e disse que o primo tinha estado a mandar vir com ele por andar comigo. Porque eu era má companhia, que podia causar-lhe prejuízos. Só me inscrevi no Partido Comunista em 1974. Antes disso as reuniões eram todas clandestinas. Tenho aqui fotografias de uma comemoração do 1º de Maio em 1958, um piquenique na barragem, uma festa clandestina. Já se falava em Reforma Agrária porque a Reforma Agrária estava no programa do partido como uma das tarefas prioritárias. Em 1974 eu estava a trabalhar sozinho. Era uma fase em que havia muitas dificuldades de se encontrar trabalho. Eu cheguei a comprar uma maquinetazinha, veio um comerciante e eu comprei uma. Depois veio um fiscal da 4ª Circunscrição Industrial e fechou-me a casa. Foi uma denúncia do homem para onde eu tinha trabalhado. Entretanto eu já lá estava a trabalhar há três anos sem a máquina. Depois começou a construção da fábrica dos lacticínios e depois a do tomate. E eu estava a fazer 10 horas de trabalho na construção da fábrica do tomate e depois comia uma bucha e vinha para ali trabalhar até à meia-noite para arranjar dinheiro para pagar a prestação da máquina. Depois veio o fiscal e disse que para eu trabalhar com a máquina tinha de ter umas certas condições de pé direito, de água e de luz... Eu podia trabalhar, mas não podia usar a máquina. Tenho levado a vida nisto, perseguições, aborrecimentos, chatices. Trabalho há 48 anos, nunca tive um dia de férias, nem tenho um dia com baixa na segurança social. Eu entendo que um homem que trabalha 48 anos nas condições em que eu trabalho não merece ser perseguido. Nessa altura eu andava por aí, biscate aqui, biscate ali. Por sinal andava a pintar no bairro onde estou a viver, andavam lá a fazer uns remendos. Entrou-se aí na fase da formação das cooperativas, como se fez pelo país inteiro. Ainda participei nalgumas ocupações. A Reforma Agrária foi um processo que assentava em regras tão bonitas, desde que seja uma Reforma Agrária a sério. Há uma fase que se está a viver que nos empurra, que nos atrai, que nos leva a tomar certas atitudes. Depois não participei na UCP, por uma razão simples. A Reforma Agrária foi todo um processo que se iniciou que teve a ver com o levantamento popular que se seguiu ao 223

levantamento militar que levou à queda do regime. O povo estava revoltado. Eu pertencia ao sindicato da construção civil, fui presidente da assembleia-geral. O sindicato tinha a sede em Évora e abrangia todo o Alentejo. Eu saí da direcção do partido por causa disso. Eu era presidente da cooperativa da construção civil, membro do secretariado da comissão concelhia do Partido Comunista do concelho, responsável da comissão de freguesia do PC, segundo secretário da mesa da assembleia municipal, presidente da assembleia-geral do sindicato da construção civil. Ser presidente da cooperativa já dá muito que fazer se se quiser ser um bom presidente. Ser só uma destas coisas todas dava que fazer, não fazia nada bem. Fui obrigado a desistir. Sobre a cooperativa da construção civil: formou-se em 75, mais ou menos quando se formou a cooperativa agrícola. Primeiro, como há uma vida nova, como há o iniciar de um processo revolucionário, que durou até ao 25 de Novembro de 1975, quando o processo levou uma cacetada e começou a andar para trás. A cooperativa durou oito anos, até 1984. Os objectivos eram criar postos de trabalho para todos os operários do concelho, sem precisarem de andar a mendigar trabalho, em condições o mais favoráveis possível e nas vésperas em que ela se dissolveu estávamos a tentar enveredar pelo caminho de criar condições para passarmos a dar formação profissional dentro da cooperativa. Criarmos instalações e meios para darmos formação profissional a toda a população que quisesse aderir. Trabalhávamos para quem nos procurasse. Houve até alguns conflitos no início, de pessoas que consideravam que uma revolução era matar o primeiro que lhe aparecesse à frente, quando uma revolução é transformar uma sociedade, mas com tacto. A cooperativa nunca teve apoios de ninguém. A cooperativa nasceu de um grupo de trabalhadores que se organizaram, cerca de uma dúzia. Toda a gente da construção civil podia aderir. A princípio havia só pedreiros e carpinteiros. Depois é que a gente passou a construir uma casa de raiz até ao fim, já com canalizadores, etc. e sem recorrermos a ninguém de fora. Naquela fase de entusiasmo, a fase inicial, chegámos a ter cerca de 60 trabalhadores. Os trabalhadores agrícolas ocuparam máquinas e terras, instalações, ocuparam tudo. Nós não tínhamos nada. A cooperativa tinha a sede aqui na vila. As instalações: arranjámos um buraquito ali em cima que pertenceu ao grémio. Porque nessa altura havia a hipótese, se havia um buraco que não estava a ser usado, que não era útil para ninguém, a gente abria a porta, entrava e aquele lugar era nosso. Eu pertenci também à Comissão de Moradores que existiu e sou testemunha de que,

