MEMÓRIAS AMAZÔNICAS – Resenha do livro Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas de João Daniel (2004) (Folha de São Paulo)

June 30, 2017 | Autor: José-Augusto Pádua | Categoria: Amazonia
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MEMÓRIAS AMAZÔNICAS – Resenha do livro Tesouro Descoberto no Máximo Rio
Amazonas de João Daniel (2004) - Folha de São Paulo


JOSÉ AUGUSTO PÁDUA *

* Artigo publicado no Caderno MAIS do Folha de São Paulo (29/2/2004).



Os grandes livros nunca são fenômenos totalmente isolados, apesar de
quase sempre apresentarem uma dose considerável de singularidade e até
mesmo de implausibilidade. Não é nada surpreendente, por exemplo, que o
Padre João Daniel, um jesuita português nascido em 1722, tenha dedicado os
últimos anos da sua vida a redigir memórias e reflexões sobre as décadas em
que viveu na Amazônia. Sua história de vida confundia-se com o mundo do
Maranhão e do Grão-Pará, onde chegou com menos de vinte anos, realizou seus
estudos, tornou-se padre e viveu nas fazendas e missões dirigidas por seus
companheiros de ordem em plena floresta.
A decisão de escrever sobre a região, por outro lado, inseria-se em
uma tradição intelectual bem mais antiga. Antes e durante o longo processo
de construção histórica da figura do viajante-naturalista leigo e
profissional, que veio ganhando um contorno mais definido entre os séculos
XVII e XIX, intelectuais da Igreja dedicaram-se a coletar e sistematizar
informações sobre a natureza e os habitantes nativos dos novos mundos que
estavam sendo alcançados, e na verdade criados, pela expansão européia.
Ainda no século XVI, apenas no contexto da América Latina, padres
jesuítas estavam produzindo obras tão importantes quanto a "Historia
Natural y Moral de Las Indias" de José de Acosta e os tratados "Do Clima e
Terra do Brasil" e "Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil" de Fernão
Cardim. É verdade que entre 1637 e 1644, durante o governo de Maurício de
Nassau em Recife, atuaram no nordeste do Brasil naturalistas profissionais
europeus como Willem Pies e Georg Marcgrave. Mas não se deve esquecer que,
mais de uma década antes, o fransciscano Frei Cristovão de Lisboa estava
organizando a série de notas e desenhos que comporiam o manuscrito da
"História dos Animais e Árvores do Maranhão", apenas publicada em 1967.
Pode-se argumentar que os textos históricos e descritivos produzidos
por intelectuais da Igreja na América colonial apresentaram, de maneira
geral, um objetivo comum: compartilhar informações e propostas que
favorecessem o duplo processo de colonização e de catequese, entendidas
acertadamente como dois lados da mesma moeda (apesar da existência de um
complexo jogo de convergências e divergências entre representantes da
Igreja e autoridades coloniais). É fundamental superar, no entanto, a
imagem desta literatura como algo homogeneo e repetitivo. Dentro de um
mesmo objetivo político e religioso, podiam existir importantes
singularidades e diferenças de opinião, inclusive entre membros de uma
mesma ordem.
Se o "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas" de João Daniel,
escrito entre 1757 e 1776 e agora reeditado (Contraponto Editora, Rio de
Janeiro, 2 Volumes, 1259 páginas), é parte integrante de uma tradição
intelectual tão definida, em que sentido é possível destacar o seu caráter
singular e inusitado ? Básicamente por três razões: as condições de
produção, a abrangência e o sentido político da obra.
Em 1757, no contexto do aumento das tensões entre a Companhia de Jesus
e o governo do Marquês de Pombal, que culminaria dois anos depois na
expulsão dos jesuitas de todos os territórios portugueses, o Padre Daniel
foi preso e deportado para Portugal junto com nove outros eclesiásticos.
Acusado de ofender o governador Francisco de Mendonça Furtado, meio-irmão
de Pombal e executor do seu projeto econômico para a Amazônia, ele
permaneceu enclausurado até o ano de sua morte, em 1776. Ou seja, o autor
escreveu seu volumoso tratado sem consultar bibliotecas e sem participar
de debates intelectuais, valendo-se apenas de uma oferta escassa de papel e
