Memórias: cineclube e ditadura em Belém do Pará

July 12, 2017 | Autor: Líria Vale | Categoria: Cineclube, Belém do Pará, Cineclubismo
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Memórias: cineclube e ditadura em Belém do Pará
Líria Natasha Sena do Vale ([email protected])
Universidade Federal do Pará (UFPa)
Marcelo da Costa Tavares ([email protected])
Universidade Federal do Pará (UFPa)
Resumo:
Este trabalho apresenta a trajetória da atividade cineclubista em Belém do Pará durante o período da ditadura militar no Brasil (1964 – 85). Dentro desse período a Associação Paraense de Críticos Cinematográficos (APCC) criou o seu próprio cineclube (1967) que foi, por muito tempo, durante a ditadura o mais longevo espaço de exibição e debate de filmes da capital do estado. Através do levantamento da memória dos seus sócios e frequentadores, o estudo demonstra o caráter de resistência intelectual e cultural desse cineclube, que configurava um espaço de formação da visão crítica dos envolvidos para além da realidade de opressão do regime.
Palavras-chave: Memória. Ditadura. Resistência.

Abstract:
This paper presents the trajectory of the film club activity in Belem during the military dictatorship in Brazil (1964-85). Within this period the Para Association of Film Critics (APCC) has created its own film club (1967) which was, for a long time, and throughout the dictatorship the longest-lived place of exhibition and discussion of films from the state capital. By surveying the memory of its members and goers, the study shows the character of intellectual and cultural resistance of this film club, which configured a place for the formation of critical vision of those involved beyond the oppression reality of the regime.

Key words: Memory. Dictatorship. Resistance.
Introdução
Nosso foco de estudo encontra paralelo no trabalho de Rose Clair Matela que em seu livro Cineclubismo: Memórias dos anos de chumbo, coleta memórias de integrantes de cineclubes dos anos 1970, período no qual afirma haver emergido "junto com outros movimentos de resistências – o movimento cineclubista nas principais capitais brasileiras" (2008, p. 19). Tais movimentos segundo a autora emergiam da realidade, questionando a política econômica do governo militar e foram marcados por seu caráter de iniciativa popular (movimentos de bairro, trabalhadores da construção civil, donas de casa, moradores de favela e etc.), autonomia e até certa unidade política (2008, p. 64).
Essa capacidade do cineclube de mobilização para uma "educação crítica do olhar" no Pará se evidenciou formalmente em 1955 com o Cineclube "Os Espectadores". Esse meio cinéfilo congregou alguns dos maiores nomes das artes do estado tais como Benedito Nunes, Maria Sylvia Nunes, Mário Faustino e Max Martins, entre outros, buscando formar um público que apreciasse o cinema como arte, e além, "posto que a satisfação estética deveria juntar-se a 'consciência do público esclarecido'", contudo, assim como muitos clubes de cinema do período, os espectadores fracassaram na sua missão, já que o público em geral não conseguia acompanhar o nível de erudição dos debates (CARNEIRO, 2012).
Mesmo não tendo durado tanto tempo, o vanguardismo dos Espectadores fez herdeiros. Uma nova geração de intelectuais, literatos e músicos fizeram crescer e seguir para outros rumos a crítica cinematográfica em Belém. Nomes como Pedro Veriano, Luzia Miranda Álvares, Vicente Franz Cecim, João de Jesus Paes Loureiro, Januário Guedes foram alguns destes aficionados por cinema que mantiveram as atividades cineclubistas na cidade justamente no tenebroso momento político da ditadura militar e, podemos afirmar que o momento mais rico para o cineclube no Pará se desenvolveu nesse período.
Levando em consideração o desejo de expor a história do cineclubismo no Pará e mais especificamente, em Belém nos tempos da ditadura militar (1964-1985), intentamos adentrar neste meio fecundo de conhecimento que foi o cineclube da APCC (1967-1985) a fim de explorar as experiências de seus organizadores e frequentadores neste período tenebroso, porém culturalmente rico da história do Brasil.