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quando queríamos ocupar um determinado espaço, antes íamos falar com o proprietário. Depois começou a falhar porque uma cooperativa constrói-se como uma omelete, precisa de todos os ingredientes. Tem de ser com massa humana que tenha um nível mínimo de formação. E isso não aconteceu: os trabalhadores estavam a viver uma experiência completamente nova. O movimento cooperativo não dizia nada às pessoas. As pessoas aderiram dizendo: “Vamos lá ver o que isto dá, vamos lá ver se aqui vamos ter o que nunca tivemos até hoje”. Começaram por se fazer as reivindicações mais absurdas, logo de início toda a gente queria ganhar igual, por exemplo quem andava a abrir alicerces queria ganhar igual ao pedreiro mais qualificado. Isso assim não funcionava. Começou a haver conflitos internos logo de início. Mas os conflitos foram facilmente sanados numa primeira fase porque até Novembro de 75, e ali durou até mais tarde, era uma fase de euforia, de entusiasmo e de expectativa. As pessoas tinham uma sede de melhoria de condições de vida. E quando acontecem as primeiras eleições para a Assembleia Constituinte e que o governo do Partido Socialista é eleito para governar o país, então aí começa o recuo a acelerar. O governo socialista foi contra todo o processo em geral. Começou contra a Reforma Agrária. A ofensiva podia ir nesta direcção, mas abrangia todo o processo.

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31 – Carpinteiro. N. 1927, 71 anos. Eu tenho muita memória. O meu pai era operário lá na vila, era carpinteiro de carros, de janelas, de portas, do que calhava. Mas chamava-se obra fina aos outros que eram marceneiros. A gente lá éramos abaixo. Carpinteiro de carros, utensílios de lavoura. O meu pai, lá na terra, por duas vezes me lembro de ele ser das direcções das Sociedades. Foi presidente da Sociedade Artística por duas vezes. E quando eu vim para Lisboa o meu pai era o presidente da Casa do Povo. E o meu pai só tinha a 3ª classe. Mas tinha uma caligrafia tão bonita! Dantes havia o Clube do Ricos… Falava-se que uma vez umas mulherzinhas foram presas porque foram apanhar uma poucochinha de azeitona lá numa propriedade. A Guarda Republicana era muito rigorosa assim naquele tempo. A gente, na oficina do meu pai nunca houve falta de trabalho. Das pessoas do campo, isso houve sempre muita miséria. Mas eu de política não sei nada. Nunca cheguei a passar por isso, porque eu vim de lá muito novo, o meu pai é que já podia saber essas coisas. De maneira que nunca tive aquela coisa nem de ser comunista, nem nunca quis ser, nem sou. Mas havia muita gente assim, qualquer coisa havia. Lembro-me de uma coisa que era o seguinte: o meu pai trabalhava para um senhor que era um dos ricos e que era casado com uma senhora que era irmã da mulher do outro rico mais importante. Eles não se gramavam. Quer dizer: quem trabalhasse ou quem falasse com um não podia falar nem trabalhar com o outro. Parece que a minha mãe ainda esteve a servir em casa do primeiro. Então ele, no tempo da azeitona, encontrava o meu pai e dizia-lhe: “Ó afilhado, quando quiser pode ir lá ao monte buscar um cesto de azeitona”. Quando chegávamos lá dizíamos que levávamos ordem e davam-nos uma azeitonazinha assim muito pequenina que dava para uns meses. Mas logo a seguir ele dizia assim: “Ó afilhado, tal dia…” tinha que ir votar por conta dele. Então eram votos em troca de azeitonas! O outro, era como na tropa os generais, todos tinham que lhe fazer continência. Mas havia um rico muito grande, que era a pessoa mais rica que lá havia, que era o funcionário do grémio da lavoura. Ele não era rico, mas naquela altura não havia seguros para nada. Uma pessoa que caísse de uma árvore, partia um braço, tinha uma doença qualquer, ia ter com ele e ele trazia-o a Lisboa, ainda o metia na casa ali onde eu morei, e depois ainda o ia levar ao primo dele, que era médico, para o internar no hospital. Era a pessoa que lá valia a muita gente. Aquela coisa de ter vindo há pouco da terra, a gente, se algum estava no hospital a gente sabia todos, e ia visitar. Agora já não é assim.

