Memórias de dor na paisagem urbana de Buenos Aires: o Parque de la Memoria

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Memórias de dor na paisagem urbana de Buenos Aires: o Parque de la Memoria

Trabalho de Conclusão de curso de Arquitetura e Urbanismo Escola da Cidade/2016 Rebeca Lopes Cabral Orientação | Profa. Dra. Marianna Boghosian Al Assal

índice

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Introdução

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O Parque de la Memoria e a [conflituosa]

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topografia de dor de Buenos Aires Memórias e debates

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Aspectos espaciais e simbólicos

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Conclusão

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introdução

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[...] edifícios, lugares, e paisagens, em sua forma e substância material são testemunhas históricas preciosas. Eles contém respostas que talvez nós não consideramos, mas que nossas crianças sim. Enquanto um objeto tridimensional, eles são mais complexos do que algo escrito, entretanto mais difíceis de ler. E o genius loci — o espírito do lugar — é constantemente difícil de descrever, mas sem dúvida é perceptível para uma mente aberta, e faz com que as pessoas sintam que elas compartilham experiências passadas, como se tivessem um acesso direto à história (Dolff-Bonekämper, 2002, p.4, traduzido por mim)1.

O presente Trabalho de Conclusão trata-se de uma continuidade da iniciação científica (IC) “Buenos Aires: memórias de dor na paisagem urbana” , realizada na Escola da Cidade, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo entre setembro de 2015 e outubro

1 “[...] buildings, sites, and landscapes, in their shape and material substance, are precious witnesses to history. They contain answers to questions that we may not have considered but that our children might. As threedimensional objects, they are more complex than a written source, although less easy to read. And the genius loci – the spirit of the site – is often hard to describe but doubtlessly perceptible to the open minded, and it makes people feel that they share past experiences, as if there were a direct access to history” (Dolff-Bonekämper, 2002, p. 4).

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de 2016 e sob orientação da Prof. Dra. Marianna Boghosian. A investigação centrou-se nos lugares de memória – tais como memoriais, praças, placas comemorativas – relacionados à ultima ditadura militar argentina (1976-1983) que conformam uma paisagem de dor em Buenos Aires. Compreendeu-se esses lugares por meio da dialética que os construíram: entre as relações dinâmicas dos grupos envolvidos nos trabalhos de memória; e os signos (como aquilo que comunica), ferramentas e técnicas (arquitetônicas, arqueológicas, gráficas, propagandísticas, entre outras) escolhidos para representar espacialmente a memória da ditadura. A IC esteve dividida em duas frentes centrais: a primeira focou na montagem e análise parcial de um arcabouço referencial e teórico, que localizou as práticas de memória no contexto argentino; e a segunda que, diante das questões levantadas no primeiro momento, gradualmente concentrou-se no caso do Parque de la Memoria – Monumento a las victímas de Estado. O TC continua esse exercício aprofundado de análise do parquememorial, caso emblemático que foi capaz de levantar questões mais amplas mapeadas durante a investigação e apresentadas ao longo das próximas páginas. A partir desse objeto busca-se aqui problematizar os paradoxos, conflitos (Di Cori, 2005) e diálogos que envolvem a transformação de lugares da barbárie (que foi esse lugar no passado) em lugares de memória e consciência. Tendo em perspectiva as relações transnacionais2 que se estabelecem em um mundo globalizado (Huyssen, 2014), a problemática da investigação desenrola-se numa análise das possibilidades éticas, estéticas e políticas de representação da violência (Diéguez, 2013) na cidade contemporânea. Mais do que isso trata-se aqui dos esforços da arquitetura de propor um monumento capaz desse esforço de rememoração.

O olhar para os espaços de memória na Argentina justifica-se

2 A noção de transnacionalismo define, para Andreas Huyssen, as relações entre o local e o global na contemporaneidade. Segundo o autor, a emergência da globalização e da mídia alteraram as relações entre nacional e internacional. O conceito visa então compreender essa mudança apontando, assim, para “os processos dinâmicos de mescla e migração cultural” (Huyssen, 2014, p.34) - ao contrário da noção de internacional, que refere-se “às relações entre Estados ou culturas como entidades fixas.” (Huyssen, 2014, p.34)

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sobretudo pelas diversas contribuições para pensarmos a mesma questão no Brasil, onde os trabalhos sobre a memória da ditadura são mais recentes. Como afirma Andreas Huyssen: [..] a Argentina hoje, apesar de suas dificuldades econômicas, tem os mais intensos debates sobre memória entre os países latino-americanos que foram atormentados pelas campanhas militares de repressão, tortura e assassinato nas décadas de guerra fria posteriores aos anos 1960. (2014, p. 215)

Apesar de, no Brasil, as iniciativas de vítimas e parentes ocorrerem há mais tempo, o tema começou a ganhar destaque só em 2011 – após 26 anos do fim da ditadura brasileira – com a Comissão Nacional da Verdade (CNV)3, formada como um aparato jurídico para realizar a investigação dos crimes cometidos pelo Estado durante o período militar. Embora em São Paulo, por exemplo, só haja um memorial dedicado à memória da ditadura brasileira (o Memorial da Resistência), existem outros dois planejados (o da Auditoria Militar e outro nas dependências do DOI-CODI). Assim, ações, legais e simbólicas, que ainda não foram possíveis no Brasil já vem acontecendo na Argentina desde 1978 (ano da primeira ocupação das Madres de Mayo). Com isso ainda podemos vislumbrar atuações desde o campo da arquitetura e do urbanismo, já que os lugares da cidade, cada vez mais, se afirmam como ferramentas poderosas de memória e luta política. Entre os anos 1930 e 1976 a Argentina viveu seis golpes militares. A última ditadura, foco do TC, aconteceu em 1976. Nesse ano o golpe militar que derrubou a então presidenta Maria Estela Martínez, conhecida como Isabelita Perón, viúva do presidente Juan Perón, com a justificativa de conter o mau governo, o crescimento da inflação e a influência socialista. Chamando a ação de “reorganização nacional” e justificando-a com a teoria de “los dos demonios4” os militares iniciaram a época mais violenta da história

3 http://www.cnv.gov.br/ > Acessado em 27/07/2015. 4 Os dois demônios (los dos demonios) consistiam em dois grupos da direita radical e o terror da guerrilha urbana de esquerda – numericamente insignificante. Segundo o discurso dos militares argentinos, que justificou o golpe, seus combates e violências “ameaçavam a paz da população” (Huyssen, 2014).

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do país e uma das mais sanguinárias da América Latina. Objetivavam com isso ‘conter ações guerrilheiras’ (segundo o discurso do “los dos demônios”) e vetar qualquer tipo de participação popular (Villaça, 2010). A secretaria de direitos humanos argentina calcula que cerca de 30.000 pessoas estão entre os mortos e desaparecidos nesse período embora os relatórios da Comisión Nacional sobre el Desaparecimento de Personas (CONADEP) aponte por volta de 10.0005. No início da década de 1980 o governo militar argentino encontravase arrasado. Com milhares de pessoas desaparecidas, uma divida externa gigantesca, e um Estado Militar que havia sido devastado pelos ingleses na Guerra das Malvinas (1982). Frente à enorme insatisfação com a situação do país, deu-se início à luta contra o terrorismo de Estado. Por muitos anos uma tarefa quase exclusiva de organizações de vítimas e parentes de vítimas, especialmente das Madres e Abuelas de Mayo (Di Cori, 2005). Em 1978, antes mesmo do fim da ditadura, as Madres, chamadas pelo governo militar de “las locas” (Di Cori, 2005), ocuparam a Plaza de Mayo, por meio de protestos e marchas de resistência. Vestindo suas cabeças com lenços brancos pediam seus filhos desaparecidos de volta, com vida “porque con vida los llevaron y con vida los queremos” (Flores, 2016). Em 1983 com a saída das forças armadas do poder, Raul Alfonsín foi eleito, iniciando o processo de transição na Argentina com “(...) a tarefa sem precedentes de assegurar a legitimidade e o futuro das políticas emergentes, buscando maneiras de comemorar e avaliar os erros do passado” (Huyssen, 2000, p. 16-17). Mesmo com a situação delicada do país, o clima era de grande efervescência e esperança, com um governo que buscava reforçar as vantagens da democracia e reavivar o orgulho nacional esquecido durante a ditadura (Huyssen, 2014). Alfonsín apostou em uma política cultural que retomou para o uso público lugares ícones da cidade como a Casa Rosada, o Congreso e a Avenida de Mayo. Lá aconteciam concertos musicais e eventos ao ar livre, que comemoravam o otimismo da mudança política e ofereciam aos habitantes de

5 Deve-se ter em vista a dificuldade burocrática enfrentada por órgãos como o CONADEP em comprovar que os desaparecimentos de pessoas se deram pela mão do Estado, já que os processos de desaparição e tortura eram encobertos durante a ditadura.

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Buenos Aires uma nova vivência de cidade (Schindel, 2009, p. 88). Em 15 de dezembro de 1983 foi criado a Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP), um órgão governamental composto por personalidades da sociedade civil e integrantes da câmara dos deputados (Crenzel, 2008, p. 18). O CONADEP teve como tarefa receber as denuncias e provas sobre as desaparições e encaminha-las à justiça, investigar o paradeiro dos desaparecidos, denunciar à justiça toda a tentativa de destruir provas e, por fim, emitir um relatório final (Crenzel, 2008, p.18). Um ano depois, numa noite de 1984, 70.000 pessoas reuniram-se na Plaza de Mayo para comemorar a entrega do relatório Nunca Más ao então presidente Alfonsín (Crenzel, 2008, p.19). Em 1985 o informe foi base para o Juício a las Juntas Militares, que julgou alguns dos acusados. No entanto as investigações duraram pouco tempo. Em 1986 e 1987, respectivamente, ainda durante o mesmo governo, foram aprovadas as leis Punto Final (n° 23.492) e a lei Obediencia Debida (n° 23.521) A primeira lei paralisou as investigações e anistiou os militares, e a segunda lei determinou que os crimes cometidos não eram puníveis, alegando que muitos dos militares foram coagidos à cometer os crimes por seus superiores.6 Por entre essas controvérsias construiu-se a luta pública contra o terrorismo de Estado por parte de familiares de desaparecidos. Associada a esse conjunto de medidas governamentais inéditas (mesmo que paradoxais) – como o Juício a las Juntas e o relatório Nunca Más – constrói-se uma memória comum sobre os crimes da ditadura militar (Silvestri, 2000). A teoria de los dos demonios, que justificou o golpe militar e teve grande aceitação durante o governo Alfonsín, foi lentamente sendo substituída pelo consenso de que houveram violações contra os direitos humanos pelo Estado (Huyssen, 2014). Como parte desse movimento de luta, grupos da sociedade civil7 vêm reivindicando locais de tortura, memoriais e praças públicas, como provas jurídicas, espaços de significados políticos e simbólicos

6 http://www.cels.org.ar/> acessado em 27/07/2014 7 As primeiras agrupações, e pode-se dizer que as mais emblemáticas são as Madres de Mayo, as Abuelas de Mayo e os Hijos por la Indentidad y la Justicia Contra el Desaparecimiento de Personas (H.I.J.O.S).

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dos mais de 30.000 desaparecidos. Nesse sentido, dois conceitos tornam-se fundamentais para a reflexão aqui proposta: o de sítios de memória e o de sítios de consciência. A noção dos lugares de memória foi cunhada por Pierre Nora, nos três volumes da obra Lugares de Memória (Les Lieux de Memóire, 1984; 1987; 1992; apud projeto de pesquisa em políticas públicas, 2016). Nela o autor considera que os lugares, são palco e agentes de acontecimentos e, assim, tornam-se capazes de favorecer reconexões com identidades e tradições históricas8 (Projeto de pesquisa em políticas públicas, 2016). Ao acontecer ali, o fato histórico fica intimamente conectado ao local, de modo que pode-se afirmar que as memória possuem uma ligação inerentemente topográfica, histórico e espacial. Por sua vez, esses lugares marcados pela história, são também capazes de produzir novos vínculos e dinâmicas sociais9 (Dolff-Bonekämper, 2010). O autor aplicou essa ideia à todas as dimensões da vida material. Para esse trabalho, interessam lugares que, como parque, se configuram ou são acessíveis – ao menos visualmente – desde o espaço público. No final do século XX a literatura começou a problematizar a obra de Nora. Principalmente pelo fato da sua preocupação central recair sobre a extinção de um Estado Nacional francês, laico e republicano, que ele via ameaçado no final do século XX (Projeto de pesquisa em políticas públicas, 2016) e, por tal razão, acabou desconsiderando grupos historicamente marginais. Nesse sentido autores como Dolores Hayden (1994, p. 9 apud projeto de políticas públicas) apontam a necessidade de trazer a público esses diversos grupos e temas relacionados – tais como questões de gênero, etnia, raça, etc. Para isso, segundo ela, contribui em muito a procura de uma nova perspectiva de tratamento da cidade, que busque a inclusão mais igualitária desses grupos na sociedade.

8 Nora se refere à identidade francesa, especialmente republicana, que ele via ameaçada no século XX (apud projeto em políticas públicas, 2016). 9 Contudo um lugar de memória só o é para aquele que viveram no lugar, que tem suas lembranças ali. No caso dos que não viveram, a memória é substituída pela aprendizagem (Dolff-Bonekämper, 2010). Quem visita esses sítios recorda por “estações” de memória que, em conjunto, conformam caminhos e percursos que permitem o acesso às recordações individuais. Formam-se assim topografias, caminhos em trama, compostos por essas etapas de aprendizagem (Dolff-Bonekämper, 2010, p. 29).