Ao buscarmos fontes impressas (certificados de censura concedidos aos próprios exibidores do cineclube, listas de associados, bilhetes de exibição, cartazes etc.) esbarramos numa incrível ausência delas, como que por herança desta tenebrosidade. Tínhamos, porém, à disposição da historiografia que desejávamos construir, bom número dos grandes nomes deste cineclube (tanto organizadores quanto frequentadores), o que nos levou a consultar as possibilidades do uso da memória como fonte para nossa pesquisa.
Rose Clair Matela utilizou a memória como principal fonte em sua pesquisa de doutorado e teorizou sobre sua utilização ressaltando a descentralização de conhecimento como uma das potencialidades da narrativa.
"Proporciona ainda o surgimento de histórias interditadas, de interpretações e leituras de mundo diverso do instituído, que fratura conhecimentos hegemônicos e ultrapassa o discurso oficial, contribuindo para a ampliação do conceito de verdade científica." (MATELA, 2008, p. 23).
Esse conhecimento jamais seria visitado fora do diminuto círculo em que foi desenvolvido sem o uso do recurso da memória, pois embora houvesse uma releitura dos documentos oficiais a fim de criar a história do cineclube no período ditatorial brasileiro, perderíamos a significação dada pelos sujeitos dessa história. Estaríamos perdendo o benefício de discutir história contemporânea, isto é, entrar em contato com os processos interessantes para nós por meio de quem os vivenciou.
A partir do uso da fonte oral, com entrevistas temáticas, nossa metodologia foi, portanto qualitativa, aquela que "situa-se no terreno da contrageneralização e contribui para relativizar conceitos e pressupostos que tendem a universalizar e a generalizar as experiências humanas." (DELGADO, 2010, p. 18).
Perfil dos entrevistados
Valorizar a experiência humana como fonte histórica é percorrer um caminho polêmico, historiograficamente falando, porém a fertilidade desses relatos pode ser recompensadora quando ela nos revela visões diferenciadas sobre um dado período. Como afirma Matela "O uso das narrativas possibilita a valorização dos saberes oriundos da vida cotidiana dos diferentes sujeitos sociais" (2008, p. 23). Nesse sentido buscamos coletar parte das experiências de vida desses agentes e reconstruir a história sob nova perspectiva. Cabe então, portanto, tratar da trajetória profissional e da relação com o cinema que cada um dos entrevistados teve, além da descrição de como as entrevistas ocorreram. Pedro Veriano é médico por profissão, e um aficionado por cinema. Exibia filmes na garagem de sua casa desde 1950 – era o chamado Cine Bandeirante (VERIANO, 1999). A relevância das experiências de Veriano está na sua relação íntima com o cinema e com a atividade cineclubista em Belém. Sua história de vida se confunde com parte da própria história do cinema na capital Paraense.
Entrevistamos Veriano no seu apartamento após termos marcado uma visita com sua esposa Prof.ª Luzia Miranda, com quem já tínhamos contato na universidade. A conversa aconteceu na manhã quente do dia 16 de julho de 2014. Na ocasião fomos gentilmente recebidos por Luzia e Veriano, que infelizmente, por conta da saúde frágil, não poderia ficar horas a nos contar suas histórias sobre cinema.
Veriano tornou-se grande nome da crítica cinematográfica em Belém. Foi colunista do jornal A Província do Pará e do O Liberal, além do O Jornalista (jornal do Sindicato dos Jornalistas profissionais do Pará). Foi também fundador do cineclube da APCC (espaço foco da nossa pesquisa, daí a importância das memórias de Pedro Veriano) e da firma Cinema de Arte do Pará Ltda. De 1951 a 1970 produziu alguns curtas-metragens, além de ser autor de livros sobre cinema e cineclube em Belém (VERIANO, 1983). Atualmente, a produção de Veriano sobre o cinema no Pará é a principal referência sobre o tema, sendo amplamente consultado para fins acadêmicos.
