Memórias das coisas, corpos e cacos: Afeto e cronotopias da intimidade.

September 26, 2017 | Autor: Erly Vieira Jr | Categoria: Contemporary American Cinema, Affect (Cultural Theory), Sadie Benning
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Memórias das coisas, corpos e cacos: Afeto e cronotopias da intimidade[1]

Memories of things, bodies and fragments: Affect and chronotopes of
intimacy

Erly Vieira Jr[2] (Doutor – UFRJ/Ufes)



Resumo:

Desde a década de 90, vemos emergir um amplo conjunto de obras audiovisuais
que buscam tatear a presença invisível do cotidiano como possibilidade
narrativa calcada numa esfera íntima. Buscamos aqui mapear os cronotopos
desse cinema, ao tornar visível a memória afetiva dos objetos (Wong Kar-
Wai) e dos corpos (Claire Denis), ou na apropriação dos fragmentos
simbólicos (materiais ou midiáticos) que orbitam ao redor da câmera (Sadie
Benning).



Palavras-chave:

Cinema e sensorialidade, afeto, corpo, cinema contemporâneo.



Abstract:

Since the 90s, we see emerging a wide range of audiovisual works that try
to understand the invisible presence of the everyday and intimacy as
narrative ways in contemporary cinema. We propose to map the chronotopes of
this "everyday cinema", to make visible the affective memory of objects
(Wong Kar-Wai) and bodies (Claire Denis), or the symbolic appropriation of
material/mediatic fragments who orbits around the camera gaze (Sadie
Benning).

Keywords:

Film and sensoriality, affect theory, body, contemporary cinema.



Podemos dizer que, desde o começo da década de 1990, vemos emergir, no
panorama do cinema mundial, um amplo conjunto de obras audiovisuais que
buscam tatear a presença invisível do cotidiano como possibilidade
narrativa, a partir da sobrevalorização do espaço íntimo dos personagens e
do trânsito de afetos que se dá no encadeamento dos elementos que
constituem a trama. Quando falo em afetos, aproprio-me da concepção de
Patricia Clough (2007), herdeira da tradição spinoziana/deleuziana, na qual
os afetos, para além de um vínculo que se restringe ao emocional, estariam
mais ligados à capacidade dos corpos de serem afetados, bem como ao
aumento/diminuição das potências e possibilidades desses corpos interagirem
e/ou conectarem-se ao que os cerca. Nesse tipo de cinema, em que a dimensão
corporal torna-se primordial dentro da narrativa, outras seriam as
construções espaço-temporais ("cronotopos", no sentido bakhtiniano do
termo) que lhes seriam inerentes.

Para Leonor Arfuch (2005), essas "cronotopias da intimidade" articular-se-
iam dentro de um processo contemporâneo de descoberta da interioridade como
inquietude – um desassossego que não é apenas palavra, corpo, imagem ou
território, mas também tensionamento entre o público e o privado, no âmbito
da confecção de uma nova identidade. A intimidade, assim, assume-se como a
esfera que mais intensamente nos constitui: não mais uma ideia de privação,
mas sim assumindo a dupla função de abranger o doméstico (tangível) e
proteger o íntimo (intangível) do assédio de uma sociedade que quer
submeter toda experiência ao imperativo de uma exteriorização homogeneizada
e potencialmente esvaziadora de sentidos. Arfuch afirma que tais
cronotopias operariam como nítidos enclaves de afetividade no espaço físico
cotidiano, tornando-o também um "espaço biográfico" (ARFUCH, 2005, p. 248),
investido de afetos e memórias por quem o habita.

Daí a necessidade de se mapear, nesse cinema que lança um olhar
microscópico/minucioso (e por vezes assumidamente sensorial) ao banal e o
corriqueiro, alguns dos possíveis cronotopos que talvez lhe sejam
recorrentes, de modo a tentarmos compreender como a dimensão afetiva está
presente nesse processo de reconfiguração simbólica das esferas da
intimidade e do corpo. Penso aqui em três categorias iniciais, três
possibilidades de diálogo entre as memórias dos corpos filmados e
espectatoriais com essa nova subjetividade resistente que emerge desse
"cinema do cotidiano".


