MEMÓRIAS DA ESCANDINÁVIA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DOS NORMANDOS NA ITÁLIA MERIDIONAL [SCANDINAVIAN MEMORIES IN THE IDENTITARIAN BUILDING-PROCESS OF THE NORMANS IN SOUTHERN ITALY]

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 3.

MEMÓRIAS DA ESCANDINÁVIA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DOS NORMANDOS NA ITÁLIA MERIDIONAL SCANDINAVIAN MEMORIES IN THE IDENTITARIAN BUILDINGPROCESS OF THE NORMANS IN SOUTHERN ITALY Vinicius Cesar Dreger de Araujo Universidade Estadual de Montes Claros __________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Resumo: O assim chamado Reino Normando da Sicília foi uma das entidades políticas mais interessantes da Idade Média Central (séculos XIXIII) em muitos aspectos, sendo que um dos principais foi sua complexa composição étnica e cultural, envolvendo nada menos do que Lombardos, Gregos, Árabes e Normandos, além de expressivo contingente judaico. Simultaneamente ao estabelecimento desta nova unidade política (1016-1130) e tão importante quanto esta história, é o processo da construção da identidade desta população deslocada da Normandia para a Itália Meridional e o traslado das memórias setentrionais para o centro do Mediterrâneo. Nosso texto dividir-se-á em dois temas: uma análise do quão escandinava era a Normandia entre os séculos X e XI e um estudo de que memórias ligadas ao Norte foram utilizadas para embasar a construção identitária ítalo-normanda nas três principais fontes do período: as crônicas de Amato de Montecassino, Godofredo Malaterra e Guilherme da Apúlia, todas elaboradas durante a segunda metade do século XI. Para construir a ligação entre os dois movimentos populacionais (a constituição da Normandia e a constituição dos domínios normandos na Itália meridional) empregaremos ferramental teórico oriundo dos estudos acerca das Diásporas Viking e Normanda, além de questionamentos relativos aos estudos acerca dos processos de construção identitários, tais como Etnogênese e Etnopoiese. Finalmente, concluímos que estes processos serviram essencialmente para a construção dos valores definidores em ambas as comunidades fruto das já mencionadas diásporas, de acordo com suas composições étnicas e usos políticos. Palavras-chave: Normandia, Escandinávia, Reino Normando da Sicília, Memória, Identidade.

Abstract: The so-called Norman Kingdom of Sicily was one of the most interesting political entities of the Central Middle Ages (XIthXIIIth centuries) in many ways, and one of the leading was its complex ethnic and cultural composition, involving no less than Lombards, Greeks, Arabs and Normans, as well a significant Jewish contingent. Simultaneously with the establishment of this new polity (1016-1130) and as important as this story, is the process of identity building of this population removed from Normandy to southern Italy and the transfer of the northern memories to the center of the Mediterranean. Our text will be divided in two themes: an analysis of how Scandinavian was Normandy between the tenth and eleventh centuries and a study what memories connected to the North were used to support the construction of an Normanitalian identity in the three main written sources of the period: the chronicals of Amatus of Montecassino, Geoffrey Malaterra and William of Apulia, all written during the second half of the eleventh century. To build the connection between the two population movements (the constitution of Normandy and the establishment of the Norman domains in southern Italy) we will employ theoretical tools coming from the studies of the Viking and Norman Diasporas, as well as questions related to studies about the identity construction processes, such as Ethnogenesis and Ethnopoiesis. Finally, we conclude that these processes served primarily for the construction of the defining values in both communities as a result of the already mentioned diasporas, according to their ethnic composition and political uses. Keywords: Normandy, Scandinavia, Norman Kingdom of Sicily, Memory, Identity.

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Recebido em: 30/10/2015 Aprovado em: 17/12/2015

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1. Introdução Entre os séculos XI e XIII se constituiu na Itália Meridional uma nova organização política que, a partir de 1130, ficou conhecida como o Reino da Sicília, Reino da Apúlia e Sicília ou, mais popularmente, Reino Normando da Sicília. Tal entidade foi um dos experimentos políticos mais interessantes da Idade Média Central em muitos aspectos, sendo que um dos mais importantes foi sua complexa composição étnica e cultural, envolvendo nada menos do que Lombardos, Gregos, Árabes e Normandos, além de expressivo contingente judaico. Além do intrincado processo de construção do domínio normando sobre a região (1016-1130), e tão importante quanto, encontra-se o processo da construção identitária desta população deslocada da Normandia para a Itália Meridional e o traslado das memórias setentrionais para o centro do Mediterrâneo, em meio à já mencionada diversidade cultural da região. A proposta de nosso artigo divide-se em dois temas: uma análise do quão escandinava era a Normandia entre os séculos X e XI e um estudo de que memórias ligadas ao Norte foram utilizadas para embasar a construção da identidade ítalo-normanda nas três principais fontes narrativas do período: as crônicas de Amato de Montecassino, Guilherme da Apúlia e Godofredo Malaterra, todas elaboradas na região, durante a segunda metade do século XI e conectadas aos principais príncipes normandos na Itália, nomeadamente Ricardo Quarrel, príncipe de Cápua; Roberto Guiscardo, duque da Apúlia e Roger I, il Gran Conde da Sicília. É interessante repararmos que os estudos acerca dos Normandos pela historiografia medievística brasileira encontram-se em uma espécie de zona de sombra, eclipsada por investigações voltadas para os desenvolvimentos das monarquias Francesa e Inglesa (neste último caso em relação à atuação de Guilherme, o Conquistador e seus descendentes), ou mesmo esquecida em relação à sua atuação

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tão

importante

quanto,

os

desenvolvimentos

próprios

alcançados

pelos

estabelecimentos independentes desta Diáspora, vem sendo o foco de diversos projetos surgidos nestas duas primeiras décadas do século XXI por historiadores europeus e norteamericanos. Pretendemos, pois, acrescentar nossas contribuições a tal debate e incentivar os colegas a participarem do mesmo. 2. A Normandia e a Escandinávia: As origens da Normandia se encontram enraizadas no conturbado contexto das políticas dos reis Francos Ocidentais do século IX, quando os monarcas de estirpe carolíngia competiam por poder entre si e com as linhagens principescas regionais, ao mesmo tempo em que forças escandinavas atacavam centros produtores de riquezas em operações normalmente descoordenadas umas das outras, mas não menos efetivas, entre o norte da Inglaterra e o Mediterrâneo. Neste contexto os governantes, mesmo que temporariamente, passaram a conceder terras e autoridade a líderes vikings na Frísia, na Frância e nas Ilhas Britânicas, permitindo assim o estabelecimento do movimento denominado por Judith Jesch como Diáspora Viking2. De todos estes estabelecimentos ocidentais, o principal e mais bemsucedido foi o da Normandia em 911.