Nossa segunda entrevistada Prof.ª Luzia Miranda Álvares, constitui parte importantíssima da história do movimento cineclubista em Belém, pois sua formação como crítica de cinema e cientista política lhe proporcionou uma mentalidade crítica para além do regime político ditatorial. É professora doutora aposentada da UFPA da Faculdade de Ciência Política, feminista e coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Eneida de Moraes (GEPEM-UFPA), que discute questões de gênero. Assina a coluna Panorama, no Jornal O Liberal, há 41 anos. Organizou mostras de cinema amador, que levaram alguns cineastas de Belém ao profissionalismo. Foi Representante Regional da EMBRAFILME (Empresa Brasileira de Filmes S A.) de 1977-81. Foi, por vezes, representante do cineclube da APCC em reuniões nacionais (VERIANO, 1983).
Conversamos com a Prof.ª Luzia numa sala de aula no IFCH-UFPA (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-UFPA) na tarde do dia 20 de outubro de 2014, durante uma pausa de uma reunião no GEPEM – logo após a entrevista ela retomou seu trabalho junto ao grupo. Registrar a memória da Prof.ª foi parte relevante da pesquisa, pois além da sua experiência profunda com o cinema e com a atividade cineclubista em Belém, este artigo só foi possível através dos seus encaminhamentos e orientações. Suas memórias confirmam o valor educacional das experiências com os clubes de cinema e com a formação de uma mentalidade crítica através da prática cineclubista.
Vicente Franz Cecim – como prefere ser chamado – foi nosso último entrevistado. Marcamos nossa conversa para acontecer em 30 de novembro de 2014, no espaço turístico Ver-o-rio, em Belém, ás 17hs. A entrevista ocorreu amigavelmente até às 23hs, pois ele – com tantas experiências e reflexões profundas – muito tem a nos falar sobre literatura, cinema e o universo.
Vicente é escritor e recebeu o Prêmio Revelação de Autor da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) pelo livro Os animais da terra (ed. Semec, Belém, 1980). A noite do Curau, versão resumida do terceiro livro de Andara, recebeu Menção Especial no Prêmio Internacional Plural, no México, em 1981. Em 1988, pelo conjunto da obra, recebeu o Grande Prêmio de Crítica da APCA. Publicou em 2001, Ó Serdespanto (ed. Íman, Lisboa), com dois novos livros, em Portugal, apontado pelo jornal O Público (Lisboa) como um dos melhores do ano. E ainda Continua escrevendo, seu último livro foi publicado em dezembro do ano passado.
Seu percurso cinéfilo/cineclubista justamente no recorte de tempo que queremos destacar inclui a criação da Associação de Críticos Amadores (ACA), na década de 1960, e também a produção de uma série de cinco filmes em Super 8, de 1975 a 1979 (VERIANO, 1983). Foi, além disso, colunista de cinema do jornal O Estado do Pará, em 1977.
Primeiras experiências com cinema
Na segunda década do século XX, Belém já contava com doze cinemas espalhados pela cidade, incluindo o fino Olympia (abril de 1912). No final da década de 1930 somente a mesma empresa possuía, além do Olympia, mais sete cinemas. É fácil presumir que o profundo contato de nossos entrevistados com o cinema ocorreu por causa deste movimento intenso da sétima arte registrado pela historiografia local.
Luzia: "em Abaetetuba primeiro veio o Cine Natan, do Sr. Crispim Ferreira, e depois o Cine Imperador, do Sr. Abel Guimarães, eles exibiam filmes do Carlitos, dos irmãos Marx (...) então foi assim que deu inicio esse meu gostar de cinema. Também quando nós íamos, a família inteira ia. Então era uma atividade cultural de divertimento, que integrava a família, era muito interessante." (informação verbal)
Luzia contou-nos que em Abaetetuba ia a sessões ver comédias de Charles Chaplin e dos irmãos Marx além de assistir filmes educativos no SESP. Desde o início de seu relato, sua trajetória a levava a ser quem é. Se esperamos da narrativa pessoal (ou de qualquer narrativa considerada humana) um caráter de relato imparcial do fato ocorrido não devemos recorrer à história para legitimá-la como tal. "A memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significado. Ao trazer o passado até o presente, recria o passado, ao mesmo tempo em que o projeta no futuro." (AMADO, 1995, p. 131-132). Como qualquer fonte histórica a memória está presa às interpretações do presente sobre os acontecimentos do passado (CARR, 1976).