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Lá da terra, de outras pessoas, não sei. Havia muitas diferenças. Falando por exemplo de mim e do meu pai. O meu pai ficou viúvo tinha eu oito anos. Tinha uma irmã com 10 e outra, que depois foi freira, com 12. Então pedia dinheiro a juros a uma senhora que lhe levava 12%. Então, quando era nas vésperas do juro, uma semana antes mandava uma criada lá a casa, era aquelas coisas que a gente se sentia oprimidos. O meu pai tinha uma casa dita própria, com dificuldades fez uma casinha. Mas já não a acabou, porque a minha mãe adoeceu dos pulmões e esteve três anos, eu ainda acompanhei os últimos três anos da doença da minha mãe. Já não me deixavam chegar ao pé dela, porque estava tuberculosa. E então ele começou a casa: tinha a oficina, casa e quintal. A gente saía pela oficina, entrávamos no quintal. Mas havia lá os outros carpinteiros todos que eu lá conhecia, nenhum deles conseguiu fazer casa. O meu pai começou, mas já não acabou, faltou-lhe o dinheiro. O meu pai nunca voltou a casar. Criou-nos com muita dificuldade, mas criounos. Fomos criados sem mãe. Desde que casei, a minha mulher, coitadinha, é uma pontualidade. Ao meio-dia almoça-se, ela tem o comer pronto. As minhas irmãs, coitaditas, às vezes eu ia para jantar, às sete horas, mas ainda não estava pronto. Mas não se podia jantar sem estarmos todos, eram aquelas coisas da família. As minhas irmãs estudaram as duas para os postos escolares. Eu fiz a 4ª classe e fui bom aluno. A professora da escola, quando eu andava na 3ª classe, ela queria que eu fizesse a comunhão e ela é que fez para eu ser baptizado. Ela foi a madrinha e o outro professor, ela chamou-o para ser meu padrinho. Que eu não era baptizado pela igreja. A gente no Alentejo, aquase ninguém ia à igreja. A comida era muita sopa de pão, que eu hoje estou muito desacostumado. Nunca mais, é muito raro comer uma sopinha de pão. Mas naquela altura era a base da alimentação. Peixe também se comia, e carne. Matava-se quase todos os anos um porquinho. O meu pai trabalhava para um senhor engenheiro que lhe dava, por exemplo, pela Páscoa dava um borreguinho. O meu pai era o carpinteiro dele. E quando era a altura das porcas terem as crias a gente tinha de ir arranjar aquela casa das porquitas. Sempre havia uma ripa tirada ou outra coisa. Então todos os anos lá o porqueiro dava… Por exemplo já uma tinha sete filhos e ficava bem e tinha oito e dava um à gente para a gente criar. Depois as minhas irmãs criavam-no com biberão ao princípio e depois mais tarde era para a gente matar, nunca era para vender. Eu vim para Lisboa com 18 anos. E quando vim para Lisboa, vim para me arranjar cá, assim qualquer coisa. O meu pai escreveu para cá para um rapaz que