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De fato, apenas o professor Jônatas Batista Neto defendeu em 1978 na USP sua tese de doutoramento O Interesse Inglês pela Sicília e a Imagem da Itália nos Textos de Viajantes Britânicos dos séculos XII e XIII, e publicou o artigo BATISTA NETO, Jônatas. A presença britânica na corte siciliana de Frederico II de Hohenstaufen. Revista de História da Universidade de São Paulo, n. 115, p. 33-46, jul. / set., 1983. Segundo um levantamento de dissertações e teses de História Medieval produzidas no Brasil entre 1990 e 2002 (MACEDO, José Rivair (org.). Os Estudos Medievais no Brasil - Catálogo de Dissertações e Teses: Filosofia, História, Letras (1990-2002). Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003), assim como consultas aos bancos de teses e dissertações on-line da CAPES, da USP, da UFMG, da UnB e várias outras instituições para o período 2003-2012, nenhum trabalho utilizou o Reino Siciliano ou os domínios ítalo-normandos como objeto de estudo. Após este período, podemos citar apenas três artigos, por nós publicados: ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de. Constança da Sicília: Imperatrix et Regina. Medievalis, v. 2 , p. 133-151, 2012; ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de. Fortuna Tancredi: Tancredo de Lecce e a oposição siciliana ao processo da unio Regni ad Imperium nas crônicas coetâneas. Revista Diálogos Mediterrânicos, n. 6, p. 133-150, jun. 2014 e, finalmente, ARAUJO, Vinicius Cesar Dreger de. Henrique VI de Hohenstaufen em majestade - Uma análise de suas representações imagéticas entre o Liber ad honorem Augusti (1197) e o Codex Manesse (1340). Opsis, v. 14, n. 2, p. 339-359, jul. / dez. 2014. 2 JESCH, Judith. The Viking Diaspora. Londres: Routledge, 2015.

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Contudo, antes de nos debruçarmos sobre o ramo italiano já da Diáspora Normanda, é necessário questionarmos o quanto permaneceu e por quanto tempo, do caráter escandinavo na identidade do ducado normando. Existe a este respeito considerável debate que grosso modo polariza os historiadores em duas posições: a primeira, na qual estão inseridos nomes como Musset e Bouard 3 , defende uma continuidade carolíngia nas instituições do novo ducado e uma rápida assimilação dos escandinavos na maioria franca. Já a visão contrária caracteriza os primeiros estágios do controle viking sobre a região como inseguro e improvisado, mas, argumenta que o sucesso de seu enraizamento se deu justamente por uma valorização de seus costumes escandinavos nativos, assim como suas instituições jurídicas, regras sociais e práticas agrárias e marítimas4, opiniões escudadas, por exemplo, por David Bates e Eleanor Searle5. O ponto fundamental que embasa esta divisão é a questão quantitativa: presumivelmente seria necessário um considerável contingente de imigrantes para produzir uma sociedade com fortes características escandinavas, enquanto que um número pequeno, na verdade uma minoria aristocrática, marcaria muito menos a cultura franca nativa. Na ausência de fontes documentais confiáveis, ou mesmo com o estado atual da pesquisa arqueológica, o estudo da herança escandinava e sua profundidade na Normandia se encontra comprometido, apostando no valor das evidências linguísticas, toponímia e o estudo de instituições posteriores. O obscuro quadro que desponta da Normandia no século X, muito bem sumarizado por Jean Renaud 6 , sugere um grau considerável de variações regionais – na densidade e datação dos assentamentos, assim como nas origens e identidade dos grupos imigrantes – suficientes para produzir afinidades com a Escandinávia em graus diferentes nas várias áreas ocupadas. 3

BOUARD, Michel de. De la Neustrie carolingienne à la Normandie féodale: continuité ou discontinuité?, Bulletin of the Institute of Historical Research, n. XXVIII, p. 1–14, 1955; MUSSET, Lucien. Origines et nature de la pouvoir ducale en Normandie jusqu’au milieu du XIe siècle. In: GUILLEMAIN, Bernard (publ.). Les principautés au moyen âge. Communications du congrès de Bordeaux. Bordeaux: [Société des Historiens Médiévistes de l'Enseignement Supérieur Public], 1979, p. 47–59, reimpresso em MUSSET, Lucien. Nordica et Normannica. Paris: Société des Études Nordiques, 1997, p. 263–277, com outros artigos relevantes para a discussão: YVER, Jacques. Les premières institutions du duché de Normandie. Settimane di studio del centro italiano di studi sull’alto medioevo, n. XVI, p. 299–366 e p. 589–598, 1968. 4 ABRAMS, Lesley. England, Normandy and Scandinavia. In: HARPER-BILL, Christopher, VAN HOUTS, Elisabeth (ed.). A Companion to the Anglo-Norman World. Woodbridge: Boydell, 2003, p. 43. 5 BATES, David. Normandy before 1066. Londres: Longman, 1982, p. 2–24; SEARLE, Eleanor. Predatory Kinship and the Creation of Norman Power, 840–1066. Berkeley: University of California Press, 1988; DOUGLAS, David. William the Conqueror. Londres: Eyre & Spottiswoode, 1964, p. 19–30. 6 RENAUD, Jean. The Duchy of Normandy. In: BRINK, Stefan, PRICE, Neil (ed.). The Viking World, Londres: Routledge, 2008, p.453-457.

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Nos últimos anos passou a haver um consenso entre os autores de que houve o surgimento de uma síntese entre as instituições carolíngias e o dinamismo característico das práticas econômicas escandinavas. O marco tradicional para a fundação da Normandia é o assim chamado “Tratado de Saint-Clair-sur-Epte”; contudo, inexistem registros escritos do mesmo, apenas o relato feito por Dudo de Saint-Quentin7, cerca de um século após os acontecimentos. Em essência, este tratado teria estabelecido que Carlos o Simples, rei da Frância, concedeu a Hrólfr (“Rollo”) um território que, mais ou menos, já se encontrava sob ocupação escandinava e, em troca, demandou que estes Vikings defendessem o reino contra novas incursões escandinavas e se tornassem cristãos. Ao aceitar estes termos, Rollo adquiriu as regiões de Talou, Caux, Roumois e Évrecin, coletivamente conhecidas, a posteriori, como Alta Normandia.