No caso de Veriano temos bastante informação de sua própria bibliografia. Sua obra Fazendo Fitas se propõe ser um relato de suas memórias, e é lá que fica clara a sua realidade: rapaz de classe média alta, morador da capital paraense.
"(...) ganhei minha primeira projetora 'de verdade'. Uma Movie-Mite de 16mm. O primeiro filme que exibi foi, por coincidência, o desenho pioneiro com Mickey Mouse, se não me engano, chamado 'Steamboat Line' (ele fazia um piloto de barco)" (VERIANO, 2006, p. 86)
Pedro Veriano chegou a afirmar que, em média assistia mais de um filme por dia no auge de sua atuação no cineclube, na crítica de cinema e na APCC. Tudo começou muito cedo. Luzia Miranda contou que ele ajudava o professor de colegial dela a fazer exibições nas aulas. Maneira essa que também encontrou de vê-la mais vezes.
Vicente Cecim foi um frequentador inveterado de cinemas e cineclubes de Belém. Foi através do Cine Bandeirantes, que teve contato direto, segundo nos relatou na entrevista, com muitos clássicos do cinema mundial. Suas primeiras experiências com cinema envolvem a influência inspiradora de Yara Cecim , sua mãe, e do apaixonado por cinema, seu pai, Miguel Cecim.
Vicente: "Eu comecei a me interessar por cinema porque meu pai – ele adorava cinema – naquele tempo minha família sentava na porta de casa em cadeiras e ele contava os filmes (...) ele e minha mãe viviam no cinema. Ele dizia: vocês querem comédia; western; romance; drama? Contava minuciosamente, imitando até a voz dos personagens" (informação verbal)
Para ele mesmo a influência de seus pais o empurrou a pensar como pensa: ouvia filmes de seu pai na porta de casa e depois histórias fantásticas de sua mão na rede. Nas palavras de Cecim, "O que eu vou falar pra vocês é a partir do que eu sou, como eu sou e de como eu percebo aquele tempo, então não sei até que ponto é real, até que ponto é sonho, até que ponto é lúdico"
Formação de um público especial
Os clubes de cinema possuem características especificas que os tornam especialmente singulares. Destacamos a experiência educativa e formadora do cineclube da APCC nesta sessão, pois como ficará evidente, os debates cineclubistas possuem imenso potencial transformador e comunicacional, já que a interação inerente e intrincada num determinado contexto sócio-histórico, segundo Veruska Silva, "desencadeia processos de significação ao possibilitar aprendizados que passam a orientar comportamentos, que por sua vez, encontram permanências" (2009, pag. 146).
No vai e vem dos argumentos se exercita a capacidade de defender, através da lógica, um pensamento ou ideia. Nas trocas cineclubistas crescemos a partir do debate. É o que destaca a Prof.ª Luzia Miranda, ao relatar como começou a adentrar o universo dos clubes de cinema:
Luzia: "Quando nós casamos (Pedro Veriano), ele tinha um cineminha, o Cine Bandeirantes (...) Então, eu fui criando uma visão crítica. Eu não tinha nenhuma teoria, depois é que eu fui estudar (...) a discussão que nós fazíamos em casa, antes dos cineclubes, era uma discussão de alta qualidade. Nós frequentávamos o cineclube 'Os Espectadores', qualquer cineclube que fosse criado sempre fomos, não só pra valorizar, mas também pra assistir."