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A preocupação de Hayden insere-se ainda em um cenário mais amplo. Segundo Andreas Huyssen (2000) é notável, principalmente a partir da década de 80, uma tomada de consciência histórica frente aos eventos atrozes que caracterizaram o século XX10 (Huyssen, 1984). Nesse contexto ganharam força os debates sobre o Holocausto, desencadeados pelos eventos relacionados ao terceiro Reich na Alemanha, que também aconteciam em outros países11. Em um cenário de vulnerabilidade – cultural, política e econômica no início da década de 80 – dos países afetados por catástrofes e de intensificação da globalização, a divulgação dos debates sobre o Holocausto, enquanto ferida maior do ocidente (Vezzetti, 2005), despertou ações voltadas para os contextos locais (Huyssen, 2000). Receberam especial atenção outras memórias dolorosas (Diéguez, 2013; Dolff-Bonekämper, 2002) ou memórias traumáticas12 (Huyssen, 2000; 2014). Desde então destaca-se o exponencial aumento na construção de monumentos, memoriais, placas comemorativas, ocupações e intervenções artísticas relativos ao tema (Jelin, 2002).

����������������������������������������������������������������������������������������� Segundo Huyssen (2000) especialmente a partir dos anos 80, com o dito pós modernismo, há um de desvio do olhar para o passado e algumas histórias, antes na penumbra, foram assim iluminadas (Fabbrini, 2015). Frente a autores como Fredric Jameson e Jean Baudrillard - que encaram a pós modernidade como “pastiche” ou paródia pálida” (Jameson, 1985) – Huyssen reconhece o frequente uso aleatório e comercial da memória. Entrando aponta à necessidade de perspectivas que apontem para o potencial crítico que, segundo ele, existe e localiza-se, justamente, no contraste entre o olhar para o passado e o privilégio dado ao futuro no projeto desenvolvimentista do século XX. As grandes guerras, o Apartheid na África, o Holocausto na Alemanha e os regimes ditatoriais na América Latina, são apenas alguns dos que atormentaram o século anterior (Huyssen, 2000). ������������������������������������������������������������������������������������� “A ascensão de Hittler ao poder em 1933 e a infame queima de livros, relembrada em 1983; a Kristallnacht, o progrom organizado em 1938 contra os judeus alemães, objeto de uma manifestação pública em 1988; a conferência de Wannsee de 1942, que iniciou a “Solução final”, relembrada em 1992 com a abertura do museu na vila de Wansee onde a conferencia tinha sido realizada; a invasão da Normandia em 1944, relembrada com um grande espetáculo realizado pelos aliados, mas sem qualquer presença russa, em 1994; o fim da segunda guerra mundial em 1945, relembrada em 1985 com um emocionado discurso do presidente da Alemanha e, de novo, em 1995 com uma série de eventos internacionais na Europa e no Japão. Estes eventos, a maioria “efemérides alemãs”, às quais se pode acrescentar a querela dos historiadores em 1986, a queda do muro de Berlin em 1989 e a unificação nacional da Alemanha em 1990 – receberam intensa cobertura da mídia nacional, remexendo as codificações da história nacional posteriores à Segunda Guerra Mundial da história nacional da França, a Áustria, na Itália, no Japão e até nos Estados Unidos e, mais recentemente, na Suiça. O Holocaust Memorial Museum em Washington, planejado durante a década de 1980 e inaugurado em 1993, estimulou o debate sobre a americanização do Holocausto.” (Huyssen, p.11, 2000).   ���������������������������������������������������������������������������������� Deve-se atentar ao uso do termo, pois, segundo Hugo Vezzetti, nem toda situação catastrófica desenvolve um trauma. Frente à colocação utilizo, na maioria das vezes, o termo memórias dolorosas (Vezzetti, 2007).

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Na década de 90 as noções teóricas expandiram-se para instituições que passaram a explorar as relações entre sítios específicos e grupos historicamente esquecidos. Reconheceu-se nesses espaços uma preciosa via de transmissão de conhecimentos capaz de ampliar a consciência histórica e afirmar os direitos humanos (Projeto de Pesquisa em Políticas Públicas, 2016). Em 1999 o seminário Study and Conference Center da Rockefeller Foundation em Bellagio, Itália, reuniu pesquisadores e gestores de instituições de sítios de memória doloras. Dentre os presentes estavam representes do Museu do Gulag em Perm, Rússia; do Tenement Museum no Lower East Side, Nova Iorque, da ONG Memoria Abierta13 (Argentina), do Memorial do campo de concentração de Terezin (República Checa), a Casa de Escravos (Senegal). Como descreve Abram o encontro pretendeu (2005, p.19 apud projeto de pesquisa em políticas públicas) “perguntar não apenas ‘o que é a história’, mas também ‘o que a história pode fazer para fazer do mundo um lugar melhor’ ”. A troca de experiências entre essas instituições, por meio das discussões, palestras e debates, permitiu a elaboração noção de sítios de consciência – lugares de memória que buscam fomentar o diálogo em torno de temas contemporâneos” (Projeto de pesquisa em políticas públicas, 2016); bem como a sua disseminação através da configuração da rede global International Coalition of Sites of Conscience, hoje composta por mais de 200 integrantes. Através dela levantaram-se “questões relacionadas à memória, à história, ao debate em torno de direitos (e sua violação) em sítios pertinentes a esses debates” (Projeto de pesquisa em políticas públicas, 2016). Enquanto o cenário mundial do período que emergem tais questões é marcado pelo fim da guerra fria e a crise da União Soviética socialista; na América Latina, o fim ditadura militar, em mais de uma dezena de países, desencadeou um longo processo de redemocratização. O chamado período de transição aconteceu a partir do fim das ditaduras militares, em 1982 na Bolívia, 1983 na Argentina, 1984 no Uruguai e em 1985 no Brasil, e foi marcado pela fragilidade do ponto de vista político, econômico e social. Embora cada região tenha suas particularidades, alguns aspectos

������������������������������������������������������������������������������������������������ Organização de direitos humanos que objetiva divulgar os registros da última ditadura militar e suas consequências. http://www.memoriaabierta.org.ar/quienes_somos.php > Acessado em 27/07/2016.

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se desenrolaram de maneira parecida: instabilidade política devido a troca de poderes, acumulação de uma grande dívida externa durante o período militar, crescimento negativo do PIB, baixa no nível de industrialização, inflação em alta, e crimes contra os direitos humanos, desaparecimentos, exílios políticos e assassinatos de milhares de pessoas (Villaça, 2010). Na Argentina, a insistente busca por justiça passou assim pela construção de uma topografia da dor 14. Em Buenos Aires, desde o marco política e simbólico da ocupação das Madres de Mayo na Plaza de Mayo, em 1978, concretizaram-se até 2010 cerca de 240 lugares de memória, entre placas comemorativas, ocupações, monumentos ou memoriais (Memoria Abierta, 2010), que até hoje em 2017, continuam se multiplicando. Difíceis de serem arrancados essas construções fazem parte de um acerto de contas público com uma história de graves violações de direitos humanos. Contudo essa topografia não é nem de longe pacífica. Como afirma Anne Huffschimid (2012, p. 18) “[…] apesar de toda iniciativa de institucionalização não há pacificação ou consenso social, nada estabilizado ou garantido para sempre, se não negociação, conflito e uma multiplicidade de modos que marcam e significam o passado no presente15”. Os lugares de memória, palimpsestos de memória (Huyssen, 2012), são compostos, assim, de diferentes camadas de tempo histórico e social. São construídos, justamente, através de um conjunto complexo de disputas entre personagens e grupos, com diferentes memórias, valores e versões dos fatos históricos. Os diversos conflitos – que variam desde questões financeiras até a conservação do lugar (Dolff-Bonekämper, 2002), possuem raízes profundas que vão além das preferências ou posições ideológicas. Estão intimamente conectados com o modo que cada indivíduo expõe sua memória mais íntima e como desejaria transmitila. No espaço público evidenciam-se, assim, diferentes movimentos de resistência, de auto-representação e auto afirmação (Di Cori, 2005) que,

������������������ A noção de uma topografia de dor, de Gabi Dolff-Bonekämper (2002), refere-se aos percursos, lugares e espacialidades que as memórias relativas à traumas conformam nos espaços urbanos. 15 Pese a toda iniciativa institucionalizadora no hay pacificación o consenso social, nada estabilizado o garantizado para siempre, si no negociación, conflicto y una multiplicidad de modos por marcar y significar el pasado en el presente.

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em comum, buscam narrativas representativas justas, que sejam capazes de serem legitimáveis pelo Estado e de transmitir informações sobre o passado (Vezzetti, 2007). Desse modo, “falar de topografia implica em deslocar o olhar do espaço em si até seus modos de representação, as geografias e cartografias como tentativa de (d)escrever o espaço, não como substância mas como efeito, não como essência e sim como relação”. (Huffschimid, 2012, p. 19) Objeto emblemático é o parque memorial, um espaço público construído em homenagem às vítimas da última e mais violenta ditadura militar16. Situado à 10km do centro de Buenos Aires, numa área de quatorze hectares margeantes ao Río del Plata, o local insere-se em um local crucial da topografia de dor de Buenos Aires: às margens do rio onde os corpos mortos eram jogados desde os apelidados Vuelos de la Muerte; perto do aeroporto Jorge Newberry, da onde saiam os Vuelos e nas imediações da Universidade de Buenos Aires (UBA), onde estudavam muitos dos desaparecidos. A iniciativa da construção partiu de organizações de direitos humanos e grupos da sociedade civil argentina e, apesar das discussões sobre o caso terem sido iniciadas no começo de 1990, somente em 2001, após um longo processo de disputas, foi inaugurada a primeira parte do parque. Atualmente o lugar é composto pelo monumento a Las victimas del terrorismo de Estado, onde estão escritos parte dos nomes dos desaparecidos, um conjunto poli escultural e um espaço educacional. A partir do caso interessa para esse TC refletir sobre o acesso às memórias e às informações sobre a ditatura desde o espaço público. Ou seja, como as memórias individuais e coletivas operam de forma dialética com espaço? Como a partir e através daquelas pedras tornam-se capazes de proporcionarem vias simbólicas e politicas de acesso à memória para os que viveram e didáticas aos que não viveram? Quais são os atores, disputas personagens e imaginários por de trás da espacialidade do parque-memorial e, assim, como se originam as escolhas representativas lá presentes? Enfim, quais as possibilidades éticas, estéticas e simbólicas de representação da

������� “ [o Parque de la Memoria] se erige como un lugar de memoria que conjuga la contundencia de un monumento donde están inscriptos los nombres de los desaparecidos y asesinados por el accionar represivo estatal, la capacidad crítica que despierta el arte contemporáneo y el contacto visual directo con el Río de la Plata, testimonio mudo del destino de muchas de las víctimas.” (www.parquedelamemoria.com > acessado em 20/10/2015)

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memória através dos lugares ditos de memória e consciência (Cymbalista, 2015)?

Imagem 1: Lugares de memória da ditadura nas cercanias do parque-memorial. Fonte: Google Earth



A investigação olha criticamente para esses pontos, identificando e problematizando as representações presentes no parque. Afinal, enquanto lugares da cidade, lugares de memória, como esse em questão, constituem um panorama paradoxal. Por um lado, são inerentemente críticos e cooperam para a ampliação dos debates e tomada de consciência histórica acerca do assunto (Huyssen, 1984); são provas legais dos crimes ocorridos; e possuem grande importância simbólica para vítimas e parentes das vítimas. Por outro, estão submetidos às lógicas das cidades contemporâneas, sujeitas às leis do mercado e à banalização da tradição histórica (Di Cori, 2005, p. 91). Nesse sentido o recorte proposto de estudo – o Parque de la Memoria – justifica-se ainda pelos alinhamentos teóricos construídos durante a pesquisa. Situando-se na conhecida discussão apresentada por Theodor Adorno em 1949 no texto Crítica Cultural e Sociedade, quando o autor afirmou que escrever um poema depois de Auschwitz seria um ato bárbaro, a pesquisa identificou-

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se com o posicionamento de alguns autores que acreditam na necessidade de trabalhar os traumas. Estes pensadores mostram, através de suas análises, possibilidades críticas das práticas de memórias contemporâneas17. Assim a bibliografia compõe-se de autores latino-americanos – dentre alguns os argentinos Hugo Vezzetti, Ana Guglielmucci, Graciela Silvestri, Emílio Crenzel, Elizabeth Jelin; os brasileiros Renato Cymbalista e Marcio Seligmann-Silva; a cubana-mexicana Ileana Diéguez – europeus e norte americanos – como Andreas Huyssen, Georges Didi-Huberman, James S. Young e Gabi Dolff-Bonerkamper. Associado às referencias bibliográficas também conforma a plataforma do presente trabalho os materiais iconográficos (plantas, desenhos, etc), institucionais, entrevistas e conversas informais coletadas em campo durante o Estágio de Pesquisa no Exterior na Universidad de Buenos Aires, no departamento de ciências antropológicas, sob orientação de Ana Guglielmucci e com financiamento da Fundação de Amaro à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Através da análise desse material identificou-se três temáticas centrais, a partir das quais a bibliografia foi categorizada: os diálogos entre global e local nas práticas de memória, que pretendeu localizar as práticas de memória argentinas em um cenário global; a paisagem de dor em Buenos Aires, que mapeou as principais questões relacionadas às práticas espaciais de memória local; e o caso do Parque de la Memoria, objeto de aproximação

�������������������������������������������������������������������������������������������� As primeiras discussões sobre trauma e representação emergiram da famosa frase postulada por Theodor Adorno. Em 1949, apenas quatro anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, o pensador refletindo sobre o papel da cultura e do crítico cultural na sociedade pós Holocausto, elaborou a famosa sentença em que afirmou, no texto Crítica Cultural e Sociedade: a “[...] crítica cultural se encuentra frente al último escalón de la dialéctica de cultura y barbarie: luego de lo que pasó en el campo de Auschwitz es cosa barbárica escribir un poema, y este hecho corroe incluso el conocimiento que dice por qué se ha hecho hoy imposible escribir poesía” (Adorno, 1962, p.14). A partir de então, a declaração vem sendo sistematicamente repetida por diversos pensadores que a utilizam, muitas vezes, enquanto “imperativos éticos” que persistem como sentenças paralisantes e imóveis, como afirma Diéguez (2013, p. 52, traduzido por mim): “La archicitada declaración de Adorno, en el ensayo producido em 1949 [...], donde reflexiona sobre el papel de la cultura y en particular la actitud del critico cultural después del Holocausto, ha devenido uno de esos “imperativos éticos” que persisten como sentencias paralizantes y inamovibles.”. Por sua vez, segundo Ileana Diéguez, os que se debruçam sobre a questão estabelecem uma bipolaridade de opiniões, no âmbito acadêmico. De um lado, iconoclastas, como Gérard Wajcman (2001), que defende a não possibilidade de representar a catástrofe. De outro, Giorgio Agamben (2008), Jean-Luc Nancy (2006), Jacques Rancière (2010) e o próprio Georges Didi-Huberman (2014), Andreas Huyssen (2000), que argumentam pela necessidade de representar o trauma (Diéguez, 2013, p. 55).

