Memorias Cruzadas: Historia de vida de uma trabalhadora rural agregada

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Descrição do Produto

Antonio Dari Ramos

Memórias cruzadas: história de vida de uma trabalhadora rural agregada

São Leopoldo

2017

© Editora Karywa – 2017 São Leopoldo – RS editorakarywa@gm ail.com http://editorakarywa.wordpress.com Conselho Editorial: Dra. Adriana Schmidt Dias (UFRG S – Brasil) Dra. Claudete Beise Ulrich (Faculdade Unida – Brasil) Dr. Cristóbal G necco (Universidad del Cauca – Colômbia) Dr. Eduardo Santos Neumann (UFRG S – Brasil) Dr. Ezequiel de Souza (IFAM – Brasil) Dr. Raúl Fornet-Betancourt (Aachen – Alemanha) Dra. Tanya Angulo Alemán (Universidad de Valencia – Espanha) Dra. Yisel Rivero Báxter (Universidad de la Habana – Cuba)

R175m Ramos, Antonio Dari Memórias cruzadas: história de vida de uma trabalhadora rural agregada. São Leopoldo: Karywa, 2017. 14 x 21cm; 122p. ISBN: 978-85-68730-18-8 1. Biografi a; 2 . Co tidi ano; 3. Gêne ro; 4. Trabalhadora rural; 5. História de vida; I Antonio Dari Ramos. CDD 900

Sumário PREFÁCIO ......................................................................... 5 PARA INÍCIO DE CONVERSA ................................................. 9 A FAMÍLIA

MUDA DE

SANTA MARIA

PARA

GIRUÁ .............. 12

MORANDO EM TERRA ALHEIA ............................................ 28 TRABALHO E GÊNERO ....................................................... 32 IR À ESCOLA, TRABALHAR REMUNERADO E CASAR ................ 49 SEGUE A VIDA DE FAMÍLIA AGREGADA ................................ 54 TORNAR-SE MÃE .............................................................. 61 O

SUSTENTO MATERIAL DA FAMÍLIA

.................................. 69

A VIDA SOCIAL E O COMPADRIO ........................................ 77 O PREPARO DE ALIMENTOS, A COSTURA DE ROUPA E O ARTESANATO .............................................................. 84 A EDUCAÇÃO DOS FILHOS ................................................. 87 A VIDA RELIGIOSA ........................................................... 91 A VIDA

DE CASADA

HISTÓRIAS

......................................................... 99

FABULOSAS ................................................... 103

APOSENTADORIA E

VIUVEZ

............................................. 107

NETOS E NORAS ............................................................ 110 O REENCONTRO COM O PASSADO ..................................... 113 E O SISTEMA DE AGREGADOS? ......................................... 116 E XPECTATIVAS .............................................................. 119 REFERÊNCIAS ................................................................ 122

Prefácio Prefaciar esse livro tem para mim um significado muito especial e particular. Falar sobre a trajetória, a história e o sentido do vivido de Dona Malvina, mãe de meu grande amigo e compadre Antônio Dari Ramos é de uma responsabilidade ímpar. Uma narrativa de reexistências, de silêncios, de trabalho, de persistências e empoderamento. Durante muito tempo, as mulheres, suas narrativas e histórias de vida foram objeto de um relato histórico que as relegou ao silêncio e à invisibilidade. Eram invisíveis, pois sua atuação se passava quase que exclusivamente no ambiente privado da família e do lar. O espaço público, pertencente aos homens, poucas mulheres se aventuravam nele. Escrever e visibilizar as trajetórias femininas é romper aos poucos com o silêncio deixado pela história tradicional sobre esses sujeitos. Mulheres comuns, mulheres que (re) existiram. Dona Malvina em sua trajetória de vida não deixou poucos vestígios, sejam materiais ou imateriais. Esses vestígios sacados à luz, trazem para a cena o des-silenciamento do relato, e a existência muitas vezes apagada, destruída, desprezada pela história desses sujeitos. Dona Malvina, filha de migrantes, mulher negra, camponesa, traz consigo a história de um corpo feminino, marcada por situações e fatos em seu cotidiano que se desenrolou no interior das matas, no “rancho” coberto de palha, roçando, capinando, colhendo, lavando, tecendo, andando quilômetros a pé, em busca de assistência médica para os filhos ou para ela mesma.

Certas perguntas, marcadas por inquietudes teóricas sempre me acompanham quando tomo conhecimento de histórias de vida dessas mulheres – a preocupação como representam o coletivo, a vida, o corpo, a memória, o imaginário, as representações, as identidades – e que merecem serem registradas e visibilizadas. O Antônio Dari, ao escrever a trajetória de Dona Malvina e ao observar os vários enredos usados na elaboração de um discurso sobre a experiência passada e presente, mais do que indagar sobre a memória de sua mãe, ele apresenta o “esquecido”, o “silêncio”, aquele trajeto, fato, ação performativa, capaz de formar e subverter o relato, emergindo assim a história de uma vida. Dona Malvina é filha do seu tempo, do seu espaço, de sua paisagem. Ao me lembrar da topografia da comunidade de Mato Grande – Giruá, na região das missões no RS, vejo essa senhora de 82 anos acostumada a essas planícies que fez brotar nela uma acuidade visual e gestual, acompanhada por um sentimento de pertencimento ao chão no qual continua ainda sob seus pés. Ao dialogar com sua própria história, sua vida pretérita, como se fosse um “causo”, ela vai ao encontro com aquilo que o poeta Manoel de Barros chamou das coisas miúdas: “poderoso é aquele que descobre as insignificâncias do mundo e as nossas”. Uma memória do corpo, sobre o corpo, que tem com a história da região onde vive uma performance, que se manifesta na metáfora do gesto de tecer o chapéu com palha de trigo, uma biografia, que tem na pele, nos ossos, no olhar a justificativa para narrar sua própria história. Talvez, em lugar algum do mundo, existam mulheres tão valorosas como Dona Malvina, uma trabalhadora rural precocemente envelhecida pelo sol escaldante do verão missioneiro e pelo vento minuano das noites de inverno. Essa belíssima obra conta a história de uma

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mulher missioneira, trabalhadora rural que se mistura com outras tantas histórias de mulheres pelo Brasil afora. Como historiador respeitado e competente, Antônio Dari Ramos nos apresenta a história de Dona Malvina, com muita competência, sensibilidade e emoção. Prof. Dr. Losandro Antonio Tedeschi FCH-UFGD

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Para início de conversa Este é um livro de hist ória. Melhor, um livro de histórias. Para sermos mais precisos, um livro de memórias. Nele, registramos as memórias de uma trabalhadora rural do Rio Grande do Sul, nascida em 15 de abril de 1935, que carrega em si as marcas sociais de mestiça, pobre, sem-terra e agregada; esposa e mãe de quatro filhos, todos eles homens. A perspectiva que seguimos é a memorialista, utilizando uma linguagem menos hermét ica que a histórica convencional. Optamos por utilizar uma forma romanceada de escrita com a finalidade de aproximá-la dos relatos colhidos através da história oral, mas também como forma de produzir uma fonte histórica para pesquisas posteriores que não desvirtue a musicalidade da fala da personagem central. Este não é um livro acadêmico no sentido estrito do termo, embora seu autor seja historiador de formação e ofício. Ao mesmo tempo em que trabalha sobre as memórias de Malvina Sortica Ramos, colhidas ao longo de anos de registros orais, os quais se encontram condensados em uma dezena de horas de depoimentos em vídeo, o texto ora apresentado tem também um caráter biográfico, já que o autor é também filho de Malvina. Optamos, no entanto, por inserir-nos no texto na terceira pessoa. Aliás, todas as personagens que são referidas recebem esse tratamento, inclusive Malvina, de modo que o narrador e autor, por opção de escrita, parecem observar a cena de fora. De alguma forma, as memórias de filho se cruzam também com as da mãe.

O método de coleta de dados utilizado é a história oral de vida, como preconizada por José Carlos Sebe Bom Meihy (2005), cotejado com pesquisas arquivísticas. O método de análise é o hermenêutico, que insere o fato no seu contexto sócio-histórico. Mas, como o contexto não é um dado apriorístico, ele foi por nós construído enquanto uma operação direcionada por uma escolha teórica. Nossa opção, embora que de forma implícita – a fim de tornar o texto mais leve, não divagando em teorias já dominadas pela comunidade acadêmica –, foi pelo cruzamento dos estudos de gênero com os de classe. Acompanhou-nos, na produção deste texto, entretanto, uma questão teórica que é a relação entre a memória e a história, já tantas vezes tematizada por historiadores. Se a história (operação intelectual) é diferente da memória (ato afetivo de lembrar), existe sempre o desafio para o historiador que se encontra imerso no espaço e tempo do narrado em conseguir o distanciamento necessário a fim de registrar a história com o máximo de isenção possível. Sabe-se que isso está, entretanto, mais no plano ideal do que da prática, pois todo o distanciamento pode ser sempre questionado já que sempre resta alguma subjet ividade nesse processo. Aliás, essa é sempre a questão que surge, por exemplo, nos trabalhos realizados pelos historiadores ou antropólogos indígenas ou intelectuais camponeses ou urbanos quando estudam suas comunidades. E é justamente a carga subjetiva presente nos trabalhos de memorialistas que leva os historiadores acadêmicos a lançarem dúvidas sobre a cientificidade do trabalho daqueles. Diríamos, no entanto, que esse não é um problema teórico que nos afeta, já que o texto apresentado segue uma preocupação mais social do que acadêmica. Por isso, optamos pela perspectiva ensaística, diminuindo propositadamente o número de referências bibliográficas.

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A relevância social de um estudo como este reside no fato de debruçar-se sobre uma pessoa comum, que viveu e vive num lugarejo desconhecido e desimportante (utilizando um neologismo presente no pensamento do poeta Manoel de Barros). Uma mulher mestiça, pobre e trabalhadora que teve de elaborar estratégias de sobrevivência como mulher mestiça, pobre e trabalhadora. Sua condição de mulher simples, inserida em relações patriarcais de poder, numa ruralidade misógina e excludente, é compartilhada por outras mulheres de sua condição social. Nesse sentido, o trabalho tem a pretensão de contribuir para tirar da invisibilidade a situação feminina no mundo do campesinato. Como diria seu filho Lori Luiz, quando da leitura de prova do texto, “ela é uma guerreira! Mesmo como filho não sabia da maioria das histórias contadas no livro”. A história de vida de Malvina deixa de ser invisível também para a família! A vida de Malvina só não foi mais dura porque ela pôde contar com a solidariedade presente no espaço camponês. O sistema de agregados era a um só tempo uma forma de estabelecimento de relações laborais, que poderia descambar para o estabelecimento da exploração de mão-de-obra barata ou não, mas também era constituído por laços afetivos e por um compromisso pela proteção social entre os envolvidos. Desejamos a todos(as) uma boa leitura do livro, na intenção de estabelecer um diálogo profícuo com mulheres e homens que militem pela igualdade de gênero. Críticas e sugestões, as quais esperamos, podem ser feitas através dos seguintes contatos eletrônicos: [email protected] [email protected]

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A família muda de Santa Maria para Giruá Era 1938, Antonio Manoel Sortica, à época com 45 anos, sai de Santa Maria, Rio Grande do Sul, e vai em busca de um novo lugar onde pudesse viver com sua esposa Maria Eponina de Lima Sortica, a “Punica”, de 33 anos, e com seus sete filhos: Maria Idalvina (Vica), à época com 16 anos, Alvarino, com 12 anos, Alcidino, com 10 anos, Doralina e Doraldina (gêmeas), com oito anos, Dejanira, com cinco anos, Malvina, com três anos, e Marina, com um ano de idade. A causa da mudança continua sendo uma incógnita, mas pode estar relacionada à busca de novas possibilidades, em local distante de sua família de origem, principalmente pelas condições de precariedade que vivia. Ninguém faria uma mudança dessas, distanciando-se de seus parentes e amigos, se não procurasse um lugar mais aprazível para si e para sua família! Umas das dificuldades que Antonio Manoel encontrara junto de sua família desde quando decidiu casar-se com Punica foi convencer sua mãe, Maria Geralda, a aceitar sua esposa. Malvina recorda que Maria Eponina dissera uma vez que sua sogra não gostava dela: “a mamãe dizia que a vovó não aceitava que seu filho, um moço branco, se casasse com uma negra” (Entrevista concedida ao autor em outubro de 2016). No início do século XX, as raízes escravocratas eram ainda muito fortes em Cachoeira, atualmente Cachoeira do Sul, RS, lugar onde as famílias dos noivos residiam, e Maria Eponina possuía forte ascendência africana. Maria Geralda foi criada numa sociedade em que, na segunda metade do século XIX, conviviam portu-

gueses, açorianos, descendentes de outros imigrantes europeus, como os alemães, além de ela mesma ser casada com um descendente de imigrante norte-americano. Em Cachoeira existiam também grupos de escravizados, de cativos alforriados e de indígenas (Oliveira e Santos, 2013). Uma análise dos Documentos da Escravidão no Rio Grande do Sul, publicados pelo Arquivo Público do Estado do RS (Rio Grande do Sul, 2010), permite perceber que os escravizados, na sociedade cachoeirense, não estavam restritos às charqueadas, mas também eram encontrados em casas de famílias, trabalhando como domésticos para seus donos ou alugados por eles a outrem, nos campos de criação de animais, nas plantações.

Maria Eponina de Lima Sortica. Arquivo familiar.

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Alguns proprietários possuíam mais de cinquenta cativos, outros bem menos, chegando-se inclusive a alguns casos em que senhores ou senhoras possuíam apenas um cativo. As relações entre os diversos grupos humanos eram tensas, restando, principalmente aos negros e aos pardos, as alcunhas de ladrões e bêbados, como se percebe nos processos-crimes da época. Maria Eponina era parda, descendente de um grupo social malvisto pela sociedade cachoeirense, já que “inferior”, e possivelmente isso impactava no olhar que sua sogra lançava sobre si.

Antonio Manoel Sortica. Arquivo familiar.

Antonio Manoel nasceu no dia 22 de outubro de 1891, apenas três anos após a abolição da escravidão no Brasil; Punica nasceu em Santa Maria no dia 13 de mar-

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ço de 1903, quinze anos após a assinatura da Lei Áurea. Não se tem notícia se a família dele fora ou não um dia proprietária de cativos. Possivelmente, Maria Eponina tivesse familiares, mesmo que distantes, que haviam tido contato com a escravidão, no entanto ela silenciava sobre o assunto.

Cópia da Certidão de Casamento de Antonio Manoel e Maria Eponina. Arquivo familiar.

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Uma avaliação dos registros de óbito de Cachoeira permite encontrar nomes de primos de Antonio Manoel, como o de Teotônio Sortica de Paula, filho de seu tio Theodoro, sendo jornaleiros, isto é, diaristas, de modo que viviam do trabalho prestado a outras pessoas. De toda forma, mesmo que outros parentes seus possuíssem alguma propriedade, boa parte dos familiares de ambos os cônjuges, na segunda metade do século XIX, eram prestadores de serviços, portanto, trabalhadores pobres. Depois de casados, o casal fixou residência na zona rural de Santa Maria, RS. A família Sortica era uma família tradicional que se estabelecera inicialmente na região de Santo Amaro do Sul, RS. Embora haja dúvidas com relação à origem não brasileira da família, o que se sabe é que o primeiro Sortica a fixar residência no Rio Grande do Sul foi Ignácio Sortica, nascido em Nova Iorque, Estados Unidos, e morto em Santo Amaro do Sul. Seus pais eram David Sortica e Anna Buncker. Casado com Belarmina Maria Francisca de Souza Sortica, que nasceu em São Francisco de Paula, RS, Ignácio foi pai de José Ignácio, Francisca, Manoel Ignácio, Felisberta Maria, Fabiano Ignácio, Theodoro Ignácio, Lucia Amanda, João Ignácio, Antonio Ignácio e Ignácio Francisco. Antonio Manoel era filho de Manoel Ignácio Sortica, o qual nasceu em 09 de agosto de 1850, em Taquari, RS. No entanto, há dúvidas acerca do ano de nascimento de Manoel Ignácio, pois seu registro de batismo indica o ano de 1950, mas na certidão de casamento de Antonio Manoel e de Punica consta que, em 1920, ele estaria com 71 anos, tendo nascido, por isso, em 1949. Antonio Manoel sempre se identificava como sendo “ilhéu”, designativo dos descendentes de açorianos, grupo humano que estava no atual Rio Grande do Sul desde a década de 1750, após a assinatura do Tratado de Madrid. Pelo sobrenome de suas ancestrais brasileiras,

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elas eram açorianas, já que a região possuía uma grande quantidade de imigrantes da Ilha de Açores que foram assentados na região. Pela parte materna, seguramente os Sortica brasileiros eram açorianos. Outra fala de Antonio Manoel referia-se ao aportuguesamento que seu sobrenome teria sofrido. De fato, é possível encontrar muita variação na grafia do designativo familiar: Szortika, Szortica, Szortik, Serduic, Sertich, Sourtica, Surtica. Disso resulta uma hipótese plausível de que a família Sortica possa ser originária dos Cristãos Novos, judeus convertidos ao cristianismo de maneira forçada, em território português, a partir da última década do século XV, que teriam migrado para diversas partes do mundo. Maria Eponina casou-se com Antonio Manoel no dia 16 de outubro de 1920, em Santa Maria. Na época Antonio Manoel Sortica estava com 28 anos de idade. Maria Eponina de Lima tinha 16 anos. Antonio Manoel era agricultor, filho mais jovem de Manoel Ignácio Sortica, à época do casamento com 71 anos de idade, e de Maria Geralda Sortica, com 70 anos, segundo indica sua certidão de casamento. Seus outros irmãos eram Favorino, Almedorino e Francisca. Por não saber assinar, no dia da união matrimonial Maria Eponina teve de contar com a assinatura de testemunhas. Tanto os pais do noivo quanto os da noiva residiam no Quarto Distrito de Cachoeira. Punica era filha de Manoel João de Lima, com feições bem africanizadas, e de Maria Constância de Lima, mestiça, ou de cor “mista” como era costume registrar nos documentos de nascimento e óbito da época. Das quatro irmãs, Maria Eponina era a mais velha. Suas outras irmãs eram Vicentina, Minervina e Coraldina. Os irmãos eram Orlandino, Manoel Antonio (Neco) e Pedro. Logo após a mudança de Antonio Manoel e Maria

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Eponina para Giruá, também os seguiram os irmãos de Punica Orlandino e, mais tarde, Neco. Alguns anos depois, ambos retornaram para a região de Santa Maria, estabelecendo residência em Júlio de Castilhos. Outro motivo da mudança da família Sortica para Giruá está relacionado à própria ocupação territorial do Rio Grande do Sul e à colonização tardia de algumas regiões, como da região das Missões. E ela tem a ver, também, com a construção da Linha Férrea. Definitivamente, a Viação Férrea foi um dos principais fatores de ocupação não indígena da região, pois interligava comercial e comunicativamente espaços antes considerados inóspitos. É possível afirmar que a linha férrea foi o principal instrumento de interiorização do estado do Rio Grande do Sul no século XIX e na primeira metade do século XX.

Adaptado de . Acesso em 21/10/2016.