Essa construção que se dá no espaço do cineclube não ocorre pela simples exposição de uma determinada obra cinematográfica. As experiências se evidenciam nos discursos e as trocas de opinião revelam, muitas vezes, aspectos da obra que não seriam percebidos senão pelo processo de compartilhamento de críticas. Diante dessas dinâmicas é permitido aos agentes reagir, participar, simpatizar ou antipatizar e esse movimento favorece a incorporação de significados que nortearão a relação dos indivíduos, tanto com o cinema, quanto entre si e com outros campos da existência (SILVA, 2009).
Essa formação proporcionada pelo movimento cineclubista encontra eco nas experiências dos nossos entrevistados, pois todos tiveram profícuas carreiras na crítica cinematográfica em Belém. Assim, o cineclube constitui um meio "pedagógico" que influencia e constitui o individuo humanisticamente, como nos mostra Milene Gusmão "a ação educativa desses clubes, associada a uma rede de socialização mais ampla, constitui um cenário de aprendizado não-formal de cinema" (2008, pag. 13).
Vicente Cecim confirma esse aspecto dos clubes de cinema, "o cineclube pra mim era onde eu tinha acesso ao cinema de qualidade, assim como a biblioteca era onde eu tinha acesso a literatura de qualidade", assim ocorre a construção de um espaço de cinema alternativo e autônomo.
Vicente: "Em Belém havia um predomínio muito grande do cinema comercial, era difícil ver uma coisa rara, que tivesse contribuindo para a linguagem do cinema como Intolerância, do Griffith, ou o Encouraçado Potenkin (...) Comprei o livro A História do Cinema do Georges Sadoul que me mostrou tudo isso (...) gostamos muito daquilo e com um amigo criamos uma Associação de Críticos Amadores (ACA) escrevíamos e mandávamos pros críticos profissionais. Rafael Costa, Acyr Castro (...) Descobrimos um dia que Pedro Veriano fazia projeções na garagem da casa dele, e depois discutíamos os filmes. O público era variável, tinha Francisco Paulo Mendes, Benedito Nunes (...) Ali assistimos filmes que não se viam nos cinemas comerciais (...) Depois surgiu o cineclube da APCC, que praticamente nasceu da garagem do Pedro."
O cineclube da APCC foi extremamente fértil, nesse sentido, ao longo da sua atuação na cidade, já que durante o decorrer da ditadura militar brasileira as atividades de cunho cultural tornaram-se mais escassas, e a censura "praticada no Brasil, de 1964 a 1988, não foi apenas repressão localizada, mas mecanismo essencial para a estruturação e a sustentação do regime militar" (PINTO, 2006, pag. 3). Após os primeiros anos de regime, o aumento do rigor na censura não impediu que muitas obras artísticas fossem divulgadas. Era a fase em que as metáforas e as alegorias tornaram-se ponto de resistência (PINTO, 2006).
"Os anos do APCC formaram plateia na cidade. Muitos cursos foram administrados, muitas sessões especiais foram realizadas, muitos ciclos de diretores, gêneros e países produtores; um universo de cinema tratado de forma artesanal: eu comandando os projetores de 16 mm; Luzia, minha mulher, funcionando a bilheteria; e as nossas colunas nos jornais noticiando a programação." (VERIANO, 2006, p. 76)
No período acima citado, o esquema cineclubista da APCC não interrompeu suas atividades e formou um público fiel e sempre presente nos debates.
Cineclube da APCC e a ditadura (1967-85)
A já citada estudiosa de cineclube, Rose Clair Matela, ao tratar do florescimento do cineclube no contexto do regime militar, "O cineclubismo foi configurando-se, a meu ver, numa experiência que sutilmente colaborava para quebrar algumas amarras e mordaças, concorrendo assim para o estremecimento do contexto sócio-político que vivíamos" (MATELA, 2008, p. 20). Segundo os relatos de participantes de cineclubes registrados por ela, essa prática atuou por vezes em conjunto com as necessidades de comunidades, atendendo anseios por lazer, por exemplo, mas também usando filmes para conscientizar e organizar tais grupos em torno de demandas sociais referentes a eles mesmos (2008, p. 65).