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escolhido localizar, ainda mais, as questões teóricas antes estudadas. Por meio dessas frentes vislumbrou-se, dentre as várias possibilidades de desenvolvimento da pesquisa, a estrutura do presente trabalho de conclusão. Escolheu-se aqui três entradas, três olhares distintos que, sempre a partir do parque, discutem as relações entre espaço público, memória da ditadura e arquitetura. São elas: a topografia de dor de Buenos Aires e o Parque de la Memoria; a construção do Parque de la Memória: memórias e debates; e, por fim, o Parque de la memoria: aspectos espaciais e simbólicos. O primeiro capítulo, “A topografia de dor de Buenos Aires e o Parque de la Memoria”, busca localizar politicamente o parque numa constelação de movimentos de memória argentinos. Objetiva-se compreender os significados e a importância da sua construção enquanto espaço público em homenagem aos desaparecidos. Assim, busca-se revelar atores, grupos, disputas, ferramentas e características, construídos ao longo da história argentina que atuarão posteriormente do processo de proposição e construção do parquememorial. Como materiais utilizou-se as fontes bibliográficas, especialmente os latino-americanos, mas também entrevistas e conversas informais com os envolvidos nos trabalhos de memória, coletadas durante o trabalho de campo. Dentre eles Júlio Flores, um dos artistas que concebeu o Siluetazo, Mónica Hasenberg, fotógrafa que registrou a luta das Madres, bem como funcionários dos ex centros clandestinos, hoje lugares de memória. A segunda frente, que insere o parque na paisagem urbana de Buenos Aires, concentrará no jogo de interesses políticos e sociais, principalmente entre o governo e envolvidos em sua construção. Objetiva-se mapear algumas das camadas históricas e sociais que foram lembradas e esquecidas, para compreender alguns discursos, desejos e imaginários de cidade relacionados à construção do Parque de la Memoria. Para tal utilizo especialmente as entrevistas realizadas em campo com funcionários do parque, as bases dos concursos (de escultura e de arquitetura), notícias de jornais e revistas e as referências bibliográficas, em especial aquelas que pensaram sobre o caso. O último capítulo analisa os aspectos espaciais e simbólicos da arquitetura do parque articulando-a com as questões exploradas na primeira e da segunda entrada. Pretende-se refletir criticamente sobre os jogos de linguagem da sua arquitetura, como meio para identificar as possibilidades

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políticas, éticas, estéticas. Olha-se então por entre as perspectivas legais, simbólicas e até ritualísticas que o caso abrange. Nesse sentido parte-se de autores como – como Ileana Diéguez, Georges Didi-Huberman e Andreas Huyssen – cuja as reflexões auxiliam, especialmente, à refinar olhar para esses espaços.

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imagem 2: Lugares de memória da ditadura militar em Buenos Aires. Fonte: Memoria Abierta, 2010

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capítulo 1

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O Parque de la Memoria e a [conflituosa] topografia de dor de Buenos Aires

A construção de um parque em homenagem aos 30.000 desaparecidos marcou um ponto alto da luta contra a violência de Estado na Argentina. Em 1996, quando grupos de direitos humanos davam os primeiros passos em direção ao projeto, “as leis de impunidade estavam ainda vigentes, quase não se falava dos desaparecidos [...] Não existia no país um lugar nem remotamente similar a esse. Nem aqui e nem na América Latina.” (Battiti, 2016, entrevista concedida à autora, traduzida por mim). A mobilização de grandes recursos monetários estatais; o lançamento de concursos arquitetônicos; a intensa participação de grupos de direitos humanos; bem como o envolvimento da universidade, inaugurou uma estratégia inédita de trabalho com a memória 18 no país (Di Cori, 2005). Vislumbrou-se, pela primeira vez, a possibilidade de pensar novas relações entre espaço público e memória da ditadura (Di Cori, 2005). O espaço urbano entendido como público e democrático, não por acaso configurava-se como aspecto central nesse cenário de disputas.

A ditadura argentina foi marcada pela restrição do espaço público

����������������������������������������������������������������������������������������� Segundo Elizabeth Jelin (2002) trata-se do agenciamento e do direcionamento consciente das memorias.

através da declaração de estado de sítio promulgada pela junta militar com o golpe em 1976. Suspenderam-se, por meio dela, os direitos e as garantias dos cidadãos, especialmente o de reunir-se e manifestar-se (Liprandi, 2009, p. 389). A partir de então os militares implantaram uma série de medidas de controles que assombravam os bairros porteños (Conte, 2012). Seja pela prática de desaparecimento, quando em bandos de carros ruidosos, se dirigiam às casas, locais de trabalho ou vias públicas para sequestrar as vítimas e leválas aos Centros Clandestinos de Detención; seja pelos ruídos, cheiros, e gritos que escapavam dos centros clandestinos implantados nos bairros de classe média; ou ainda pela vigilância dos espaços públicos, fechados e custodiados para evitar aglomerações populares (Conte, 2012). Essas práticas, inicialmente temidas, foram gradualmente se embrenhando no cotidiano dos habitantes de Buenos Aires. Perante ao medo, os cidadãos se recluíam nas suas casas e mantinham o silêncio absoluto sobre o ocorrido (Conte, 2012, p. 65). Desse modo o governo ditatorial pretendeu destruir qualquer laço possível, de modo que desde o âmbito público ou privado essas medidas, associadas ao medo de desobedecer a ordem, provocaram rupturas. Se na vida pública a situação poderia ser chamada de isolamento, na vida privada aparecia na forma de solidão (Liprandi apud Arendt, 2009, p. 381). O parque insere-se, assim, em um cenário complexo de luta política frente a essa situação, onde a reconquista do espaço público foi essencial para a reconstrução de uma territorialidade rompida (Liprandi, 2009). Durante os anos da ditadura a denúncia foi uma tarefa quase exclusiva dos parentes dos desaparecidos, de alguns agrupamentos de direitos humanos, e de um ou outro jornalista (Di Cori, 2005, p. 96). A primeira espacialização da luta aconteceu com as Madres de Mayo, em 1978, quando escolheram a emblemática Plaza de Mayo para reclamar o paradeiro de seus filhos e netos. Desde então disputados processos vêm dando origem a novos grupos, que resignificaram as ruas, praças e avenidas, e reivindicavam sítios de memória para tornar seus depoimentos concretos. Estabeleceu-se um vínculo topográfico profundo da luta com a cidade, notável na extensa topografia de memória que conforma-se por entre seus bairros. Hoje já são mais de 202 sítios de homenagem e 38 centros de detenção que somam, ao

todo, 240 marcas de terrorismo de Estado (Memoria Abierta, 2010). Por sua vez, tal conexão – entre a luta e o espaço público – faz com que as marcas territoriais revelem características fundamentais da paisagem de dor de Buenos Aires. Como elenca Paola Di Cori (2005) nota-se, dentre elas, uma profunda desconfiança por parte das vítimas e da maioria da população para com o Estado19; o protagonismo dos organismos de familiares de vítimas na elaboração da memória pública sobre o terrorismo de Estado20, onde preponderam mulheres e jovens; e a progressiva tendência de equiparar fatos históricos de natureza e características distintas, sejam eles locais ou internacionais – como a questão indígena, a Shoá e os atentados dos anos 9021, e a condição dos desaparecidos e as práticas de tortura em todo mundo. Quando surgiram as primeiras ideias acerca do parque, em 1996, ao mesmo tempo que os atores sociais envolvidos na sua construção – como as Madres – já haviam ganhado força nas disputas por afirmação e visibilidade pública; as leis de impunidade, criadas durante o governo Alfonsín, permaneciam em vigor no país. Através desses elementos torna-se então possível contextualizar a construção do parque-monumento entendendo seus avanços e limites, não como caso isolado, mas no bojo das dinâmicas locais e globais. O parque-memorial foi construído então através de características, signos, disputas e grupos que foram se consolidando, de modo que, para compreender seus significados na cidade, torna-se necessário traçar um panorama da composição dessa topografia. Nesse sentido a presente análise desenha-se a partir de três exemplos de representações bastante distintas e de grande peso simbólico, que foram referências fundamentais para a construção do parque-monumento: a ocupação das Madres y Abuelas de la Plaza de Mayo, principais personagens da sociedade civil que atuaram na construção do parque-monumento; a intervenção artística Siluetazo, ato

����������������������������������������������������������������������������������������������� Durante o período pós ditatorial garantiu a vigência das leis de impunidade, ocultando assim as provas e freando as investigações, de modo que a reconciliação entre os argentinos e as instituições destinadas a defender seus direitos tornou-se difícil; ��������������������������������������������������������������������������������������� De modo que substituíram instituições do Estado, gradualmente tornando-se visíveis e adquirindo uma crescente importância. ��������������������� Como por exemplo à Asociasión Mutual Israelita Argentina (AMIA).

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efêmero que pela primeira vez representa os indivíduos desaparecidos individualmente, como é feito no monumento do parque; e, por fim, os Ex Centros Clandestinos de Detención, hoje lugares de memória, que se articulam com o parque principalmente através de suas opções representativas. A Plaza de Mayo é um lugar simbolicamente emblemático da história, da economia e do poder político da nação argentina. Localizada no centro de Buenos Aires, conforma um vazio entre os imponentes edifícios da casa Rosada, sede do governo argentino, o Cabildo, no ponto de fundação da cidade, a Igreja Catedral Metropolitano, primeiro centro religioso da cidade, e pela pirâmide de Mayo, primeiro monumento da cidade. Ao longo da história política recente foi palco de inúmeras manifestações, sobretudo para a classe trabalhadora, a partir do ingresso de João D. Perón ao poder (Amigo, 2009, p. 203). Entretanto, em 1976, esse lugar, como qualquer espaço público de Buenos Aires, encontrava-se restrito pela declaração de estado de sitio promulgada pelos militares (Liprandi, 2009, p. 389). As Madres de Mayo foram as primeiras a reagirem à condição. A princípio de um grupo de quatorze donas de casa de diferentes classes sociais que, sem qualquer experiência política (Amigo, 2009), convocaram uma reunião direta com Jorge Rafael Videla22 para averiguar o paradeiro de seus filhos. Apesar de não obterem sucesso, como era esperado, foram persistentes: mesmo com qualquer tipo de agrupamento proibido, escolheram a Plaza de Mayo “para romper o muro de silêncio sobre as desaparições de seus filhos e recompor a territorialidade social” 23 (Amigo apud Bonafini, 2009, p. 204, tradução minha). Lá foram duramente reprimidas e muitas vezes assassinadas e sequestradas (Amigo, 2009, p. 204). Contudo, principalmente depois da intensa cobertura da mídia internacional durante os jogos da copa do mundo de futebol em 1978, começaram a conquistar um lugar simbólico de resistência no mundo, garantindo um pouco mais de segurança (Huyssen, 2014). Isso cooperou para que com o começo da recomposição das forças populares, em

���������������������������������� Então capitão da junta militar. 23 “La Plaza de Mayo fue el escenario elegido desde donde romper el muro de silencio sobre las desapariciones de sus hijos y recomponer una territorialidad social.” (Amigo apud Bonafini, 2009, p. 204)

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1979, outras lutas se somassem a elas. Assim, em 1980, adquiriram força para ocupar seu lugar de resistência nas ruas em definitivo (Amigo, 2009, p. 204). Dizíamos “temos que ir haja o que houver”. E voltávamos para a praça, e a retomamos, porque pegamos a polícia desprevenida, porque fomos numa quinta que eles não esperavam, durante a tarde, na mesma hora de sempre, às três e meia. No outro dia colocaram a polícia como se fosse uma guerra, estavam até nas árvores com metralhadoras apontadas pra baixo. Do mesmo jeito ficamos. Nos bateram, colocaram cachorros atrás de nós, mas mesmo assim dizíamos que não podíamos deixar de ir e que a praça devia ser conservada porque era a luta, porque era o futuro24. (Amigo apud Bonafini, p. 2009, p.204, traduzido por mim)

Para potencializar o ato de ocupação as Madres desenvolveram as Marchas de la Resistencia a partir de 1981. Nas manifestações as mulheres permaneciam marchando na praça por 24 horas ininterruptas. A primeira edição, quando a ditadura ainda estava em pleno vapor, foi favorecida por desacordos dentro do governo, que tanto levaram o general Galtieri ao executivo, quanto impulsionaram um aumento dos conflitos gremiais (Amigo 2009, p. 205). Já na segunda marcha, em 30 de março de 1982 as Madres foram violentamente reprimidas. Dois dias depois dessa segunda edição, a Argentina iniciou a guerra das Malvinas (Amigo, 2009, p. 206), cujo o resultado foi desastroso para o país. Desse modo, a derrota na guerra associada à crise econômica gigantesca e a milhares de pessoas desaparecidas faziam multiplicar protestos da sociedade civil. Cenário humilhante que, associado à crescente pressão popular, cooperaram para o enfraquecimento e queda do regime militar em 1983. Inaugurou-se, então, um longo período de transição. Nesse momento, ao mesmo tempo que a situação do país ganhava visibilidade nos jornais e

24 “Dijimos ‘tenemos que ir pase lo que pase’. Y volvimos a la Plaza, y la retomamos, Porque tomamos desprevenida a la policía, porque fuimos un jueves que ellos no pensaban, en la tarde, a la misma hora de siempre, a las tres y media. Al otro día pusieron policía como para la guerra, hasta en los árboles con ametralladoras apuntando para abajo. Pero igual nos quedamos. Nos golpearon, nos pusieron perros, pero igual dijimos que no podíamos dejar de ir, y que esa Plaza había que conservarla por- que era la lucha, porque era el futuro”.