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Santa Maria ficava no entroncamento central do sistema ferroviário gaúcho da época. Pelos trilhos do trem chegavam informações de outras partes do Rio Grande do Sul. Chegavam notícias, por exemplo, das terras disponíveis para a colonização. Como a colonização de Santa Maria já estava consolidada, na década de 1930 chegavam notícias de que a região do Quinto Distrito de Santo Ângelo, Giruá, mais precisamente a região conhecida por Mato Grande, era um lugar de grandes oportunidades econômicas. O nome Mato Grande referia-se à existência no local de uma floresta de milhares de hectares (acreditase que possuísse bem mais de 20.000 hectares), situada entre as vilas de Giruá e de Mato Grande. Nessa localidade, havia a possibilidade de abrir novas terras, vendendo-se a madeira para alimentar a “Maria Fumaça”, o trem a vapor da época, e para reparar os dormentes dos trilhos. Muita gente ganhava a vida derrubando a mata e vendendo a madeira para a Viação Férrea. Da época do desmatamento, o que mais chama a atenção de Malvina foi a rapidez com que a “Maria Fumaça” consumiu a floresta. Se as terras de campo já estavam ocupadas, as terras da mata tiveram, então, uma colonização ainda mais tardia, e a construção da ferrovia, inicialmente, e a máquina a vapor, num segundo momento, foram os argumentos históricos para derrubar as árvores e utilizar as terras para o cultivo. A construção da linha férrea consumiu boa parte das “madeiras de lei” da região, pelo menos de cinco quilômetros de cada lado da ferrovia. Essas madeiras eram utilizadas para fazer a base dos trilhos, os chamados dormentes. Posteriormente, o processo de desmatamento se acentuou com a retirada de madeira para servir de combustível para o trem a vapor e para a substituição dos dormentes apodrecidos.

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O árduo trabalho empregado para a retirada das grandes árvores existentes na mata não faria sentido se a venda da madeira não fosse motivada pela estrada de ferro, desde a década de 1920. Sem ela, dificilmente alguém se aventuraria a abrir roças derrubando a densa floresta, que possuía árvores com mais de vinte metros de altura. A estrada de ferro trazia, segundo o imaginário da época, o desenvolvimento às regiões, que significava, inicialmente, o afluxo de povoadores. Malvina dirá que ela trouxe, de fato, muita gente para a região de Mato Grande, uns para trabalhar nas lenheiras, outros para trabalhar diretamente na linha férrea, tanto que a maioria das casas da vila era ocupada por ferroviários. Em Mato Grande existia, inclusive, uma estação de embarque de passageiros, desativada e destruída no final da década de 1970. Na região de Mato Grande, o principal meio de transporte para ir à cidade fazer compras ou para passear era o trem. As pequenas viagens eram feitas de carroça ou no lombo de equinos ou de muares, mas as maiores eram feitas através do trem. Da estação de embarque de Mato Grande podia-se ir facilmente a qualquer parte do Rio Grande do Sul, inclusive à capital, Porto Alegre, à Santa Catarina, à Argentina ou ao Uruguai, por exemplo. A construção da estrada de ferro que ligava Santo Ângelo a Giruá foi concluída em 1928. Ela chegara em 1915 em Catuípe, em Santo Ângelo em 1921 e em Santa Rosa chegaria somente em 1940. A construção do ramal ferroviário é um dos destaques da história do Brasil por ter sido ali que Luiz Carlos Prestes, militar responsável por ela, conspirou em definitivo para a tomada do poder central do País, no episódio que ficou conhecido como Coluna Prestes. Inclusive, há uma mata entre as localidades de Mato Grande e

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de Comandaí, chamada de “Capão da Guarda”, presente na memória social compartilhada pelos idosos da região como sendo um lugar onde as tropas comandadas por Prestes se reuniam. Há muitas histórias de “assombração” relacionadas a essa mata, constituindo-se ela num dos lugares “misteriosos” de Mato Grande. Nesse local, seguidamente são encontradas cápsulas deflagradas de armas de fogo, sinal de que houve ali algum treinamento militar no passado. Antes da mudança da família Sortica de Santa Maria para Giruá, a família de José Copeti já havia antecipado o mesmo deslocamento. Na viagem de mudança, um grupo de famílias acompanhou os Sortica: as famílias de Cesário Fracário, de Rosalino dos Santos, de Joaquim Lemes (Quinca), de Henrique Zimmermann e de João Perneira, a única família com matizes bem africanizados. A família Sortica utilizou o trem para chegar até Giruá. Da viagem, a única coisa que Malvina recorda é de ter ouvido, em uma estação em que o trem fez escala, uma música muito bonita, que ela não conseguiu distinguir a fonte. Possivelmente viesse de alguma vitrola ou gramofone. Malvina sempre gostou de música, e ainda hoje é possível ouvi-la cotidianamente cantarolar músicas do tipo “as mocinhas da cidade” e outras do gênero. Os bens trazidos no trem consistiam basicamente em roupas e utensílios de cozinha. Os demais móveis seriam elaborados pela família na chegada. As camas, chamadas de tarimbas, por exemplo, eram esteiras feitas de taquaras amarradas com cipó, as quais eram colocadas sobre pequenos esteios cravados no solo. O colchão era geralmente de palha de milho e seria confeccionado no novo lugar de morada, bastando que fosse carregado somente o tecido a ser preenchido. Já em Giruá, passaram a usar, com o passar do tempo, o colchão de crina e lã.

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Assim como em Tapes, RS, local de imensos butiazais, em Giruá havia uma “crineira” (em alusão à crina dos cavalos) que produzia crina vegetal, usada para o preenchimento de colchões e de estofados de móveis. A crina vegetal era feita com as folhas de butiá, uma palmeira típica do município. A forma de produzir os colchões de crina e lã é assim descrita por Malvina: primeiramente desfiavamse as folhas de butiá na crineira. Produziam-se, assim, grossas cordas de fibras, as quais eram compradas para montar os colchões. Estendia-se num tecido a corda de crina, começando-se pelas extremidades até chegar-se ao centro. Ia-se costurando a corda nesse tecido, cuidando-se para que as voltas ficassem bem próximas umas das outras. Após preencher toda a superfície, faziam-se outras camadas, sempre costurando uma volta na outra. Ao final, punha-se uma camada de lã na parte superior do colchão para que ficasse macio. Duas pessoas tinham grande dificuldade para carregar o colchão, pois ao final ele ficava pesadíssimo. Antonio Manoel possuía muitas habilidades, seja como agricultor, artesão ou marceneiro. A produção de móveis, a começar pelo fogão de chão, não lhe era problema. Inicialmente, a família utilizava o fogo no chão, sem nenhuma estrutura, para cozinhar os alimentos, usando apenas ganchos para pendurar panelas e chaleiras. Depois, passou a utilizar o “fogão de chapa”, composto por uma estrutura de tijolos entremeados por barro, encimado por uma chapa de ferro. Num terceiro momento, já na década de 1980, é que Punica passou a utilizar o fogão a lenha industrializado. Antonio Manoel e Punica não chegaram a utilizar o fogão a gás. Malvina conserva ainda hoje o banco adiante apresentado, esculpido por seu pai na década de 1940, usando a madeira conhecida como timbaúva. Ele utilizou o

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banco por praticamente quatro décadas. Antonio Manoel fez outro banco similar para a esposa. De estatura baixa (em torno de 30 cm), esses bancos são muito confortáveis para sentar próximo ao fogo de chão.

Banco produzido e usado por Antonio Manoel. Arquivo familiar.

Quando chegaram em Giruá, os Sortica encontraram poucos moradores no núcleo urbano. Malvina recorda inclusive que tinha muito medo, quando ia com sua madrinha à cidade, de passar num campo onde atualmente está localizada a Rádio Giruá, por conta de ter de cruzar por entre um rebanho bovino nem sempre amistoso. No entanto, como Santa Rosa havia se emancipado de Santo Ângelo em 1931, isso alimentava o desejo dos poucos moradores de Giruá emanciparem a localidade com a finalidade de também desenvolvê-la. Giruá se tornará município somente em 1955, desmembrando-se do município de Santo Ângelo, dezessete anos após a chegada da família ao local, no momento em que morava nas terras de Alcides Fiorin, próximo à vila de Mato Grande.

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Desde a chegada em Giruá, a família Sortica foi agregada de diversos proprietários de terra. O sistema de agregados existiu em todo o país. Ele é fruto da organização fundiária estabelecida principalmente pela Lei de Terras de 1850, mas também pode ser encontrado anteriormente a essa data, principalmente nos casos em que os donos de cativos mantinham nos fundos de suas propriedades alguma amásia, geralmente preta alforriada, com filhos seus. Uma vez que as famílias pobres, sejam de descendentes de colonizadores, de mestiços ou de escravos forros, não tinham condições de adquirir terras, passavam a morar de favor nas propriedades de outros, agregando-se a eles como trabalhadores jornaleiros, mas também estabelecendo laços de compadrio e de entreajuda. Em Giruá, a família Sortica recebeu novos membros, pois nasceram Angelina, Remi Conceição (falecido por conta de hidrocefalia) e Manoel Garibaldino. Quando Malvina estava com dezoito anos, a família ainda adotou uma menina recém-nascida, Maria Oliva, filha de uma mulher que, com problemas mentais, reincidentemente engravidava. Quando isso acontecia, a mãe de Maria Oliva, Alice, era despedida das casas onde prestava serviço como doméstica e ia morar precariamente em uma casa abandonada. Angelina e Marina insistiram com a mãe, Maria Eponina, para que adotasse a criança. Oliva faleceu ainda bebê, com seis meses de idade, de pneumonia. Uma análise realizada nos registros de óbitos da época indica a existência de altos índices de mortalidade infantil, geralmente causada por pneumonia. Outra causa de óbitos infantis eram os abortos. Somados esses casos registrados como sendo de crianças “nascidas mortas” com os casos de morte de crianças de pouca idade, na passagem do século XIX para o XX, incluindo as primeiras décadas do século XX, seguramente as mortes de infantes respondiam

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por praticamente dez por cento dos óbitos registrados oficialmente. Esses dados são encontrados nos documentos digitalizados (registros paroquiais e cartoriais) que constam no portal da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias “www.familysearch.org”. Malvina atribui a grande quantidade de mortes de crianças aos únicos tipos de tratamento de saúde que as pessoas pobres acessavam: o benzimento e o uso de chás, ineficazes para combater os vírus causadores de muitas doenças. Em Santa Maria, o casal Antonio Manoel e Punica já havia perdido Almedorino, morto com sete anos por paralisia infantil. Na nova terra também faleceu Dejanira, igualmente com sete anos de idade, e também de pneumonia. Antonio Manoel morreu em 1980, com 88 anos, de tétano, em decorrência de uma fratura numa perna causada por uma queda em um pequeno pontilhão que existia ao lado de sua residência. Maria Eponina faleceu de infarto do miocárdio em 1990, com 87 anos. Malvina lembra que Antonio Manoel, por dar crédito ao presságio de uma cigana, descuidou-se do tratamento de saúde, pois acreditava que morreria antes de completar 89 anos de vida, como de fato acabou acontecendo. De Maria Eponina, lembra que jamais se queixava de alguma doença. Mesmo na velhice, após 37 anos de cegueira, causada por uma cirurgia malsucedida de catarata, não se ouvia da boca de sua mãe que estivesse doente ou precisando de algo. Já idosa, Maria Eponina confessou para a filha um costume que guardava quando mais nova: ela gostava muito de comer terra. Por isso, quando o tempo anunciava chuva, recolhia vários torrões para ir consumindo aos poucos, enquanto esperava que o solo secasse para poder colhê-los novamente. Tal era o seu gosto por comer terra que ela se escondia das pessoas para poder saciá-lo.

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O casamento de Punica com Antonio Manoel durou praticamente 60 anos. Durante esse tempo, Maria Eponina tratava o esposo como “seu Antonio”, não se sabe se pela diferença de idade existente entre ambos ou se por motivações morais de gênero ou étnico-raciais. Malvina não recorda de nenhuma situação em que o casal tenha trocado qualquer má palavra. Nos dez anos que Punica viveu a mais que seu marido, ela foi cuidada pelo filho Alvarino e, por fim, pela filha Angelina. Mesmo cega, devido a Alvarino trabalhar como diarista nos arredores, não podendo acompanhá-la o dia todo, era possível vê-la cozinhando no fogão a lenha: ela abria a panela, retirava parte do alimento com uma colher e o apertava com os dedos para certificar-se de que estava cozido. Um costume que Maria Eponina conservou até meados da década de 1980 foi o de assar o pão numa panela posta em frente ao fogão de chão, coberta com uma tampa cheia de brasas. Ela ia girando a panela até que o pão ficava completamente assado. O gosto do pão é inesquecível. Outra lembrança guardada de Maria Eponina era a forma como ela se conduzia ao banheiro, a chamada patente ou latrina, que ficava localizada a alguns metros da casa. Por já estar cega, havia um fio de arame estendido entre o banheiro e a casa para que ela se guiasse por ele para poder ir e voltar com segurança. Havia também um fio similar que ligava a cozinha ao poço artesanal de onde a família retirava a água para o consumo doméstico. Punica costumava contar muitas histórias sobre episódios vivenciados por ela. Nas histórias contadas para os filhos e netos, sempre eram abundantes elementos fantásticos de assombrações e de personagens do folclore gaúcho, como o lobisomem. Contava ela que, numa

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noite de lua cheia, quando ainda enxergava, fora buscar água no poço que ficava próximo da casa e viu que sobre ele estava sentado um grande cachorro peludo, com aparência humana: era um lobisomem. Ela garantia têlo visto e que ficara com muito medo de buscar água daquela noite em diante.

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Morando em terra alheia Os novos moradores, ao chegar em Giruá, geralmente adquiriam um pedaço de terra, e o pagavam com a retirada da lenha vendida para a Viação Férrea. Antonio Manoel, mesmo sob forte insistência de Maria Eponina, não se dispunha a isso por entender que ficaria velho e que não conseguiria pagar a dívida, além do que a terra eventualmente adquirida poderia se tornar a razão de desavenças futuras entre os filhos, por conta de brigas por herança. Talvez tenha sido este o motivo dos desentendimentos anteriores com sua família, segundo pensa Malvina. Mesmo contrariado, Antonio Manoel adquiriu uma propriedade em outro extremo do município, na região do Rincão Nossa Senhora Aparecida, vindo a vendê-la por desgosto, já que teve roubada toda a madeira da casa que construiria no local. Ele fora à propriedade preparar a madeira, numa semana, e quando retornou para construir a casa, na outra semana, ela havia desaparecido. Sem demora, vendeu a terra. A vida toda Antonio Manoel residiu nas terras de outros colonos como agregado, morando com sua família nos fundos das propriedades. Como se fosse um membro da família do proprietário da terra, prestavalhe serviços, geralmente como diarista ou empreiteiro, mas nos momentos em que o trabalho escasseava, também trabalhava em outras propriedades, além de cultivar uma pequena roça e de trabalhar nas lenheiras. Inicialmente, a família morou, como agregada, nas terras de José Copeti, no Rincão dos Beltrame, o santamariense já conhecido de Antonio Manoel que viera a Giruá antes dos Sortica; depois, morou nas terras de

Edegar Pinheiro, na localidade chamada de Comandaizinho; após, nas de José Maria, na mesma localidade; nas de Clarimundo Pedroso, conhecido como Moreira, no Rincão dos Beck; de lá, foram morar nas de Evaristo de Paula, no Passo do Faustino. Quando Malvina já estava com dezoito anos, a família mudou-se para a localidade de Mato Grande, e foi morar nas terras de Miguel Szostkiewicz, o Miguelão. Por fim, a família morou nas terras de Alcides Fiorin, em três locais diferentes. Nos dois últimos locais, na Vila de Mato Grande, Antonio Manoel e Maria Eponina encontravam-se já idosos, e Malvina já era casada. Veja-se que em quinze anos a família mudou de residência seis vezes, numa média de permanência inferior a três anos em cada local. Todas as mudanças aconteceram num raio de 15 km.

Malvina com 18 anos. Arquivo familiar.

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As intensas mudanças de residência tinham a ver com pequenos desentendimentos que Antonio Manoel eventualmente tinha com os donos das terras, com alguma tratativa verbal não cumprida ou com alguma desconfiança de ambas as partes, mas também quando se extinguiam as lenheiras nas propriedades próximas, com o avanço do desmatamento, e o campo de trabalho começava a ficar distante. Ao longo dos anos, os serviços com os quais a família se envolvia estavam primordialmente ligados ao cultivo de alimentos, à produção de dormentes para os trilhos do trem serrados manualmente na mata e à entrega de lenha para abastecer a “Maria Fumaça”. Com relação à produção de alimentos, geralmente a família derrubava a mata, retirava a madeira, queimava os galhos, no sistema de coivara, plantava feijão e milho, arrancava os tocos e as raízes das árvores. Quando a terra estava limpa, hortada como se dizia, ela retornava para o dono e a família iniciava a abertura de uma nova área de roça, chamada de roça nova. Toda a produção era dividida com o dono da terra na proporção de um terço para o proprietário e dois terços para a família Sortica. Maria Eponina era muito conhecida na região por atender como parteira. Por conta disso, e pela quantidade de braços que a família possuía, os Sortica eram bastante requisitados pelos moradores do entorno, exercendo os mais diversos trabalhos, com predominância dos trabalhos manuais que necessitavam de muita força física. Entretanto, prevalecia sempre a informalidade nas relações laborais. Trabalho com carteira assinada somente viria a existir no espaço camponês a partir do final da década de 1980. Antes, a única forma de acessar a Previdência Social e os direitos trabalhistas era através do Sindicato de Trabalhadores Rurais, que cumpria função mais assistencial do que de representatividade classista.

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Punica e Antonio Manoel na velhice. Arquivo familiar.

Maria Eponina teve de deixar de exercer a função de parteira em torno dos cinquenta anos por ter ficado cega. O pai de Punica ficara igualmente cego na velhice. Problemas de baixa visão são encontrados também nos filhos e netos de Maria Eponina.

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Trabal ho e gênero Com exceção de Maria Eponina, e das filhas Marina e Angelina, a primeira pela fragilidade e a segunda pela idade e por estudar, as demais mulheres da família executavam todos os trabalhos diários. Quando o trabalho era na mata, o produto era pago pela metragem de madeira beneficiada, e as mulheres participavam dele cortando as árvores com machado ou serrote. Os homens ficavam responsáveis pelo empilhamento. Malvina conserva ainda hoje uma cicatriz no vão dos dedos do pé, resultado de um ferimento causado por um machado que, por estar muito afiado, rompeu a madeira e lhe atingiu o membro. A parte mais grossa da árvore, chamada de “boda”, não era vendida para a Viação Férrea, e ficava por vezes no meio da lavoura apodrecendo. Raramente essa madeira era cortada para lenha ou utilizada para fazer tábuas. Quando isso acontecia, era levada para os engenhos de serra, e com as tábuas construíam-se casas e galpões. Quando o trabalho realizado era na produção de alimentos, a matriarca Maria Eponina cuidava dos trabalhos domésticos na parte da manhã e na parte da tarde acompanhava as atividades de capina, plantio e colheita. As meninas acompanhavam os irmãos mais velhos no trabalho desde a idade de cinco anos. Como a família trabalhava tanto na roça “própria” quanto nas roças dos proprietários, quando Malvina estava com sete anos, seu pai, Antonio Manoel, exigia que o pagamento feito por Clarimundo Beck por seu trabalho fosse equivalente ao dos irmãos e das irmãs maiores. Ele argumen-

tava que a filha “trabalhava parelho aos demais”, sinal de que as obrigações laborais de uma criança de sete anos não eram menores do que as de um adulto. Os únicos dois trabalhos que Malvina refere não terem sido realizados por ela foi serrar tábuas no estaleiro com seu pai e lavrar com arado de bois.

Da esquerda para a direita: Doralina, Doraldina e Malvina (com dezoito anos). Arquivo familiar.