Como já dissemos o cineclube da APCC nunca possuiu um caráter de frontal combate ao regime ditatorial, mas quebrou amarras exibindo muitos filmes proibidos ou com certificados de censura vencidos, e mordaças sendo um espaço onde o limite para o debate estético e político não era ditado pelos militares. "O Cine Grajará", conta Pedro empolgado, "que mais vai interessar vocês: um cineclube na base naval em pleno governo militar". Seu depoimento segue relatando a necessidade que havia de se apresentar o programa do cineclube toda semana à Polícia Federal, além de sempre ter em mãos o certificado de censura atualizado de cada filme, o qual continha a classificação indicativa e os devidos cortes que a película deveria ter para ser exibida. Ocorre que não havia embargo algum ao cineclube quando se exibia um filme proibido pela censura: "Macuaníma, por exemplo, tinha mais de treze cortes", mas no Guajará "esse passava sem certificado", ou seja, completo.
Ele estava muito certo em pensar que a experiência no Cine Guajará nos interessaria. Interessou-nos desde nossa leitura de Cinema no Tucupi, quando ele diz, no capítulo sobre cineclubes, ser aquele um cinema frequentado por esquerdistas e onde a exibição era acima de tudo cinema de arte (VERIANO, 1999, p. 44). "O comandante da base só dizia pra mim o seguinte: 'passa tudo menos o Encouraçado Potenkin', e eu passei. Passei até um festival de filmes soviéticos" relata, Veriano.
É manifesto a todos os conhecedores da crítica cinematográfica paraense que Pedro Veriano e Luzia Álvares nunca assumiram posicionamento ideológico a favor ou contra o socialismo, entretanto na entrevista Luzia falou largamente, quando nos explicava porque decidiu graduar-se em Ciências Sociais, de seu contato e amizade com pessoas politicamente assumidas de esquerda durante a ditadura.
Luzia: "eu gostava muito das discussões em casa porque esse pessoal de esquerda eram muito nossos amigos. Isidoro (Alves), João de Jesus Paes Loureiro, além do Roberto Cortez e Ronaldo Barata, (...) Todos eles tinham uma visão extremamente crítica da sociedade"
Vicente Cecim relata também a liberdade dos debates e a proximidade com os nomes da esquerda paraense. Após narrar animadamente o filme "Invasores de Corpos" (Philip Kaufman, 1978), ele contou:
Vicente: "Gostava demais desse filme. (…) um debate começou e eu falei muito sobre o filme, que denunciava a alienação, a opressão total. E o Francisco Paulo Mendes (...) se levantou e disse: 'Nada disso! É uma clara propaganda americana contra os comunistas, com uma proposta ideológica', depois se levantou e foi embora"
Depois disso, segundo ele, a discussão se prolongou entre os que ficaram e mais tarde ele falou com Francisco Mendes e explicou melhor seu posicionamento, "era comum a gente se contrariar, porque o cineclube era sobretudo um espaço de despertar, de tomada de consciência".
Destacamos a experiência de Luzia Miranda, no entanto, para reforçar o papel educacional e formador do cineclube, dando frutos neste momento de liberdade cerceada que foi a ditadura no Brasil.
A partir destes relatos escolhemos compreender o grupo que se reunia no espaço do cineclube como pessoas que compartilhavam experiências comuns e que apesar de terem se posicionado de diferentes formas, não eram indivíduos antagônicos entre si.
"Outra característica da memória que a aproxima muito da história é sua capacidade de associar vivências individuais e grupais com vivências não experimentadas diretamente pelos indivíduos (…): são vivências dos outros das quais nos apropriamos tornando-as nossas também (…). Nossas memórias são formadas de episódios e sensações que vivemos e que outros viveram." (AMADO, 1995, p. 132)
É claro que o regime restringiu mais a liberdade de opinião e expressão do que a liberdade intelectual, mas nenhum destes elementos costuma se afastar demais um do outro. Não é atoa que foram os estudantes do ensino superior os maiores envolvidos nas cidades com guerrilhas e movimentos de combate direto à ditadura (D'ARAÚJO, 1994). Como disse acima Janaína Amado, compartilhar confunde as experiências dos indivíduos porque as memórias sempre são sociais (AMADO, 1995).