A primeira delas constituir-se-ia ao redor das memórias dos objetos. Estes,
para Laura Marks, seriam um tipo potente de imagem-lembrança ao mesmo tempo
articulada na intersecção entre uma história pessoal e um processo de
desterritorialização cultural, funcionando como "sobreviventes teimosos de
outro lugar-tempo que traz seus conteúdos voláteis para o presente" (MARKS,
2000, p. 77). Em alguns casos, tais objetos, ao serem recobertos
primeiramente por uma camada de história, e em seguida por várias camadas
de sedimentos afetivos, podem se assumir como "fósseis", cuja
"radioatividade" (MARKS, 2000) pode ser reativada através de sua circulação
em novos contextos históricos, como vemos nos filmes de Wong Kar-Wai
ambientados na Hong Kong dos anos 60, em especial Amor à flor da pele
(2000).


A metáfora do fóssil, termo originário da paleontologia, que Marks toma
emprestado dos escritos de Deleuze sobre o cinema, mostra-se propícia aqui,
uma vez que o fóssil (no conceito das ciências naturais) é criado pelo
contato do objeto com o material testemunhal da terra, que, no processo de
decomposição do tecido animal ou vegetal, acaba se solidificando e se
transformando em pedra. No caso cinematográfico, podemos pensar em objetos
que remetem a outras memórias e afetos vivenciados pelos personagens, que
vão se recobrindo de outras camadas e, a princípio, sendo silenciados com o
passar dos anos. Todavia, como afirma Laura Marks, basta um terremoto para
eles emergirem e emanarem sua "radioatividade", sinalizando que o passado
que representa não acabou e sugerindo que o espectador desvende o passado.
Os fósseis seriam, portanto, essas "imagens estranhas e teimosas que
parecem surgir de uma realidade que está em conflito com seus arredores"
(MARKS, 2000, p. 85) – fragmentos de memória que emergem e são misteriosos
em seus significados, ativados por objetos cênicos, silenciosamente
capturados pela câmera e que, mais do que funcionarem como elementos
subordinados à narrativa, acabam por desencadear um novo trânsito de afetos
entre filme e espectador.

Em Amor à flor da pele, sob um certo tom de memória e nostalgia de uma Hong
Kong que já não existe mais no momento de sua filmagem (virada do século),
Wong Kar-wai lança mão de uma linguagem afetiva, estruturada sob uma
progressão de fragmentos, lembranças parciais e bastante subjetivas, para
narrar o doloroso encontro de seus protagonistas. É como se fossem páginas
de um diário, quase que aleatoriamente folheadas, e escritas em parágrafos
soltos, dessas às quais agregamos invólucros de bombons, lenços perfumados,
pétalas secas de flores e outras memórias que, uma vez fossilizadas, são
capazes de aderirem ao papel com a ajuda de um simples clipe metálico.

Nesse filme, os seres inanimados (inclusive papéis de parede, estampas de
tecido, o reflexo pulsante do neon numa vidraça ou a fumaça que sai de uma
panela de macarrão) assumem uma função primordial ao reativarem a memória
corporal do espectador. Recortados em planos-detalhe, eles apontam para um
encontro erótico que não se concretiza em sua plenitude, mas, pelo
contrário, esvazia-se: o clímax da experiência espectatorial, aqui, estaria
pautado pela inconclusão – e cabe aos objetos cenográficos de época,
captados em plano detalhe pela câmera, por vezes dotados de uma misteriosa
e invisível potência, conduzirem o espectador a outros trânsitos afetivos,
em que suas memórias e experiências pessoais são convocadas a preencherem
algumas das possíveis lacunas que estruturam a narrativa fílmica.

Estamos bem distantes da noção de fetiche (à qual Marks opõe o fóssil), tão
costumeira nas leituras críticas do cinema de Wong Kar-Wai (e que se faz
presente em cenas como a tão citada caminhada da personagem Su Li-Zhen pela
escadaria em câmera lenta): em lugar de cristalizar um desejo pregresso, e
de reativar um território já percorrido pelo espectador, o fóssil possui
uma potência desorganizadora, deflagra um conflito do objeto com seus
arredores (inclusive os corpos que o rodeiam), denuncia a falência do
esperado encontro erótico que jamais irá se consumar, ao nos lembrar que o
vínculo que une os protagonistas é muito mais próximo de uma partilha
solidária de seus fracassos e melancolias – algo que ecoa também pela
trilha sonora, em que a composição "Yumeji's Theme" funciona como um
leitmotiv na iminência de uma explosão, de uma catarse que nunca vem. E é
nessa tensão entre o fetiche o fóssil que o filme de Kar-Wai irá
ressignificar os objetos em seus cronotopos narrativos.