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telejornais, as Madres começaram a ser reconhecidas pela mídia local. Se esta fora, durante o governo militar, cúmplice da ditadura, começou a publicar relatos de terror (Amigo, 2009, p. 206).

imagem 4: As madres em uma de suas primeiras manifestações em 1978. Disponível em: http://www.infonews.com/nota/300374/la-conmovedora-historia-de-las-marchas-de> acessado em 10/12/16. Créditos: Talam/arquivo infonews

imagem 5: Marcha das Madres de Mayo na Plaza de Mayo. 1979-80. Fonte: Arquivo Hassenberg Quaretti. Disponível em: http://www.cta.org.ar/IMG/jpg/madres_ marcha_290412_2_ef_47670.jpg > acessado em 27/07/2016. Créditos: Monica Hasenberg.

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A anunciação do calendário eleitoral impulsionou uma intensa atividade entre os partidos políticos, que alternavam entre as acusações ao radicalismo militar e as promessas de democratização de Raúl Alfonsín (Amigo, 2009, p. 206). Assim, os militares, em 28 de abril de 1983, pouco antes de saírem do governo, redigiram um documento sobre a repressão e aprovaram uma lei que garantia sua anistia (Lei de Autoamnistía n. 22.924) – que, posteriormente, foi revogada durante o governo constitucional (Amigo, 2009, p. 206). Chegava ao auge, nesse contexto, a luta contra a ditadura militar. Associadas com outros organismos de resistência, as Madres convocaram a terceira das marchas, meses depois da saída dos militares, para ser realizada no dia 21 de setembro de 1983. Cartazes espalhados pela cidade anunciavam, assim, a convocatória que pedia “Pela aparição com vida dos detidosdesaparecidos” (Amigo, 2009, p. 206). Tomando conhecimento da convocatória da III Marcha de la Resistencia, os artistas do Siluetazo – Rodolfo Aguerreberry, Julio Flores y Guillermo Kexel vislumbraram a possibilidade e, dada a visibilidade que as madres ganhavam, a necessidade, de que o Siluetazo acontecesse junto ao evento. Sabia-se que elas haviam sido expulsas da Plaza de Mayo na primeira e na segunda marcha, de modo que o Siluetazo deveria então transformar-se de uma intervenção artística em uma ferramenta de luta. Para isso, segundo Flores, a atividade deveria ser socializada por meio do compartilhamento da execução, caráter de protesto devia ser claro, bem como devia estar claro que se falava dos desaparecidos (Flores, 2016). No dia 21 de setembro de 1983, dia do estudante, a intervenção transformou a Plaza de Mayo em um ateliê a céu aberto que durou até a meia noite (Longoni;Bruzzone, 2009). Centenas de manifestantes pintaram, se deixaram desenhar e desenharam as silhuetas dos outros, e logo, apesar da repressão policial, as pregaram sobre as paredes, monumentos e árvores25”. Pretenderam com isso retomar um espaço público opressor por meio de imagens que

���“Implicó la participación, en un improvisado e inmenso taller al aire libre que duró hasta la medianoche, de cientos de manifestantes que pintaron, pusieron el cuerpo para bosquejar las siluetas, y luego las pegaron sobre paredes, monumentos y árboles, a pesar del dispositivo policial imperante.” (Longoni; Bruzzone, 2009, p. 8)

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representaram individual e coletivamente os 30.000 desaparecidos, presentes enquanto memória e ausentes fisicamente. O Siluetazo “enquanto feito gráfico no espaço” (Flores, 2016) constituiu-se como exemplo emblemático de exercício político, estético e didático de múltiplas facetas. As Madres de Plaza de Mayo, no dia do estudante [de 1983] decidiram ocupar a praça por 24 horas. [...] Essa ocupação teve um caráter especial, não era só política, era, também, estética: o Siluetazo. [...] A consciência do genocídio a partir do impacto da imagem e da transformação do espaço urbano. Os edifícios que definem ideológicamente a praça são ocupados por silhuetas de detenidos-desaparecidos . O pedestre ocasional percorre um espaço que não é o cotidiano, é o espaço da vitória - mesmo que efêmera - da rebelião frente ao poder26. (Buntinx apud Amigo, 2009, minha tradução)

As primeiras ideias que originaram o Siluetazo surgiram pouco antes do fim do período ditatorial na Argentina, em 1982. Inicialmente a proposta fora destinada para uma convocação do Salón de Objectos y Experiencias da Fundación Esso, uma instituição particular, para onde propuseram a apropriação do espaço por meio do dimensionamento físico dos corpos desaparecidos durante a ditadura militar. Devido à guerra das Malvinas o evento nunca se concretizou. Mesmo assim, compreendendo as potencialidades de tal ideia, os artistas buscaram outras maneiras de dar continuidade ao projeto. Na mesma época chegou ao conhecimento de Flores, Aguerreberry e Kexel, duas intervenções que haviam acontecido poucos anos antes no exterior: a proposta do polonês Jerzy Skapski sobre as vítimas de Auschwitz, em 1978; e a intervenção dos latino-americanos exilados na Europa AIDA (Asociación Internacional de Defensa de los Artistas Víctimas de la Desaparición en el Mundo), fundada em París, em 1979. A obra de Skapski foi divulgada em 1978 na revista El Correo de la UNESCO. A edição mostrou um cartaz com vinte e quatro fileiras de pequenas silhuetas de mulheres, homens e crianças

26 “Las Madres de Plaza de Mayo, en el día del estudiante [de 1983] deciden la toma de la plaza por 24 horas. [...] Esta toma tiene un carácter especial, no es sólo política, es, también, estética: el Siluetazo. [...] La conciencia del genocidio a partir del impacto de la imagen y de la transformación del espacio urbano. Los edificios que definen ideológicamente a la plaza son ocupados por las siluetas de detenidos-desaparecidos. El transeúnte ocasional recorre un espacio que no es el cotidiano, es el espacio de la victoria – aunque efímera – de la rebelión ante el poder.” (Buntinx apud Amigo, 2009)

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que somavam os quatro milhões e trinta mil mortos durante a tragédia do Holocausto, acompanhadas do seguinte texto: “Cada dia em Auschwitz morriam 2.370 pessoas, justamente o número de figuras reproduzidas aqui. O campo de concentração de Auschwitz funcionou durante 1688 dias, e esse é o número de exemplares impressos desse cartaz – no total morreram no campo aproximadamente quatro milhões de seres humanos.” 27 (Longoni; Bruzzone, 2009, p. 27, tradução minha). Por sua vez, a AIDA, realizou uma marcha em Paris em que os manifestantes carregavam estandartes e bandeiras com a imagem dos bustos dos desaparecidos. As duas ações internacionais tornaram-se, assim, referências fundamentais para o Siluetazo. Também enquanto referência somou-se um exercício que Aguerreberry e Flores realizavam em aula para crianças de 6 a 9 anos. Em duplas os meninos e meninas deveriam representar seu corpo a partir dos movimentos de suas silhuetas, comandados pelo companheiro de trabalho. “O conceito visual [desse exercício] estava baseado no dimensionamento espacial, que ajudaria a compreender a magnitude da ação.” 28 (Flores, 2016, tradução minha) Foi a partir desses trabalhos que Aguerreberry, Flores y Kexel, decidiram que, para proporcionar tal dimensão física da ausência dos 30.000 corpos, era necessário que o signo principal fosse a imagem das silhuetas em tamanho real. Contudo, se depararam com alguns problemas (Flores, 2016). Afinal, como produzir essa enorme quantidade de silhuetas? Que espaço seria capaz abrigar isso tudo? Quanto pesaria toda a quantidade de papeis? Como escapar de uma possível repressão militar? Quem faria as 30.000 silhuetas? Como diferenciar os desaparecidos - porque falava-se de números de desaparecidos, mas não se apontava para quem eram eles? Algumas certezas, no entanto, tinham: a obra seria censurada29, devido à sua magnitude deveria

27 “Cada día en Auschwitz morían 2.370 personas, justo el número de figuras que aquí se reproducen. El campo de concentración de Auschwitz funcionó durante 1688 días, y ese es exactamente el número de ejemplares que se han impreso de este cartel. En total perecieron en el campo unos cuatro millones de seres humanos” (apud Longoni; Bruzzone, 2009, p. 27) 28 “El concepto visual se basaba en el dimensionamiento espacial que ayudaría a comprender la magnitud del hecho” (Flores, 2016). �������������������������������������������������������������������������������������� Apesar da ditadura já ter chegado ao fim nesse momento os militares, segundo Flores (2016), ainda se mantinham bastante presentes na vida pública da cidade.

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acontecer a céu aberto e, para que pudesse encontrar pessoas dispostas a desenhar as silhuetas, deveria envolver o mínimo conhecimentos técnicos (Flores, 2016). Ocupar a praça, desenhar as silhuetas sobre papeis que deveriam ter o tamanho suficiente para acomodar um corpo e, por fim, colar nos muros dos edifícios ao redor da praça. Mulheres, homens e crianças aderiram à prática de desenhar os corpos uns dos outros. Em poucas horas haviam centenas de pessoas na Plaza de Mayo que queriam representar seus familiares, amigos e conhecidos e, já na primeira hora, a ação passou a acontecer espontaneamente. Apesar da intenção de não colocar nenhum dado sobre os personagens representados, os participantes adicionaram, por conta própria, a data de desaparecimento das vítimas. “Apareceram demandas concretas de diferenciar ou individualizar, dar uma identidade precisa, uma condição, um traço particular (narizes, bocas, olhos). Entre a multidão de silhuetas deveria estar a minha silhueta, a do meu pai, mãe ou filho, a de meu amigo ou irmão desaparecido.” (Flores, 2016)30 A intervenção diferenciava-se de outras práticas artísticas de ocupação do espaço público. Seu ponto chave estava no fato que todas as silhuetas deviam ser executadas pelos manifestantes que, em sua esmagadora maioria, não tinham pretensões artísticas. Estavam focados em um único objetivo político (Amigo, 2009, p. 212), como afirma o artista argentino León Ferrari: “Não nos reunimos para fazer uma performance, não. Não estávamos representando nada. Era uma obra que todos sentiam, cujo o material estava dentro das pessoas. Não importava se era arte 31“ (Ferrari apud Longoni; Bruzzone, 2009, p.21, tradução minha) Por essa razão, os artistas sempre se recusaram de chamar o Siluetazo de obra de arte ou de assinarem como autores. A ação, constituída de três momentos chaves e interdependentes – ocupar, desenhar e colar – construiuse simultaneamente como ação política e estética, onde o objetivo político

������������������������������������������������������������������� A esse respeito é importante destacar que a concepção inicial do Siluetazo previa a identificação das silhuetas, mas que consultadas as Madres solicitaram que as imagens fossem mantidas sem identificação de forma que cada uma tivesse o potencial de, ao mesmo tempo, representar individualmente e coletivamente as vítimas.

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não poderia ser alcançado sem a prática estética (Amigo, 2009, p. 212). O Siluetazo propôs, assim, a reconstrução dos elos perdidos durante a ditadura – por meio das medidas antes apontadas – através da ocupação do espaço público reprimido e do processo de execução das silhuetas. O desenho só aconteceria se houvesse uma cooperação mútua de desenhar alguém e se deixar desenhar (Liprandi, 2009). O ato de ‘colocar o corpo’ apareceu não apenas direcionado à reconstrução do corpo de um indivíduo desaparecido, mas também de reconstrução do corpo social que naquele momento estava rompido (Liprandi, 2009, p. 38).

imagem 5: Siluetazo (1983). Disponível em: hhttp://www.macba.cat/es/conferencialongoni-estrategias/1/actividades-anteriores/activ> acessado em 03/05/16. Créditos: Guillermo Kexel.

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imagem 5: mulher sendo contornada durante o Siluetazo (1983). Disponível em: https:// jaquealarte.files.wordpress.com/2013/06/eduardo_gil_siluetazo_1.jpg > acessado em 15/05/2016. Créditos: Eduardo Gil.

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imagem 6:

Siluetas dispostas nas paredes. Disponível em: http://muac.unam.mx.s94803. gridserver.com/webpage/ver_exposicion.php?id_exposicion=70. Créditos: Eduardo Gil.

O cenário da primeira edição do Siluetazo é marcado pela formação da Comisión Nacional sobre la desaparición de Personas (CONADEP), que posteriormente deu origem ao relatório Nunca Más. Composta por integrantes da sociedade civil e grupos de direitos humanos, o trabalho objetivou conformar uma base de provas para o Juício a las Juntas militares. O conjunto de materiais levantados que conformou o relatório Nunca Más expôs, no formato de livro, as características e dimensões da prática de desaparição de pessoas implantada durante o governo ditatorial (Crenzel, 2008, p. 18). De imediato o informe, novamente baseado nas apurações dos crimes do Holocausto (Huyssen, 2014)32 , foi de grande sucesso editorial. Exportado para o exterior, traduzido em diferentes línguas, no ano 2007 já contava com 580.830 exemplares vendidos (Crenzel, 2008, p. 18). Ao atingir um nível global, tornou-se, assim, referência para diversas “comissões de verdade” (Crenzel, 2008, p. 18), inclusive a brasileira. Ao mesmo tempo, a divulgação do tratamento das memórias da ditadura na Argentina cooperou para a maior

�������������������������������������������������������������������������������������� Cabe lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi elaborada e incorporada pela Organização das Nações Unidas, logo depois da Segunda Guerra Mundial, em 1948, frente às barbáries ocorridas durante o periodo.