Mapa 1: Possível distribuição das áreas de ocupação escandinava na Normandia no século X8

Em 924 o Rei Raul da Frância ampliou o “condado de Rouen” em direção oeste até o rio Vire, abarcando a região de Bessin, onde mais dinamarqueses agora provenientes da Inglaterra (possivelmente das regiões reconquistadas por Edward o Velho), haviam se estabelecido recentemente9. Raul voltou a fazer novas concessões em 933, sendo que

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Livro II, Cap. 28. RENAUD, Jean. The Duchy of Normandy. In: BRINK, Stefan, PRICE, Neil (ed.). The Viking World, Londres: Routledge, 2008, p. 453. 9 Ibid., p. 454. 8

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desta vez elas foram feitas a Guilherme Espada-longa, filho e sucessor de Rollo; foramlhe concedidas as regiões do Contentin e do Avranchin. O norte do Contentin havia sido assentado por noruegueses, provenientes das regiões do Mar da Irlanda e, segundo Jean Renaud10, entraram em choque com os dinamarqueses de Rouen. O único testemunho contemporâneo que comprova indiretamente o conteúdo do tratado de Saint-Clair está num diploma régio de 14 de Março de 918 (e se trata do documento original), no qual o rei concede à abadia de Saint-Germain-des-Prés o que restou do patrimônio da antiga abadia de La-Croix-Saint-Leufroi (na região do Eure), que foi dividida em duas partes pelo tratado de Saint-Clair: (…) nós damos e concedemos esta abadia, da qual a maior parte se encontra na área [pagus] de Méresais no Rio Eure a Saint-Germain e seus monges para seu sustento, exceto a parte das terras da abadia que foram dadas aos Normandos do Sena, nomeadamente Rollo e seus companheiros [comitibus], para a defesa do reino [pro tutela regni] …11

Como fica claro no mapa 1, os escandinavos não se estabeleceram uniformemente na Normandia, mas as duas principais áreas de assentamento demonstram diferentes atitudes e estruturas. Em Caux e no Roumois, houve um processo aparentemente mais coerente de assentamento e integração: Rollo agiu como sucessor dos condes francos e manteve o sistema administrativo carolíngio, não instaurando um Thing (Þing), a assembleia dos homens livres12. Já no muito menos habitado norte do Contentin, o assentamento foi puramente escandinavo, existindo evidências da instauração de um Thing na atual Le Tingland13. Até 1027, os três pagi em que a região estava dividida ainda apresentavam os nomes nórdicos de Haga, Sarnes e Helganes. Não sabemos o quanto da legislação escandinava Rollo implementou em seus novos territórios; só subsistiam traços nórdicos nas leis costumárias normandas quando estas foram compiladas por escrito no século XIII e em alguns antigos documentos escritos por clérigos que, provavelmente, não estavam familiarizados com os usos e costumes escandinavos. Contudo, o direito de exílio exercido pelos condes (depois duques) da Normandia possuía 10

RENAUD, Jean. The Duchy of Normandy. In: BRINK, Stefan, PRICE, Neil (ed.). The Viking World, Londres: Routledge, 2008. 11 VAN HOUTS, Elisabeth (trad.). The Normans in Europe. Manchester: Manchester UP, 2000, p.25. 12 RENAUD, Jean. op. cit. p. 455. 13 RENAUD, Jean, RIDEL, Elisabeth. Le Tingland: l’emplacement d’un þing en Normandie, Nouvelle Revue d’Onomastique, n. 35–36, p.304, 2000.

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inegáveis raízes nórdicas, assim como as uniões livres, conhecidas como more danico, que possuíam o mesmo valor legal dos matrimônios sancionados pela Igreja. A organização das atividades marítimas foi mais claramente influenciada: os condes/duques possuíam o direito de recuperação dos naufrágios (droit de varech, oriundo do vrek do Nórdico Antigo), assim como sobre a pesca de baleias e esturjões; paralelamente, direitos semelhantes foram registrados na Escandinávia. Ao que tudo indica, a integração entre Francos e Escandinavos foi rápida, sendo que o emprego do Nórdico Antigo declinou em poucas gerações, permanecendo apenas em algumas centenas de palavras que não possuíam equivalentes francos ou ligadas ao vocabulário náutico, além de alguns topônimos. A partir de inícios do século XI, o caráter escandinavo da Normandia esvaneceu cada vez mais. Outro elemento que teria contribuído para o sucesso deste processo foi seu uso da estrutura eclesiástica local. Os colonos Vikings representavam em sua maior parte uma elite guerreira; eles eram uma minoria governando súditos cristãos. O patrocínio eclesiástico por parte desta aristocracia militar ajudou a estabelecer sua credibilidade sobre a população Franca; ela ajudou a convencer seus súditos a aceitar estes Vikings como seus governantes. Assim, os senhores de Rouen reestruturaram e fortaleceram a organização eclesiástica sobrevivente para ajudar a ligar as periferias de seus domínios ao centro. Consequentemente, não é por acaso que as fronteiras do novo principado coincidissem com as fronteiras do arquiepiscopado de Rouen14.

Não podemos nos esquecer do fato de que a Igreja operava em todos os níveis da sociedade: tanto funcionava nos estratos superiores quanto sua hierarquia se estendia profundamente até atingir níveis populares aos quais os senhores Normandos tinham pouco acesso. Esta hierarquia não trabalhava necessariamente de modo suave ou sistemático: indubitavelmente havia párocos na Normandia dos séculos X e XI que nunca tiveram notícias de seus bispos locais. Mas os registros indicam que muitos tiveram e suas conexões com uma rede eclesiástica mais ampla, cada vez mais favorável aos Normandos, ampliaram a base de apoio local a estes governantes. Conforme o ducado se expandia, a igreja servia como valioso veículo para a identidade regional. Ela providenciava uma estrutura com múltiplos níveis que tornava possível a bem-sucedida criação “de um povo a partir de todas as raças” na Normandia15.

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POTTS, Cassandra. Monastic Revival and Regional Identity in Early Normandy. Woodbridge: Boydell, 1997, p. 06-07. 15 Ibid., p. 07.

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As conexões entre a Normandia e a Escandinávia no correr do século X também são obscuras. Mas, o tratado celebrado em 991 entre o rei anglo-saxão Ethelred e o duque normando Ricardo I, no qual ambas as partes se comprometiam a não dar guarida aos inimigos uns dos outros, sugere que a Normandia teve algum papel na facilitação aos ataques contra a Inglaterra. Não nos esqueçamos de que se trata justamente do ano em que houve a invasão atribuída à liderança de Olaf Tryggvason, que resultou na derrota anglo-saxônica em Maldon (10 ou 11/08/991) e culminou com o pagamento de um maciço Danegeld avaliado em 3300 quilos de prata. Até mesmo a proximidade da costa de Essex, onde Maldon se localiza, com a costa Normanda, pode indicar que esta tenha sido utilizada, no mínimo, como ponto de reunião da frota invasora, assim como Rouen foi a cidade de escolha de muitas incursões vikings para realizar a venda das mercadorias saqueadas nas ilhas16. Outro indício foi a visita à Normandia de Svein Forkbeard em um intervalo de sua segunda campanha na Inglaterra (por volta do ano mil), ainda durante a vigência do tratado entre Ethelred e Ricardo. Alguns autores inclusive consideram o casamento entre Cnut Sveinsson e Emma, a viúva de Ethelred e irmã de Ricardo, como mais uma evidência do relacionamento próximo entre a Normandia e a Escandinávia. Outros discordam e apontam-no como uma ruptura, já que a continuidade dinástica anglo-saxônica se teria tornado interesse central do duque normando, tio e guardião dos jovens herdeiros de Ethelred (Edward, Alfred e Godgifu)17. Outro fator de aproximação teria sido a própria ascendência de Ricardo e Emma. Sua mãe, Gunnor, reputadamente era dinamarquesa, com uma extensa rede de alegados parentescos que ligavam não apenas a linhagem ducal à Dinamarca, como também muitas outras das principais linhagens locais normandas. Como argutamente apontou Lesley Abrams, a calidez direcionada aos primos setentrionais, assim como um senso de comunidade com as terras natais, declinaram face