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Das filhas, ao chegarem aos quinze anos, Maria Eponina exigia que assumissem as lides da casa. Cada dia uma das filhas era responsabilizada por preparar o alimento para a família. No entanto, cada menina lavava sua própria roupa. A roupa dos homens era lavada por Maria Eponina. Com o passar do tempo, quando a visão lhe foi escasseando, ela passou esse trabalho para as filhas. A matriarca era também costureira. Além de costurar as roupas para si, para o marido e para os filhos e filhas, ela também fazia roupas para os vizinhos. As roupas costuradas por ela seguiam o padrão da época, como se vê nas fotos apresentadas. Com relação à fotografia anterior, chama nela a atenção o fato de encontrar-se recortada. O motivo, segundo Malvina, foi uma briga que ela teve com as duas irmãs mais velhas. Como Doralina e Doraldina não a queriam por perto, Malvina quis castigá-las retirandoas do registro. No entanto, Malvina guardou a parte da foto que recortou, sendo possível remontá-la no presente! O tecido floreado que Malvina ostenta na foto foi presente de seu irmão Alcidino. O corte das roupas feitas por Maria Eponina seguia um desenho comum. Na foto abaixo, as irmãs usam vestido que variam somente nas estampas e no tipo de colarinho. As roupas (vestidos), sem decote, com as mangas curtas, mas fechadas, e em tamanho suficiente para tapar os joelhos, mostra a preocupação da mãe com o recato corporal das filhas. O corpo era levemente salientado somente por um cinto que, amarrado à cintura, modelava a roupa a ele. O tamanho das roupas era adequado ao tamanho das pessoas, o que mostra o domínio da técnica da costura por Punica. Chama a atenção o fato de Maria Eponina ter aprendido em casa a arte do corte e costura, já que casou bastante jovem, e que tenha passado os co-

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nhecimentos também para as filhas. A fotografia foi feita em torno de 1955, em frente à Escola São Miguel Arcanjo, à época de madeira, situada onde hoje está localizada a Igreja Católica de Mato Grande, numa festa comunitária. As missas e os cultos dominicais eram celebrados nessa escola.

Da esquerda para a direita: Marina, Angelina, Malvina e Doralina. Arquivo familiar.

O tecido para a elaboração das roupas geralmente era comprado com o dinheiro alcançado com a venda de feijão. Malvina se recorda da estratégia que criou, antes dos dez anos de idade, para conseguir mais dinheiro a fim de comprar o tecido para sua roupa e quiçá alguma sandália, já que o calçado ordinário, após lavar os pés à noite, era o desconfortável tamanco de madeira. Quanto ao uso de calçados durante o dia, esse não era um costume da família, com exceção de Antonio Manoel que usava uma “pracata”, espécie de alpargata feita por ele com couro cru e amarrado no pé e tornozelo com tiras do mesmo material. Numa ocasião Alcidino

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quis imitá-lo, mas não se adaptou ao calçado, pois se enroscou com ele num toco de árvore. Voltemos à colheita do feijão. Como os grãos de feijão que restavam espalhados ao redor da “eira” e debaixo dos montes onde ficavam colocadas as plantas colhidas antes de serem trilhadas eram destinados às irmãs Malvina e Marina, ela teve a ideia de, disfarçadamente, pisotear ou apertar os montes de feijão para debulhar as vagens. Com isso, muitos grãos caíam no solo e as irmãs, juntando-os, aumentavam para si a quantidade de dinheiro após a venda da leguminosa. As “eiras” eram compostas por uma lona de “algodão caboclo”, de porte mais denso, onde o feijão era trilhado, isto é, debulhado, a “casco de cavalo” ou através de “manguá”. No beneficiamento com o uso de cavalos, as mulheres montavam os animais (Malvina, Doralina ou Doraldina), andando em círculo, e alguém cuidava para que eles não defecassem sobre o alimento. Quando o cavalo se preparava para fazer suas necessidades, a pessoa que estava no solo avisava a mulher que o montava para que rapidamente o parasse. Após ter defecado, as fezes (esterco) eram retiradas junto com a palha que estava em sua proximidade. Essa mesma pessoa ia recostando, aproximando, a palha para que os cavalos não pisassem diretamente nos grãos de feijão a fim de não os estragar, mas também para evitar de cortar a lona com a pisada do animal. O “manguá” era um instrumento feito com duas madeiras, uma amarrada à outra, pelas extremidades, com uma corda de aproximadamente quarenta centímetros. Uma das madeiras era mais longa, de aproximadamente dois metros, e a outra, mais pesada, de um metro. A pessoa tomava a parte mais longa e girava no ar a mais curta, arremessando-a ao cultivar a ser debulhado. Ao redor da lona, forrava-se a terra com esterco bo-

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vino para não misturar com terra o feijão que se deslocasse para fora, ficando mais fácil o trabalho de juntá-lo. O feijão tanto podia ser plantado nas roças novas quanto nos locais de capoeira. Quando era plantado nas terras de capoeira, bastava roçar a vegetação, queimar os arbustos e plantar a semente, sem necessidade de capina. Quando a terra já havia recebido outros plantios, era capinada, rastelada para limpar o terreno e para não atrapalhar o crescimento das plantas, e somente depois recebia as sementes de feijão. A roça era mantida limpa, pois uma plantação com “sujeira” era sinônimo de preguiça e desleixo do dono. A terra produzia organicamente muito feijão, sem a necessidade do uso de adubagem auxiliar ou veneno. Com o passar do tempo começaram a aparecer pragas (cascudos verdes), sendo controladas por Antonio Manoel através do benzimento da roça. Ele benzia três cantos e deixava um “aberto” para que os bichos saíssem livremente da lavoura. Malvina garante que os bichos saíam de fato sem estragar a plantação. Outra técnica de manejo de pragas era realizada através de outra simpatia. Antonio Manoel capturava nove bichos, colocava-os em uma caixa de fósforos e a amarrava sobre a fumaça do fogo de chão que existia na cozinha. Essa simpatia também resultava em bons resultados, segundo Malvina. Veneno ninguém utilizava, exceto para as formigas e para os gafanhotos. No caso das formigas, eram utilizados fumegadores que aplicavam o formicida nas suas casas, tapando-se eventuais lugares em que a fumaça pudesse escapar. A praga de gafanhotos aconteceu quando Malvina já era adolescente, pois estava com onze e doze anos. Ela conta que estavam sentados à tardinha e viram uma nuvem, como se fosse de chuva, aproximar-se da plantação. Foram muitas as levas de gafanhotos que chega-

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ram em forma de nuvens. Os gafanhotos devoravam tudo o que encontravam. Nos dois anos seguintes, a praga continuava dando prejuízo porque havia o nascimento de filhotes através da desova. Para matar os gafanhotos adultos era utilizado um inseticida, o “pó para gafanhoto”. Os filhotes eram mortos por aterramento. Quando descascavam, após abrir valas, os vizinhos faziam mutirão para espantar os pequenos animais até elas. Depois, aterravam esses buracos, matando-os sufocados. Outro cultivar plantado pela família era o trigo. As sementes eram lançadas à terra com a mão e tapadas capinando-se profundamente o terreno. Quando maduro, o trigo era colhido com o uso da foice. Homens e mulheres trabalhavam indistintamente no plantio e na colheita do trigo. Dele, Antonio Manoel tirava as palhas para produzir chapéus. Ele ensinou o trançado para as filhas. Malvina ressente-se que não tenha aprendido a “trança de bico”, uma das tranças dominadas pelo pai que resultava em tiras com pontas para ambos os lados, que depois eram costuradas para formar o chapéu.

Chapéu de palha de trigo trançado e costurado por Malvina em 2016. Arquivo familiar.

Se em Santa Maria o plantio do milho era feito em terras de morrarias, em Giruá o terreno era levemente

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ondulado e facilitava em grande medida os trabalhos de plantio e de colheita do cereal. Em Santa Maria, a forma como se carregava o milho para casa, por exemplo, era esticando-se um fio de arame no cerro e deslizando-se as espigas amarradas umas as outras por ele até o paiol. Em ambos os lugares, porém, o plantio do milho era feito com o uso da máquina “pica-pau” e dele participavam igualmente homens e mulheres. Malvina recorda que, na capina da lavoura de milho, quando as espigas estavam em formação, ela se deliciava comendo os pequenos sabugos diretamente na roça. Já, quando as espigas se encontravam formadas, como havia muitos tocos de árvores no meio da plantação, costumava, junto de seu pai, irmãos e irmãs, assar neles espigas que eram consumidas como lanche. Malvina recorda do gosto maravilhoso do milho assim preparado.

Angelina e Malvina, na comunidade de Mato Grande, no final da década de 1950. Arquivo familiar

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Em Giruá, a terra fértil produzia muito milho e demais plantas. Problemas ocorriam, no entanto, quando aconteciam estiagens que prejudicavam seu desenvolvimento. As secas eram bastante frequentes na época. Aliás, mesmo com a mata intacta, há notícias de que a região padeceu de uma grande seca durante a Guerra Guaranítica, na segunda metade do século XVIII, chegando-se à morte de árvores naquele momento. Muitos são os casos contados pelos missionários jesuítas do período colonial em que presenciaram momentos de miséria nas reduções por conta de grandes estiagens (MCA IV, 1970, p. 254; 296; 299; 365; 384). Disso resulta a certeza de que a região conta com grandes secas desde os tempos antigos. Eram trabalhos masculinos dar comida aos porcos e cavalos. As galinhas tanto podiam ser tratadas por homens quanto por mulheres. Cortar lenha para o consumo doméstico era um trabalho mais voltado para as mulheres, embora os homens pudessem “ajudá-las”. Já a serra de madeiras para a construção das casas feitas nas terras de Evaristo e de Moreira era tarefa masculina, encabeçada por Antonio Manoel, o qual a realizava manualmente. Ele utilizava a mesma forma para serrar os dormentes que vendia para embasar os trilhos de trem. A técnica utilizada por Antonio Manoel era a seguinte: ele punha a tora num estaleiro, subia sobre ela e embaixo se posicionava um auxiliar. Após serrar a “costaneira” da tora, transformando-a em uma grande madeira quadrada, ele marcava com um carvão a espessura das tábuas de modo que depois de prontas era impossível encontrar uma mais espessa do que a outra. As madeiras utilizadas para fazer tábuas eram aquelas menos duras, como a timbaúva e a canela de porco (canela com cheiro forte). As tábuas serradas por Antonio Manoel eram utilizadas para compor as paredes das casas, mas não o as-

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soalho. Malvina lembra que dificilmente era encontrada alguma casa com assoalho de madeira, inclusive nas famílias mais abastadas. Costumeiramente, o piso era de chão-batido, bem compactado e aplainado, impermeabilizado com esterco bovino dissolvido em água e aplicado com o uso de vassoura. Quando seco, sua cor ficava esbranquiçada, e sem cheiro. Algumas pessoas misturavam cinza ao esterco para clareá-lo mais. Quando o piso começava a descascar, recebia uma nova camada da mistura. Com esse tipo de impermeabilização era possível manter a casa limpa, isto é, bem varrida. Com relação às casas em que morou com seus pais, Malvina recorda-se que elas eram sempre compostas por duas construções. Numa ficava a cozinha, noutra os quartos e a sala, usada para receber visitantes. O local de convivência familiar era a cozinha, que recebia um telhado de pequenas tábuas, do tamanho de telhas convencionais. Cada pequena tábua, serrada ou lascada, recebia um prego que era encaixado no ripamento de madeira. Uma tábua era encaixada na outra. A outra parte da residência era coberta com capim santa-fé. O motivo da separação dos ambientes e o uso de telhados diferenciados era a segurança, pois como o fogão era de chão, alguma faísca poderia atear fogo na casa toda. Quando chegaram às terras de Evaristo, já havia lá uma casa com paredes de barro. A forma de construir essas casas era a seguinte: colocavam-se varas de madeiras com diâmetro em torno de 5-6 centímetros, verticalmente, a uma distância de 50 centímetros uma da outra, presas numa estrutura de esteios, vigas e barrotes (alicerce, base) também de madeira. Após, amarravamse nelas taquaras lascadas, na posição horizontal, a uma distância em torno de 10 centímetros, uma por dentro e outra por fora. Depois, preenchiam-se os vãos com barro bem amassado com os pés. O telhado era coberto com

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capim. A parte superior da casa era ripada e o capim, arrancado dos banhados (pântanos), tanto podia conservar as raízes para fora quanto para dentro. O uso de capim com raízes acontecia porque vedava melhor o telhado. As raízes para fora fechavam ainda mais a cobertura. Taquaras eram colocadas por cima para amarrar nelas o capim com arame. Antonio Manoel e a família construíram uma casa de madeira nas terras de Evaristo, mas a deixaram para ele quando foram morar em outro local, fato que Malvina sentiu bastante. Quando a família Sortica foi morar nas terras de José Maria, usou a sua casa, uma vez que este havia mudado residência para a cidade de Santo Ângelo. Lá, Antonio Manoel proibia os filhos de comer as frutas do grande pomar existente na propriedade, argumentando que havia tratado com seu compadre que as levaria até a cidade para que ele e sua família as vendessem para suprir suas necessidades. Com isso, Malvina, então com onze anos, criou uma estratégia para burlar as regras estabelecidas: ela subia no pé de bergamota (mexerica), furava a fruta e chupava o líquido, deixando a casca grudada na árvore. Com o tempo, a casca caía e todos creditavam o fato à ação dos pássaros. Na verdade, ela aprendeu a técnica observando as aves. Outra proibição que Antonio Manoel impunha aos filhos era a de chupar a cana-de-açúcar, argumentando que era necessário deixá-la amadurecer para transformá-la eventualmente em melado ou para alimentar os animais. Malvina entrava, então, no canavial, escolhia uma cana que fosse fina, retirava as folhas e a mascava, da parte mais baixa até a mais alta, sem arrancá-la do pé, enganando seu pai, que achava se tratar de uma ação dos morcegos. Outro fato que ilustra a severidade com que Antonio Manoel tratava seus filhos era quando iam acampar

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em locais mais distantes para poder trabalhar. A fim de evitar peso às éguas que puxavam a carroça, de nomes Boneca e Custosa, somente ele e as ferramentas eram carregados pelo meio de transporte. Os filhos e as filhas seguiam a pé atrás da carroça por até dez quilômetros. A família ficava uma semana acampada e retornava da mesma forma para a sua casa. Na visão de Malvina, sua irmã mais velha, Vica, demonstrava sentir demasiadamente o rigor da educação recebida. Ela presenciou muitas vezes a irmã brigando com o pai (mais o pai brigando com ela do que o contrário). Uma das lembranças que guarda da irmã é que ela era bastante rebelde, “medonha” como diz Malvina.

Maria Idalvina Sortica (Vica). Arquivo familiar.

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Maria Idalvina namorava um rapaz, Domingos, que também viera de Santa Maria, e dele engravidara. O filho, Olindo, nasceu quando ela tinha 18 anos. Como não chegou a casar com Domingos, o menino acabou sendo criado pelos avós, tornando-se meio irmão de Malvina, que é somente cinco anos mais velha do que ele. Ele chamava Punica de mãe e Antonio Manoel de pai. Malvina recorda que ouvira de sua irmã uma expressão dita por ela ao pai: “então é melhor matar o guri”. Ela tenta entender a expressão até o momento presente. Talvez significasse alguma sugestão do pai para que ela entregasse o filho para adoção ou para o ex-namorado. A relação entre pai e filha tornou-se insustentável quando Vica roubou um “corte de vestido” de uma vizinha, dizendo tratar-se de um presente de Domingos. Descoberta a mentira, Antonio Manoel deu uma surra na filha, naquele momento já adulta e mãe. Aliás, Malvina presenciou diversas vezes seu pai batendo na irmã. Quando Olindo estava com três anos, Vica foi trabalhar numa cidade vizinha, Guarani das Missões. A mãe, Maria Eponina, sugeriu-lhe que primeiro se estabelecesse na cidade para depois levar o filho para morar consigo. Vica saiu de casa e nunca mais retornou. Soube-se que, posteriormente, teria ido para a cidade de Londrina, no estado do Paraná. Alguns anos mais tarde, ela foi vista chegando de ônibus em Giruá, desembarcando e tornando a embarcar nele logo em seguida. O motivo de não ter ido ver o filho e a família, não se sabe. O amigo da família que a viu suspeitou que estivesse sofrendo de algum problema mental pela forma como se portava. Ela demonstrava, claramente, estar abalada emocionalmente, como se procurasse algo na sacola que carregava consigo. Olindo nunca chegou a estabelecer família. O mesmo aconteceu com seu tio-irmão Alvarino. De espírito solitário e taciturno, Olindo morreu estranhamente em

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2011, em uma casa próxima da sua, na vila em Mato Grande. Como sempre sofreu de epilepsia, não se sabe ao certo a causa de sua morte. Sabe-se apenas que saíra de sua residência próximo ao meio dia numa sexta-feira para fazer pequenas compras e, num período chuvoso de inverno, foi encontrado morto na segunda-feira após o meio dia caído ao lado da casa, junto às compras, sob a água que caía do telhado. Acredita-se que tenha passado mal, caído e, por dificuldade de levantar-se, morrido de frio durante a noite. No seu atestado de óbito consta morte “sem motivo definido”.

Olindo Sortica quando jovem. Arquivo familiar.

No mesmo sentido de sofrimento, outra pessoa que também passou por uma situação que lhe custou a vida foi a irmã de Malvina, Doraldina. Quando seu filho Vilmar nasceu, ela adoeceu e morreu devido a complicações do parto, outra causa de morte muito comum à

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época. O menino, então, foi criado pela madrinha, a professora Adiles. Quando o fato ocorreu, Vilmar dividiu o peito de Selvina, esposa de Alcidino, com Terezinha Sortica. Já adulto, casado e com um filho, Vilmar sofreu um acidente que lhe fraturou a coluna, tendo ficado paraplégico. Malvina foi visitá-lo em 2016 em Santo Ângelo, após distanciamento de mais de quarenta anos.

Alcidino e Alvarino Sortica. Arquivo familiar.

Dos irmãos homens, Malvina guarda boas recordações. De Alcidino recorda do acordeon que tocava, e que ela, escondida, aprendeu nele a “florear” algumas músicas quando ficava em casa para preparar o alimento para a família. De Alvarino, seu compadre, pois batizou seu filho mais velho, lembra do alcoolismo que lhe encurtou a vida, mas também da maneira pouco gentil como tratava sua mãe quando passou a cuidá-la. Alcidino e Alvarino são falecidos. O irmão mais jovem de Malvina, Manoel Garibaldino, nascido em 1945, saiu de casa com dezoito anos para servir o Exército Brasileiro, na cidade de Santo Ângelo. Logo depois, arranjou emprego na mesma cidade,

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onde continua residindo até o presente, motivo pelo qual os contatos que Malvina teve com ele foram bem menos duradouros do que o contato que teve com os irmãos mais velhos. Manoel Garibaldino acabou formando família com Tereza e com ela teve uma única filha, Luciana.

Manoel Garibaldino Sortica. Arquivo familiar.

Das irmãs lembra ainda do casamento de Marina que, embora dois anos mais nova do que ela, casou-se com Salvador Chaves de Oliveira seis anos antes de si. Mesmo assim, Marina casou-se com 22 anos de idade. Nesse sentido, as mulheres da família não seguiram sua mãe, pois todas constituíram família tardiamente, lembrando que Maria Eponina casou-se com 16 anos e teve sua primeira filha com 17 anos. Doralina, por exemplo, teve uma filha, Zenaide, aos 39 anos, e se casou com João Machado somente após os quarenta anos. Angelina

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casou-se com João Loss quando estava com 29 anos. Angelina, viúva, e Doralina, separada, vivem atualmente na cidade de Giruá.

Marina e Salvador. Arquivo familiar.

Angelina, nascida em 1942, saiu de casa para trabalhar na cidade como empregada doméstica quando tinha dezoito anos. Mais tarde, com as economias que conseguiu juntar com seu esposo João Loss, comprou uma chácara na vila de Mato Grande e construiu uma casa para acolher a mãe, Maria Eponina, já bastante idosa.