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popularização dos atores envolvidos no processo de luta política. Por outro lado, em 1986 e 1987, respectivamente, ainda durante o governo de Alfonsín, foram aprovadas as leis Punto Final (n° 23.492) e a lei Obediencia Debida (n° 23.521). A primeira paralisou as investigações e anistiou os militares, e a segunda determinou que os crimes cometidos não eram puníveis, alegando que muitos dos militares foram coagidos a cometer os crimes por seus superiores.33 As frases dos cartazes dos organismos de direitos humanos foram mudando de “Aparición con vida” ou “Juício y Castigo” para “Memoria, Verdad y Justicia” ou “Contra el olvidos y las leyes de impunidad”. A revolta que crescia por parte da população, significou também a procura por novos modos de produção artística e intelectual (D’Agostino, 2009, p.343). Em 1996 o vigésimo aniversário do golpe implicou em novos processos de busca, bem como na multiplicação das organizações de direitos humanos. Surgiu nesse ano a agrupação H.I.J.O.S (Hijos por la Identidad y la Justicia y Contra el Olvido y el Silencio). Com eles e elas, a prática de escraches, em que os membros dirigiam-se à casa onde os criminosos viviam gozando de sua “impunidade, liberdade e anonimato” (D’Agostino, 2009, p. 343). Nesse mesmo ano de 1996, no qual a cidade de Buenos Aires conquistou autonomia política e administrativa, tornou-se possível a aprovação da lei n°46, que previa a construção do “Parque de la memória” (D’agostino, 2009). O conjunto de ações do Estado e da Sociedade Civil foi gradualmente iluminando os ex Centros Clandestinos de Detención (ex-CCD). Durante a ditadura militar foram criados cerca de 600 CCDs na Argentina para abrigar as torturas, interrogatórios e para manter os presos políticos encarcerados. Cerca de cento e quarenta encontram-se na província Buenos Aires. Emaranhados de forma quase indistinguível na cidade, muitos dos CCDs eram disfarçados com um nome fantasia, outros estavam dentro dos próprios edifícios militares, onde as atividades criminosas aconteciam paralelamente às atividades normais. Tratava-se do principal núcleo pelo qual se disseminava a prática do terror. E, além das práticas de tortura “[...] a presença desses sítios de diversas funcionalidades e escalas na trama urbana teve como principal objetivo colateral disciplinar seu entorno urbano imediato” (Conti, 2012, p. 65). Apesar de supostamente

������������������������������������������������� http://www.cels.org.ar/> acessado em 27/07/2016

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clandestinos, os militares encontravam maneiras de chamar a atenção a esses lugares como meio de amedrontar a vizinhança.

imagem 7: Mapa de ex centros clandestinos de detención na grande Buenos Aires. Fonte: Secretaria de Direitos Humanos argentina. Disponível em: http://www.jus.gob.ar/ derechoshumanos/red-federal-de-sitios-de-la-memoria.aspx > acessado em 11/12/16.

Com o fim da ditadura, as denúncias desses lugares foram, pouco a pouco, sendo feita diretamente aos órgãos do Estado, por moradores da região, ou por meio de manifestações que ocupavam as ruas dos ex-CCDs. Tratou-se de um longo processo de reinvindicação que teve como divisor de águas o fim das leis de impunidade aprovadas vinte anos após o fim do regime, em 2005. Nesse momento os órgãos da sociedade civil ganharam ainda mais força e assumiram o controle administrativo de diversos dos lugares de memória. Assim, o caráter das disputas em dessa topografia de dor se intensificou e alterou: a partir de então, além dos esperados conflitos entre Estado e a população civil, os embates aumentavam especialmente entre os grupos envolvidos no agenciamento desses sítios.

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Fruto desse processo são os cinco centros clandestinos, localizados na capital federal, que viraram sítios de memória: o Club Atlético, o Olimpo, o Centro de Automotores Orletti e o Virrey Cevallos e a Escuela de Mecanica de La Armada, vizinha do Parque de la Memoria. O Club Atlético operou apenas durante o ano de 1977. Lá passaram cerca de 1500 vítimas. A fachada do edifício localizado na Avenida Colón, no bairro de San Telmo, era apenas mais uma entre as outras da avenida. Enquanto o piso de cima era ocupado pela Polícia Federal argentina aconteciam, no sótão, as práticas de terror comuns aos CCDs (Schindel, 2009). Em 1979 foi destruído para a construção do viaduto 25 de Março e seus restos materiais foram soterrados, inclusive as paredes da área de tortura. Em 2002 os ex presos e seus parentes conseguiram dar início um processo de escavação que tornaram concretos os relatos das testemunhas. Em maio do mesmo ano os resquícios foram encontrados, inclusive paredes das celas com grafites de desesperados pedidos por socorro. O local foi denunciado pelos próprios moradores da região de San Telmo logo após o fim da ditadura. O bairro tornou-se desde então palco de manifestações culturais relacionadas à ditadura militar, principalmente impulsionadas pela instituição Encuentro por la Memoria, conformada por moradores do bairro de San Telmo y la Boca. Entretanto, somente em 1996, n o aniversário de 20 anos de Golpe de Estado – especialmente pela crescente pressão dos grupos da sociedade civil – se desencadearam novas frentes de busca. Note-se, por exemplo, que foi nesse momento se formou a organização H.I.J.O.S ( Hijos por la Identidade y la Justicia, contra Olvido y el Silencio), que realizavam os escraches, e foram abertos os Juícios por la verdade (D’Agostino, 2009). Hoje quem passa pelo inóspito ambiente da Av. Colón percebe de um dos lados as tais ruínas. Na grade que as protege, frases de justiça. Sobre a terra removida, assentam-se retratos e mensagens deixadas aos desaparecidos.

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imagens 8 e 9: Vista do Club Atlético desde a Av. Paseo Colón. Registro da autora em maio de 2016.

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imagens 10: Vista do Club Atlético desde a Av. Paseo Colón. Registro da autora em maio de 2016.

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Para abrigar os presos do Club Atlético – destruído para a construção do viaduto – foi construído o Olimpo34 no bairro de Floresta. O centro funcionou entre agosto de 1978 e fevereiro de 1979, período que passaram cerca de 500 presos políticos. O espaço, originalmente uma estação de trens e depois um terminal de ônibus, ocupa uma quadra inteira do bairro. Do lado esquerdo ficava o pozo, onde funcionou o centro. Lá uma construção de dois andares. O térreo, composto por diversas salas, recebia os presos e ali mesmo seus nomes eram trocados por números. O segundo andar abrigava casino de oficiales (Memoria Abierta, 2010). Já as outras estruturas de encarceramento ficavam embaixo do estacionamento que abrigou suas atividades anteriores. “De um lado havia uma garagem, do outro fizeram uma construção de cimento com a tubulação, a cozinha, as celas de isolamento35 [...]”– conta Suzana Caride, sobrevivente do lugar (apud Memoria Abierta, 2009, p. 217). O terror era tanto disseminado através das torturas dentro do edifício quanto pela própria inserção dele no bairro de Floresta, uma área da classe trabalhadora. Apesar de ser supostamente escondido, os militares não abafavam os gritos e nem escondiam os cheiros que exalava o corpo humano ao ser submetido aos choques como meio de aterrorizar e manter sobre controle os que viviam por ali. Não a toa que a sala de incomunicáveis – onde ficavam os presos considerados mais ameaçadores – era a mais próxima da rua. Apesar das janelas da cela terem sido cimentadas, os militares deixaram um pequeno vão na parte superior. Isso permitia aos detidos escutar o movimento da rua e, aos que estavam fora, os gritos de tortura, além do cheiro de queimado que saia das torturas. As primeiras iniciativas de reconhecimento do sítio começaram em 1994 quando organizações de familiares e de sobreviventes “realizaram

������������������������������������������������������������������������������������� O lugar era originalmente uma estação de transvias, depois foi utilizado como uma estação terminal de uma linha de ônibus e, em 1976, foi comprado pela polícia. A aquisição visava abrigar os presos do Club Atlético, que logo seria demolido para a construção do viaduto 25 de Mayo. Enquanto se realizavam as obras do Olimpo os presos do Club Atlético foram transportados transitoriamente para o CCD Banco, no interior de Buenos Aires (Memoria Abierta, 2010). 35 “De un lado lo tenían de garage, del otro lado hicieron con cemento otra construción con los tubos, la cocina, las celdas de aislamiento [...]”

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festivais, marchas, escraches, e outras atividades na frente do “Olimpo”, com a finalidade de mobilizar a opinião pública devido à falta de castigo aos responsáveis36”. Em 2000 os manifestantes impulsionaram uma lei que culminou na declaração do local como sítio histórico da cidade, estando assim catalogado sob “Protección Especial Edilica”, e garantindo a proteção da estrutura do edifício como prova legal dos crimes. Em 2005 – com a anulação das leis de impunidade – a polícia foi desalojada e o local tornou-se efetivamente o lugar de memória ainda lá existe e passou a ser administrado por membros de organizações de direitos humanos (Guglielmucci, 2009). O processo também envolveu diferentes opiniões sobre sua conservação, que partiam não só por parte dos envolvidos nos trabalhos do Olimpo como também por turistas, alunos e docentes que visitavam o local. Parte das pessoas defendia a reconstrução total da área do Pozo. Frente à opinião a comissão responsável argumentou que uma memória literal não ajudaria a compreender as causas e consequências do terrorismo de Estado (Guglielmucci, 2009, p. 204). Outros ainda argumentavam a favor da sua demolição total. E, ainda outros, sua conservação do modo como ele fora encontrado. Por fim, os coordenadores responsáveis optaram por um modo “conservacionista e de reconstrução virtual do funcionamento de CCD (através de maquetes, plantas, infográficos, animações tridimensionais, etc.) ao invés de um critério de reprodução literal37” (Guglielmucci, 2009, p.204). A decisão ocorreu no sentido do caráter de prova legal do sítio. Entretanto ficou exposto o desejo de algumas das vítimas e parentes de apagar aquela memória, como se assim estivessem apagando suas próprias dores.

�������� “ […] han realizado festivales, marchas, escraches, y otras activida- des frente al ex ccd “Olimpo”, con la finalidad de movilizar a la opinión publica por la falta de castigo a los responsables y su permanencia en el espacio” (Guglielmucci, 2009, p.193) ���“conservacionista y de reconstrucción virtual del funcionamiento del ccd (a través de maquetas, planos, infografías, animaciones tridimensionales, etc.), por sobre un criterio de reproducción literal”

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Imagem 11: Ex centro clandestino Olimpo. Registro da autora em maio de 2016.

Imagens 12: Celas encontradas nas escavações do ex centro clandestino Olimpo. Registro da autora em maio de 2016.

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A algumas quadras do Olimpo encontra-se o centro de Automotores Orletti, que funcionou apenas entre maio e novembro de 1976. Lá ficaram os detidos pela operação Cóndor 38. No térreo, a parte da frente era usada como estacionamento, para que os carros escondessem o que se passava por trás. No fundo ficavam os detidos e, do lado esquerdo, acumulavamse diversos objetos, utensílios e roupas saqueadas das casas dos detentos. No centro havia um tanque de água de 200 litros. Em cima disso se amarrava um gancho, suspendia-se os presos e afogavam-nos na água. À direita uma escada estreita que leva ao segundo andar mostram cinco cômodos que assumiam funções distintas. Em um deles uma viga, onde nota-se uma corda amarrada, um vestígio silencioso da dor de uma vítima (Memoria Abierta, 2009). Como no Olimpo, optou-se por mantê-lo tal qual o encontraram em 1983. Afinal, talvez o que reste de lembranças dos presos encapuzados sejam apenas pedaços de chão, cores, ruídos do portão de ferro e gritos de sofrimento. O ex CCD Virrey Ceballos, por sua vez, localiza-se numa casa residencial no bairro de San Cristóbal e sua revelação também aconteceu por meio de denúncias de dois sobreviventes e da vizinhança. Na época da ditadura a casa de dois andares pertencia às Forças Armadas. Em 2004, a legislatura de Buenos Aires expropriou o imóvel, declarou-o utilidade pública, catalogando-o como sítio histórico. Atualmente é administrado pelo Instituto Espacio para la Memoria que atua junto a outros organismos de direitos humanos e organizações do bairro. Devido aos poucos sobreviventes, as informações sobre esse centro ainda são escassas.

38 “A Operação Condor, formalizada em reunião secreta realizada em Santiago do Chile no final de outubro de 1975, é o nome que foi dado à aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de 1970 – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – para a realização de atividades coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, com o objetivo de vigiar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer desaparecer militantes políticos que faziam oposição, armada ou não, aos regimes militares da região” > http://www.cnv. gov.br/index.php/2-uncategorised/417-operacao-condor-e-a-ditadura-no-brasil-analise-dedocumentos-desclassificados > Acessado em 27/07/2016.

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Imagem 13: Celas encontradas nas escavações do ex centro clandestino Olimpo. Registro da autora em maio de 2016.

Imagem 14: Celas encontradas nas escavações do ex centro clandestino Olimpo. Registro da autora em maio de 2016.