Em vários episódios relatados pelos entrevistados fica clara a consciência dos militares sobre o grupo que frequentava o cineclube e o teor de algumas discussões feitas ali. Pedro Veriano contou em tom de galhofa que constrangeu algumas vezes representantes da Polícia Federal e supostamente infiltrados no meio da plateia. Vicente Cecim também demonstrou subestimar os militares dizendo que "eles nem sabiam nada sobre cinema". Felizmente, nada de grave ocorreu nesses episódios, ninguém foi preso ou foi obrigado a deixar o país, contudo os relatos sobre a presença de agentes da polícia confirmam a "ameaça" representada pelo cineclube da APCC.
Luzia: "Eles mandavam sempre alguém para assistir os filmes e a gente sabia, a gente não conhecia quem era (...) numa mostra nós descobrimos uma pessoa, que era inclusive namorado de uma amiga minha. Um dia Pedro foi até a Polícia Federal e o encontrou lá (...) tínhamos uma suspeita de que o namoro foi um meio de se aproximar e observar melhor.".
A Prof.ª Luzia Miranda nos relatou um caso de perseguição, que mostra claramente o posicionamento e atuação do governo militar contra atividade cineclubista da APCC (que envolvia também os trabalhos de crítica cinematográfica nos jornais), quando da publicação de uma entrevista com o presidente do sindicato dos jornalistas (SINJOR) à época, sobre cinema político. Na ocasião, segundo Luzia, os policiais montaram um esquema para que ela não pudesse estar acompanhada sequer de um advogado durante seu depoimento.
Luzia: "em 1974 eu fiz uma entrevista sobre cinema político com o Presidente do sindicato dos Jornalistas, João Batista Figueira Marques (ele era de extrema esquerda) e foi publicada. 15 dias depois fui intimada a comparecer a Polícia Federal para responder algumas perguntas. O coronel responsável disse que a entrevista estava incurso nas leis de segurança nacional (...) eu estava com medo, não me lembro das perguntas. (...) fiquei com medo pois sabia que vários amigos haviam sido presos. Pensei em deixar o jornal pois passei vários dias sem conseguir escrever."
Após esses acontecimentos, Luzia não desistiu de seus trabalhos no cineclube, nem na crítica, completando este ano 42 anos de publicações sobre cinema nos jornais locais. Sua atuação representa muito bem o caráter da resistência exercida pelos membros do cineclube da APCC. Um movimento com características crítico-intelectuais que defendia a liberdade de acesso a qualquer tipo de conhecimento, no caso aqui o cinematográfico, e totalmente contra qualquer forma de alienação do contexto sócio-político, como concluiu Vicente Cecim durante sua entrevista.
Vicente: "O cineclube era um espaço de ver filme, de discutir filme, sem interferência da ditadura (...) entre a ditadura e a indústria Hollywoodiana, qual a pior? Resistíamos passando filmes que eram proibidos (...) exibir cinema de arte, que abre a consciência, a imaginação, a criatividade da pessoa, era uma resistência a alienação, por que houve uma baixa na produção cultural do país (...) mantínhamos assim uma coisa viva, como se não tivesse uma ditadura."
A construção dessa resistência se deu de uma maneira sutil e contribuiu sobremaneira para que os entraves político, culturais e sociais desse período, de alguma forma, não se sobressaíssem à capacidade das pessoas de reagirem a atitudes desumanas, como as praticadas pelos militares durante a ditadura brasileira. Tudo através do espaço cineclubista, que reforça a maior das qualidades do homem, a razão.
Conclusão
Esta pesquisa constitui uma pequena contribuição a pouca literatura produzida sobre a história do cinema no Pará, com o objetivo de trazer à tona as histórias de vida desses personagens importantes da nossa história, através de suas memórias sobre o período. Esta fonte que é a memória deles agora se abre a fim lançar luz sobre mais um ponto que o regime militar obscureceu.