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Um tema tratado com muita propriedade por Katherine Clare Cross em sua Tese de Doutoramento defendida no University College London. CROSS, Katherine Clare. Enemy and Ancestor: Viking Identities and Ethnic Boundaries in England and Normandy, c. 950-c.1015. 2014. Tese – University College, Londres, 2014. 17 Para uma extensa lista de referências, recomendo a introdução suplementar de Simon Keynes para o Encomium Emmae reginae, editdo por Alistair Campbell. Cambridge: Cambridge University Press, 1998 e STAFFORD, Pauline. Queen Emma and Queen Edith: Queenship and Women’s Power in Eleventh-Century England. Oxford: Wiley-Blackwell, 1997, p. 225–36.

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 3. aos sucessos de Cnut na Inglaterra e na Escandinávia 18 . Com os desdobramentos da situação política na esfera nórdica do século XI, as rivalidades entre Dinamarca, Noruega e Normandia pelo controle sobre a Inglaterra parecem, de fato, ter contribuído para a dissolução de qualquer senso de irmandade remanescente entre os nórdicos e a Normandia. Contudo, Elisabeth van Houts argumenta que, embora tenha havido um distanciamento político e econômico, ao estudar a literatura normanda do século XI, podese constatar que não houve uma ruptura cultural, sendo que o provável polo mediador das tradições escandinavas para os Normandos no período tenha sido o Danelaw angloescandinavo. Tanto ela quanto Graham Loud notaram a presença de elementos escandinavos nas narrativas históricas normandas, como parte de seus processos de construção identitária, que se estenderam a obras produzidas até fins do século XI. Nas obras historiográficas normandas do século XI, como a de Guilherme de Jumièges, a distinção entre “normando” e “dinamarquês” era muito importante; reconhecidamente, em meados do século XI, o “uso antigo de normannus significando qualquer tipo de escandinavo ou viking ainda não havia morrido”19 mas estava a caminho de desaparecer. Dudo de Saint-Quentin menciona os normanni atacando a Frância, mas na maior parte das vezes ele os denomina como dani e, interessantemente, nunca emprega a palavra normannus em conexão com os feitos de seu primeiro herói, Hasting, no Mediterrâneo. Dudo chega mesmo a diferenciar os dinamarqueses de outros povos escandinavos, “atribuindo-lhes mesmo ancestralidades lendárias em separado”. Por volta de 1070, William de Jumièges foi absolutamente claro: antes do tratado de Saint-Clair-sur-Epte, os recém-chegados à Nêustria eram Dinamarqueses20, fato que teria sido sublinhado pelo próprio Rollo e seus seguidores, segundo Dudo de SaintQuentin: Dani sumus. Datia auecti huc; frantiam expugnare uenimus (“Somos

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ABRAMS, Lesley. England, Normandy and Scandinavia. In: HARPER-BILL, Christopher, VAN HOUTS, Elisabeth (ed.). A Companion to the Anglo-Norman World. Woodbridge: Boydell, 2003,p. 50. 19 LOUD, Graham A. The ‘Gens Normannorum’ – Myth or Reality?. In: LOUD, Graham A. Conquerors and Churchmen in Norman Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.108 20 VAN HOUTS, Elisabeth (trad.). The Gesta Normannorum Ducum of William of Jumièges, Orderic Vitalis, and Robert of Torigni. v. 1. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 60.

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Em meados do século XI, cerca de um século e meio após o estabelecimento da Normandia, os Normandos viam a si mesmos como um novo povo, nascido da síntese de diversos grupos 26 , separado tanto de suas origens escandinavas quanto das francas. Ademais, os duques Normandos, empregando políticas matrimoniais muito bem estruturadas, dedicaram-se à constituição de poderosas redes relacionais dentro e fora de sua região que lhes permitiram expandir seu território. Segundo Graham Loud, surgiu por volta de 1150 um poema anônimo que equivalia Roma e Rouen (uma analogia possivelmente derivada da hoje perdida Gesta Romanorum, que também teria sido utilizada por Orderic Vitalis em suas obras). Este poema argumenta que assim como 21

DUDO DE SAINT-QUENTIN. Gesta Normannorum seu de moribus et actis primorum Normanniae ducum, Capítulo 11. Disponível em: http://www.hs-augsburg.de/~harsch/Chronologia/Lspost11/Dudo/dud_no11.html. Acessado em 25 out. 2015. 22 WEBBER, Nick. The Evolution of Norman Identity 911-1154. Woodbridge: Boydell, 2005. 23 VAN HOUTS, Elisabeth (trad.). The Gesta Normannorum Ducum of William of Jumièges, Orderic Vitalis, and Robert of Torigni. v. 1. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 79. 24 LOUD, Graham A. The ‘Gens Normannorum’ – Myth or Reality?. In: LOUD, Graham A. Conquerors and Churchmen in Norman Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 109 25 POTTS, Cassandra. Monastic Revival and Regional Identity in Early Normandy. Woodbridge: Boydell, 1997, p. 01. 26 Ibid., p. 03.