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Nas cercanias do parque está a ex Escuela de Mecánica de La Armada (ex ESMA), atualmente a instituição de maior força simbólica entre os ex CCD e um dos principais complexos de memória na América Latina. O lugar funcionou no período de 1976-1983, quando passaram cerca de 5.000 vítimas39. Compõe-se de trinta e quatro edifícios em um terreno de dezessete hectares, localizado na Av. del Libertador em Buenos Aires. Hoje o lugar abriga é coordenado por organizações voltadas para a memória da ditadura, entre elas a UNESCO, a Memoria Abierta o Archivo Nacional de la memoria, as Madres de Mayo e as Abuelas de Mayo. Em 2000 foi aprovada a lei nº 392/2000 pela câmara da cidade de Buenos Aires, que propunha a transformação do espaço da ESMA em um “museu de memória”. Dois anos depois, entrou em vigor a lei n° 961 que previa a criação de um “instituto de memória”. Já em 2004, durante o governo de Nestor Kirchner, um acordo entre o governo nacional e o estadual decidiu que o edif ício da ESMA seria reinstitu ído e ocupado por um “espaço de memória e promoção dos direitos humanos”. A coordenação da Ex-ESMA foi assumida em 2007 por um grupo de representantes de direitos humanos em parceria com os governos Estadual e Nacional (Schindel, 2009).  

Essas ONGs expressaram diversas opiniões sobre os encaminhamentos das memórias provocando, assim, discordâncias e disputas distintas. Contudo, foi prontamente consensual no processo de transformação do lugar em um sítio de memória e consciência a conservação do Casino de Oficiales, casa onde ficavam os presos políticos e onde aconteciam as práticas de tortura (Schindel, 2009). Este deveria permanecer vazio, tal qual fora encontrado no final da ditadura, apenas com o acréscimo de cartazes explicativos. Atualmente são oferecidas visitas guiadas três vezes por semana. Dentre os lugares e cenários de violências no passado, o Casino é hoje o que mais tende à um formato museológico. Além disso, fazem parte do complexo da Ex-ESMA centros culturais que proporcionam atividades como mostras de cinema, artes visuais, teatro e palestras.

����������������������������������������������������������� http://www.espaciomemoria.ar/ > Acessado em 27/07/2015.

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Atividades, escolhas de conservação, debates e disputas como as descritas ao longo dos exemplos atribuíram aos lugares de memória uma pluralidade de significações e valores que se alteram ao longo do tempo e, assim, também alteram suas espacialidades. A construção da topografia de dor de Buenos Aires apresenta, portanto, particularidades e modos distintos de ocupar o espaço público que ao mesmo tempo que dialogam intensamente entre si constroem, junto às iniciativas do Estado, um cenário local relacionado ao assunto.

Imagens 15: Fachada da ex Escuela Mecánica de la Armada. Registro da autora em maio de 2016.

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Imagens 16: Interior da ex ESMA. Registro da autora em maio de 2016.

A ação das Madres de Mayo como ocupações efêmeras e sistemáticas do espaço público, da Plaza de Mayo, ganharam tamanha força que se tornaram presentes mesmo quando ausentes daquele lugar. Os paninhos brancos pintados no chão, constantemente repintados por mãos anônimas, não deixam esquecer que na próxima quinta-feira à tarde estarão lá novamente. Mais que isso, as mulheres são hoje agentes articuladores fundamentais dos lugares de memória argentinos, participando ativamente de suas construções – inclusive, como antes mencionado, do parque-memorial. Inserido na luta das Madres e Abuelas a intervenção político/estética Siluetazo, também trata-se de um ato efêmero, cuja as reverberações se fazem presentes até hoje. Seja na prática da identificação dos desaparecidos; na própria sistemática reprodução da prática no país, sobre a memória da ditadura, bem como em outros locais sobre eventos dolorosos diversos. Já os ex centros clandestinos hoje sítios de memória, ao contrário do parque, tendendo a sítios arqueológicos, atuam prioritariamente como provas legais dos crimes. Contudo, apesar desse caráter particular, as escolhas representativas, nos ex-ccds construídas a partir de um cenário criminoso, são resignificadas no

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parque. Note-se, por exemplo, o forte caráter didático, os eventos culturais que cooperam para a divulgação da história e, sobretudo, a preocupação de construir formas de representação não literais, como propõe o desenho arquitetônico do parque ao expandir a ideia tradicional de monumento e ao escolher a arte contemporânea como forma representativa. Outro aspecto importante a ser destacado são as relações entre as lutas ou movimentações sociais e a mídia, que estabelece diálogos entre os trabalhos de memórias nacionais e internacionais. Sem ignorar ou negar as particularidades de cada um dos casos – seus atores, disputas, sítios, etc – é necessário também compreender a constituição de relações dinâmicas entre o local e o global. Se por um lado essas [dinâmicas] têm assumido o papel de conferir visibilidade e por vezes legitimidade para grupos que reivindicam por justiça e memória; por outro insere as memórias e disputas em uma lógica imagética contemporânea, onde a cidade esta constantemente sujeita à banalização da tradição histórica (Di Cori, 2005). É possível dizer assim que os espaços, nas lógicas da cidade contemporânea, passam a operar para além de seu próprio sítio. Operam também como forma de imagem: seja, por exemplo, por meio de cartazes, folhetos de divulgação, websites; seja pelas fotos tiradas por turistas que circulam nas redes sociais. Portanto, entende-se que a globalização – que se desenrola em nossos tempos através da voracidade da circulação das informações na mídia – não é a cereja do bolo, e sim um advento que muda radicalmente tempo e espaço (Harvey, 1991). Nesse sentido torna-se necessário compreender o Parque de la Memoria nos entremeios das disputas nacionais, mas igualmente através das dinâmicas paradoxais da globalização.

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capítulo 2

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Memórias e debates

Os debates em torno da construção de um parque em homenagem ao 30.000 desaparecidos aconteceu no bojo das discussões políticas dos anos 1990 na Argentina. Durante da presidência de Carlos Menem (1989-1999), que pretendeu acelerar o processo de amnésia sob o pretexto de reconciliação, grupos de direitos humanos formaram uma frente de resistência para evitar o desmantelamento e a destruição da Ex Escuela Mecánica de la Armada (Schindel, 2009) – maior complexo de tortura da América Latina, por onde passaram 5.000 detidos. A ESMA assumiu funções militares até 1998, quando o então presidente transferiu as instalações da marinha para outra base naval e decretou que o edifício fosse demolido. No lugar, pretendia-se cravar uma bandeira argentina que “criaria um espaço público símbolo da nação” (Schindel, 2009). As Madres e Abuelas, descordando do modo como o Estado pretendia tratar a memória do espaço, entraram com uma ação judicial para vetar a ideia. Não demorou muito para a sentença sair a favor das organizações: o juiz considerou obrigação do governo manter o local por seu valor histórico e probatório. Por sua vez, a partir da sociedade civil, ideias e propostas alternavam entre a construção de um memorial na Ex-

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ESMA e a de um parque destinado aos desaparecidos. Tais foram as bases do debate político que deu origem à construção do parque que passariam gradualmente a dialogar também com propostas urbanísticas em curso para Buenos Aires. Nesse momento, ao mesmo tempo que aconteciam operações de “recuperação” de diversas zonas costeiras da cidade – como a operação Baricentro e a Puerto Madero – demonstravam-se os primeiros interesses na Costanera Norte e Sul, margeante o Río del Plata, onde hoje encontra-se o parque (La Nacion, 2003). A pauta foi central para o discurso eleitoral de Fernando de la Rúa, durante a campanha municipal de 1995, primeira a eleger as autoridades locais por meio do voto popular em Buenos Aires. Rúa acusava Carlos Menem de ter privatizado o espaço público costeiro, o que teria causado uma profunda “deterioração” da região. Em contrapartida, o discurso de Rúa focou em “devolver o rio à cidade e aos moradores” (Vecchiole, 2014) através da apropriação dos espaços verdes que, segundo ele, estavam “indevidamente privatizados por gestões anteriores” (apud Vecchiole, 2014). Quando assumiu o município em 1996, uma de suas primeiras medidas de Rúa foi revisar contratos e licitações de estabelecimentos privados, bem como regularizar diversas áreas públicas. Foram assim demolidos restaurantes, comércios e outros estabelecimentos ilegais, abrindo espaço para novos parques, praças e passeios. Segundo o candidato, o objetivo era “homenagear os vizinhos da cidade com novas opções de ocupação40”. Nesse sentido projetou-se a construção de cento e trinta hectares de novos espaços públicos em Buenos Aires por meio da criação de programas de desenvolvimento urbano. Dentre eles o “Buenos Aires y el Río” (1996), que incluiu o projeto de parques e espaços públicos ao longo de toda a franja costeira, numa área de 2000 hectares, divididos entre a costa do Río del Plata y do rio Riachuelo. O projeto focava-se, assim, na proteção da zona costeira; bem como previa o reflorestamento, saneamento hídrico e recuperação de espaços como balneários e restaurantes (Vecchiolle, 2014).

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“ […] con el objetivo de brindar a los vecinos de la ciudad nuevas opciones de esparcimiento” (Vecchiole, 2014, p.35)

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A “recuperação” – no jargão marqueteiro – da área ribeirinha, justificava-se ainda por quatro eixos centrais. Um primeiro de cunho social, na medida em que pretendia-se criar novas áreas de lazer na cidade; o segundo pautava-se no discurso ecológico, através da ideia de recuperação das zonas “degradadas”; o terceiro educativo, relacionado à ideia de criação de uma consciência na população sobre a importância do rio na cidade; e, por fim, o turístico, através da incorporação da zona no círculo turístico de Buenos Aires. Em Buenos Aires, capital de um país agroexportador, a ocupação da zona costeira assumiu diversos significados históricos ao longo dos tempo encarregando-se, assim, de cooperar para a construção de cidades imaginadas. No começo do século XX, sob a presidência de Marcelo T. Alvear, multiplicavam-se os casarões, palacetes e comércios nobres que, aos moldes europeus, que davam um ar nobre a cidade de Buenos Aires. A zona da Costanera não ficava de fora disso: em 1918 inaugurou-se o primeiro balneário municipal para “comemorar o modo de vida porteño” pretendido nesse momento. Posteriormente, com a chegada dos anos 60 e o desenvolvimento do peronismo, a indústria nacional foi gradualmente substituindo parte das importações. Acompanhando as mudanças da cidade o lugar foi se popularizando enquanto área de lazer e convívio social. Tornava-se, desse modo, um espaço para ver e ser visto, numa época onde os atuais carrinhos de comida eram luxuosas carruagens comandadas por cavalos (Vecchiole, 2014). Entretanto, nos anos que se seguiam, a consolidação de uma economia agroexportadora no país e, com isso, a expansão da zona portuária, levou à contaminação das águas do rio, bem como à implantação de depósitos nos arredores. O glamour dos tempos de ouro caiu assim no esquecimento (Vecchiole, 2014). Para os funcionários do Buenos Aires y el Río (apud Vecchiole, 2014) as iniciativas que se sucederam na área desde a época de Marcelo T. Alvear até os anos 60, representaram a construção de um espaço democrático, onde toda a população podia usufruir do local. Assim, as intenções do programa Buenos Aires y el Río, que pautavam-se em “devolver a memória” e “recuperar” tinham como horizonte, justamente, a memória do começo do século, reconhecido pelos mesmos funcionários como um tempo em que o local era motivo de orgulho (Vecchiole, 2014). Entretanto, a erronia ideia de “devolver a memória” supõe que não se construiu, depois dos tempos

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glamorosos, memórias suficientemente relevantes para serem lembradas. Tanto essa suposição era errada que, ao serem colocadas em prática as ideias do programa, configuraram-se profundas disputas entre grupos e personagens, que sim possuem memórias distintas sobre o sítio em questão.

Imagem 17: A zona da Costanera nos anos 90. Disponível em: http://farn.org.ar/ > acessado em 05/08/2016.

No sentido de compor a nova/velha imagem pretendida para a zona costeira arquitetos, urbanistas e planejadores começaram a ganhar um lugar de destaque. O programa previu dezoito parques públicos na área de cento e trinta hectares margeante ao Río del Plata. Para isso foram lançados concursos arquitetônicos através da parceria consolidada entre o Governo da Cidade de Buenos Aires e a Faculdad de Deseño, Arquitectura e Urbanismo da Universidad de Buenos Aires (FADU-UBA) – à qual pertencia grande parte das terras onde seriam implantados os projetos. Em dezembro de 1997 a Sociedad Central de Arquitectos em associação com o governo do município convocaram um primeiro concurso para o projeto de um parque público na Costanera Norte. Apesar das bases da

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concorrência não especificarem a criação de um parque dedicado à memória dos desaparecidos, o projeto ganhador, das arquitetas Aída Daich e Victoria Migliori, enxergaram a necessidade de iluminar essa camada histórica do rio. Afinal, durante o período ditatorial os detidos, já extremamente enfraquecidos pelas torturas que aconteciam nos centros clandestinos, eram transportados dentro de tonéis de óleo para o Aeroporto Jorge Newberry, de onde saíam os Vuelos de la Muerte. Dos vôos eram atirados em direção à imensidão do Mar ou do Río del Plata. Seus corpos, difíceis de serem encontrados, permanecem lá até hoje. O projeto – que previa em seu programa esculturas, bosques, anfiteatro, jogos de água, entre outros elementos – teve assim como eixos centrais, tanto a recuperação da relação do lugar com o rio, quanto a iluminação dos campos da ESMA, que encontram-se nas proximidades do sítio. Contudo, apesar das avaliações positivas dos jurados, a proposta acabou nunca se concretizando. No seu lugar foi construído o Parque de los Niños. Cinco meses depois desse concurso foi realizado um novo para o “desenvolvimento” da área da Cidade Universitária. Associado novamente com a FADU-UBA ele retomou a ideia de homenagem aos desaparecidos proposta por Daich e Migliori. A iniciativa, de dezembro de 1997, partiu dos grupos pro-monumento, composto por representantes dos grupos militantes – como as Madres, das Abuelas, dos H.I.J.O. S e da UBA – que apresentaram a proposta ao governo municipal. Exigia-se, assim, que o rio também fosse enxergado publicamente enquanto cenário da barbárie, como foi com as práticas de terrorismo de Estado durante o governo ditatorial. Nesse momento, apesar da memória da ditadura estar infinitamente menos presentes em Buenos Aires do que hoje, como contou Battiti (2016), as organizações já adquiriam certa visibilidade nas mídias locais e internacionais, o que lhes conferia legitimidade perante o Estado. Não à toa, um ano depois de apresentarem a proposta, que detalhava algumas exigências, foi aprovada a lei número 46. A lei garantiu a construção de um elemento que contivesse os 30.000 nomes dos desaparecidos e um conjunto poli-escultural; a formação da comissão pró-monumento – a ser integrada por um vice presidente da 1a legislatura, 11 deputados, 4 funcionários, 1 representante da UBA e 1 representante por cada um dos organismos de direitos humanos, bem como descreveu as atribuições cabíveis à esta; por fim, indicou o lançamento do concurso arquitetônico.