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tinha mais três anos ou quatro que eu. Quando eu cheguei ajudou-me muito. Fui trabalhar para o patrão dele, o patrão dele pagava muito poucochinho, era 20$00 por dia. Com 18 anos eu já mexia assim qualquer coisa. Mas também, eu vinha de carpinteiro de carros e a trabalhar numa oficina cá, era bastante diferente. Então nas duas primeiras semanas esse rapaz fazia-me o jeito de estarmos numa mulherzinha e levávamos o comer feito lá dela para a gente comer na oficina, o almoço. Então eu que não tinha dinheiro para comprar umas panelitas e tudo, nas primeiras semanas a sopa que levava para um tinha que dar para os dois; os condutos é que iam mais. Depois andei ali uns três meses a ganhar 22$00 e a certa altura encontrei uma pessoa lá da vila e ele disse-me que trabalhava no Material de Guerra e que metiam lá gente. Primeiro que tudo pedi ao tal senhor engenheiro, da herdade, e ele era muito amigo do meu pai. E então fez-me uma carta lá para uma pessoa do Material de Guerra. Fiquei logo a ganhar 32$00. Foi uma passagem de estar cá há três meses a ganhar 22$00, que era muito à rasquinha, e passei a ganhar 32$00. E quando tínhamos de trabalhar ao domingo e que houvesse trabalho ganhávamos do dia a dobrar. O meu pai, entretanto, viu os filhos que lhe tinham abalado, as minhas irmãs vieram para professoras dos postos escolares, eu vim para cá, e o homem vendeu tudo lá e veio-se embora. E o meu pai quando vendeu é que fez o negócio da vida dele, porque ele podia viver toda a vida com dificuldade e vendeu a casa cá de baixo por 30 contos e comprou aquela casa em frente da loja por 17. E com aqueles 13 continhos o homem desempenhou a vida dele127. Veio para Lisboa e foi trabalhar numa obrazita numas casinhas muito baixinhas que se chega assim com a mão ao tecto. O homem estava a trabalhar num andar, rompeu-se o soalho, caiu no andarzito de baixo. Depois andou com um aparelho de gesso daqui até aqui. Depois respondeu à Casa do Ardina para ir para lá para mestre. A directora não o admitiu porque era alentejano e os alentejanos não tinham boa fama. Mas o meu pai era uma pessoa que captava simpatias. Era muito calmo, não era como eu que fervo em pouca água. Era pessoa que merecia consideração. Então lá o meteram. Em dois anos apagou-se com um cancro na garganta. Deve ter sido sangue pisado por causa daquela queda. Maneira que a gente tem bocados bons na vida e tem bocados maus. Quando eu fui para lá deram-me o ordenado do meu pai, que era 40. Quer dizer, eu cheguei no dia 5 de Janeiro de um ano, e no outro ano, no primeiro de Janeiro ou no dia dois comecei a ganhar 40$00 por dia. E a estudar à noite: depois tirei o curso da Escola Industrial, tinha uma facilidade muito grande na Matemática. E a Português também, mas a Matemática tinha a nota mais alta. 127

Pagou as dívidas.

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Depois tivemos muitas dificuldades, e com a minha mulher, o meu pai morreu, a gente morava juntos, trabalhávamos em sociedade na Casa do Ardina, mas depois eram uns tempos que havia, era muito difícil, o dinheiro faltava-nos sempre. Eu só dos 28 anos para cá, que comecei a trabalhar sozinho por minha conta, é que me passei a governar melhor. A ela depois arranjaram-lhe, foi para funcionária pública, vendia o Boletim do Ministério do Trabalho e dava informações na recepção. Depois o que valeu foi ficar agora com uma reforma jeitosa. Eu ainda estive um ano na África do Sul. Quando tinha 39 anos um irmão da minha mulher estava em Moçambique e ela escreveu-lhe. E então esse irmão depois foi para a África do Sul e ela escreveu-lhe a pedir. Eu não tinha assim muita vontade, nem de ir, nem de não ir. E naquele ano que fui para a África do Sul, eu fui em Janeiro, a 9 de Janeiro e vim a 9 de Janeiro. No mesmo dia que saí de casa entrei em casa, um ano depois. O meu cunhado fez-me uma carta de chamada. Não gostei daquilo, depois vim. Agora os meus netos já têm uma vida completamente diferente. Agora tenho a minha filha que é da Caixa Geral de Depósitos. O marido faz a escrita de uma casa que tem muitas lojas. Têm uma vida à vontade, assim, tudo. Mas fartam-se de trabalhar. Têm uma quinta e então têm lá cães, galinhas, faisões, pássaros, peixes do aquário. E têm um tractor para arranjar aquilo. E um homem que lá vai todos os dias tratar das coisas. O meu filho não tem uma vida tão à vontade como tem a minha filha. Que esse já vive uma vida de muito trabalho. É engenheiro electrotécnico. Está empregado e a mulher dele é professora de Português e Francês. De maneira que estão assim encaminhados.

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