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Roma havia governado um império, agora Rouen era o centro de um novo império que se estendia da França à Escócia (lembremos que ele antecede a constituição do assim chamado “Império Plantageneta”, a partir de 1154), enquanto um filho de Rouen (Roger II da Sicília) governava a “Itália, Sicília, África e Grécia”27. Ou seja, em meados do século XII existiam manifestações (ao menos na Normandia) de um senso identitário comum, que abarcava tanto a esfera anglo-normanda quanto a ítalo-normanda. Mas devemos nos questionar se este sentimento encontrava reciprocidade nos textos provindos da Itália Meridional. 3. A Diáspora Normanda do século XI e a Itália Meridional: No correr do século XI ocorreu entre os Normandos um fenômeno semelhante ao da dita Diáspora Viking; todavia, os Normandos ao invés de incursões navais no estilo escandinavo, se infiltraram e conquistaram paulatinamente a Itália Meridional, conquistaram espetacularmente a Inglaterra e criaram o Principado de Antioquia na Primeira Cruzada. Entre 2008 e 2011 o Arts and Humanities Research Council da Grã-Bretanha financiou um grande projeto de pesquisa intitulado “The Norman Edge: Identity and State-formation on the Frontiers of Europe, c.1050 – c.1200”, capitaneado por Andrew Jotischky e Keith Stringer, justamente dedicado a compreender as construções políticas e identitárias nas áreas afetadas pela Diáspora Normanda. Este projeto teve, entre diversas questões, seu foco em: (...) até que ponto as solidariedades (reais ou imaginadas) existentes no interior do contexto mais amplo da Diáspora Normanda, no como elas podem ser expressas; no quão pronunciado seria o desejo das famílias colonizadoras em reter ligações duráveis com a Normandia e como elas podem ter sido perpetuadas; em que grau as redes e identificações “trans-nacionais” agiram em competição ou em harmonia com as estruturas políticas emergentes.28

De certa forma, este projeto atuou como um complemento e até mesmo ampliação de outro, também financiado pelo AHRC, intitulado “Viking Identities Network”, iniciado em 2006, que introduziu a teoria da diáspora nos estudos sobre a Escandinávia do período Viking. Ambos os projetos recorreram, assim como Judith LOUD, Graham A. The ‘Gens Normannorum’ – Myth or Reality?. In: LOUD, Graham A. Conquerors and Churchmen in Norman Italy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 105. 28 JOTISCHKY, Andrew, STRINGER, Keith J. (ed.). Norman Expansion – Connections, Continuities and Contrasts. Aldershot: Ashgate, 2013, p.13. 27

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Jesch, ao arcabouço teórico derivado da moderna teoria da Diáspora (Vertovec, Kalra e, principalmente, Robin Cohen)29. De toda forma, no correr do século XI, parcelas significativas da população Normanda migraram para áreas como a Inglaterra (após a conquista de 1066), a Itália Meridional e a Síria (fundação do principado de Antioquia), compondo assim o escopo territorial da Diáspora Normanda. A partir do ano mil começam a surgir os primeiros relatos da presença normanda no Mezzogiorno. Mas se isso é certo, os motivos de sua presença na região são menos claros: se devido às oportunidades abertas à atuação como mercenários em um cenário caracterizado pelas disputas entre os pequenos principados lombardos, as províncias bizantinas semiautônomas e a Sicília islamizada; se devido a peregrinações ao Santo Sepulcro ou Gargano, ou uma combinação de motivos. Os cronistas não são unívocos acerca dos fatos 30 : de acordo com Amato de Montecassino, por volta do ano 1000, cerca de 40 peregrinos Normandos que retornavam do Santo Sepulcro resgataram Salerno de um assédio muçulmano e os salernitanos lhes imploraram que retornassem com mais dos seus para defendê-los no futuro31. Cerca de uma década após a obra de Amato, Guilherme da Apúlia representou os Normandos como peregrinos ao santuário primevo de São Miguel Arcanjo em Monte Sant’Angelo, em Gargano, na Apúlia32, onde encontraram o líder rebelde lombardo Melus, que recrutou a proeza militar dos normandos para seu levante antibizantino. Emily Albu 33 apresenta uma proposta instigante para a causa da Diáspora Normanda que os levou ao centro do Mediterrâneo: a fuga do crescente controle ducal sobre uma aristocracia florescente na Normandia do século XI. “Dissidentes e perdedores nas contendas, filhos caçulas sem herança, peregrinos e aventureiros, selaram seus cavalos e se direcionaram ao sul, em busca de liberdade e fortuna”. Ao descontarmos certa romantização nesta formulação, o contexto de expansão da autoridade central na 29

Recomendamos vigorosamente a leitura do capítulo 3 (JESCH, Judith. The Viking Diaspora. Londres: Routledge, 2015, p. 55-86) do livro de Judith Jesch, que condensa o arcabouço teórico por ela empregado. 30 E muito menos descomprometidos: Amato é um defensor dos príncipes normandos de Cápua e senhores de Salerno, da casa Quarrel enquanto que William era partidário dos duques normandos da Apúlia, da casa Hauteville. 31 Historia Normannorum, Livro I, 17-9, p. 249-51. 32 De onde partiu um culto que se estendeu à Normandia (irradiado a partir da Abadia de Saint Michel) e também presente na própria Escandinávia recém-cristianizada, além de muitas outras regiões. 33 ALBU, Emily. The Normans and their Histories – Propaganda, Myth and Subversion. Woodbridge: Boydell, 2001, p. 106.

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Normandia, apoiada pela estrutura eclesiástica local de fato poderia ter exercido uma pressão centrífuga sobre os elementos menos ajustados impelindo-os a migrar. Em última instância, o que se sabe é que entre os anos 1000 e 1090, pequenos núcleos de cavaleiros Normandos paulatinamente conquistaram o Mezzogiorno e a Sicília, sob a liderança de ramos derivados das linhagens dos Hauteville (inicialmente duques da Apúlia) e dos Quarrel (inicialmente príncipes de Cápua), tirando proveito das divisões locais.

Mapa 2: A Itália Meridional34 34

OLDFIELD, Paul. Sanctity and Pilgrimage in Medieval Southern Italy,1000–1200. Cambridge: Cambridg University Press, 2014, p.15.

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As principais fontes narrativas ítalo-normandas datam da segunda metade deste período de conquista e são elas que relatam o processo de etnopoiesis (ou seja, de elaboração da etnia) normanda na região e o que persistiu de heranças trazidas do norte. São elas: a Historia Normannorum de Amato de Montecassino; a Gesta Roberti Wiscardi de Guilherme da Apúlia e o De rebus gestis Rogerii Calabriae et Siciliae comitis et Roberti ducis fratris eius de Godofredo Malaterra. Analisaremos a seguir as passagens destas obras relativas às origens dos Normandos. 3.1 Amato de Montecassino e a Historia Normannorum: Em primeiro lugar, o original latino da obra de Amato se perdeu, subsistindo apenas em uma versão francesa produzida no século XIV sob encomenda de um elusivo “conde de Militrée”35, que reteve, ao que tudo indica, considerável grau de fidelidade ao texto original. Se trata de uma narrativa que se pretende uma epopeia do povo normando, iniciando com suas origens (que analisaremos posteriormente), seguindo com os feitos de seus governantes (principalmente Guilherme, o Conquistador) e então tratando dos feitos dos ítalo-normandos. Nesta fase de sua obra, Amato se concentra numa abrangência cronológica que se estende entre 1016 e 1078, com foco nas figuras de Ricardo Quarrel, príncipe de Cápua e Roberto de Hauteville, o Guiscardo, duque da Apúlia (com poucas menções a Roger de Hauteville, conde da Sicília). Ambos são descritos como versões da visão bíblica de Ciro da Pérsia: potentados estrangeiros que Deus escolheu para realizar seus desígnios. Ricardo protege a Abadia de Monte Cassino e Roberto protege a Igreja (principalmente devido às ordens dadas a seu irmão Roger, para a conquista da Sicília islâmica). Amato propõe a sua justificativa para o fenômeno ítalo-normando: seus empreendimentos de conquista e de fundação de entidades políticas foram possíveis não apenas por sua excepcional virtus (de cunho militar, mas também de caráter e comportamento) e iuventus (um povo novo), como pela providência divina, que pretende redimir as terras meridionais da perfídia e pecaminosidade das outras velhas etnias e estruturas políticas (lombardos, bizantinos e árabes).