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Por outro lado, a construção do parque não era bem-vinda por todos os grupos de direitos humanos, como por parte dos H.I.J.O.S. e das Madres, cuja figura central era Hebe de Bonafini, uma das fundadoras das Madres de Mayo. Com as leis de impunidade ainda em vigor – punto final e obediencia debida – Bonafini expôs, publicamente através de uma carta, seu extremo repúdio à ideia. Segundo ela (apud Valdez apud Vezzetti, 2009, p. 280) o parque seria construído pelos “mesmos que perdoaram os assassinos e que, em muitos casos, se alinharam com eles”. Ademais, associados à Bonafini outros personagens ainda argumentavam que a ex- Esma devia ser transformada em um museu do terror; ou que a proximidade do parque com a ex-Esma prejudicaria sua visibilidade do parque; ou, ainda, que haviam espaços de memória o suficiente em Buenos Aires ( Huyssen, 2003, p. 100). Apesar das oposições o Concurso de Ideas foi lançado para criar o Parque de la Paz. Estava dividido em três partes: a primeira um “Paseo y Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado”; um segundo chamado “Paseo a la Paz y la Convivencia” composta pelas ruínas da AMIA41 (Asociación Mutual Israelita Argentina) também abarcaria um monumento; e a terceira parte estaria dedicado Monseñor Ernesto Segura, promovida pela Casa Argentina Israel Tierra Santa, que homenagearia àqueles europeus que ajudaram a salvar vidas durante o nazismo (Silvestri, 2000, p. 2). A análise das bases do concurso permite enxergar os pontos de apoio centrais da proposta. Um primeiro apresenta a necessidade de recordar os desaparecidos; outro enfatiza a necessidade de criar um parque natural que, preservando as características originais da paisagem, propusesse “uma nova relação entre homem e natureza”; e, por fim, apontava que as áreas da Cidade Universitária deviam ser reorganizadas pela construção de novos edifícios na própria universidade42. Esses espaços criariam uma das maiores áreas verdes da cidades e, junto à memória da ditadura, seriam capazes de equalizar também a memória

������������������������������������������������������������������������������������������ Em 1994, o edifício da AMIA argentina sofreu um ataque terrorista que matou cerca de 84 pessoas. (http://www.amia.org.ar/index.php/content/default/show/content/13 > acessado em 10/09/2015) �������������������������������������������������������������������������������������������� Um destinado à reitoria, um hotel de alojamento dos professores, um centro de convenções e alguns outros equipamentos.

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argentina sobre o Holocausto43. Porém, atentando ao modo como está organizada a base do concurso, constata-se o caráter secundário que assumiu as explicações em relação ao espaço dedicado às memórias da ditadura, expostas em apenas um dos parágrafos do texto de instruções. O projeto aprovado no Concurso de Ideas foi elaborado pelos arquitetos do Estúdio Baudizzone, Lestard y Varas, três professores universitários, de grande importância tanto nos debates e na prática de projeto44. Além disso, como contou Jorge Lestard (entrevista concedida para à autora, 2016) ele próprio foi diretamente vítima da ditadura, sendo, durante o período, afastado da docência na FADU-UBA. A proposta se centrou, como solicitado no concurso, em aproximar a área do rio aos habitantes da cidade, por meio da ocupação dos terrenos que cercam a cidade universitária e suas áreas adjacentes, bem como da reinserção de pavilhões mono funcionais. Já com relação ao monumento, buscou-se criar um espaço que expandisse seu sentido tradicional, vertical e imponente, propondo, por diversas vias espaciais e simbólicas, exercícios reflexivos acerca do tema. Posteriormente, em 1999, a Comissão pró-monumento, sob a figura de Marcelo Brodsky, impulsionou um outro concurso. Este, desvinculado do concurso arquitetônico, propunha a construção do conjunto poli-escultural que seria implantado ao longo do parque. Se a primeira concorrência fora de âmbito nacional, a segunda estendeu-se ao nível internacional, o que culminou na apresentação de 663 projetos provenientes de 44 países. Todavia, segundo Graciela Silvestri (2000) as propostas formavam um conjunto desastroso. Acompanhados de um texto explicativo na maioria dos casos não havia, como aponta a autora, distância entre a descrição literária e o ato formal. A imediata transposição entre texto e forma fazia com que a explicação se convertessem em uma ferramenta de trabalho. Com isso, eximia-se a forma de ser eloquente, retirando a possível complexidade que o trabalho poderia apresentar (Silvestri, 2000).

��������������������������������������������������������������������������������������������� Note-se aí os aspectos já mencionados e discutidos por Di Cori (2005) de “encontro” entre os diversos traumas. ������������������������������������������������������������������������������ Para além dos trabalhos dentro do escritório particular, são professores da FADU, membros da Sociedad Central de Arquitectos.

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Ainda com relação às contradições presentes no esforço de representação dos traumas cabe salientar a conexão das discussões em torno da ideia de valorização da memória e a perspectiva de grandes intervenções urbanas relacionadas ao campo da cultura. Enquanto em Buenos Aires iniciava-se o processo de “requalificação” da zona da Costanera Norte, Berlim passava por um processo semelhante, entretanto mais intenso, se deu às margens dos rios Spree e Tiergarten. Desde o final da Guerra Fria a capital alemã buscou constituirse como “uma nova capital de uma nação reunificada (Huyssen, 2000). A arquitetura, “frequentemente conectada com a formação de políticas e identidades nacionais, tornou-se novamente peça fundamental para que a capital ocupasse seu lugar de direito” como capital europeia, ao lado de seus mais glamorosos competidores (Huyssen, 2000, p. 92). O marco foi a exposição de arquitetura idealizada para as comemorações do aniversário da cidade em 1987, a IBA (Internacionale Bauausstellung Berlin), que reuniu os maiores nomes da arquitetura mundial. A mostra abrangeu desde o Kreuzberg, bairro que fora inteiramente restaurado, ao Check Point, dando ênfase às regiões margeantes ao Spree e ao Tiergarten (Arantes, 2012, p. 108). As obras, na sua maioria habitações, objetivaram “renovar” as áreas praticamente desabitadas desde o pós guerra. Às intervenções ligadas ao caráter habitacional somaramse depois construções de caráter cultural, urbanístico, edifícios de negócios, espaços públicos, etc. A progressiva “requalificação” dos espaços urbanos através das inventivas formas dos arquitetos mainstream, fez com que a capital alemã se tornasse a maior “empresa” arquitetônica e urbanística da Europa (Arantes, 2012). Na década de 90 a cidade se transformou em um grande canteiro de obras que, dada às crescentes iniciativas em prol da memória do Holocausto, incluía a construção de museus, memoriais e monumentos relacionados ao tema45. Desse modo é possível estabelecer certa analogia entre tais processos de requalificação urbana ocorridos em outros contextos e o processo

������������������������������������������������������������������������������������������ Dentre eles o Memorial aos Judeus Mortos na Europa, de Peter Eisemann, cujo os debates iniciaram-se nos anos 90. Entretanto a construção se deu entre 2003-2005.

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de construção do Parque de la Memoria. Pode-se dizer que as memórias da ditadura foram escolhidas como foco central do projeto não apenas por sua importância na ampliação da consciência política, mas também pela visibilidade que a luta, especialmente na imagem das madres, ganhava internacionalmente. Como em Berlim, a imagem da arquitetura “despojada” de arquitetos reconhecidos, poderia, também, tornar-se chamariz para o turismo, caindo como uma luva em um dos pontos centrais do programa Buenos Aires y el Río – que explicitou a intenção de inserir a área costeira no roteiro turístico da cidade. Assim, como afirma Graciela Silvestri (2000) o governo da cidade parecia mais interessado na propaganda do seu programa de revitalização costeira e, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, na divulgação do concurso arquitetônico e de esculturas (Silvestri, 2000). ` Nesse sentido, para lembrar a memória dos desaparecidos nas terras da área do parque outras camadas históricas, também dolorosas, foram enterradas de forma abrupta. A primeira relaciona-se à expulsão das pessoas que habitavam as cercanias do parque em 1998, quando iniciou-se o processo de edificação. Tratam-se dos habitantes da Aldea Gay, um conjunto de habitações fundada por um grupo de homossexuais que se localizava atrás do primeiro pavilhão da UBA. Eles mesmos, vítimas de violações de seus direitos econômicos e sociais, foram “consensualmente” desalojados para dar espaço à construção do parque. Entretanto tal desalojamento não foi tão consensual quanto divulgado. Segundo o CELS (apud Vecchiole, 2014) (organização de direitos humanos envolvida na construção do parque), os habitantes foram informados de surpresa por funcionários de Anibal Ibarra, que existia uma ordem judicial de desalojamento. Assim também afirma a matéria do Jornal Página 12, publicada no mesmo ano da remoção:

Há cinco anos, nesse morro em frente ao Río del Plata, um grupo de gays fundou a Aldea. Se somaram outros casais de homossexuais – chegaram a ser umas vinte – e logo aceitaram a incorporação de heterossexuais, até que chegaram numa centena de pessoas. São terras que foram cedidas à universidade e sobre as quais há um projeto de parque. Fazem dois meses que o governo porteño assegurou que não ia haver desalojamento encontrar um destino para cada um dos habitantes. No meio dessas negociações, se implementou a ordem e a Aldea desapareceu. Aqueles que não aceitaram

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estadias provisórias em hotéis ou institutos estão dispostos à resistir à certeza de se converter em novos desabrigados. Desde noite permanecem de baixo da ponte próxima à estação Scalabrini Ortiz e essa manhã bateram nas portas do governo da cidade para reclamar um terreno onde poderiam voltar à existir como comunidade. 46(Página 12, 2010)

Somando-se à história da Aldea estão os escombros do atentado terrorista sofrido pela embaixada de Israel na Argentina e à Asociación Mutual Israel Palestina (AMIA) em 1994, no local onde, quatro anos depois, o parque foi levantado. Como conta um dos moradores da Aldea Gay, entrevistados por María Carmam (apud Vecchiole, 2014): “se você tivesse visto as coisas que tem debaixo daqui ia querer se matar [...] tiravam os crânios dos escombros da AMIA e da embaixada47”. A construção do parque constituiu assim uma situação paradoxal que, por vezes, encontra-se com a barbárie do passado argentino. Afinal, o processo de remoção da Aldea Gay e de sobreposição aos escombros da AMIA e da embaixada, se assemelha com um dos princípios centrais das políticas ditatoriais. O de tabula rasa, através do qual tirava-se da frente tudo aquilo que fosse entendido como obstáculo, sejam pessoas ou objetos. Esse tortuoso processo que acompanhou o parque desde as primeiras iniciativas tornou-se evidente no dia de sua inauguração. Numa tarde de 2001, debaixo de uma chuva torrencial, enquanto parte dos grupos comemoravam a colocação da primeira pedra que marcava a abertura de suas portas ao público, outros componentes de associações – como dos H.I.J.O.S, Madres e Correpí48 – protestavam a poucos quilômetros de distância dali. “[..]

46 “Hace cinco años, en ese monte frente al Río de La Plata, un grupo de gays fundó la Aldea. Se sumaron otras parejas homosexuales –llegaron a ser unas veinte– y luego aceptaron la incorporación de heterosexuales, hasta contar un centenar de personas. Son tierras cedidas a la Universidad y sobre las que hay un proyecto de parquización. Hace dos meses el gobierno porteño aseguró que no iba a haber desalojo hasta estudiar con cada uno de los pobladores su destino. En medio de esas negociaciones, se implementó la orden y la Aldea desapareció. Quienes no aceptaron estadías provisorias en hoteles o institutos están dispuestos a resistir la certeza de convertirse en nuevos homeless. Desde anoche permanecen bajo el puente pegado a la estación Scalabrini Ortiz y esta mañana golpearán las puertas del gobierno de la Ciudad para reclamar un terreno donde puedan volver a existir como comunidad. (Desalojaron la Villa tras la Ciudad Universitaria : final de fuego para la Aldea Gay. Jornal Página 12, 16/06/ 1998. http://www.pagina12.com.ar/1998/98-06/98-0616/pag17.htm > acessado em 07/09/2016.) 47 “[...]se vos hubieras visto las cosas que hay acá debajo te quieres matar. [...] sacaban los cranios de los escombros de la Amia y de la Embajada.” ������������������������������������������������������� Corrente contra a Repressão Policial e Institucional.