da possibilidade de trocar informações com seus companheiros de prisão,
mesmo assim de maneira parcial e indireta. Apesar do proverbial cultivo
jesuita da "arte da memória", o longo confinamento produziu claras
limitações à realização do trabalho. Ao comentar as "muitas tintas
preciosas" existentes na Amazônia, por exemplo, o autor reconheceu que "não
sei o nome de todas; nem as espécies de muitas, e como estou enterrado, não
posso informar-me nem dos práticos, nem dos livros".
As péssimas condições de produção tornam ainda mais inusitado o escopo
definido para a elaboração do livro. O Padre Daniel colocou-se o desafio de
escrever um tratado vasto e completo, uma verdadeira enciclopédia da
Amazônia setecentista. E conseguiu, em grande parte, realizar este projeto.
Mais ainda, logrou fazê-lo através de uma escrita lúcida e, muitas vezes,
ironica e graciosa. É o caso da comparação histórico-geográfica utilizada
para descrever a grandeza do Rio Amazonas: "Se Julio César prometia ceder o
império a quem lhe mostrasse a fonte do grande Nilo, qual seria o prêmio a
quem lhe apontasse a fonte do máximo Amazonas, em cuja comparação aquele se
avaliaria pigmeu, ou pequeno regato, e envergonhado, por não poder correr
parelhas com este, fugiria a esconder-se na sua pequena mãe" ? Ou então,
mais adiante, quando o autor reconhece, após apresentar uma longa lista das
opções de pesca na região, a sua incapacidade para dar conta do que hoje
chamaríamos de "biodiversidade amazônica", exclamando que "basta já de
peixe, sendo verdade que ainda não disse nem o dízimo das espécies diversas
que cria o Amazonas".
O estilo do autor, ao discorrer sobre os acidentes geográficos, caças,
frutas, madeiras, ervas, minerais e outros aspectos da rica natureza
regional, apresenta um saboroso ecletismo setecentista, onde misturam-se
observações empiricas, citações de escritores clásssicos, alusões
mitológicas greco-romanas e pregações moralistas católicas. A mitologia
local e a cultura popular em processo de construção na Amazônia, através da
fusão de elementos ameríndios e neo-europeus, também aparece em muitas
páginas, levando Euclídes da Cunha a classificar João Daniel como um
escritor "imaginoso". Mas é justamente a conjugação entre a vontade de
realismo e a abertura para o maravilhoso que tornam o texto um documento
tão representativo dos dilemas do pensamento europeu pós-renascentista no
contexto dos trópicos coloniais. O mesmo empirismo que autorizou o autor a
refutar as autoridades clássicas - ao afirmar, por exemplo, que a "zona
tórrida", tida como inabitável, era "não só habitável como muito sadia" -
também o autorizava a reconhecer a existência das Amazonas, dos homens
marinhos e das sereias, com base no testemunho pessoal de indios e
religiosos. Ao falar dos animais, por outro lado, as informações zoológicas
se misturavam com fábulas moralistas, através das quais era possível
retirar lições edificantes para a pregação missionária. Mesmo os aspectos
menos idílicos da vida na floresta, como a existência de animais
repugnantes, insetos e pragas, foi interpretada em termos ao mesmo tempo
pragmáticos e religiosos: "se no paraíso terreal houve uma serpente, não é
muito que também o paraíso do Amazonas seja infeccionado de serpentes e
outras pragas".
As vastas informações apresentadas sobre os povos indígenas e seus
costumes- incluindo alimentos, danças, músicas, crenças e artigos da
cultura material que ainda hoja fazem parte do dia a dia amazônico –
revelam uma proto-etnografia complexa e contraditória, que indica os
dilemas e ambiguidades presentes no trabalho de catequese. Daniel reconhece
que os indios "são gente como as da Europa, menos nas cores, em que muito
se distinguem". Em determinado momento chega a fazer uma dificil operação
cultural, ao assumir o ponto de vista dos nativos e questionar a
naturalidade com que os luso-brasileiros encaravam a sua servidão: "se
viessem os indios a estabelecer-se no nosso Portugal, seria uma grave
injúria e manifesta injustiça obrigar os portugueses a servi-los". Em
outras partes do livro, no entanto, estes mesmos indios selvagens elogiados