D’ANGELO, Edoardo. Storiografi e Cronologi Latini del Mezzogiorno Normanno-Svevo. Nápoles: Liguori Editore, 2003, p.21. 35

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Acerca das origens dos Normandos, o trecho em questão é o fragmentário início do livro primeiro: (...) nos confins da Frância existe uma planície repleta de florestas e árvores frutíferas. Neste lugar estreito vivia uma grande quantidade de pessoas fortes e robustas que previamente habitavam uma ilha que chamavam de Nora e por isso foram chamados de Nor-mant, ou seja, os “homens de Nora”. Estas pessoas aumentaram em tal número que os campos e pomares não mais eram suficientes para atender às necessidades da vida para tantos. Assim sendo, eles se espalharam por aqui e por ali, por todas as diferentes partes do mundo, isto é, por várias terras e países36.

O que podemos constatar em Amato é uma confusa confluência entre as memórias da Normandia e as memórias da Escandinávia, particularmente em relação à Diáspora Viking e suas possíveis causas. Esse desprendimento de uma visão, digamos, mais objetiva em relação ao passado normando pode estar ligada à questão de que no conjunto da obra do cassinense, a etnogênese geral normanda possui pouco destaque em sua narrativa. Os feitos dos Normandos em geral, e dos ítalo-normandos em particular, possuem uma relevância muito maior para a etnopoiese que se propôs a realizar do que suas origens. Cabe também levarmos em consideração o fato de que, ao que tudo indica, Amato não possuir conexões étnicas com os Normandos ou mesmo estar diretamente ligado aos mesmos (o que dificultaria a coleta de informações, memórias ou tradições ligadas ao passado escandinavo da Normandia). Se se puder confiar nas evidências internas do texto, se trataria de uma obra encomendada pelo abade Desidério de Montecassino (futuro papa Vitor III entre 1086 e 1087) ou por sua influência, já que foi o responsável pela aproximação da abadia com Ricardo de Cápua. Destarte, a obra seria mais valiosa como demonstração do aquecimento desta relação do que como representação fiel das origens normandas. 3.2 Guilherme da Apúlia e a Gesta Roberti Wiscardi: Assim como no caso de Amato de Montecassino, pouco se pode determinar acerca das origens de Guilherme da Apúlia. Embora o nome “Guilherme” possua origens normandas, é insuficiente para assegurar-nos de que seu detentor delas compartilhava, já que não as reivindica. Quanto a seu indicativo geográfico, tampouco nos esclarece, já que

CHAMPOLLION-FIGEAC, M. (ed.). Amatus Casinensis, Historia Normannorum – L’ystoire de li Normant et la Chronique de Robert Viscart, Paris: Jules Renouard, 1835, p.09. DUNBAR, Prescott N. (trad.). The History of the Normans, Woodbridge: Boydell, 2004, p.45. 36

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inexistem dados que comprovem se era originário da Apúlia ou residente na mesma. Contudo, na geopolítica da Itália Meridional da segunda metade do século XI, é o suficiente (junto a indícios internos do texto) para localizá-lo entre os dependentes do tronco apuliano dos Hauteville. A obra de Guilherme da Apúlia (poema épico escrito em hexâmetros dactílicos em Latim) se dedica a uma extensão cronológica situada entre 1016 e 1085, tratando exclusivamente da história dos Normandos Meridionais em cinco livros, de seu primeiro encontro com o governador bizantino Melo de Bari em Gargano, até a morte de Roberto Guiscardo. Autor e obra estão claramente inseridos no círculo de apoiadores de Roger Borsa (duque da Apúlia entre 1085 e 1111), primogênito de Guiscardo, frente às ambições de Boemundo de Tarento, líder cruzado e filho caçula do duque. Em contraste com a obra de Amato, Guilherme não atribui tanta nobreza aos normandos meridionais, embora louve suas características bélicas, sustenta que sua nobilitação ocorreu pelos casamentos com as linhagens aristocráticas lombardas, ao mesmo tempo em que despreza abertamente aos bizantinos. Ao continuar com as ações (anti-bizantinas) iniciadas pelos Lombardos, os Normandos se tornaram os “novos romanos” (em termos de belicosidade) no plano histórico37 Observemos seu relato acerca das origens normandas: Tornou-se prazeroso ao Poderoso Rei, que ordena as estações assim como os reinos, que as praias da Apúlia, por tanto tempo possuídas pelos Gregos, não mais o fossem e que o povo dos Normandos, distinto por seus cavaleiros aguerridos, devesse adentrar e governar a Itália após expulsarem os Gregos. Na linguagem de sua terra nativa, o vento que os carregou das regiões boreais das quais partiram para buscar as fronteiras da Itália é chamado de “Norte” e a palavra “man” é usada entre eles para significar “homo”; assim eles são chamados de Normandos, isto é, “homens do vento norte” (homines boreales)38.

Guilherme também não apresenta diferenciações entre a Normandia e a Escandinávia, aqui obscuramente referenciada por meio da expressão “regiões boreais”.

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Como o autor faz questão de colocar na fala do comandante grego na iminência da batalha de Montepeloso (03/09/1041), que abriu o domínio da costa apuliana a uma aliança Normando-lombarda. LOUD, Graham A. (trad.). The Deeds of Robert Guiscard, Medieval history texts in translation, Livro I, p. 11. Disponível em: http://www.leeds.ac.uk/arts/downloads/file/1049/the_deeds_of_robert_guiscard_by_william_of_apulia. Acessado em: 25/07/2015. 38 Ibid., p. 03.