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Ir à escola, trabal har remunerado e casar Antonio Manoel era alfabetizado; Maria Eponina, como dissemos, era analfabeta. Dentre seus filhos e filhas, Malvina foi quem menos estudou. Mesmo que os demais tenham estudado bem mais do que ela, nenhum deles passou do quinto livro (o primeiro ano equivalia ao primeiro livro, o segundo ano ao segundo livro, e assim por diante). Os mais novos, Angelina e Manoel Garibaldino, estudaram até o quinto ano. Malvina, quando completou set e anos, por morar distante da escola, na terra de Edegar Pinheiro, foi proibida de residir na casa de sua tia e madrinha Maria de Lima, que também viera de Santa Maria, a fim de estudar na escola próxima de sua casa. O motivo aventado foi uma questão de gênero: não podia ficar próxima de um menino, José Fracário, tido como “medonho”, arteiro, que morava nas imediações. Dessa forma, somente foi à escola com doze anos (ingressou após as férias de julho), saindo dela aos treze, um ano e meio depois, tendo concluído somente a “leitura” do primeiro e do segundo livros. Sua professora, da qual guarda boas lembranças, foi Carlota Almeida Marafiga, uma mulher de estatura baixa, gordinha e muito calma. Seus colegas eram praticamente todos acima dos doze anos. Os primeiros seis meses das aulas de Malvina aconteceram na casa de Moreira. Depois, foi construída uma pequena escola, de uma só sala, que comportava do primeiro ao quarto ano, com uma só professora. Malvina foi retirada da escola por seu pai por ser considerada “muito velha e grande” para permanecer

nela. O motivo foi, em sua visão atual, para somar nos trabalhos de sustento da família. Solteira, Malvina residiu com os pais até os 27 anos, sempre envolvida nos afazeres da roça, alternando trabalhos de doméstica nas famílias do entorno. Em 1962, no entanto, ela rompeu o namoro com Marcos Squinzani, a quem não agradava a ideia de que trabalhasse fora, e foi empregar-se como doméstica na casa de Leopoldo e Blanca Fett, na cidade de Santo Ângelo, onde permaneceu por dois anos e meio. A vida toda Malvina trabalhou sem ter a carteira de trabalho assinada.

Diadema (tiara) que Malvina ganhou de Lília Fett em 1962, e que guarda como relíquia. Arquivo familiar.

Seu pretendente, Marcos, logo depois de Malvina tê-lo contrariado, acabou se casando com outra mulher. No entanto, nas palavras de Malvina, teve pouca sorte no relacionamento, pois a perdeu logo após o parto do primeiro filho. Como a esposa deu à luz a seu filho na cidade, no retorno para casa, quando esperava carona, tomou chuva e acabou tendo “recolhida” e morrendo. Malvina conserva a foto de Marcos até o presente, embora João Carlos nunca tenha sabido dela.

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Marcos Squinzani. Arquivo familiar.

Malvina tinha outros pretendentes. Um deles era João França, conhecido como João Pescoço, quem ela dispensou por não lhe nutrir afeição. A estratégia utilizada para dispensá-lo é ainda lembrada por Malvina. João França a havia convidado, juntamente com a família, para irem a um baile que aconteceria na casa de um vizinho. Todos se prepararam para a festa, tomando banho, perfumando-se e colocando as melhores roupas, inclusive Malvina. Na hora da saída, ela simplesmente foi dormir em vez de acompanhar seu pai, irmãos e irmãs. Na ocasião, João França “dançou de par” com Maria Chaves, irmã de seu cunhado Salvador, com quem acabou casando. Mais tarde, Maria a acusou de ter-lhe “cravado um estrepe [espinho] no pé’! Com 28 anos, Malvina começou o namoro com João Carlos Ramos, com quem se casou civilmente em 24 de setembro de 1965, quando tinha trinta e ele vinte

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e cinco anos de idade. A cerimônia religiosa somente viria a acontecer uma década e meia mais tarde, na Comunidade São Miguel Arcanjo, em Mato Grande, quando todos os filhos do casal já eram crescidos. O casamento religioso foi assumido pela Legião de Maria e dele participaram vários casais da comunidade que possuíam apenas união civil. Quando do “pedido de casamento de Malvina”, João Carlos se fez acompanhar de seu pai, Ricardo. Ricardo foi quem pediu para Antonio Manoel, em nome de João Carlos, a “mão de Malvina”. Mesmo que já se conhecessem há 10 anos, e que já tivessem combinado em namorar, a conversa entre os pais dos pretendentes é que oficializou o namoro. Ela ficara sabendo do interesse de João Carlos por sua pessoa através das futuras cunhadas Elenir e Santa. João Carlos costumava mandar recados por elas para Malvina. No dia do casamento chovia torrencialmente. Como a cerimônia acont eceu na cidade de Giruá, os noivos foram levados de Mato Grande, inicialmente, de caminhão, por Alcides Fiorin, testemunha de casamento por parte de Malvina. Porém, o carro caiu em um atoleiro e todos tiveram de tomar carona com outro morador de Mato Grande, Carlinhos Marques, para chegar até a cidade. No retorno, tomaram outra carona por oito quilômetros e caminharam no barro os quatro quilômetros restantes até a nova residência. Vestida de noiva, Malvina teve de segurar o vestido para não o sujar. Os convidados acompanharam os noivos caminhando pelo barro vermelho da estrada de terra que ia do Rincão dos Beltrame até a fazenda de Cláudio Pícoli, onde o novo casal iria residir. Por conta da irmã de João Carlos, Elenir, estar em período de luto, pois havia falecido um filho seu, Malvina não pode gozar de festa no seu casamento. Serviu-se

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apenas um almoço para as testemunhas, que eram também os donos de terras onde as famílias de ambos os noivos trabalhavam, Alcides Fiorin e Vilson Stasiak. No almoço, participaram também seus cunhados e cunhadas, também seus irmãos e o pai, mas não a mãe, por já encontrar-se cega à época. Os pratos servidos foram bastante simples, mas Malvina fez questão de deixar prontos, um dia antes, na casa da sogra, cinco pudins para a sobremesa, os quais foram muito concorridos, principalmente por Alcides Fiorin, que queria servir-se novamente, mas não foi atendido por medo de que a sobremesa fosse insuficiente. Na época, as famílias pobres não costumavam servir a famosa “torta de casamento”. Outra iguaria servida foi a “salada de batatas”, chamada por João Carlos de “salada de casamento”, uma leitura da conhecida maionese gaúcha.

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Segue a vida de famíl ia agregada Depois de casada, Malvina foi morar com o marido na casa dos sogros, Ricardo e Rosália, que eram agregados do fazendeiro Cláudio Pícoli. João Carlos, o filho mais velho de Ricardo e Rosália, era um rapaz muito trabalhador. Desde muito cedo auxiliava no sustento de sua família, tendo inclusive passado fome já que nem sempre o dinheiro conquistado com o trabalho era suficiente para manterem-se. Quando não havia trabalho na fazenda, a família de João Carlos, incluindo suas irmãs, trabalhava como diarista ou em empreitada na capina de lavouras ou no corte de lenha para a venda para a Viação Férrea. Aliás, a família viera de Santa Bárbara, região de Cruz Alta, RS, por conta dos trabalhos de desmatamento que existiam na localidade. Malvina conheceu o futuro marido quando viera morar em Mato Grande, na terra de Alcides Fiorin. À época, João Carlos estava com 13 anos e trabalhava com seu pai nas lenheiras. João Carlos, depois de casado, trabalhava na fazenda e nas propriedades próximas como diarista, nos serviços de plantio de grama, construção de cercas, domas e cuidado de animais, e Malvina passou a cuidar da pequena roça de milho e feijão, cultivada para suprir as necessidades de alimentação, e da criação de galinhas e porcos da família. Na casa dos sogros, a nora e a sogra dividiam o mesmo fogão, mas não a mesma panela. Rosália cozinhava para si, para seu marido, para suas filhas Elenir, Tereza, Carmelinda e para sua neta Angelina, filha de Santa. Malvina cozinhava para si mesma e para seu

marido. Após as refeições, cada uma lavava a sua louça. Dividiam, no entanto, a mesma cuia de chimarrão. Em 1966, na casa dos sogros, nasceu seu filho mais velho, Valdir José, no dia 22 de junho, dois dias antes de Malvina completar nove meses de casada. Valdir José fora concebido, possivelmente, na semana das núpcias.

Rosália Barbosa dos Santos Ramos e Ricardo Ramos. Arquivo familiar.

Logo depois, Malvina e João Carlos foram morar nas terras de João Cândido; após, nas terras de Ramão Wontroba, onde nascem Lori Luiz, em 1968, e Antonio Dari, em 1971. Em 1972 foram morar nas terras de Zeferino Antunes; no mesmo ano foram morar novamente com os pais de João Carlos, Ricardo e Rosália Ramos, agora numa pequena área de terra de propriedade da Viação Férrea, situada entre os trilhos do trem e a estrada geral que liga o distrito de Mato Grande à cidade de Giruá, no Rincão dos Beltrame. Em seguida, a família se deslocou para as terras de Avelino Machado, no Rincão Cascavel, onde, em 1973, nasceu o quarto filho, Carlos Alberto. Em 1974 foram morar nas terras de Ladislau Kwiatkowski, no Rincão Santa Cruz. Poucos meses depois, retornaram para a casa de Ricardo e Rosália Ra-

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mos. No mesmo ano de 1974, no dia 08 de dezembro, João Carlos sofreu um grave acidente quando amansava (domava) um cavalo, e permaneceu adoentado, por conta disso, até sua morte em 24 de maio de 2005. Foram 31 anos nos quais João Carlos alternava períodos de melhora na saúde com períodos de grande enfermidade. Muito religiosa, Malvina acredita que a data de 08 de dezembro, um feriado religioso, não era propícia para o trabalho, mas João Carlos e seu pai Ricardo não deram importância para ela. Com isso encontra alguma explicação para a desgraça do marido. Ademais, nos momentos de grande dificuldade financeira, para aumentar os rendimentos da família, João Carlos costumava trabalhar em dias de guarda. Malvina sempre se opunha a essa prática. Por conta da falta de espaço e dos desentendimentos com a família de João Carlos, em 1975 Malvina levou sua família para residir no galpão da casa de seus pais, Antonio Manoel e Maria Eponina, então agregados de Alcides Fiorin. Em 1977, mudou-se com a família para uma casa de propriedade de Miguelão, na Vila de Mato Grande. Em 1978, mudou a residência para o fundo da mesma propriedade. João Carlos queria mudar-se para Santo Ângelo ou para São Miguel das Missões, mas Malvina se indispôs com a ideia e ele desistiu do intento. Em 1984, com a venda da terra para outro proprietário, Miguelão doou à família Sortica Ramos um terreno na Avenida Giruá, na mesma vila de Mato Grande. Com a doação da madeira feita pela família de Amauri Squinzani, uma pequena casa foi construída, e a família mudou-se para o novo local em 1985, lugar aonde Malvina ainda reside, porém numa outra casa, mais confortável, construída em 2003. A primeira casa erguida no local era inicialmente toda de chão batido. Com o tempo, por conta da umidade do terreno, Malvina conseguiu tábu-

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as na Secretaria de Promoção Humana do município de Giruá, vindo a colocar assoalho nela. De todos os locais onde morou, Malvina fala com muito sentimento da casa de seus sogros, entre a estrada de ferro e a estrada geral de terra. Além da poeira constante, do perigo do trem, havia o incômodo dos filhos não poderem brincar à vontade, pois sua sogra e cunhadas não o deixavam. O pouco que conseguia comprar com o fruto de seu trabalho era consumido pelos moradores da casa, ficando seus filhos sem o necessário para alimentarem-se. A situação de sofrimento fora agravada pelo acidente do marido que, internado por um longo período nos hospitais da região, passou por um coma profundo e ficou impossibilitado de trabalhar por um longuíssimo período, tendo inclusive sido aposentado por invalidez por conta do acidente. No momento do acidente, Malvina atendia os filhos em casa e o marido no hospital. Sem recursos, amamentava seu filho mais novo, Carlos Alberto, na madrugada de um dia, caminhava seis quilômetros até a cidade de Giruá, tomava o ônibus até Santo Ângelo, cuidava de João Carlos até o próximo dia, retornava à Giruá no entardecer, caminhava de volta os seis quilômetros, e somente aí amamentava novamente seu filho. Teve de fazer o trajeto algumas vezes na escuridão da noite, sem qualquer instrumento de iluminação ou de orientação. A fé a movia. No hospital, ficava dependente do alimento dado aos convalescentes, pois não tinha dinheiro para fazer refeição completa. O único recurso que Malvina dispunha era duzentos cruzeiros que foram doados a ela por Alcides Fiorin, a quem ela é bastante grata, e que usou para pagar as passagens do ônibus e as pequenas compras de alimentos para os filhos. Quando João Carlos retornou para casa, por um bom tempo Malvina tinha de segurá-lo para que ele pudesse caminhar.

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O símbolo que sintetizava todo o sofrimento de Malvina no momento da convalescência de João Carlos era o barulho de um avião utilizado para aplicar inseticida numa lavoura de soja que ficava localizada ao lado da casa. O avião dava a volta por sobre seu lar quando em atividade. Malvina refere a tristeza que sentia por se ver impotente, sem trabalho e com o marido doente. Percebendo o sofrimento da filha é que Antonio Manoel a chamou para morar consigo. Outra lembrança que Malvina guarda das repetidas mudanças de residência era o abandono das pequenas roças. Por ser ela a principal responsável por cultiválas, quando o marido resolvia buscar outro sítio, sentia que seu trabalho havia sido em vão. Lembra que quando se mudaram das terras de Avelino Machado, teve de abandonar uma lavoura de amendoim ainda verde. Esse incômodo a fez, quando os filhos já estavam crescidos e estudando na escola pública de Mato Grande, a contrapor-se ao marido em ir morar na cidade. Com isso, a família fincou raízes em definitivo na vila de Mato Grande. Foram doze as mudanças de residência em 20 anos de casada! Malvina não consegue explicar os motivos para muitas delas, pois geralmente era João Carlos quem decidia sobre a abandonar os lugares. Diz ela: “teu pai virava a cabeça e a gente tinha de se mudar”. Isso quer dizer que, em 40 anos, ela mudou de residência dezoito vezes, somando-se as mudanças que fez junto de seus pais! Outras famílias do lugar também procediam a esta intensa mobilidade, constituindo-se ela num ethos das famílias mestiças pobres. Com exceção de três locais nos quais residiram, nos outros já havia alguma casa pronta que era disponibilizada para a família. Nas terras de Ramão Wontroba e nos dois últimos locais de morada, João Carlos construiu casas simples de madeira, com esteios cravados direta-

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mente na terra, cobertas com telhas de barro e com piso de chão-batido, sem energia elétrica. A última casa, construída em 2003, é de todas a mais confortável, pois possui banheiro interno, água tratada, energia elétrica, eletrodomésticos. Enfim, é um espaço conquistado por Malvina através do auxílio dos filhos, do recurso da aposentadoria, da pensão deixada pelo marido e das políticas públicas de inclusão da última década no Brasil. Comparando a atual casa com as outras nas quais morou, Malvina pensa nas precárias condições de muitas delas. Como eram casas nas quais residiam por pouco tempo, e muitas delas já estavam construídas e eram de propriedade do dono da terra, não havia nem tempo e nem dinheiro para melhorá-las. Numa ocasião, quando moravam nas terras de Zeferino Antunes, numa pequeníssima casa, sem assoalho, próxima a uma mata e a um pântano, à noite, Malvina foi fazer a costumeira revisão embaixo das camas, usando como fonte de iluminação um pequeno lampião de óleo diesel, já que os gatos costumavam fazer suas necessidades nesses lugares. Ao agachar-se, Malvina avistou uma cobra coral rastejando embaixo dos móveis. Como o quarto era extremamente pequeno, e nele estavam duas camas separadas por um vão de aproximadamente meio metro, e como os filhos já estavam dormindo, Malvina passou-os para sua cama, posicionando-se com um pé em cada uma delas. Ela jogou alho embaixo dos leitos com a finalidade de espantar a cobra e, com uma pequena madeira, um cabo de machado, quando a serpente passou pelo vão entre as camas, esmagou-lhe a cabeça. Malvina diz que tinha de buscar coragem para poder enfrentar o dia-a-dia, mesmo não a tendo. Outra lembrança incômoda que Malvina guarda é a de ter de cobrir os móveis para protegê-los da chuva. Como as casas, com exceção da última, não possuíam

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forração, quando chovia, sempre acontecia de molhar os móveis, de cama a fogão, pois dentro dela formava-se uma espécie de neblina. Por isso, Malvina sempre conservava plásticos à mão para usar nessas ocasiões. Outros momentos difíceis aconteciam no inverno rigoroso do Sul do País. Como as casas não eram bem vedadas, o vento frio, conhecido como minuano, invadia seu interior e congelava seus moradores. Malvina metia pano nas frestas das paredes para diminuir o frio no interior das casas. A precariedade das moradias se fazia perceber ainda nos momentos de tempestade. Para sentir-se segura, e com a finalidade de acalmar o tempo, Malvina conservava folhas de palmas benzidas na Igreja no Domingo de Ramos, as quais eram queimadas nesses momentos. Nessas ocasiões, ela reunia perto de si os filhos e juntos rezavam alguma oração pedindo a proteção divina.

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Tornar-se mãe Quando o assunto é a maternidade, Malvina lembra de várias histórias ligadas aos seus quatro filhos, todos nascidos em casa e sem acompanhamento pré-natal. A única vez que procurou um médico durante a gravidez foi quando, aos sete meses da gestação de Antonio Dari, levantou meia saca de trigo (30 quilogramas) e teve ameaça de parto. Durante a gravidez, Malvina não diminuía o ritmo de trabalho pesado, como carregar água, já que geralmente o líquido consumido pela família era retirado de poço artesanal ou de vertente (nascente, mina). Mesmo grávida, tinha também de cortar lenha com machado. De Valdir José, nascido em 1966, Malvina recorda que quem lhe assistiu no parto foi sua sogra Rosália, já que residia na casa dela. Algo que Malvina não esquece é de um episódio acontecido no período da gravidez. Sua cunhada Elenir estava fritando bolos e, como as cozinhas eram juntas, mas separadas, como dissemos, esta não lhe ofereceu o alimento. Mesmo desejando muito comer algum dos bonitos bolos que estavam sendo fritos, Malvina não o pediu para a cunhada. O fato de Valdir José ter nascido com uma marca na testa é atribuído por Malvina ao desejo não realizado. Do nascimento de Lori Luiz, em 1969, recorda do sufoco que passou por encontrar-se sozinha. Como João Carlos havia saído de casa no início da manhã para trabalhar na capina da roça, Malvina, grávida de nove meses, ficou tomando café para logo em seguida juntar-se a ele no trabalho. No entanto, ela sentiu as dores do parto, deitou-se na cama e o filho nasceu. Seu marido não vol-

tou para ver o que acontecia. Por desconhecer a forma de romper o cordão umbilical, Lori Luiz ficou ligado à placenta até o meio dia, por mais de três horas, quando João Carlos retornou da roça. Malvina enrolou Lori Luiz num pano, vestiu nele uma camisa e uma toca na cabeça para “não tomar frio na moleira” e lhe deu uma chupeta. A criança parecia muito tranquila, segundo Malvina.

Valdir José com quatro anos e Lori Luiz com um ano e meio de idade. Arquivo familiar

Quando João Carlos chegou em casa, foi chamar sua mãe para atender a esposa. Foi nesse momento em que Rosália ensinou à nora a como proceder para cortar o cordão umbilical: colocando-o por entre os dedos, aparando-o a uma distância de quatro dedos e amarrandolhe a ponta. Após o atendimento, Malvina e o filho permaneceram em casa, não tendo ido procurar qualquer assistência médica.