Uma segunda possibilidade estaria nas memórias corporais, em especial num
certo cinema que sobrevaloriza a dimensão sensorial através de uma espécie
de câmera-corpo, dotada de uma "visualidade háptica" (MARKS, 2000), que
busca emular a dimensão tátil da imagem. Observada especialmente nos filmes
de Claire Denis (como Bom trabalho, de 1999 e Desejo e obsessão, de 2001),
mas também em certos momentos do cinema de Naomi Kawase (Shara, 2003) e
Karim Aïnouz (Madame Satã, 2002), ela tenderia a percorrer a superfície do
objeto: mais inclinada para o movimento do que para o foco, mais aproximada
ao roçar (graze) do que ao olhar (gaze), forçando o observador a contemplá-
la por si só, microperceptivamente, fazendo ativar os saberes e memórias
que carregamos em nossos corpos e sentidos.

Nesse tipo de visualidade, assim como na categoria de filmes que apresentei
anteriormente, as imagens percebidas são completadas justamente pela
convocação da memória e da imaginação, de modo a conferir outros
significados ao que se filma em plano-detalhe, para além de explicações
racionais – o que diferenciaria uma categoria da outra, contudo, seria o
fato que a visualidade háptica trabalha diretamente com uma presença física
dos objetos, com a convocação de uma sensorialidade transbordante na
materialidade fílmica, que nos faz recordar, enquanto assistimos ao filme,
que ainda temos um corpo, com toda sua concretude.

No caso de Bom trabalho, vemos toda uma asfixiante atmosfera de competição,
ressentimento, desejo sexual reprimido e exploração dos limites físicos
(situações inerentes ao ambiente de treinamento da Legião Estrangeira)
constituir-se a partir de uma visualidade que sobrevalorize os contornos e
texturas sensuais dos corpos em movimento, dialogando com a beleza e aridez
das formas naturais que compõem a concretude material do cenário desértico.
Trata-se de uma estilização visual das formas no espaço, que atinge o nível
coreográfico (graças à parceria com o coreógrafo Bernardo Montet no preparo
corporal dos atores), conjugando carne, céu, sol, montanhas, deserto numa
paisagem que a câmera de Agnes Godard possa explorar muito de perto – às
vezes, numa distância por demais íntima, que nos permite ver a pulsação de
uma veia no braço e nos faça apreendê-la como ritmo e textura puros.

Além disso, a repetição incansável e ritualizada dos gestos inerentes ao
cotidiano militar, nos treinamentos ou nas tarefas de caserna, muitas vezes
captados num plano extremamente próximo, por vezes permite uma espécie de
suspensão temporal, abrindo espaço para uma abstração sensorial que permita
ao olhar do espectador deixar-se levar pela flutuação que conduz tais
movimentos, tentando acompanhar a liberação da energia corporal que eles
provocam e por vezes partilhando de uma experiência fortemente erótica
(inclusive no sentido batailleano do termo).


Uma terceira possibilidade de se pensar os cronotopos da intimidade estaria
num conjunto de filmes que retratam um desejo de expansão e reorganização
do microcosmo ao redor do cineasta, num ímpeto juvenil de agregar objetos
exteriores, ou mesmo seus fragmentos a seu universo íntimo, apropriando-se
desses fragmentos materiais ou midiáticos para conferir-lhes um sentido
afetivo. Tomarei aqui como exemplo dessa "memória dos cacos" o olhar
curioso que investiga a vizinhança da cineasta Sadie Benning, em Girlpower
(1992), num misto de familiaridade e estranhamento/ desconfiança presentes
numa construção identitária tão característica da adolescência.


Com auxílio de uma câmera de baixíssima resolução, com imagens fortemente
pixelizadas (a PXL-200), ela elaborou, no começo da década de 90, uma série
de filmes-diários – todos rodados em seu quarto ou na sua vizinhança,
mesclando objetos oriundos da cultura de consumo, inclusive imagens
televisivas e recortes de revistas. Neles, Benning aparece como sujeito,
dialogando de maneira irônica, e por vezes raivosa, tanto com o consumismo
desenfreado de sua geração quanto com as emissoras de TV norte-americanas
do final dos anos 80. Se no início a presença da cineasta em seus filmes
era fragmentária, é a partir de seu outing, ocorrido aos dezessete anos de
idade, que sua presença no vídeo aumenta sensivelmente, de modo que cada
vez mais tais obras audiovisuais orbitam em torno de um único objeto: sua
vida e sua sexualidade.