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Aliás, a sua confusão chega ao ponto de nem mesmo mencionar o topônimo Normandia, ou apresentar qualquer conexão discernível com a França. A Normandia em si nunca é descrita e existe apenas como uma terra de onde pessoas vieram para a Itália. A única explicação geral de quem os Normandos eram é a derivação etimológica acima discutida. Isto é astuciosamente vago ao não diferenciar entre a Normandia e a Escandinávia, servindo como um simples adorno para o principal em seu relato: sua chegada à Itália. A Etnopoiese (a construção da etnicidade) no texto de Guilherme está ligada às suas funções políticas, a dizer, legitimar o domínio normando sobre as populações recentemente conquistadas na Itália Meridional; em geral, sua obra sugere que as fronteiras existentes entre os grupos étnicos na nova estrutura eram politicamente irrelevantes. Pode-se depreender que a fusão normando-lombarda, corporificada pelo próprio Roger Borsa (filho do normando Guiscardo e da lombarda Sikelgaita de Salerno), seja o objetivo final de sua construção etnopiética. Como tal, Roger Borsa se torna, aos olhos de seu partidário, o único líder de fato ítalo-normando e digno de liderar este novo povo. 3.3 Godofredo Malaterra e o De rebus gestis Rogerii Calabriae et Siciliae comitis et Roberti ducis fratris eius. Ao contrário de Amato de Montecassino ou Guilherme da Apúlia, Godofredo Malaterra atribui a si mesmo origens ex partibus transmontanis, ou seja, transalpinas. Segundo Eduardo D’Angelo, francesas, embora não se possa atribuir maior precisão regional39. Caso Godofredo não fosse efetivamente normando, demonstrou possuir informações acuradas acerca do norte da França; contudo não nos é possível determinar se originadas de experiência própria ou adquiridas por meio de leitura de obras de autores normandos como o já mencionado Dudo de Saint-Quentin, com o qual apresenta semelhanças estilísticas40. Sabe-se também que foi monge em Santa Ágata de Catânia, na Sicília. A obra de Godofredo Malaterra apresenta algumas diferenças interessantes em relação às de seus antecessores. Em primeiro lugar, sua abrangência cronológica é a maior das três, se estendendo entre o início do século X e o fim do século XI, mais precisamente, 1098. Seu foco está, como diz o título, na atuação do conde Roger de Hauteville na D’ANGELO, Edoardo. Storiografi e Cronologi Latini del Mezzogiorno Normanno-Svevo. Nápoles: Liguori Editore, 2003, p.25. 40 Ibid.. 39

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conquista da Sicília e na redução proposital da figura de Roberto Guiscardo à de um líder inseguro e, acima de tudo, invejoso dos sucessos de seu irmão caçula. Evidentemente se trata de uma obra cuja origem pode ser traçada à corte do chamado Gran Conde em Palermo e defendendo seus pontos de vista. Sua crônica foi construída de forma semelhante a outras como haviam sido as Res Gestae Saxonicae de Widukind de Corvey ou a Historia Normannorum, de Dudo de SaintQuentin, a dizer, seguindo um modelo no qual a origo gentis, ou seja, as construções etnogenéticas do texto e a história do desenvolvimento dos feitos de determinado povo, estão teleologicamente subordinados ao surgimento da linhagem governante e esta à culminação com determinado líder, seja Otto I, o duque Ricardo I da Normandia ou o Conde Roger da Sicília. Assim, seu relato quanto às origens dos Normandos apresenta enormes diferenças em relação a seus pares: A Normandia é um território particular entre as regiões da Gália. Ela não foi sempre chamada de Normandia: anteriormente ela, com todas as suas posses, foi parte do fisco dos reis dos Francos e por isso era referenciada apenas sob o nome geral de Frância. Este foi o caso até o tempo de Rollo, o mais valente líder da Noruega, audacioso por natureza. À sua volta reuniu um grande bando de valentes cavaleiros que, uma vez no mar, se consideravam mais como uma força do mar. Rollo e seus homens devastaram a Frísia e certas regiões costeiras do oeste e, finalmente, adentraram pela foz do Sena, onde ele flui para o mar e ali desembarcaram. Penetrando nas partes interiores da Frância pelo rio com sua poderosa frota, Rollo notou os encantos da região e a escolheu para amar sobre todas as outras pelas quais havia passado. A Normandia é a mais abundante em rios piscosos e florestas repletas de caça e é a mais adequada à Falcoaria. É fértil para o trigo e outros grãos, abundante em ovelhas e nutre grandes rebanhos. Devido a isso, Rollo e seus homens atacaram nas duas margens do rio e começaram a subjugar os habitantes da região a seu domínio. Eles deram à terra seu próprio nome: “Norte” na língua dos anglos se refere à região do Norte. Porque eles vieram do Norte, chamaram a si mesmos de “Normandos” e sua terra de “Normandia”. Nesta província existe uma cidade chamada Coutances, nas cercanias da qual existe uma fortificação chamada Hauteville. Especulamos que esta villa era referida como “alta” (haute) não tanto pela proeminência da colina sobre a qual está erguida, mas sim como um presságio dos mais notáveis feitos e prósperas conquistas que seriam alcançadas por aqueles que a herdassem, galgando gradualmente, com o auxílio de Deus e sua própria bravura, ao cume das maiores honras.41

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WOLF, Kenneth Baxter (trad.). The Deeds of Count Roger of Calabria and Sicily, and of his brother, the Duke Robert Guiscard. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2005, p.51-52.

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Ao contrário dos outros dois relatos, aqui existem uma grande acurácia e refinamento na etnopoiesis normanda. Não existe confusão alguma entre a Normandia e a Escandinávia: existe em seu lugar uma conexão direta com a Noruega e a detalhada descrição da metodologia viking de combate e conquista, adaptada ao vocabulário do século XI. Segundo Johnson42, Godofredo era, provavelmente, um imigrante de primeira geração da Normandia e, pela análise de sua obra, possivelmente conhecia os escritos de Dudo de Saint-Quentin. Também realiza uma conexão direta entre esse passado nórdiconormando e o passado da linhagem dos Hauteville, sendo o exemplo mais bem acabado da construção da identidade ítalo-normanda em relação às suas origens transalpinas. Pode-se dizer que tal situação seja fruto da intencionalidade inerente à forma adotada pelo autor para a escrita de sua história. Ewan Johnson nota que, embora seja atestável um fluxo contínuo de imigrantes Normandos na documentação italiana meridional do século XI e em parte do XII, é difícil quantificar o mesmo, mas a tendência indica que os números declinaram após a morte da primeira geração de imigrantes43. Ao compararmos os textos das crônicas ítalo-normandas aqui elencadas, podemos constatar que para os três autores as origens normandas parecem ser algo já reconhecido e não mais um fator primordial para determinar a lealdade aos governantes da Apúlia, Salerno ou Sicília. Essa característica se destaca mais no conjunto da obra de Guilherme da Apúlia, mas também aparece no texto de Godofredo, já que sua construção está muito mais ligada às necessidades do gran Conde Roger I na Sicília e na Calábria do que daqueles de proveniência normanda no restante da Itália Meridional. Ligado a isso está o fato de que ambos os textos prestam relativamente pouca atenção à história dos Normandos fora da Itália. A exceção aparente a este padrão está no detalhe dado por Godofredo às aventuras dos Hauteville que permaneceram na Normandia. Contudo, como bem observou Johnson44, se tratam de lendas familiares e não tentativas de explicar a história do ducado ou do povo normando em geral. Já a crônica de Amato de Montecassino destoa deste panorama, já que emprega narrativas das aventuras normandas

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JOHNSON, Ewan. Normandy and Norman Identity in Southern Italian Chronicles. Anglo-Norman Studies, n. XXVII, p. 96, 2004. 43 Ibid., p. 86. 44 Ibid., p. 100.