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De Lori Luiz, Malvina lembra também que parecia não “possuir osso na cabeça”. Por a “moleira ser muito aberta e demorar muito a fechar”, ela punha uma meia preta na cabeça do filho como simpatia para resolver o problema e para que o menino não ficasse com a “cabeça chata”. Quando nasceu o terceiro filho, Antonio Dari, dois anos e dois meses depois do nascimento de Lori Luiz (Valdir José estava com quatro anos e sete meses), em 1971, a surpresa se deu em relação ao tamanho e peso do recém-nascido. Muito pequeno, pesava apenas 1,5 quilograma. No parto, quando Malvina começou a sentir as dores características, o marido foi logo chamar a parteira Vidalvina dos Santos, sogra de sua cunhada Elenir. Quando ela chegou, o menino já havia nascido. Em conversa com sua mãe, Maria Eponina, Malvina expressou preocupação com o não desenvolvimento do filho. Como ele “dormia e mamava bem”, planejou levá-lo ao médico quando completasse um mês de idade. Uma vez que “começou” a crescer rapidamente após os trinta dias, acabou desistindo de levá-lo ao posto de saúde. Para provar o tamanho minúsculo do filho, ela guarda a roupa, mostrada adiante, que utilizou no recém-nascido. Quando do nascimento do último filho, Carlos Alberto, dois anos e cinco meses depois, Malvina, então com trinta e oito anos, foi atendida por Delmíria Machado, que não tinha nenhuma experiência no acompanhamento de partos. Por isso, Malvina a orientou a como proceder para cortar o cordão umbilical. Embora a intensidade de todos os relatos, uma das maiores lembranças de Malvina se voltam, no entanto, para o período da gravidez de Carlos Alberto. Por estar com desejo de comer sardinha com polenta (nas quatro gestações pelas quais passou, este é o segundo e último

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desejo que teve), solicitou que o marido comprasse o peixe enlatado na cidade, já que ele iria fazer as compras para o mês. Enquanto esperava o marido chegar, Malvina adiantou-se cozinhando a polenta. Quando ele chegou, à noite, não trouxe consigo as compras, dizendo que as havia deixado no caminhão do vizinho com o qual havia tomado carona. João Carlos disse à esposa que fosse buscar os alimentos no dia seguinte. Ainda com o desejo de comer a sardinha, no outro dia ela foi à casa do vizinho e não os encontrou, pois haviam sido roubados possivelmente ainda na cidade, se é que o marido os havia de fato adquirido. Por vezes, ele gastava o dinheiro divertindo-se.

Roupa de recém-nascido de Carlos Alberto (E) e de Antonio Dari (D). Arquivo familiar.

Após o nascimento de Carlos Alberto, Malvina optou por tomar anticoncepcional, pois estava satisfeita com o número de filhos que havia concebido. No entanto, após dois meses, devido às complicações causadas pelo medicamento, decidiu por interromper o uso, pensando que “se fosse para engravidar, então que engravidasse”. Logo desenvolveu problemas no aparelho reprodutor, sofrendo com constantes dores e sangramentos por cinco anos. Quando da celebração da Primeira Eucaristia de Antonio Dari, ela participou da cerimônia acometida de um seve-

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ro sangramento. A seguir, ela foi hospitalizada e, com 43 anos de idade, teve o útero e os ovários extirpados. Como não havia posto de saúde na vila de Mato Grande para aplicar-lhe curativos na cirurgia, tinha de ir à cidade para ser atendida, geralmente de carona.

Antonio Dari com quatro anos e Carlos Alberto com um ano e meio de idade. Arquivo familiar.

Malvina conservava o costume de levar consigo os filhos pequenos quando visitava alguém, ou quando ia trabalhar na roça. Na roça, quando eles já conseguiam parar em pé, Malvina os colocava em um pequeno cercado de madeira, em forma de caixa, à sombra, para que pudesse trabalhar. No caso do filho mais velho, Valdir José, tinha de levar também um pedaço de tecido para forrar a caixa para evitar que ele comesse terra. Malvina trabalhava tranquila porque os cachorros os

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cuidavam. Ela fala de um cachorro policial, o Patrulha, e de uma pequena cachorra, a Elite, que eram muito atenciosos com as duas crianças mais velhas, não permitindo que nenhum outro bicho ou pessoa se aproximassem delas. Os filhos mais novos foram cuidados pelo filho mais velho. A educação dos filhos incluía longas conversas com eles, mas também a dedicação para lhes agradar com afagos e também com a elaboração de pequenos mimos com os quais marcava os momentos importantes de suas vidas, como os aniversários e as festas religiosas. Como a família não tinha condições de adquirir doces para presentear as crianças no tempo da Páscoa, Malvina produzia pequenas cestas para os filhos, composta por balas e cascas de ovo de galinha que ela mesma enfeitava e enchia com “carapinha” (amendoim com açúcar). Era o que os filhos chamavam de “casquinhas de Páscoa”. Com bastante antecedência, Malvina guardava as cascas dos ovos que utilizava na cozinha, fazendo apenas um furo em uma das pontas para tirar de dentro deles a clara e a gema. Depois, comprava uma pequena porção de tela (tipo véu) e tintas para tingir tecido. Ela tomava da natureza flores e folhas e as comprimia contra a casca de ovo com o tecido, amarrando-o para que não houvesse deslocamento. A seguir, mergulhava a casca na tintura e deixava secar. Depois de secas, as cascas ficavam pintadas com folhas e flores. Para surpreender os filhos, ela fazia todo o trabalho secretamente. Na virada do sábado para o domingo de Páscoa, colocava o presente sob as camas dos meninos. A simplicidade e a carga de sentimentos com as quais compunha as singelas cestas eram emocionantes. Por falar no tempo pascal, Malvina era bastante rígida no cumprimento dos preceitos religiosos, de forma que proibia todo e qualquer trabalho nos três últimos dias da Semana Santa, os quais eram dedicados às

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atividades que aconteciam na Igreja Católica. O único trabalho que era permitido realizar era o de alimentar os animais e o de carregar água da fonte. Cortar lenha ou trabalhar na roça eram tarefas que deviam de ser feitas até a Quarta-Feira Santa. Elas voltavam a ser realizadas somente na segunda-feira após a Páscoa. Exceção acontecia no amanhecer da Sexta-Feira Santa, antes de o sol nascer, quando se saía para colher a macela que seria utilizada como chá durante o ano todo. A guarda da Semana Santa era tão respeitada que inclusive as traquinagens dos filhos não eram punidas nesse período. Algum eventual deslize somente teria o acerto de contas no Sábado de Aleluia, tanto é que se utilizava a expressão “tirar a aleluia” no sentido de punição, de surra. Ainda ligada à maternidade, os filhos recordam-se (com isso cruzando suas memórias com as memórias da mãe) das brincadeiras que ela realizava com eles. Além das sempre presentes “charadas”, do “purungo” ou sabugo e palha de milho que viravam brinquedos, quando ia à roça com o filho mais novo, Carlos Alberto, competia corrida com ele. Malvina garante que o filho não conseguia vencê-la na corrida até os doze anos, quando ela já tinha cinquenta anos. Isso demonstra, também, o vigor físico que Malvina mantém ao longo da vida. Para atender os filhos nas doenças, Malvina conservava um verdadeiro complexo de plantas medicinais e aromáticas, com as quais elaborava chás e infusões. Se um estava com febre, lá vinha Malvina com chá de aipo, acompanhado do cuidado para que não se molhasse ou tomasse frio por ele ser “chá quente’; se doía um dente, Malvina usava malva para tratar da infecção; se doía a cabeça, entrava em cena a arruda, tomada como chá ou colocada, num pequeno ramo, atrás da orelha; para combater os sintomas da gripe, usava guaco, agrião, mel, alho e limão. Enfim, dificilmente Malvina não sabia que remédio utilizar quando alguém da família adoecia.

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O tratamento da saúde familiar envolvia também a consulta aos benzedores da região. Em último caso, ou dependendo do tipo de doença, ela procurava atendimento médico, inicialmente através do Sindicato de Trabalhadores Rurais, órgão que chancelava a participação dos trabalhadores pobres do campo no INAMPS, e depois diretamente no posto de saúde, com o Sistema Único de Saúde, o SUS.

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O sustento material da famíl ia Ao longo de toda a vida, Malvina participou ativamente da produção do sust ento material da família. Quando as pequenas roças para a produção de comida (milho, feijão, arroz, batata, mandioca, abóbora) e a horta ficavam próximas da residência, Malvina trabalhava nelas algumas horas na manhã, retornava para preparar o alimento, lavar e passar as roupas do marido e dos quatro filhos, lavar as louças, arrumar a casa, e à tarde novamente voltava ao trabalho fora de casa. As roças utilizadas pela família eram localizadas nas encostas de matas, em terrenos pedregosos e em pântanos onde as máquinas agrícolas não acessavam, e por isso eram cedidas à família por seus donos para o cultivo de plantas alimentares. No entanto, quando a terra cedida já era cultivada pelos proprietários, geralmente eles autorizavam o plantio mediante a limpeza do espaço, cobrando a terça parte da produção. Outro espaço de cultivo eram as curvas de nível das lavouras, onde eram plantados milho pipoca e batata. Devido à mudança na forma de nivelamento do terreno, com a inserção das “base-largas” para a maximização do aproveitamento da terra, no final da década de 1980, esse costume teve de ser abandonado. Outra maneira de conseguir o sustento da família era através do plantio de soja, uma febre regional nos anos de 1980, só que em meio à plantação de milho dos vizinhos. O milho era de propriedade do dono da terra, mas a soja era dividida com a família meeira. Nesses casos, o processo de cultivo era o seguinte: o dono da terra plantava o milho. Quando o milho já estava nascido, se

o terreno desenvolvesse o crescimento de ervas daninhas, utilizava-se a capina com arado de tração equina para limpá-lo. Após, plantava-se a soja com máquina manual tipo “pica-pau”. Dava-se de uma a duas capinas com enxada para limpar a plantação e colhia-se a soja com o uso de foice. Juntava-se a soja em grandes montes e trilhava-se com a máquina do dono da terra. Malvina participava de todo o processo de cultivo da soja, menos da venda, que era feita diretamente por João Carlos. Malvina não ficava sabendo do valor aferido, tampouco da sobra ou não de recursos anuais. Ela se calava por longos períodos sobre o assunto, porém, quando se sentia lesada em demasia, enfrentava João Carlos, dizendo-lhe que tinha de trabalhar para comprar “suas coisas”, além de gastar-se na roça para produzir bens dos quais nem sempre disfrutava. Seu marido calava e, por vezes, com a intenção de desculpar-se, trazia-lhe algum presente posteriormente. Abrimos um parêntese para mostrar que a família comprava os gêneros alimentícios na venda da Vila, chamada de bolicho, e que seu dono ia anotando numa caderneta as compras ao longo do mês. Como nem sempre era possível quitá-la mensalmente, o acerto final era feito ou através da venda da soja ainda verde, ou após a colheita. Ademais, João Carlos, embora a doença causada pelo acidente antes referido, usava parte dos recursos conseguidos com o seu trabalho e com o trabalho da família para tomar sua costumeira cerveja, quando ia à cidade, e para comprar cigarros. Ele fumava uma carteira de cigarros por dia. Pairava ainda sobre a conduta de João Carlos a desconfiança de que gastava os recursos da família com pessoas de fora do seu círculo. Outra forma de os Sortica Ramos conseguirem recursos para seu sustento era através do contrato de trabalho por diárias ou por empreitada nas proprieda-

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des agrícolas da região, principalmente na construção de cercas ou na capina. Trabalhos manuais de capina para a limpeza da lavoura foram uma constante até o início da década de 1990, quando a mecanização da agricultura e o uso de agrotóxicos foram universalizados e a enxada abandonada. Malvina igualmente participava desses trabalhos, alternando-os com as lides da casa, com eventuais trabalhos de empregada doméstica e com a produção de alimentos. Por fim, há que se salientar o esforço que Malvina fazia para que seus filhos estudassem. Como a família vivia constantemente em mudança, e por inexistir educandários próximos dos locais de morada, o filho mais velho, Valdir José, somente ingressou na escola com nove anos, permanecendo nela até os treze anos, tendo concluído somente a antiga quarta série do primeiro grau. Mesmo com a insistência de Malvina e dos professores, Valdir negou-se a continuar os estudos para fugir dos constantes problemas que enfrentava por estar fora da faixa etária de sua classe e para poder auxiliar nos trabalhos de casa. João Carlos, analfabeto, não nutria grande estima pela escolarização e insistia que o filho lhe acompanhasse no trabalho desde a tenra idade. Quando pequeno, com sete anos, o menino acompanhava o pai nos acampamentos que mantinha longe de casa para o cultivo de roças e para o trabalho de empreitada, ficando “hospedado” dentro de uma carroça, sujeito aos rigores do tempo do Sul do País. Valdir José, já adolescente, era quem levava, de bicicleta, laranjas à cidade para que João Carlos as vendesse. Mais tarde, quando Valdir José estava com quinze anos, acabou fugindo de casa e indo morar com sua tia Rosa, no município de Santo Ângelo, por dois anos, por discordar das posturas de seu pai. Esse fato, por ser traumático, Malvina o apagou completamente da memória

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por um tempo, tendo sido relembrado no momento da escrita deste livro. O segundo filho, Lori Luiz, ingressou na escola com seis anos, antes mesmo de seu irmão mais velho, pois foi morar na casa dos avós Antonio Manoel e Maria Eponina para poder ficar mais próximo da escola. Ele cursou até a sétima série do antigo Ensino Fundamental, tendo, depois de adulto, finalizado o Ensino Médio. Similar ao irmão mais velho, Lori Luiz deixou a escola para trabalhar. Ele estava com quinze anos à época. No entanto, saiu por vontade própria, pensando em ganhar seu próprio dinheiro. Para isso, foi trabalhar de empregado em uma grande “granja” (fazenda), manuseando máquinas e equipamentos, um sonho seu na época. Como passou a morar no trabalho, a roupa suja trazia nos finais de semana para que Malvina a lavasse. O filho mais novo, Carlos Alberto, por a família residir na vila de Mato Grande, estudou até a oitava série. Para que continuasse os estudos, no entanto, devia mudar-se para a cidade, ideia que não agradava a João Carlos. Carlos Alberto acabou desistindo de continuar os estudos por conta disso. O terceiro filho, Antonio Dari, por ter se tornado seminarista, foi o que mais estudou, tendo sido o primeiro e único, até o momento, dos vinte e quatro netos de Antonio Manoel e de Maria Eponina, como também de Ricardo e de Rosália, a chegar ao Ensino Superior. Como candidato ao sacerdócio, cursou, em sistema de internato, o Ensino Médio, a Licenciatura em Filosofia e parte do curso de Teologia. Após desistir da carreira eclesiástica, cursou História, alcançando o Mestrado e o Doutorado nessa área do conhecimento. Até então, Malvina desconhecia a existência de “doutorado” fora da área médica ou do direito.

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Para a formação dos filhos, embora nem todos tenham frequentado a escola na medida do esperado por Malvina, que sempre os incentivou ao estudo, a progenitora desdobrava-se em outro trabalho remunerado, o de doméstica nas casas de famílias que quiçá necessitassem de seus trabalhos ou na limpeza da capela de Mato Grande. O pouco de recurso que conseguia com esses trabalhos era utilizado para comprar material escolar, calçados e roupas para os filhos estudarem. Com relação ao trabalho de doméstica, o sonho de Malvina, expresso em muitas ocasiões, era o de limpar, um dia, sua própria casa. Dizia ela: “um dia hei de limpar a minha própria casa e não somente a casa dos outros”. Com isso, queria dizer que as casas que morava não eram verdadeiramente casas, mas habitações precárias com as quais não estava satisfeita, e que limpava tantas vezes as casas dos outros, mas que não tinha o direito de limpar sua própria casa, por não a possuir. Malvina também auxiliava no sustento da família cuidando de pequenos animais e da horta e pomar que sempre cultivou. Era ela quem cuidava mais diretamente dos animais domésticos, como de gatos, cachorros, galinhas e porcos, alimentando-os. Com relação à criação de galinhas, desde sempre ela controla a época certa para colocá-las a “chocar”, pois, se puser na lua errada, os pintos terão dificuldade de sair de dentro do ovo, tendo de auxiliá-los a romper a membrana interna localizada próxima à casca. Ela escolhe as galinhas maiores e mais mansas para colocá-las em choco. O mesmo nível de cuidado tem também com os ovos que são utilizados. Ela os marca com carvão, traçando sobre eles um “x”, com duas finalidades: para saber se alguma outra galinha põe seus ovos no ninho, causando confusão no período de 22 dias necessários para descascar os pintinhos; e para protegê-los da ação nociva dos

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trovões, considerados por ela como uma das causas do “goro” dos ovos (quando o pinto não se forma e o ovo é perdido). Para evitar a diminuição da qualidade do plantel de galinhas, ela escolhe sempre o melhor galo para o terreiro, trocando-o de tempos em tempos, negociando algum animal com os vizinhos ou separando o frango maior e mais bonito para cumprir a função de progenitor. Com relação aos porcos, Malvina sempre se ocupava deles. No entanto, deixou de criá-los há mais de quinze anos por conta de ter abandonado o plantio do milho em escala maior do que a da horticultura, algo necessário para a sua alimentação. O motivo de continuar criando galinhas tem a ver com a praticidade de colher ovos frescos e de boa qualidade todos os dias, de poder contar com a carne de aves no momento que deseja, além de a carne das galinhas que cria ser de melhor qualidade se comparada com a que compra no mercado, por ser mais “firme e gostosa”, como diz. O modo de Malvina abater a galinha, dito por ela “carnear a galinha”, é bastante diferente do convencional. Ela puxa-lhe o pescoço, pendurando-a em seguida para que o sangue possa acumular-se próximo à cabeça da ave e ser transformado, posteriormente, numa pequena “morcilha”. Após depená-la com água quente, queimar as penugens, abrindo parte da chapa do fogão a lenha ou fazendo um fogo com palha de milho, abre a ave nas costas, martelando sobre ela uma faca para romper os ossos, e retira-lhes as vísceras. Os filhos, quando crianças, acompanhavam atentamente todo o processo. Quando todos ainda moravam em casa, Malvina dividia o animal em 18 pedaços, três para cada pessoa. O seu pedaço corriqueiro era a costela da galinha, segundo ela porque possui carne mais saborosa. O pedaço de João Carlos era o peito.