por sua falta de ambição pela acumulação material, ou pela habilidade das
suas técnicas de manejo florestal, são acusados de "só pelas feições
parecerem gente", pois no "viver e trabalhar se devem entender por feras".
Os indios "mansos" e controlados pelos missionários, em outra perspectiva,
são frequentemente acusados de preguiçosos e ingratos, sem que o autor
perceba os elementos de resistência cotidiana que parecem estar presentes
em algumas das suas ações, como no caso do aldeado que, recusando-se a
fazer o serviço pedido por um jesuita, quando lembrado que havia sido
curado de uma doença mortal, contesta: "quem te pediu que me curasses,
porque não me deixasses morrer?".
Existe, por fim, um terceiro aspecto singular no "Tesouro Descoberto"
que deve ser mencionado, apesar de não poder ser discutido adequadamente no
espaço desta resenha. Trata-se do seu sentido político critico, propositivo
e reformista. O Padre Daniel chegou a afirmar que todas as suas descrições
sobre a região e seus habitantes eram apenas um "preâmbulo" para as partes
finais do livro, onde apresenta uma espécie de plano alternativo de
colonização. Como bem demonstrou o historiador Kelerson Costa, em uma tese
defendida na Universidade de Brasília sobre as leituras da Amazônia
colonial, o Padre Daniel foi um dos primeiros intelectuais a formular um
projeto integrado de ocupação da região Amazônica, que corrigiria os erros
do passado e permitiria que os seus habitantes pudessem "facilmente
desfrutar as suas grandes riquezas". O autor afirma claramente que o
verdadeiro "tesouro" por ele descoberto no Amazonas não era a natureza
tropical por si mesma, mas sim a possibilidade de transformá-la em riqueza
econômica. Um potencial que estava sendo abortado pela insistência em
adotar métodos exploratórios que requeriam muito esforço e mão de obra,
como as queimadas de florestas de terra firma para o plantio da mandioca,
fazendo com que apenas alguns poucos grandes proprietários de escravos
pudessem desfrutar da região.
A utopia de Daniel, para consolidar a colonização e o triunfo do
cristianismo na região, estava em facilitar a vinda de famílias pobres da
Europa, através da distribuição livre de terras e do redirecionamento da
agricultura para as regiões de várzea, aproveitando a fertilização natural
produzida pelos rios. A economia regional deveria transformar-se de
extrativista em domesticadora, de tal maneira que as drogas do sertão e as
espécies européias aclimatadas pudessem ser cultivadas nos quintais das
propriedades familiares. Para facilitar esta ocupação menos elitista do
espaço, seriam necessárias reformas infraestruturais, como a introdução do
transporte público fluvial e a disseminação de diferentes tipos de
máquinas.
Todos os aspectos até aqui mencionados representam apenas uma pequena
amostra do volume de informações e reflexões contidas no livro de João
Daniel. A sua reedição é mais do que bem vinda neste momento em que tantos
estão buscando entender melhor o universo amazônico e encontrar formas
benéficas, sustentáveis e não-destrutivas para a sua ocupação sócio-
econômica. Um esforço que, ao menos até agora, tem sido marcado por
sucessivos fracassos. E uma das causas deste insucesso é justamente a falta
de uma visão histórica mais profunda, que possa embasar a formulação de
políticas públicas amplas, realistas e consistentes para aquela macro-
região.
Por este mesmo motivo, podemos esperar que no futuro tenhamos uma
edição crítica e anotada deste documento inestimável. A presente edição,
apesar de bem cuidada do ponto de vista da transcrição do manuscrito
original, está longe de ser definitiva. Uma providência importante, que já
deveria estar presente nesta edição, seria a inclusão de indices detalhados
que facilitassem a sua consulta Ou seja, muito ainda falta fazer para que
possamos valorizar plenamente este tesouro da literatura colonial
brasileira.



* Professor do Departamento de História da UFRJ e autor do livro "Um Sopro
de Destruição: Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil
Escravista"
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