Aos dezenove anos, ela realizaria Girlpower, um vídeo que, segundo o
crítico Gary Morris, teria no mergulho no reino da imaginação, onde enfim
garotas adolescentes podem fazer suas próprias regras, sua única esperança
de escapar de um mundo ao mesmo tempo brutal e necessitado. Como afirma
Benning, citada por Morris: "Eu construí meu próprio mundo dentro da minha
cabeça. Eu tinha amigos imaginários, amores de faz-de-conta. Viajei para
lugares distantes e fiz o que quis, lutei contra a lei e, claro, fiz minhas
próprias regras" (MORRIS, 1999, p. 1).


Desse modo, as fantasias de imitação de ídolos masculinos da TV e das
revistas, tão presentes na infância da cineasta, são reconfiguradas pelo
avesso: sai de cena a busca por um "príncipe encantado", para dar lugar às
rockstars femininas dos 80s: Joan Jett, Deborah Harry, as Go-go's – imagens
de mulheres poderosas e independentes, um verdadeiro "girl power". E,
depois de confrontar imagens de poder masculinas e femininas, resta a
Benning voltar a câmera para si própria: "What's inside of me?", ela
indaga. Movida pela raiva contra um mundo que quer isolá-la, aliená-la,
torná-la invisível (bem como a outras garotas como ela), Benning propõe
reorganizá-lo, agregando, com sua câmera, o que lhe convém.


Daí capturar tudo com a imagem em baixa resolução da Pixelvision, inclusive
filmando com ela as imagens veiculadas pelos noticiários de TV e pelos
videoclipes exibidos na MTV. É como se essa pixelização de todas as
imagens, seja dos objetos físicos de seu convívio, seja das paisagens da
vizinhança, seja das paisagens midiáticas desmaterializadas que preenchem
seu cotidiano, implantasse-lhes um certo grau zero, ressignificando-as nas
regras próprias de um mundo em baixíssima resolução, porém de intenso
transbordamento afetivo entre filme e indivíduos, entre as memórias da
cineasta e as do espectador.


E tal condição é potencializada pela implantação de um espaço biográfico no
âmbito fílmico, que "traz para a cena pública seu poder perturbador e
desestabilizador, seu excesso constitutivo" (ARFUCH, 2005, p. 274). Essa
enunciação do "eu" postula uma presença, viva e inequívoca, configurando-
se, segundo Arfuch, numa narração da "solidão de existir" que nos fala
Levinas (ainda que tal solidão não possa ser compartilhada) que, no caso
dos diários íntimos, se faz através de uma escrita desprovida de amarras,
aberta à improvisação, aos inúmeros registros da linguagem e do
colecionismo. Daí essa bricolage de imagens diversas, niveladas por uma
pixelização aparente, e que muitas vezes cobiça um excedente, um
transbordamento, que muitas vezes se traduz num desejo de apalpar o mundo a
seu redor – como (literalmente) irá fazer, por exemplo, Naomi Kawase, ao
tocar o rosto de sua avó em um de seus filmes de juventude: Caracol
(Katatsumori, 1994).


Ao "fagocitar" uma miríade de fragmentos cotidianos que rodeiam seu corpo,
Benning constitui assim um mundo próprio que se apresenta como cicatriz,
volumosa como uma quelóide, mas também potente como uma fratura em
constante reativação, tal qual um verdadeiro balé afetivo de placas
tectônicas que roçam incessante por entre o interior e o exterior de seus
espaços biográficos.



Referências

ARFUCH, Leonor (org.). Pensar el Tiempo. Buenos Aires: Paidós, 2005.

CLOUGH, Patricia. The Affective turn: Theorizing the social. Durham: Duke
University Press, 2007.

JONES, Kent. Evidencia Física: Escritos selectos sobre cine. Santiago:
Uqbar, 2009.

MARKS, Laura. The Skin of Film. Durham: Duke University Press, 2000.

MORRIS, Gary. "Behind the Mask: Sadie Benning's Pixel Pleasures". In:
Bright Lights Film Journal, 24, April 1999.

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[1] Trabalho apresentado no XVI Encontro Socine de Estudos de Cinema e
Audiovisual na sessão 2 do Seminário Temático Imagens e afetos.
[2] Erly Vieira Jr (Vitória, 1977) é doutor em Comunicação e Cultura pela
UFRJ e é professor do Departamento de Comunicação Social da UFES. Também é
roteirista e diretor de curtas-metragens.
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