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Quando “carneava” porcos, era João Carlos, inicialmente, e depois o filho mais novo, Carlos Alberto, quem sangrava o animal. Malvina sempre aparava o sangue para fazer morcilha (chouriço). Nela eram misturados os miúdos do porco, a carne da cabeça e parte do couro do animal. Com muito tempero verde, ela fazia também morcilha branca, sem sangue. Por não ter geladeira, parte da morcilha, junto com parte da carne, era doada aos vizinhos e compadres como forma de manter as boas relações e de garantir o retorno de algum pedaço de carne fresca futuramente. Nos momentos de “carneada” de porco, Malvina também assumia a função de limpar as tripas do animal para servir de recipiente para encher a morcilha e, quiçá, algum salame. Esse mesmo trabalho ela assumia também quando era chamada por sua comadre Sueli Squinzani para ajudar no abate de algum animal. Era função de Malvina, também, o cozimento da banha. Chama a atenção também o lugar onde Malvina sempre conservava (e ainda conserva) o couro de porco e o salame: pendurados a uma boa distância do fogão a lenha. Ali a defumação acontece sem pressa e naturalmente. O couro, depois de bem seco, é usado como tempero no feijão. Adepta da educação pelo diálogo, Malvina sempre tinha uma história para ilustrar o que ensinava para os filhos. Para que não cortassem o pão ainda quente, por exemplo, contava a história de alguém que comera pão sem esfriar e que o alimento, por isso, lhe “fizera mal”. Na verdade, não queria que os filhos comessem todo o pão fora do momento do café ou do lanche da tarde. Somente depois de idosa é que ela admitiu ter utilizado a estratégia para coibir qualquer tentativa dos filhos em cortar e comer todo o pão ainda quente. Isso ilustra o cuidado que sempre teve na administração do

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alimento para que não faltasse à mesa. Ademais, essa era a preocupação presente em cada refeição, pois o alimento, embora nunca tenha faltado, em grande parte devido ao seu empenho e criatividade, era sempre escasso. Ainda com relação ao pão, na década de 1980, comê-lo “misturado” era o símbolo das dificuldades financeiras pelas quais passava a família. Para baratear o custo do alimento, Malvina misturava farinha de milho à farinha de trigo, resultando no pão misturado. Tanto o milho quanto o trigo consumidos pela família, da mesma forma que o arroz, eram plantados nas terras cedidas pelos proprietários locais, e beneficiados no moinho de propriedade de Miguelão que existia em Mato Grande. Havia duas formas de pagar o trabalho de moagem ou descascamento dos grãos: deixando para o administrador do moinho um percentual do alimento ou pagando o serviço em dinheiro. Geralmente, optavase pela primeira possibilidade já que nem sempre a família possuía dinheiro em espécie para pagá-lo. Para conservar de um ano para outro os alimentos colhidos, Malvina utilizava algumas técnicas naturais. O feijão, por exemplo, era guardado numa tulha com o pó característico, chamado de “munha”, formado pela moagem das vagens e folhas após ser debulhado a manguá. Com isso, ele não carunchava. A tulha era necessária para evitar a ação de roedores; a cebola e o alho eram guardados dependurados em forma de tranças, as chamadas réstias. Malvina os colhia quando maduros (quando o caule secava) e depois trançava as palhas. Com essa técnica, o alho e a cebola conservavam-se por meses depois de colhidos.

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A vida social e o compadrio Como agregada, a família buscava estabelecer boas relações com os donos da terra e com as pessoas que moravam próximas, e o compadrio era uma das maneiras de reconhecimento dessas boas relações. Ser chamado para apadrinhar alguma criança era motivo de grande prestígio. Da mesma forma, convidar vizinhos ou parentes para batizar ou crismar os filhos era uma forma de valorizar a amizade e a confiança existente. Por exemplo, Angelina, irmã de Malvina, foi batizada pelo casal José Maria e Francelina, donos da terra onde a família residira. Os filhos de Malvina, por sua vez, foram batizados por pessoas bastante próximas, inclusive da própria família. Valdir José foi batizado em casa pelos avós paternos Ricardo e Rosália, donos da casa onde moravam, e pela tia Elenir, irmã de João Carlos; na igreja, foi batizado pelos tios maternos Angelina e Alvarino. Lori Luís foi batizado em casa pelo avô materno, Antonio Manoel, e pela tia paterna Tereza; na igreja, seus padrinhos foram o dono da terra onde a família residia no momento, Ramão Wontroba, e novamente a tia paterna Tereza. Antonio Dari, por sua vez, foi batizado em casa pela tia paterna Tereza e por seu esposo Adolfo; na Igreja, foi batizado por Alcides e Maria Fiorin, na época donos da terra onde tinham residência Antonio Manoel e Maria Eponina. Eles eram também patrões esporádicos de Malvina. Carlos Alberto foi batizado em casa por Otávio e Belmíria Machado, e na igreja por Neri e Odila Machado, filhos de Avelino Machado, dono da terra onde, à época, a família residia, no Rincão Cascavel.

Dois aspectos se salientam no batismo das crianças. Primeiro, o costume de batizar em casa, através de cerimônia simples acontecida logo após o nascimento, geralmente por alguém da família. A grande incidência de morte de recém-nascidos levava à pressa no batismo de crianças. O segundo aspecto é o convite feito aos donos da terra de quem a família era agregada para que fossem padrinhos dos filhos. Interessante notar que, nesses casos, a família menos abastada convidava padrinhos com melhores condições financeiras. O contrário não acontecia. Em todo caso, o batizado das crianças levava a que boa parte dos irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas de Malvina fosse tratada por compadre, comadre, embora isso não acontecesse com seu pai, Antonio Manoel, que até a velhice era chamado por Malvina carinhosamente de papai. Maria Eponina também era chamada de mamãe por Malvina. A mesma regra do bom relacionamento era válida para o apadrinhamento por motivos do Crisma. No entanto, eram os filhos, já adolescentes, que escolhiam os padrinhos. Os meninos já prestavam trabalhos aos futuros padrinhos no momento do convite ou frequentavam suas casas por conta da amizade com seus filhos. Valdir José foi crismado por Amauri Squinzani, filho de José Squinzani. Pai e filho disponibilizavam terras para a família de Malvina plantar suas pequenas roças e os milharais para o cultivo da soja. Amauri Squinzani também doou a madeira para a construção da casa no terreno doado por Miguelão, como já dito; Lori Luiz foi crismado por José Lídio Cadore, outro colono com o qual a família mantinha intensas relações, principalmente com o empréstimo de trator para trazer lenha para o consumo doméstico. Lori Luiz era amicíssimo dos filhos de Lídio; Antonio Dari foi crismado por Neri Fontana, colono e dono de um açougue no qual João Carlos auxiliava nos finais de semana; Carlos Alberto foi crismado por Antonio Fiorin, filho de

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Alcides Fiorin. Era costume o padrinho, além de acompanhar o crismando, fornecer a roupa que o afilhado usaria na cerimônia do Crisma, daí o destaque para a escolha de pessoas com as quais existissem boas relações de amizade, que fossem religiosamente exemplares, mas que também pudessem viabilizar materialmente a participação no sacramento católico. Após o Batismo ou o Crisma, os afilhados passavam a pedir “bênção” (dito benção e não bênção) aos padrinhos. O mesmo costume de pedir e dar “benção” havia entre filhos e pais, sobrinhos e tios, netos e avós. Pedir “benção” era chamado de “dar louvado”. Às vezes os pais mandavam os filhos “dar louvado” para os parentes que chegavam ou se despediam. Destaque se dá à proximidade que Malvina Sortica mantinha com a família Fiorin. Alcides Fiorin, quando se acertou com Antonio Manoel para trabalharem juntos em suas terras, em 1953, construiu um galpão para onde a família mudou-se. O próprio Alcides Fiorin e sua família moraram um tempo no referido galpão, junto da família Sortica, enquanto construíam sua casa. Antonio Manoel e Maria Eponina residiram nas terras de Alcides Fiorin por 35 anos, mesmo depois de idosos. Inclusive Maria Eponina auxiliou Maria Fiorin no parto da maioria de seus filhos, motivo pelo qual esta expressava grande gratidão por Punica em diversos momentos. Foi na casa da família Fiorin que Malvina prestou serviço em diversas ocasiões, seja como doméstica, cuidadora das crianças ou da residência quando esta viajava. A presença da família Fiorin foi igualmente marcante quando Antonio Dari, com quatorze anos, decidiu ingressar no Seminário, por influência do então seminarista Léo Paulo Fiorin, filho de Alcides e Maria Fiorin, o qual viria a ordenar-se sacerdote. Como a família não apresentava condições para a montagem do enxoval para

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o ingresso na casa de formação católica, Alcides e Maria adquiriram as roupas necessárias, seja as de uso pessoal ou de cama, além de pagarem dois salários mínimos referentes à pensão seminarística anual no primeiro ano de formação do novo seminarista. Nos demais anos do Ensino Médio, Antonio Dari trabalhava parte das férias escolares na fazenda do Seminário para pagar a pensão. No restante das férias, trabalhava na lavoura de seu padrinho Alcides Fiorin para auxiliar na compra de roupas e materiais escolares a serem utilizados no ano vindouro no Seminário. Malvina também economizava seu pouco recurso para passar para o filho poder estudar. Para além das relações estabelecidas com os donos das terras utilizadas para a moradia ou plantio, existiam outras relações que perpassavam o cotidiano de Malvina, sejam no passado ou no presente. Quando jovem, os espaços para as relações sociais que não estavam ligados ao mundo do trabalho, no entanto, eram poucos para as moças pobres do campo. O principal espaço de sociabilidade era a igreja, com as festas comunitárias e com seus encontros semanais acontecidos primordialmente para a reza do terço. Outros espaços eram os bailes que aconteciam nos salões particulares, mas também os que aconteciam nas casas de família. Quanto a esse último tipo de festejo, eles aconteciam na região de Mato Grande, entre as décadas de 1940 e 1970, como forma de surpreender os amigos, tanto é que era chamado de “surpresa”. O único preparativo que se necessitava para que acontecesse era conseguir um músico (gaiteiro) e dirigir-se com um grupo até a casa da família que sediaria o evento. Caso houvesse aceitação da surpresa, o baile, iluminado por lampião de querosene, podia tanto acontecer dentro da casa quanto no t erreiro. No terreiro, construía-se uma ramada ou uma barraca coberta de lona e dançava-se

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até o amanhecer. Os donos da casa eram obrigados a alimentar os convivas, geralmente com uma galinhada feita com aves retiradas de sua propriedade. Malvina não se recorda de ter presenciado o consumo de bebidas alcoólicas nesse tipo de encontro, de modo que essa era uma diferença marcante entre aquelas reuniões e as festas comunitárias. Antonio Manoel apreciava muito a participação nas festas de família, para as quais levava suas filhas. Muitos pais participavam desses momentos justamente com a intenção de arranjar casamento para as filhas. Malvina não tinha muito gosto em participar desse tipo de festa, preferindo ficar em casa com sua mãe, Maria Eponina. Ela participou apenas de duas delas. A segunda e última vez que teria participado desgostou-a porque os envolvidos excederam-se moralmente, segundo sua percepção, em dois momentos. Como a surpresa havia sido combinada para acontecer na casa de Gentil Bairros, por ele já estar dormindo, os festeiros derrubaram a porta da moradia batendo nela com socos e pontapés na tentativa de acordá-lo. Gentil, contrariado, não autorizou o uso da casa para o baile, argumentando que sua esposa estava doente. O grupo dirigiu-se, então, para a casa de Veríssimo Alegre. Lá mataram duas galinhas para preparar a refeição, mas uma das panelas foi roubada por dois dos visitantes, por Ambrosino e pelo sobrinho-irmão de Malvina, Olindo Sortica, que foram jantar na mata próxima. Malvina também achou a atitude pouco digna de aprovação e resolveu nunca mais participar daquele tipo de reunião, embora seu pai e seus irmãos e irmãs continuassem participando. Para mostrar o desagrado com esse tipo de conduta, ela chamava pejorativamente as surpresas de bochincho. Nos dias de chuva e nos finais de semana aconteciam outros momentos de congraçamento entre os vizi-

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nhos. Malvina e suas irmãs costumavam visitar nesses dias as famílias próximas para tomar chimarrão e comer bolo frito, principalmente a casa de Júlia Cardoso. Depois de casada, as visitas foram direcionadas à família de seu marido ou de seus pais e irmãs. Importante espaço de sociabilidade e entreajuda entre as famílias eram também os mutirões, chamados de puxirões, principalmente na capina e na colheita, prática existente até o final da década de 1980. O fim dos puxirões está relacionado à diminuição do número das pessoas no campo e à mecanização e ao uso de agrotóxicos na agricultura. Outro importante costume que também se extinguiu, no entanto no início da década de 1990, foi o envio de carne aos vizinhos mais chegados e aos compadres quando se matava uma res ou um porco. Nesses casos, os melhores pedaços eram enviados para as pessoas que houvessem enviado também os melhores pedaços de seus animais para a família. O costume deve ser pensado no âmbito da solidariedade humana, mas também da conservação dos alimentos. Por isso, quando houve a popularização da energia elétrica e a consequente compra de eletrodomésticos que permitiam conservar os alimentos, principalmente a carne, gradativamente o costume foi sendo abandonado. Antes, as únicas formas de conservar a carne era guardando-a frita na banha, embutida (salame) ou defumada, se suína, e como charque, se bovina. Quanto ao status que a carne possuía na alimentação cotidiana, há que se dizer que as famílias pobres não a consumiam diariamente, pois era considerada uma “mistura” cara e rara. Inclusive, as “carneadas” eram tomadas como eventos familiares bastante importantes. Participar deles sem ser convidado se constituía numa gafe social imperdoável.

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Quando criança, Malvina presenciou uma situação inusitada da qual tem lembrança até o presente e que ilustra o status que a carne tinha na alimentação das pessoas. Quando morava com seus pais nas terras de Edegar Pinheiro, havia uma família vizinha que costumava pedir de verdura a banha e torresmo. Malvina, por receio de que as filhas dessa família pedissem a carne do porco que os Sortica haviam abatido, afirmou para elas, quando perguntada acerca do que haviam “feito com o porco que estava no chiqueiro”, que ele havia morrido por ter comido mandioca murcha. Mal sabia que sua mãe havia enviado um pedaço da carne do porco para sua comadre França. Maria Eponina ficou sabendo da mentira de Malvina por Marina e teria ficado furiosa com ela, pensando na repercussão negativa de sua fala. Maria Eponina teria dito: “o que a comadre França vai pensar disso, que o porco morreu intoxicado e eu mandei um pedaço para ela?” Malvina não entende, pela gravidade de sua mentira, como não apanhou de Punica no episódio. Ela garante que nunca mais mentiu depois daquele dia.

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O preparo de alimentos, a costura de roupa e o artesanato Como a grande maioria das meninas de sua época, Malvina foi preparada para dar conta da manutenção material da casa mesmo com recursos financeiros escassos. Quando casada, além de trabalhar em ofícios externos, ela tinha de executar a economia doméstica, muitas vezes sem a participação de seu marido, o qual sempre costumava “economizar” nas compras do necessário para abastecer de víveres a família. Quando constituiu a sua família, a carne continuava não fazendo parte de sua dieta alimentar diária. Quando estava presente, era geralmente nos finais de semana e era constituída de carne de frango retirado do terreiro, de porco criado com restos de alimentos, milho e abóbora, de caça ou eventualmente de peixe pescado nos pequenos rios próximos da casa ou de cabeças e miúdos de suínos ou bovinos dados em pagamento quando alguém auxiliava os vizinhos no abate de algum animal, ou quando recebia um pedaço de carne em reciprocidade à doação anterior. Para balancear as refeições com alimentos que garantissem a energia necessária para a realização das desgastantes atividades físicas presentes no cotidiano familiar, Malvina punha sempre sua criatividade em movimento. Pratos com o uso de ovos, de hortaliças as mais diversas colhidas na horta familiar, de legumes e frutas produzidos por ela, eram cotidianamente postos à mesa. Alimentos à base de abóbora, mandioca, batata e milho eram corriqueiros em sua cozinha. Eles eram preparados primordialmente no fogão a lenha. Aliás, o primeiro fogão a gás somente foi adquirido em 1996, e permanece até o presente com uso restrito,

sendo o fogão a lenha o mais utilizado no preparo dos alimentos. Bolos, pudins e sobremesas sempre foram criativamente elaborados por Malvina, utilizando também ingredientes por ela produzidos. Nesse sentido, a necessidade lhe era a mãe da criatividade. O seu talento na cozinha é reconhecido por toda a família. Pães e bolos, massas caseiras, compotas, quibebe, galinhada, e tantos outros pratos, são alimentos que os filhos, netos e sobrinhos sempre lhes pedem que prepare. A falta de recursos para a compra de roupas era amenizada por Malvina que costurava as vestimentas da família e as remendava quando necessário. As roupas de trabalho eram geralmente carregadas de remendos. Ela aprendeu com sua mãe a arte da produção de roupas. Inicialmente, quando os filhos eram pequenos, por não poder adquirir uma máquina de costura, ela cortava o tecido e o costurava com o uso de agulha, cuidando para que os pontos ficassem bastante pequenos. Com o passar do tempo, passou a utilizar uma máquina de costura manual, adquirida já usada na década de 1980, similar a que sua mãe utilizava, com a qual ainda hoje faz pequenas costuras. As roupas utilizadas pelos filhos, e que constam registradas através das fotografias seguintes, foram praticamente todas costuradas por Malvina. Ela costurava camisas e calças masculinas, blusas e saias femininas, com tecidos adquiridos com o dinheiro conseguido com os trabalhos que realizava na limpeza de casas de outras famílias ou da Igreja Católica da Comunidade de Mato Grande. Malvina sempre gostou muito de artesanato. A elaboração de enfeites para a casa, a trança e a costura de chapéus de palha de trigo, os trançados com os mais diversos materiais, o tricô, a produção de recipientes de

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uso cotidiano, como de cestas e porta-objetos, feitos com purungo (cabaça) e papel reciclado, a preparação de cascas de ovos utilizadas na Páscoa, eram atividades artesanais que ela desenvolvia principalmente nos períodos chuvosos, quando era impossível a realização de trabalhos na agricultura, e também nos finais de semana.

Máquina de costura utilizada por Malvina. Arquivo familiar.

Para aprimorar a técnica de produção de artesanato, ela realizou diversos cursos locais, já depois de aposentada. Quando viaja, Malvina adquire peças artesanais com as quais enfeita a casa, de modo que possui uma grande quantidade delas espalhadas pela sala, cozinha e quartos. Não raras vezes essas peças servem de modelo para a produção de outras similares ou para releituras que faz utilizando outros materiais. O artesanato é um passatempo que ela tem utilizado para manter-se ativa na velhice.

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A educação dos filhos Malvina sempre foi muito atenciosa e paciente com os filhos. Desde cedo, ensinava-lhes de religião às lides na cozinha, de modo que os quatro filhos aprenderam a cozinhar com ela. João Carlos, por sua vez, utilizava o método do castigo para sujeitar os filhos, para fazê-los “ter medo”, como dizia. Adepta da educação pelo diálogo e pelo exemplo, conta um episódio em que seu filho Antonio Dari, quando ainda bastante pequeno, recém aprendendo a falar, na roça tomou um pé de feijão e lhe disse: “vô dá uns jaxaxo (vou lhe dar uns laçaços)”. Pacientemente, ela tomou outro pé de feijão e, a cada batida do filho, batia nele com um pouco mais de força, como se estivesse brincando. Quando o filho sentiu a dor do “laçaço”, após um “ui mãe”, desistiu para sempre da atitude, não sem antes receber uma boa reprimenda por seu mau comportamento. Os cuidados que Malvina dispensava, e ainda dispensa, a cada um dos filhos era e continua sendo muito grande. Embora o carinho que recebe de todos eles, Malvina recorda que, quando adolescentes, o mais caseiro, que ficava junto de si praticamente todo o tempo, era Antonio Dari. Uma vez, quando perguntado pela mãe sobre o motivo de não ir brincar como os outros irmãos, teria dito que tinha medo de que ela saísse e não o levasse consigo. Quando ele ingressou no Seminário, em 1986, a mãe conta que sentiu imensamente a sua falta e que deixava sempre um prato a mais na mesa, parecendo-lhe que retornaria para alimentar-se com os demais. Nesses momentos pensava: “ele está bem, e eu devo parar de me preocupar à toa!”