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precisamente para localizar a expedição à Itália no interior de um enquadramento mais amplo da expansão normanda, ou seja, na Diáspora Normanda. É possível que, na década de 1090, o ducado da Normandia tenha se tornado cada vez menos central para a identidade dos ítalo-normandos, e cada vez mais considerado apenas como ponto de uma gênese lembrada, mas não uma força poderosa para a identificação política. Consequentemente, as memórias escandinavas que já haviam declinado na Normandia, se tornaram praticamente irrelevantes nestes textos, apresentando-se nebulosas, quase lendárias (excetuando-se no texto de Godofredo Malaterra, influenciado pela obra de Dudo de Saint-Quentin, ou seja, pela própria historiografia franco-normanda). Neste momento, nossa última questão seria: existiria alguma conexão entre os ítalo-normandos e as origens escandinavas da Normandia?45 4. Considerações finais: Durante os muitos ataques vikings no século IX, assim como em outras regiões, a Itália também foi atingida. Ali ocorreu uma semilendária e, acima de tudo, pitoresca incursão, como parte do grande tour mediterrânico, no qual a expedição liderada por Björn entre 859 e 862 saqueou diversos pontos da costa ibérica e do sul da França. Na Itália atacaram e ocuparam Pisa e dali marcharam pelo interior até à cidade de Luna, que teriam confundido com Roma. Ao não conseguirem romper as defesas da cidade, Björn teria idealizado o seguinte ardil: simulando uma conversão ao Cristianismo enquanto agonizava, teria pedido que fosse enterrado na igreja da cidade. E isso foi levado ao bispo local, que concordou que o corpo fosse transportado por pequena guarda. Ao adentrar a igreja, Björn e seus homens conseguiram, por meio da surpresa, tomar o portão e abrir a cidade ao saque46. Sua expedição depois retornou ao mar e incursionou pela Sicília e norte da África. Contudo, reputadamente 40 de seus navios teriam sido destruídos no retorno pela marinha do Al-Andaluz através do emprego de armas incendiárias, semelhantes ao fogo grego47.

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A questão central do livro de Rosa Canosa: CANOSA, Rosa. Etnogenesi normanne e identità variabili: Il retroterra culturale dei Normanni d’Italia fra Scandinavia e Normandia. Turim: Silvio Zamorani, 2009. 46 CHRISTYS, Ann. Vikings in the South – Voyages to Iberia and the Mediterranean. Londres: Bloomsbury, 2015, p. 60-61. 47 PRICE, Neil. The Vikings in Spain, North Africa and the Mediterranean. In: BRINK, Stefan, PRICE, Neil (ed.). The Viking World. Londres: Routledge, 2008, p. 464.

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Por mais épica que esta incursão tenha sido, praticamente não gerou o enraizamento destas ações na memória coletiva nem da Ligúria, nem da Sicília, de modo que resultasse aos pósteros o estabelecimento de conexões entre as ações dos escandinavos e dos normandos, como transparece nas crônicas abordadas. Aliás, mesmo a continuidade do relacionamento entre a Normandia e a Escandinávia aqui analisado, contemporâneo às primeiras décadas da infiltração normanda na Itália Meridional, não encontra eco em suas histórias. Os recém-chegados nunca foram particularmente numerosos. Por isso, a lentidão na conquista do Mezzogiorno, principalmente das grandes cidades, e uma colonização tênue, diferentemente do ocorrido na conquista normanda da Inglaterra, na qual a substituição da aristocracia anglo-saxônica foi praticamente total: para se ter ideia, apenas 4 dos 180 principais terratenentes listados no Domesday Book eram claramente anglo-saxões48. O que se pode depreender dos relatos ítalo-normandos a respeito de seu passado nórdico-normando é uma tênue memória, principalmente de seu valor militar e tenacidade. Contudo, numa perspectiva mais ampla, o verdadeiro traço que conecta as populações das Diásporas Viking e Normanda é a sua disposição em aceitar a hibridização etnocultural que caracterizou seus assentamentos na Inglaterra, na Irlanda, na Normandia, na Rússia e, finalmente, na Itália Meridional, que culminou com a corte palermitana trilíngue de Roger II (1130-1154). Os processos de hibridização cultural e de transculturalidade de suas comunidades só podem ser compreendidos quando postos em perspectiva pela prévia compreensão dos mesmos processos em ação na Normandia Franco-escandinava do século X. Não nos esqueçamos de que os processos identitários são construídos no interior de discursos: eles precisam de narrativas, nas quais as estratégias específicas e escolhas concernentes ao estilo e emprego do vocabulário são feitos de tal forma que o presente emerge como o palco de um processo histórico contínuo e indiferenciado que também marca o futuro da comunidade. Portanto, estas crônicas precisam ser entendidas não apenas como produtos de um ambiente cultural específico, mas também como agentes nesta mesma cultura. A mitopoiesis estabelecida na historiografia escrita pelos próprios normandos celebra justamente a incorporação bem-sucedida de povos de diferentes origens em uma única BURKHARDT, Stefan, FOERSTER, Thomas (ed.). Norman Tradition and Transcultural Heritage – Exchange of Cultures in the “Norman” Peripheries of Medieval Europe. Aldershot: Ashgate, 2013, p. 45. 48

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Revista Signum, 2015, vol. 16, n. 3. comunidade, criando assim um novo povo, uma nova etnicidade e identidade49. Assim, os textos construíram a memória coletiva do passado de modo que a mesma atendesse às expectativas dos novos governantes. Desta forma, estas crônicas articularam discursos de poder e tentaram moldar realidades sociais, o que ajuda a explicar muito das lacunas, esquecimentos e imprecisões relativas ao passado normando-escandinavo presente nas mesmas.

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POTTS, Cassandra. Monastic Revival and Regional Identity in Early Normandy. Woodbridge: Boydell, 1997, p. 03.

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