Não lançamos concepções novas sobre clubes de cinema. Só deduzimos os frutos óbvios da reunião de um grupo interessado por arte e cultura, que construiu seu nome em meio a um período onde a cultura e a arte se viram profundamente censuradas.
Tratamos então do cineclube como espaço de contínua formação intelectual e social: a linguagem cinematográfica no centro e a liberdade de debater todas as possíveis questões levantadas pelo filme. Uma trajetória marcada por esta experiência alavanca o indivíduo a um nível de crítica sobre todos os aspectos do mundo ao redor, e mesmo na dimensão íntima. Não imaginamos alguém que viveu tudo isso fazendo colocações sem ter a capacidade de sustentá-las, e pensamos assim após o contato com estes três personagens.
Também pensamos no cineclube como essa reunião com grande potencial subversivo, e isso porque a própria discussão sobre linguagem cinematográfica, indústria cinematográfica, cinema comercial e de arte desperta uma postura crítica. Depois as várias experiências que encontramos enquanto pesquisávamos trabalhos acadêmicos sobre o tema demonstraram como a receita do cineclube não varia muito de resultado.
Portanto, embora nossa pesquisa precedente sobre cineclube e cineclube na ditadura já nos sugerisse que encontraríamos em Belém esse perfil de reunião de cinéfilos, brotaram dos relatos características peculiares de formação e subversão. Em Belém o único ponto de conformidade do grupo era o interesse por cinema, além disso, tudo era heterogeneidade: Pedro Veriano não insiste em nenhum discurso político, sempre se envolveu profundamente com o cinema; enquanto Luzia Miranda de maneira acadêmica possui um interessante histórico de ativismo feminista; já Vicente Cecim nem gosta do acadêmico, possui uma sensibilidade artística amplamente reconhecida.
Espera-se que este estudo contribua para o aumento de pesquisas na área, e que a historiografia que desbrava os caminhos menos percorridos ganhe destaque, para que não cometamos o grave erro de esquecer grandes nomes da nossa história.

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ANAIS IV SELCIR (ISSN – XXXX) Campus Guamá –Belém -PA
Seminário Nacional Literatura e Cinema de Resistência Universidade Federal do Pará
Dessilenciando os Golpes!!! 01 a 05 de dezembro de 2014



Entrevista concedida por ÁLVARES, Luzia Miranda. Entrevista 1. [out. 2014]. Entrevistadores: Líria Natasha Sena do Vale e Marcelo da Costa Tavares. Belém, 2014;
Os irmão Marx (Chico, Harpo, Groucho, Gummo e Zeppo) eram um grupo de irmãos comediantes no teatro desde os anos 1920, mas depois ingressaram no cinema e na TV americana. Participaram da passagem do cinema americano mudo para o falado.
Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), posteriormente denominado FSESP. Esse órgão prestou relevantes serviços à saúde pública do país. Criou diversos hospitais em cidades ribeirinhas da Amazônia, Vale do São Francisco e Rio Doce. (disponível em http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-historia-da-sesp);
Escritora paraense, nascida no município de Santarém. Sua carreira pública como escritora começou aos sessenta anos a partir da qual se consagrou como contadora de histórias amazônicas fantásticas.
Entrevista concedida por CECIM, Vicente Franz. Entrevista 3. [nov. 2014]. Entrevistadores: Líria Natasha Sena do Vale e Marcelo da Costa Tavares. Belém, 2014;
Idem.
Entrevista cedida por CECIM, Vicente Franz.
Escritor francês, autor da História geral do Cinema, obra que possui seis tomos cujo último foi publicado em 1954.
Entrevista concedida por VERIANO, Pedro. Entrevista 1. [jul. 2014]. Entrevistadores: Líria Natasha Sena do Vale e Marcelo da Costa Tavares. Belém, 2014;
Idem.

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