Algumas vezes, no entanto, Malvina perdia a paciência com as traquinagens dos filhos. Numa vez, por não suportar que os filhos mais velhos, Valdir José e Lori Luiz, brigassem entre si, fez os dois abraçarem-se e beijarem-se como “castigo”. Diz ela que eles nunca mais brigaram depois disso. Pese-se, no exemplo, o machismo que existe no meio rural. Dos filhos mais novos, Antonio Dari e Carlos Alberto, lembra de uma situação em que teve de usar de mais firmeza com eles para que não viessem a repetir um malfeito. Malvina sempre mantinha várias galinhas em seu terreiro para a produção de ovos para a família, mas também para gerar algum dinheiro extra com sua venda para os vizinhos. Num momento de muito aperto financeiro, ela pediu que Carlos Alberto e Antonio Dari levassem duas dúzias de ovos até o bolicho, o mercado local, pois ela havia combinado de entregá-los naquele dia. Os ovos foram postos cuidadosamente em um saco plástico e os dois meninos saíram em direção ao bolicho. Por preguiça, ambos se desentenderam sobre quem carregaria os ovos. Como não chegaram a um consenso, Carlos Alberto jogou em Antonio Dari o saco de ovos, que restaram todos quebrados. Ambos retornam para casa com muito medo do que lhes podia acontecer. Malvina percebeu que havia algo de errado já na chegada dos filhos e perguntou-lhes sobre o dinheiro da venda. Quando soube do acontecido, deu uma surra de vara nos meninos, dizendo-lhes que o dano que haviam causado era duplo: para ela e para a dona do bolicho. Para ela porque precisava muito daqueles trocados; para a dona do bolicho porque era uma época de muita escassez de ovos e ela necessitava deles para preparar alimentos. Malvina também ensinava seus filhos a comportarem-se adequadamente em público, seja cuidando do

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que falavam, seja não fazendo refeições nas casas dos vizinhos, por achar um costume inapropriado. Quanto ao primeiro cuidado, no entanto, nem sempre podia contar com a colaboração dos filhos, que a faziam passar vergonha diante de conhecidos ou de estranhos. Numa ocasião, fora visitar parentes na cidade de Santo Ângelo e levou consigo Antonio Dari e Carlos Alberto. Era época de butiá, um fruto saboroso típico da região, colhido da mesma palmeira utilizada para fazer os já ditos colchões de crina e lã. Malvina quis presentear seus parentes com butiás, colhendo-os e os colocando em um saco plástico (ela chama saco plástico de matéria). No transporte coletivo da cidade de Santo Ângelo, por o ônibus estar muito lotado, os butiás foram amassados e soltaram a calda que lhe é característica, molhando Carlos Alberto. O menino chamou sua mãe e disse em tom alto algo que a envergonhou muito: “mãe, tem uma coisa me mijando na perna”. As pessoas ficaram “reparando” na língua solta de Carlos Alberto, segundo Malvina. Noutra situação, o filho mais velho, Valdir José, estava brincando na casa de um vizinho. Chegou a hora do almoço e todos insistiam para que ele descesse de uma árvore onde havia subido e fosse almoçar com a família. Após muita insistência, Valdir José, embora com muita vontade de almoçar, mas lembrando-se do conselho da mãe de que “não comesse nas casas”, teve uma resposta inusitada: “não vou almoçar porque deixei de comer”. Ainda com relação à educação dos filhos, era de responsabilidade deles cuidar do horário da aula. Desde bastante pequenos, Malvina ensinava-lhes o horário de levantar para dirigirem-se à escola. Quando já moravam na vila de Mato Grande, os filhos levantavam-se com a batida do sino comunitário, às seis horas da manhã (o sino marcava também o meio dia e as seis horas da tarde, além dos momentos de culto e a morte das pessoas,

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quando era tocado “de um só lado”, badalando a idade da pessoa morta). Os filhos levantavam-se, faziam fogo no fogão a lenha, preparavam seu café e dirigiam-se à escola. Ela levantava-se próximo das sete horas, uma vez que era sempre a última a ir dormir, depois de ter lavado a louça usada no jantar e de arrumar a cozinha. As crianças estudavam num turno e trabalhavam no outro com a família. À noite, faziam as tarefas escolares à luz de lamparina ou de vela. A família ia dormir em torno das 21 horas e trinta minutos, depois de escutar algum programa radiofônico no grande rádio a pilha. Quanto ao costume de ouvir rádio, ele se constituía em um momento de reunião familiar. Os pais e os filhos sentavam para ouvir programas musicais, geralmente de música gaúcha, sertaneja de raiz ou de bandas alemãs, programas de humor, com destaque para a “Turma da Maré Mansa”, de notícias ou religiosos. As únicas informações que a família acessava, além daquelas disponibilizadas pela escola e pela igreja, era através do rádio. Por ele ficava-se sabendo sobre quem nascia ou morria no município, sobre assuntos políticos e policiais. Na noite de domingo, às vezes, ia-se até a casa de algum vizinho para assistir a programas de televisão. Malvina costumava escrever cartas para as rádios. Ela pedia para rodar músicas e as oferecia para os familiares e para os amigos, como forma de homenageá-los. Esse costume passou também para os filhos mais velhos. Inclusive, Valdir José alimentou por anos o sonho de trabalhar em Rádio. Nos domingos, ele caminhava doze quilômetros, de madrugada, para acompanhar ao vivo um programa matinal do qual gostava e que era apresentado por Antonio Carlos Funke, o Duda, na Rádio Giruá.

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A vida religiosa Malvina sempre foi muito religiosa, seja participando da vida da comunidade, motivando a família à piedade cristã ou ensinando aos filhos as orações católicas e lendo com eles a Bíblia. Desde cedo, ela acompanhava seus irmãos e irmãs até as comunidades religiosas que ficavam localizadas próximo dos locais de morada. Seus pais, Manoel Antonio e Maria Eponina, ao contrário dos filhos, não eram assíduos participantes das cerimônias religiosas. Malvina aprendeu desde jovem a coordenar a reza do terço. Quando casada, inúmeras vezes incentivava a família para momentos de oração, tanto aqueles que aconteciam somente com seus integrantes, quanto as costumeiras novenas de Natal e de Páscoa, nas quais grupos familiares se encontravam com a finalidade de prepararem-se para as festas religiosas. Por um longo período, Malvina foi membro do grupo de oração e caridade chamado de Legião de Maria. Nesse período, além dos encontros semanais de oração, o grupo visitava os doentes da comunidade de Mato Grande. As legionárias tratavam-se como irmãs. Na Legião de Maria, ela era a irmã Malvina. O cuidado que tinha com a religião fez com que motivasse os filhos aos sacramentos católicos. A participação deles nos sacramentos eram momentos fortes do cotidiano familiar, como se percebe nas imagens, quando eram usadas as melhores roupas que se dispunha. Na foto abaixo, registro da Primeira Eucaristia de Valdir José e de Lori Luiz, acontecida em 1978, alguns elementos se salientam. O primeiro deles são as roupas dos filhos e a camisa do marido que foram costuradas por Malvina. O segundo é a vestimenta de João Carlos.

Ele se encontra vestido com as roupas tradicionais gaúchas. João Carlos conservou esse costume por toda a vida, tendo sido inclusive sepultado, em 2005, com as roupas típicas. Na foto, entretanto, João Carlos encontra-se sem o usual lenço vermelho que sempre utilizou. O motivo era o luto que vivia por ter perdido, naquele ano, a mãe e o pai, por AVC e infarto, respectivamente, e o irmão Valdomiro, que se suicidou. Além de não usar a cor vermelha, ele também usava uma tarja preta no bolso da camisa como sinal externo de luto.

Primeira Eucaristia de Valdir José e de Lori Luiz. Da esquerda para a direita, atrás: Valdir José, João Carlos, Malvina, Lori Luiz; a frente: Antonio Dari e Carlos Alberto. Arquivo familiar.

Nem sempre, no entanto, por conta da pobreza, a família dispunha de roupas adequadas para participar das cerimônias religiosas, como é possível perceber na foto abaixo, referente ao ano de 1980. Nela, Valdir José apresenta-se bem vestido, com a roupa presenteada por Amauri Squinzani, seu padrinho. O mesmo pode-se dizer de Antonio Dari, que usa roupas, com exceção do

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paletó, feitas por Malvina. No entanto, calça chinelos tipo havaiana, pois não possuía outro calçado para a ocasião. Carlos Alberto e Lori Luiz usam casacos flagrantemente menores do que seria o tamanho ideal. Para completar o quadro, João Carlos usa o pala que sempre lhe acompanhava, mas com uma dobra sobre o ombro, e Malvina encontra-se com um dos botões de seu casaco aberto.

Crisma de Valdir José. Da esquerda para a direita, atrás: Valdir José, João Carlos, Malvina, Lori Luiz; a frente: Antonio Dari e Carlos Alberto. Arquivo familiar

O início da década de 1980 foi um dos momentos mais difíceis para a sobrevivência material da família. O aumento dos gastos com a alimentação, a inflação em níveis inimagináveis e a manutenção dos filhos na escola

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acarretavam grandes dificuldades financeiras para a família. A imagem abaixo retrata, pelas roupas utilizadas e pelas expressões corporais, essas dificuldades. Ela foi tirada em 1983, na cerimônia de Crisma de Lori Luiz, no salão paroquial de Rincão dos Beltrame, no mesmo dia em que Malvina se tornou madrinha de Crisma da então esposa de seu sobrinho Antonio Sortica, Neli Siqueira.

Crisma de Lori Luiz. Arquivo familiar.

O início da década de 1980 foi um dos momentos mais difíceis para a sobrevivência material da família. O aumento dos gastos com a alimentação, a inflação em níveis inimagináveis e a manutenção dos filhos na escola acarretavam grandes dificuldades financeiras para a famí-

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lia. A imagem abaixo retrata, pelas roupas utilizadas e pelas expressões corporais, essas dificuldades. Ela foi tirada em 1983, na cerimônia de Crisma de Lori Luiz, no salão paroquial de Rincão dos Beltrame, no mesmo dia em que Malvina se tornou madrinha de Crisma da então esposa de seu sobrinho Antonio Sortica, Neli Siqueira.

Primeira Eucaristia de Carlos Alberto. Arquivo familiar.

Malvina sempre fez questão de registrar em fotografia os momentos fortes da vida religiosa da família. Quando recebe visitas, tem o costume de mostrar essas fotografias. Esse é um dos motivos pelos quais optamos por apresentar algumas delas neste texto, as quais guarda carinhosamente. Para cada uma das fotografias, Malvina possui uma história que entretém a visita. Essas

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histórias vão desde a roupa usada, até situações de doença, casos pitorescos, enfim, ela cria um enredo para apresentar cada momento fotografado.

Casamento religioso de Lori Luiz. Arquivo familiar.

Lori Luiz casou-se em Giruá com Cleci Alves da Rosa, pouco antes de completar vinte e um anos, em 1989. O novo casal decidiu casar-se para poder morar em São Sepé, município próximo a Santa Maria, a fim de trabalhar numa fazenda. Antonio Dari casou-se com Marisa Klein e Lima, em Santo Ângelo, RS, em 1997, quando estava com 26 anos, três anos após desistir do Seminário.

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Casamento religioso de Antonio Dari. Arquivo familiar.

Casamento de Carlos Alberto. Arquivo Familiar.

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Um dos motivos que levaram Antonio Dari a seguir a carreira eclesiástica foi o incentivo de sua mãe. João Carlos, por sua vez, não fazia inicialmente muito gosto que o filho estudasse para ser padre, argumentando não ter condições de mantê-lo estudando fora de casa. Com o passar do tempo, passou também a incentivá-lo. Antonio Dari permaneceu no seminário por nove anos, entre os quinze e os vinte e três anos de idade. Carlos Alberto, o filho mais novo, casou-se em Giruá com Simone Clara Nenning, em 2015, quando estava com 42 anos. Valdir José, o filho mais velho, já com cinquenta anos, não dá mostras de que pretenda casarse tão cedo, tampouco que queira manter-se solteiro.

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A vida de casada Malvina dividiu o mesmo teto com João Carlos por 39 anos. João Carlos e Malvina, quando casaram, eram “bem apessoados”, como se dizia na época.

Malvina com 29 anos de idade. Arquivo familiar.

Com o passar do tempo, João Carlos mostrou-se, entretanto, um marido bastante ciumento. Mesmo que jamais tenha agredido fisicamente Malvina, pelo menos em uma ocasião brigou com ela por conta de enciumar-

se pelo tratamento dado pela esposa ao sobrinho-irmão dela, Olindo Sortica. O episódio aconteceu em uma visita que Olindo fizera ao casal. Como Malvina assava o pão no fogão a lenha, e Olindo lhe acompanhava na cozinha, devido ao vento ela fechou a porta para que o cozimento do pão não fosse prejudicado. João Carlos trabalhava no exterior da casa e imaginou que a esposa o estivesse traindo. Após a saída de Olindo, ele brigou muito com a mulher. Malvina ficou muito magoada com a atitude do marido por um longo período, tendo sido vista pelos filhos chorando. Perguntada sobre o motivo, apenas disse que estava triste, mas que não se preocupassem com ela. Malvina somente falou do ocorrido passados mais de trinta anos. Outro episódio de demonstração de ciúme aconteceu quando o casal já se encontrava sozinho, com os filhos crescidos e residindo fora de casa. Aos 60 anos, por o marido encontrar-se bastante adoentado, e não conseguir dar conta das pequenas roças que o casal mantinha em terras de encosta de mato, com a ocorrência de rocha ou pantanosa, como dito anteriormente, enquanto ele ficara em casa acamado, Malvina se deslocou caminhando quatro quilômetros para cuidar de uma lavoura de milho, feijão, abóbora e amendoim. João Carlos, no entanto, levantou-se da cama e seguiu secretamente a esposa com a intenção de vigiá-la. Malvina ficou sabendo do ocorrido através de uma benzedeira e confidente da família – a crença em benzimento sempre esteve presente na vida de Malvina, tanto é que sua mãe, Maria Eponina, e sua sogra, Rosália, eram, além de parteiras, benzedeiras. Na velhice, Malvina costuma visitar frequentemente uma benzedeira de Santo Ângelo, chamada de Evanir, a qual cuida de sua saúde física e espiritual. Interessante notar que ela chama de benzedeira tanto as tradicionais rezadoras que buscam, pela bênção, a saúde, quanto as videntes e as pessoas sensitivas.

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João Carlos com trinta anos. Arquivo familiar.

João Carlos havia confessado sua atitude à benzedeira. Com isso, Malvina sentiu-se ofendida e deixou de manter as roças, resultando o evento no abandono da prática de plantio nas terras dos vizinhos, já que João Carlos não possuía mais as condições físicas para cultivá-las. Conservou, no entanto, o cultivo de hortaliças, de frutas, de flores e de plantas medicinais nas proximidades da casa, situada na vila de Mato Grande. As lembranças que Malvina guarda do marido era de um homem trabalhador, muito severo com os filhos, mas também com a fama de namorador. Já antes de casar-se com Malvina, quando eram noivos, João Carlos teve um envolvimento com outra moça que resultou numa filha, Marizete Lima. Embora os rumores de que

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tinha uma filha fora do casamento, nunca confirmava ou desmentia a história. No entanto, quando estava já bastante doente, com a visita da filha em sua casa, teve de assumi-la publicamente. Ela encontrava-se, no momento, com mais de quarenta anos. Outro caso que alimentava a má fama do marido aconteceu quando ele foi surpreendido por familiares em um romance com uma parenta próxima de Malvina em uma roça. Esse fato rendeu-lhe o apelido de “cambão”, que é uma peça de madeira que liga o arado à “canga”, instrumento que une dois bois quando em serviço de tração. O apelido do marido era considerado uma ofensa por Malvina, pois a machucava moralmente. Noutra ocasião, Malvina havia presenciado o marido junto de sua parenta numa estrada. O fato aconteceu quando foram fazer uma visita a outra família, e a parenta os acompanhou. No retorno para casa, já à noite, ao passar por uma “picada”, estrada que cruzava uma mata, ele disse à Malvina que iria ao bolicho comprar cigarros, e que ela se dirigisse com os filhos para casa. A parenta já havia tomado outra estrada que levava a sua casa. Desconfiada, Malvina deixou os filhos pequenos escondidos na mata e seguiu o marido, tendo avistado ele próximo da mulher. Quando chegou em casa, João Carlos fingiu-se de ofendido com o que caracterizou como invenção de Malvina.

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Histórias fabulosas Malvina sempre teve predileção por contar histórias fabulosas (causos) para seus filhos e para os visitantes. Muitos desses causos se referem a assombrações e ao enterramento de dinheiro, geralmente tendo como referência picadas ou pés de butiá. Malvina sempre começa os causos com a expressão “diz que”. Diz que um pegou um a corda grande para se transform ar em cobra para cuidar do cabedal e fez um nó na ponta. O nó era para se transform ar na cabeça da cobra. Só que outro viu ele fazendo o nó, e escondeu-se para ver onde ele iria enterrar a panela de dinheiro. Diz que o dono do dinheiro saiu e ele foi lá desenterrar. E diz que aquela corda estava se m exendo e ele sofreu m uito para tirar o dinheiro, m as ele sabia que era um a corda. Esse causo foi m uito falado. Não sei se era verdade ou não (Entrevista concedida ao autor em janeiro de 2013).

Existiam pessoas que, motivadas por essas histórias, dedicavam-se a procurar enterramentos de dinheiro, como um vizinho de Malvina, chamado Antonio Pazini, que era conhecido nas redondezas por manter a prática por longos anos e em diversos locais. Malvina narra também uma história contada para ela em duas ocasiões, e noutra para Sueli Squinzani, pelo sobrinho-irmão Olindo Sortica. Olindo, quando prestava serviço a Aquiles Bruti, abrindo um buraco para uma fossa séptica, teria encontrado um estribo de ouro. Por estar na propriedade de Aquiles, entregou a ele o estribo. Malvina diz que a morte precoce de Aquiles e de sua mulher pode ter tido relação com a maldição do referido presente, como “diz que” foi falado por Olindo. Outra história contada por ela refere-se a um fato acontecido quando tinha dezoitos anos. Junto de seus

irmãos Alcidino e Marina, ela foi caçar um tatu que entrou em um toco de uma árvore, numa picada em uma mata próxima da casa. Os três cavaram e não encontraram nenhum buraco, mas apenas carvão. Malvina diz que talvez fosse um aviso de que ali pudesse haver um enterramento de ouro. O fato ocorreu no mesmo local onde Salvador Chaves de Oliveira, casado com sua falecida irmã Marina, na época namorado de Negra, filha de Arminda, havia sido tocado por um fenômeno estranho que lhe fez abandonar o namoro. Como voltava à noite, a cavalo, e devia passar pela referida picada, deixava próximo dela uma tocha feita com taquara e palha, a qual acendia para iluminar o caminho. Eis que, surpreendentemente, começou a ventar muito forte, o que fez Salvador assustar-se ao ponto de desandar numa carreira pela estrada e de perder inclusive o chapéu no episódio. Ao chegar em casa, por medo, meteu-se debaixo das cobertas por achar que tivera tido um ataque de alguma assombração. Malvina pensa que boa parte das histórias de assombração talvez nem tivessem acontecido, e podiam ser contadas com a intenção de causar medo na juventude a fim de que permanecesse em suas casas. Ainda quanto a assombrações, Malvina conta que vivenciou apenas poucos episódios que pensa trataremse de eventos sobrenaturais. Num desses momentos, ela era bem criança e fora ao banheiro que ficava localizado fora de casa. Era uma noite de garoa e ela viu nitidamente que a égua branca, a Boneca, estava pastando em frente da casa. Ela teria avisado seu pai sobre o que vira, mas ele constatou, entretanto, que a égua estava amarrada, como de costume, em outro lugar. Outra história que conta é de uma vez que foi deitarse mais cedo, e a família continuou, como de praxe, conversando na cozinha, ao redor do fogo de chão. De repen-

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te, Malvina viu que alguém abriu a porta, entrou no quarto e, no escuro, deitou-se na cama de Doralina. As irmãs foram deitar-se logo em seguida e Malvina percebeu que não havia ninguém na cama d e Doralina. Ela guardou, contudo, silêncio sobre o fato até o dia amanhecer. Numa outra ocasião, refere que vira algo inexplicável no velório de uma menina recém-nascida, filha de um sobrinho-neto, Rodrigo Sortica, quando já era idosa. Malvina conta que estava, à noite, chegando à Igreja, no local onde acontecem os velórios dos moradores da Vila de Mato Grande. Ela teria visto uma imagem paradisíaca encimando a casa de uma vizinha que fica localizada ao lado do salão paroquial da comunidade. A imagem era composta por uma nuvem branca e sobre ela estavam dois pequenos anjos, um sentado e outro em pé. Desconfiada do que vira, não contou nada a ninguém. Ficou pensando tratar-se de alguma árvore que pudesse ter a forma da imagem que enxergara. Para sair da dúvida, no outro dia foi procurar pela árvore branca que vira na noite anterior, mas não a encontrou, julgando tratarse de uma situação bastante “esquisita” e inexplicável. As histórias contadas por Malvina incutiam muito medo nos filhos. Em certa ocasião, quando Antonio Dari estava com seis e Lori Luiz com nove anos, em uma brincadeira entre ambos, Lori feriu o irmão com um corte de faca no braço. Vendo o ferimento do filho, por insistência de um vizinho próximo, Assis Xavier, que o menino fosse levado ao médico, Malvina tomou uma carona e foi à cidade solicitar o atendimento gratuito em um consultório particular, num horário em que o posto de saúde já havia fechado. Como já estava anoitecendo, no retorno, e por ser sexta-feira, um dia muito utilizado nas histórias de assombração, Antonio Dari demonstrou grande medo por ser “dia de lobisomem”. Perguntando à mãe como era um lobisomem, ela lhe respondeu que

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era um homem de cabelo comprido e muito barbudo. Já entrada a noite, mãe e filho conseguiram uma carona com um granjeiro (proprietário de terras), Vilmar Adiers, cabeludo e barbudo. No caminho, Malvina percebeu o medo do filho, mas ambos permaneceram calados. Chegando em casa, Antonio Dari contou, com muita admiração, para seus irmãos, que conhecera um lobisomem e que ele lhes dera carona da cidade à vila de Mato Grande. O fato narrado mostra um hábito de transporte bastante arraigado até o presente em Mato Grande. Mesmo que desde o fim do transporte ferroviário, na década de 1980, exista um ônibus que faz a linha Mato Grande-Giruá, uma vez por dia, e Mato Grande-Santo Ângelo, três vezes por semana, por estrada de terra, os moradores pobres da redondeza costumam ir e voltar da cidade de carona.

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Aposentadoria e viuvez Com a aposentadoria, aos 65 anos de idade, Malvina conseguiu independência financeira e passou a adquirir bens que há muito tempo desejava, como eletrodomésticos. A energia elétrica chegou em sua casa em 1994, mas os eletrodomésticos foram comprados somente a partir do ano de 2000. Com a morte de João Carlos, em 2005, ela passou a somar a aposentadoria de trabalhadora rural com a pensão do marido e, pela primeira vez, assumiu a administração financeira da casa. Com isso, decidiu viajar e conhecer locais que somente ouvia falar e via pela televisão, embora tenha permanecido um ano em casa, enlutada, quando da morte de João Carlos. João Carlos não gostava que Malvina viajasse, inclusive para a casa dos filhos. Quando Malvina foi acompanhar o nascimento do neto, Daniel, filho de Antonio Dari, e se dispôs a cuidar da nora, ou quando foi atender o irmão adoentado, Alvarino, João Carlos ficou muito bravo com ela cobrando-lhe o compromisso de cuidar mais dele e de suas roupas (Malvina sempre cuidou com esmero das roupas do marido, mas não de seus calçados, por pensar que isso denotaria indignidade e desaforo). Geralmente, João Carlos saía sozinho quando ia à cidade de Giruá, quando realizava pequenas viagens a Santo Ângelo ou quando visitava seus parentes que residiam na região de Santa Bárbara, RS. Desde que ficou viúva, Malvina já viajou quatro vezes para Aparecida do Norte, visitando o Santuário Religioso, acompanhando excursões da Igreja Católica, como também conheceu as cidades de São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro conheceu o Cris-

to Redentor, a Praia de Ipanema e a Ponte Rio-Niterói. Foi também duas vezes ao Parque Beto Carreiro, em Santa Catarina, onde também foi às praias. Com o grupo de saúde visitou Canela, Gramado, as vinícolas de Bento Gonçalves, a October Fest de Blumenau, em Santa Catarina, e a de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

Malvina na October Fest de Santa Cruz do Sul, RS, em 2012. Arquivo familiar.

Com relação a conhecer a praia, isso aconteceu em 2006, quando ela acompanhou a família de Antonio Dari até Mariluz e Capão da Canoa, no Rio Grande do Sul. Na ocasião, conheceu também o famoso zoológico de Sapucaia do Sul e a região de Gramado e Canela, também no Rio Grande do Sul.

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Malvina tem participado, também, de muitos encontros de formação sindical, junto do núcleo de mulheres do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Giruá, além de buscar o aprimoramento de suas habilidades artesanais, através de cursos utilizando produtos recicláveis e da terra. Pensando em manter-se ativa, aos 70 anos retornou para a escola, numa turma especial de Educação de Jovens e Adultos. Ficou no projeto por apenas um ano, pois esperava aprender “outras coisas” para além do que já sabia... Da experiência do retorno à escola, guarda boas lembranças das atividades físicas que a Escola São Miguel Arcanjo possibilitava aos idosos da comunidade. A velhice de Malvina trouxe-lhe alguma segurança econômica. Acostumada a viver toda a vida com quase nada, os dois salários que recebe mensalmente têm sido suficientes para financiar sua vida simples. Tem sido possível com eles adquirir os alimentos que lhe apetecem, fazer suas viagens, comprar eletrodomésticos, mas também pagar alguma consulta particular quando há demora de atendimento pelo Sistema Único de Saúde. Não deixa, contudo, de produzir suas próprias frutas, legumes e verduras, mas de maneira agroecológica. As galinhas: elas mandam no seu calendário, pois muitas vezes deixa de sair para atendê-las.

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Netos e noras Malvina formou uma família pequena. Atualmente, seu núcleo familiar é composto por onze pessoas: Malvina, quatro filhos, três noras e três netos. Ela se dedica a agradar a todos, tendo inclusive o costume de sempre guardar uma lembrança para dar às noras e aos netos quando estes lhe visitam.

Malvina e a neta Malu em 2012. Arquivo familiar.

Se, por um lado, Malvina demonstra grande carinho pelas noras, as três – Simone Clara Nenning, esposa de Carlos Alberto, Cleci Oliveira da Rosa, esposa de Lori Luiz, e Marisa Klein e Lima, esposa de Antonio Dari – têm verdadeira adoração pela sogra, numa relação de muito respeito e de reciprocidade. Carinhosamente, Marisa a chama de vó e não de sogra.

Não somente Malvina é afetuosa com as noras, como as noras o são na mesma medida com Malvina. O mesmo pode ser dito dos netos – Emerson Carlos, filho de Lori Luiz e Cleci, e Daniel e Malu, filhos de Antonio Dari e Marisa. Malu recebeu esse nome para homenagear a avó paterna, Malvina, e a avó materna, Lúcia!

Da esquerda para a direita: Lori Luiz, Cleci e Emerson Carlos. Arquivo familiar.

Da esquerda para a direita: Daniel, Malu, Marisa e Malvina. Arquivo familiar.

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O sorriso de Malvina é cativante. Seus netos se divertem muito com as histórias engraçadas que conta. Segundo ela são histórias verídicas. No entanto, sabe-se que gosta de enfeitá-las com detalhes para prender a atenção dos ouvintes. Malvina é conhecida por sua imensa calma e tranquilidade para resolver os problemas. Ela acalma o ambiente e quem convive com ela. Calmamente e com muitas histórias e exemplos, ela passa sua sabedoria alcançada ao longo da vida para seus netos, os quais a ouvem com muito respeito e admiração. Outro elemento curtido pelos netos são as aulas de culinária e de aproveitamento de alimentos que a avó lhes ministra quando a visitam. Ela não somente faz a vontade dos netos e noras, preparando-lhes os pratos que gostam, como também os ensina a misturar os ingredientes, a manusear a panela, a trabalhar no fogão. Com eles cria bolos e sobremesas, deixa-os escolher os sabores, amassar a massa do pão. Com eles canta e faz brincadeiras.

Carlos Alberto e Simone. Arquivo familiar.

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O reencontro com o passado Como a família Lima Sortica literalmente separouse dos demais parentes da região de Santa Maria, pois o único contato que Malvina possuía era com alguns primos e tios do lado materno, e ainda assim de maneira precária, não foi possível acompanhá-los em seu cotidiano por um período de 76 anos. No entanto, em 2014 fezse um esforço para mapear e juntar os descendentes de Ignácio Sortica num primeiro encontro de Família. O encontro aconteceu no Parque da Expointer, em Esteio, RS, e contou com a presença de mais de quatrocentas pessoas. Ao todo foram mapeados e catalogados, numa grande árvore genealógica, em torno de dois mil parentes, das mais diferentes matizes étnico-raciais e culturais.

I Encontro dos descendentes de Ignácio Sortica. Julho de 2014. Arquivo familiar.

Foi na reunião familiar que Malvina encontrou a filha de sua prima Almerinda, já idosa. Seu nome é Hilda, e ela é neta de sua tia Francisca Sortica. Com ela pôde recordar um pouco do cotidiano da família quando deixou Santa Maria em direção a Giruá. Hilda brincava com os irmãos mais velhos de Malvina nascidos em Santa Maria. Como Malvina saiu de Santa Maria com três anos, poucas são as lembranças da antiga terra. A única lembrança que guarda de lá é que morava com seus pais num lado de um riacho e sua madrinha, de nome Ernestina, morava noutro. Lembra que ela tinha um filho chamado Mesquita. O I Encontro da Família mostrou que existem parentes, descendentes de Ignácio Sortica, espalhados pelo Brasil e pela Argentina. O grupo maior permanece residindo, entretanto, no Rio Grande do Sul. Boa parte da família continua morando na região da Antiga Cachoeira, próximo do local de chegada do primeiro Sortica, no atual município de Formigueiro. Num processo típico de busca do mito fundador foi inclusive criado um brasão da família, com símbolos que remetem tanto aos Estados Unidos quanto ao Rio Grande do Sul. As narrativas ouvidas no Encontro demonstram que os descendentes de Ignácio e Belarmina possuem pouca coisa em comum para além dos ancestrais. No caso dos descendentes de Antonio Manoel e de Maria Eponina, como a família ficou isolada dos demais parentes por mais de 70 anos, a sensação era de que haviam encontrado uma multidão de desconhecidos.

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Brasão criado por Eduardo Almansa Sortica e Jorge Sortica. Arquivo familiar.

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E o sistema de agregados? Na década de 1930, momento da chegada da família Sortica em Giruá, a região de Mato Grande possuía, além da mata referida, outros espaços destinados ao plantio, mas também terras de campo, geralmente pouco disputadas pelos colonos descendentes de europeus devido à imagem que possuíam de terra infértil, percepção ligada à presença nesses lugares do capim “barba de bode”, por ele ser sinônimo de “terra fraca”. Na época não havia problemas em os colonos ceder espaço de moradia aos camponeses sem terra, principalmente porque os proprietários da terra usufruíam de seu trabalho. Naquele momento, o baixo valor da terra, no geral, possibilitava que os colonos pobres a pagassem com a retirada da madeira, de modo que manter-se agregado foi uma opção que Antonio Manoel fez. O mesmo não pode ser dito de João Carlos e Malvina, pois com o passar do tempo a terra foi sendo gradativamente valorizada, e isso distanciou a família do sonho de adquirir um pedaço de chão. Não fosse o sistema de agregados, a família teria sido empurrada para a periferia das cidades. No final da década de 1970 e, principalmente, na década de 1980, a monocultura da soja chegou com grande força na região das Missões do Rio Grande do Sul. Acompanhando a universalização do cultivar, chegou também a mecanização da agricultura, e o plantio de alimentos foi dando lugar para a monocultura de exportação. Com isso, os campos de criação de gado bovino, equino e muar foram sendo abertos, a pecuária perdeu terreno para a agricultura e, rapidamente, todos os espa-

ços em que era possível o plantio foram requisitados pelos proprietários de terra. As fazendas foram se extinguindo, de modo que, atualmente, na região de Mato Grande, não existe nenhuma fazenda de criação de gado, a única pecuária existente é a leiteira, ainda de forma bastante reduzida. O território da antiga mata é hoje terra nua de plantio. As mudanças nas relações de produção têm levado, inclusive, a que o “gauchismo” popular, como o vivido pela família de Malvina, passe para os CTGs, para os rodeios e se restrinja, principalmente, à música e à poesia. O agronegócio tomou conta do território, das relações sociais e culturais da região. No mesmo período, a Lei do Usucapião Especial Rural (Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981) amedrontou os proprietários que possuíam agregados em suas terras. A partir daquele momento, quando alguém pedia “uma colocação” para algum proprietário, tinha o pedido recusado com o argumento de que havia muita insegurança para os donos de terra, os quais temiam que os agregados requeressem, futuramente, a terra cedida para a morada. Um terceiro elemento decisivo para o fim do sistema de agregados foi o uso cada vez mais crescente de agrotóxicos para controlar as plantas indesejadas nas lavouras de soja, trigo e milho. A desnecessidade de mãode-obra manual, somada à falta de perspectiva de futuro, fez com que a juventude migrasse para a cidade ou para outras localidades, e os velhos fixassem residência nas vilas existentes no interior dos municípios ou mesmo nas pequenas cidades. Para se ter uma ideia, em 1960 a população urbana de Giruá era de 3.565 habitantes; a rural de 20.672 habitantes. Em 1970, moravam 5.040 pessoas na cidade e 20.453 no campo. Em 1980, a cidade continha 11.197 habitantes e o campo 17.412 habi-

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tantes. Já em 1990, a cidade aumentou para 13.381 pessoas e o campo diminuiu para 13.445 habitantes (Rith, 2012, p. 18). Atualmente, vive-se em Mato Grande um processo de concentração das terras nas mãos de alguns colonos que têm investido na compra das pequenas propriedades dos herdeiros dos colonizadores falecidos, principalmente na década de 1990. Alguns dos filhos dos antigos agregados tornaramse funcionários do agronegócio, mas a maioria mudouse para a cidade ou para outras regiões do país, de modo que a vila de Mato Grande é hoje composta primordialmente por idosos aposentados, por algumas famílias com crianças, por conta da escola que existe no local, e por alguns proprietários das terras do entorno. Esses proprietários ressentem-se da falta de trabalhadores quando deles necessitam. O sistema de agregados deve ser visto como reserva de mão-de-obra, que alia relações familiares e econômicas. Ele era desejado tanto pelos donos das terras quanto pelos necessitados de local para morada. No momento em que deixou de ser vantajoso para um dos lados, deixou de existir.

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Expectat ivas Malvina reside sozinha e cuida da horta, da casa, dos pequenos animais. Três filhos moram distante de Giruá: Lori Luiz reside em Urussanga, SC; Carlos Alberto reside em Erechim, RS; Antonio Dari, em Dourados, MS. O filho mais velho, Valdir José, conserva uma casa próximo da casa da mãe, no entanto reside nela esporadicamente, pois trabalha sazonalmente na colheita da maçã, em Vacaria, RS, e no plantio e colheita de soja e trigo em Bagé, RS. Malvina resiste em deixar seu espaço, arduamente conquistado, para ir morar com os filhos. Para postergar a saída de seu lar, tem o auxílio de uma ajudante que realiza limpeza semanal em sua casa e lava-lhe as roupas. Vaidades? Vaidades corporais Malvina não as possui. Ela não aprendeu a enfeitar-se, seja com o uso de adereços ou de pinturas. Os adereços atrapalhariam o trabalho pesado que sempre desenvolveu. Malvina não adquiriu o hábito de usar pulseiras, anéis ou mesmo brincos. As pinturas, seja o uso de batom ou de pós corretivos, nunca fez parte de seu cotidiano, tanto que teve dificuldade em deixar-se maquiar levemente para a cerimônia de casamento dos filhos. Inclusive, as pessoas que usam muita perfumaria e pinturas são vistas por Malvina como “rebocadas”. O cabelo, branqueado pela idade, nunca recebeu tintura. Malvina nunca foi ligada aos modismos, principalmente quanto às vestimentas. Sua maneira de vestir-se sempre foi muito simples, com peças básicas, muitas vezes costuradas por ela mesma, e com a presença de muitas flores.

Desencantada com a política, aos 81 anos se dá ao luxo de gozar do direito de não mais votar. Para ela, os políticos “não fazem o que a gente diz, espera e precisa”. Sua vida de participação na vida política, como votante, começou em 1958, aos vinte e três anos, quando Miguelão incentivou Antonio Manoel a fazer com que as filhas tirassem o título de eleitor a fim de votar nas pessoas que apoiava, Brizola, candidato a Governador do RS, e Guido Mondin, candidato a Senador, que estariam em visita a Santo Ângelo. Malvina e a família foram até Santo Ângelo na carroceria do caminhão de Miguelão, junto de outros eleitores de Brizola. Perguntada se votou nos candidatos de Miguelão, respondeu que sim. Miguel Szostkiewicz era um político influente em Giruá, tendo sido eleito vereador na primeira legislatura do município quando de sua emancipação, em 1955. Malvina disse também que nem sabia quem era o oposicionista de Brizola nas eleições, e que seu nome não fora mencionado por Miguelão. Na verdade, o adversário de Brizola, do PTB, era Walter Peracchi Barcelos, da UDN. Depois, quando casada, viu seu marido apoiar os candidatos da ARENA durante a ditadura militar. Enquanto tiver forças, Malvina pretende continuar a vida no seu ritmo, no seu canto, sem depender dos outros, “mandando no seu nariz’! Preocupa-lhe, no entanto, a memória do presente que se esvai com muita facilidade, acompanhada da presença da memória cada vez mais cristalina e detalhada do passado. Enquanto isso, com seus dedos curvados pelo reumatismo, Malvina segue trançando as palhas de trigo para fazer chapéu e tramando as teias da memória que lhe dão o sentido da existência. De certa forma, ao trançar a palha, também trança a memória. Como as palhas que cruza umas sobre as outras para resultar no trançado, as memórias cruzam-se umas com as outras, e o passado embaralhase com o presente; agradecida, mas não conformada,

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encara o passado de frente, sem mágoas. Memórias cruzadas tem esse sentido!

Malvina trançando palha de trigo, em outubro de 2016. Arquivo familiar.

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Referências MANUSC RI T OS DA C OLEÇÃO DE ANG ELIS . Introdução e notas Jaime Cortesão. Tomo IV (Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai [1611-1758]). Rio de Janeiro: Bibliot e ca Nac ion al, Divis ão de Obr as Raras e Publicações, 1970. (MCA IV) MEIHY, J. C. S. B. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005. OLIVEIRA, Renata Saldanha e SANTOS, Júlio Ricardo Que ve do. O “T ir o q ue s aiu pe la c ulatr a”: Comportamentos e expectativas de escravos, libertos e imigrantes europeus nas proximidades da abolição (Charqueada do Paredão - Cachoeira/RS). Revista LatinoAmericana de História, Vol. 2, nº. 9, Dezembro de 2013. Rio Grande do Sul. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão: inventários, o escravo deixado como herança. Coordenação Bruno Stelmach Pessi. Porto Alegre, RS: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (CORAG), 2010. RITH, Rosângela Godói. A agricultura em Giruá: a evolução do trabalho. Monografia de Final do Curso de História, Departamento Humanidades e Educação (DHE) da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), 2012. Sites consultados . Acesso em 21/10/2016 e em 06/11/2016. . Acesso em 21/10/2016.

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