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Segundo eles, o governo era cúmplice da manutenção das leis que até hoje proíbem o castigo dos responsáveis das torturas e das práticas criminais de eliminação, infligidas a todos aqueles para qual o parque está dedicado49” (Di Cori, 2005, p. 102, traduzido por mim). Do ponto de vista do campo da arquitetura, apesar das deficiências da base do concurso, os arquitetos e urbanistas progressistas que compunham o jurado apontaram não apenas para a qualidade técnica; mas também para o processo e sobre “como se construye la memoria colectiva de esta experiencia desde la construcción de la ciudad y de la práctica del arquitecto” ( Solano apud Di Cori, 2005, p. 102). Por outro lado, ao longo do processo de construção, os membros do júri reconheciam o problema das modificações que foram sendo realizadas no parque. Por falta de verbas nenhum dos dois projetos – o de esculturas e o urbano – foram concluídos. Com relação ao de escultura as obras estão sendo, até hoje, vinte anos depois das primeiras iniciativas, sendo construídas gradualmente. Já com relação ao projeto arquitetônico a situação é mais grave. Não foram realizados nem os novos edifícios que comporiam a Cidade Universitária; nem as conexões entre a Costanera e o sul da cidade, como se previa no projeto original do programa Buenos Aires y el Río. Hoje os únicos acessos são pela Avenida Costanera e pela Ciudad Universitaria de modo que faltam a conexão com a Faculdad de Deseño e Arquitectura da Universidad de Buenos Aires, por uma ponte de madeira, e outra pela Faculdad de Ciencias Exactas, que uniria o Parque Norte e o Parque de la Memoria. Segundo Telermán (apud Vecchiole, 2014), o então chefe de governo, além da recuperação das áreas verdes da região, para que “todos” pudessem desfrutá-lo, uma das ideias centrais era a conexão com o sul da cidade que, por falta de verbas, não aconteceu. Assim o parque e seu entorno permanecem ainda hoje em uma situação precária, com edifícios em ruínas e enormes vazios (Silvestri, 2000).  Trata-se “(…) de um projeto praticamente invisível para os habitantes da cidade. Não é que o lugar seja mal construído, mas sim que não se fez nada para favorecer a sua integração à percepção e à

������ “[…]Según ellos, el Gobierno era cómplice en el mantenimiento de las leyes que hasta hoy en día prohíben el castigo de los responsables de las torturas y de las prácticas criminales de eliminación infligidas a todos aquellos para cuyo recuerdo y conmemoración pública estaría dedicado el Parque.

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experiência urbana.50” (Vezzetti, 2010) . Situação essa que, segundo Hugo Vezzetti (2010, p. 119), ameaça os próximos sentidos e significados que o lugar ira adquirir, o qual “[...] dependerá da incorporação de outros protagonistas, de novas apropriações e da correlação com outros artefatos, enfim, de uma trama de percursos, histórias e valores encarnados na vida da cidade51.”

Imagem 18: Av. Costanera hoje. Disponível em: http://farn.org.ar/ > acessado em 05/08/2016.

�������������������������������� “ [...] [o parque memorial é] un espacio prácticamente invisible para la vida de los habitantes de la ciudad. No es que el lugar esté mal elegido, sino que no se ha hecho nada para favorecer su integración a la percepción y la experiencia urbana”. (VEZZETTI, 2010, ) 51 “El destino de esos lugares – y el sentido que puedan adquirir – dependerá de la incorporación de otros protagonistas, de nuevas apropiaciones y de la correlación con otros artefactos, en fin, de una trama de recorridos, historias y valores encarnados en la propia vida de la ciudad.”

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Imagem 18: Av. Costanera hoje. Disponível em: http://farn.org.ar/ > acessado em 05/08/2016.

Imagem 19: Av. Costanera hoje. Disponível em: http://farn.org.ar/ > acessado em 05/08/2016.

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capítulo 3

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Aspectos espaciais e simbólicos

Desde a região central de Buenos Aires existem dois caminhos possíveis para acessar o Parque de la Memoria: via a Universidad de Buenos Aires ou pela Av. Costanera Norte. Vindo pela Costanera observa-se através da janela do ônibus uma paisagem – um tanto confusa – que acompanha o trajeto. Do lado direito, onde o sol se põe, a água marrom do Río del Plata desenha o horizonte. Flutuando sobre ele, pequenas embarcações de pescadores. A transição entre a área molhada e a rua é marcada por um passeio, onde outros pescadores apoiam-se no parapeito do rio, enquanto pedestres e ciclistas passeiam, tocam música ou tomam mate. Nas ruas velhos carrinhos de choripán ou artigos de pesca permanecem estacionados para atender a demanda do público. Depois do aeroporto internacional Jorge Newberry a paisagem muda. Surgem dois ou três restaurantes de luxo que alternam com áreas vazias, estacionamentos, mesmo que para a pouca demanda de carros. Na calçada quase não há ninguém e os únicos ruídos vêm dos das turbinas dos aviões.

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Imagem 19: Av. Costanera hoje. Registro da autora em maio de 2016.

Imagem 20: O parque desde a av. Costanera hoje. Registro da autora em maio de 2016.

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Aproximadamente cinquenta minutos após o início do trajeto avistase o parque, uma extensa área verde que continua a paisagem horizontal de seu entorno. No nível da rua uma grade de ferro, a calçada em reforma e, na entrada principal, pela praça central, está sendo construído um ponto de informações. O ambiente é cercado por colinas gramadas, livres de outro tipo de vegetação. No horizonte avista-se o Río del Plata e os monumentos distribuídos pelo gramado ou nas praças. Ao fundo, do lado esquerdo de quem ingressa, o edifício modernista da Faculdad de Deseño, Arquitectura e Urbanismo da Universidad de Buenos Aires.

Imagem 21: O parque desde a av. Costanera hoje. Registro da autora em maio de 2016.

Um primeiro muro delimita e anuncia o monumento. O piso se estreita e direciona para um percurso em rampa que acompanha as marcações horizontais. Tratam-se de quatro paredes conformadas em zigzag. Ao longo do caminho observam-se trinta mil placas de pórfiro, ora vazias, ora completas com algum nome e idade dos desaparecidos. Mais precisamente, nove mil estão preenchidas com os nomes das vítimas. Os nomes das mulheres, homens, meninos e meninas aparecem em ordem cronológica, por ordem de desaparição ou assassinato, e por ordem alfabética. Estão também assinaladas as idades das vítimas e as mulheres que estavam grávidas.

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Imagem 22: Primeiro muro do monumento. Registro da autora em maio de 2016.

Imagem 23: Vista desde o primeiro muro. Registro da autora em maio de 2016.

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Imagem 24: O monumento. Registro da autora em maio de 2016.



Imagem 25: Detalhe do monumento. Registro da autora em maio de 2016.

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A forma zigzag que o monumento conforma alude, segundo os arquitetos, à ferida aberta que ainda não curou naqueles que perderam seus entes queridos (apud Huyssen, 2013). Contudo, a disposição das paredes só pode ser observada nos desenhos técnicos em planta ou numa vista aérea do parque. O pedestre que atenta-se à uma delas enxerga o próximo muro, de modo que enfatiza-se, assim, a quantidade de pessoas desaparecidas. A ideia das quatro paredes como ferida aberta se constrói, portanto, junto à projeção de uma produção imagética sobre o local. O monumento parece nascer para ser fotografado. Constitui-se simultaneamente como matéria e imagem.

Imagem 26: Vista aérea Parque de la Memória. Fonte: http://www.buenosairesfreewalks. com/blog-en/parque-de-la-memoria/> acessado em 08/09/2016. Autor desconhecido.

O zigzag foi sistematicamente utilizado em outras obras arquitetônicas sobre o Holoucasto. O primeiro a propor tal forma foi Daniel Libeskind no concurso arquitetônico que deu origem ao emblemático Jewish Museum (Museu Judaico), em Berlim, em 1998. O volume construído ao lado do edifício do tribunal de justiça prussiano, de 1735, agora parte do museu, pretendeu criar um espaço onde as informações sobre o massacre aos judeus durante o Holocausto fossem lidas nas “entrelinhas”. Para isso, o museu desenha-se em uma única linha que zigzagueia as árvores pré-existentes incorporando, segundo Libeskind, o vazio da ausência das milhares de vítimas assassinadas. Como no parque, tanto essa linha única quanto os rasgos que compõe as

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fachadas da edificação aludem a ferimentos52. Ferimento que, por sua vez, está na origem grega da palavra trauma (Nestrovski; Seligmann-Silva, 2000). As primeiras iniciativas do memorial projetado pelo arquiteto alemão, assim como o parque, inserem-se no contexto dos anos 90. Nesse momento, ao mesmo tempo que os alemães buscavam uma expressão simbólica “para a auto compreensão política da relação com Auschwitz53” (Habermas apud Sarlo, 2009, tradução minha); a arquitetura e o urbanismo ganhavam um lugar de destaque, um tanto espetacular, em diversas cidades do globo, e sobretudo em Berlim54. Quando se inaugurava o museu de Libeskind, no começo dos anos 2000, a paisagem de Berlim, segundo Otília Arantes (Arantes, 2012, p.10), já era marcada por “megaprojetos emblemáticos, urbanismo acintosamente corporativo, nenhuma marca global ausente; gentrificações alastrando-se por todo canto; exibicionismo arquitetônico em grande estilo [...] e muita animação cultural disponível para 24h de consumo”. Por outro lado, a demanda na construção civil cooperou para que a cidade se tornasse palco de experiências de arquitetos. Frente à falência do movimento moderno55, tratava-se de um momento em que os profissionais do

������������������������������������������������������������������������������������������ Informações extraídas do memorial descritivo do projeto. Disponível em http://libeskind. com/work/jewish-museum-berlin/> acessado em 02/11/2016 ���������� “[...] buscan una expresión simbólica para la auto comprensión política de su relación histórica esencial con Auschwitz.” ������������������������������������������������������������������������������������� Segundo Jameson (1996), a perda da utopia moderna no pós modernismo pode ser explicada pela expansão da dimensão econômica da globalização, que passou a controlar as novas tecnologias, reforçar os interesses geopolíticos e, na pós modernidade, fundiu o econômico no cultural e o cultural no econômico. A produção frenética de imagens tornou-se agora cultural, pois os produtos são comprados não apenas por seu uso mas por sua imagem; bem como a mediação fundamental entre economia e cultura tornou-se, na sociedade midiática, a propaganda, que engloba diversas formas de produção estética, inclusive a arquitetura e o urbanismo. ������������������������������������������������������������������������������������ Associado a isso os profissionais do campo, constatando uma desproporção entre as aspirações programáticas e as formas anônimas do internetional style, já desprovido de significação social ou política (Arantes, 2001). Segundo Jameson (1996), a perda da utopia moderna no pós modernismo pode ser explicada pela expansão da dimensão econômica da globalização, que passou a controlar as novas tecnologias, reforçar os interesses geopolíticos e, na pós modernidade, fundiu o econômico no cultural e o cultural no econômico. Na medida em que essa fusão acontece na pós modernidade, a função – sem qualquer projeto transformador – é reduzida à forma e, assim, a abstração do capital financeiro – que, ao ser representado por títulos, papéis, e obrigações que se convertem em dinheiro, se desliga da realidade e encontra um nível abstrato e flutuante – atinge todas as esferas da vida. Vivemos, segundo Jameson, em um mundo de superfícies. Note-se entretanto que a teoria do autor deve ser olhada com cuidado, já que ele considera que não há possibilidade crítica dentro dessa dinâmica. Autores

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campo exploravam novos paradigmas ideológicos56, temas57, agendas éticas e políticas58 (Nesbitt, 2006) que davam luz à questões antes na penumbra59. Nesse cenário, incluía-se enquanto preocupação, principalmente em Berlim, as possibilidades espaciais e simbólicas de representar traumas por meio da arquitetura. O Jewish Museum com sua ideia de “entrelinhas” nasce, portanto, no bojo da crítica dita pós moderna, apoiando-se nas ideias desconstrutivistas importadas da teoria linguística de Jacques Derrida. A forma “desconstruída” e até “estranha” do museu é, assim, fruto do entendimento da arquitetura – e na forma arquitetônica – como discurso. Ao recusar a metanarratividade60, recusou-se, também, qualquer tipo de categoria binária, inclusive aquelas relativas ao modernismo arquitetônico – como pureza da forma, verdade dos materiais, forma segue função (Silvestri, 2009). A forma do museu é, então, uma busca pela desconstrução do cubo, signo-sistema das vanguardas arquitetônicas modernas61 (Fabbrini, 2012).

como Andreas Huyssen, que buscam iluminar algumas possibilidades críticas da cultura no pós modernismo, apresentam uma posição mais intermediária, a qual acredito ser mais coerente. ��������������������������������������������������������������������������������������� A arquitetura fenomenológica e a preocupação com a apreensão do corpo no espaço toma lugar do formalismo moderno e prepara o terreno para a estética do sublime e a questão da apreensão da obra arquitetônica pelas pessoas; a linguística e a ideia da arquitetura como discurso, trará as noções da semiótica, do estruturalismo e do pós estruturalismo; o marxismo, como linha teórica passa a auxiliar na compreensão do papel político da arquitetura; e o feminismo, que ao buscar compreender o papel que a mulher ocupa no espaço e no campo da arquitetura colocam o corpo e o espaço como espaços de repressão ao longo da historia. ������������������������������������������������������������������������������� Como o a história, o corpo, o lugar, a imagem e o significado (Nesbitt, 2006) �������������������������������������������������������������������������������������������� Diferente de Fedric Jameson (1996), Kate Nesbitt (2006) aponta que o caráter efervescente do pós-modernismo na arquitetura caracterizou-se no campo pela proliferação de paradigmas teóricos ou enquadramentos ideológicos de outros campos do saber que estruturam os debates teóricos (apud Boghosian, 2016). �������������������������������������������������������������������������������������� As novas preocupações no campo da arquitetura inserem-se em um contexto maior, onde a memória surge como questão central na cultura, contrapondo-se às visões totalizantes de mundo que se fizeram presentes no modernismo (Huyssen, 1984). Pela primeira vez nos anos 60, no rastro da descolonização, os movimentos sociais buscaram histórias alternativas e revisionistas na procura por outras tradições e pelas tradições do “outro” (Huyssen, 2000, p. 10). Discursos meta-narrativos – interpretações de larga escala com aplicação universal (Harvey, 1991, p. 15) – caíram por terra e preocupações políticas e éticas emergiram com força, iluminando algumas problemáticas locais antes na penumbra. ������������������������������������������������������������������������������ Interpretações de larga escala com aplicação universal (Harvey, 1991, p. 15) ��������������������������������������������������������������������������������������������� O quadrado, por sua vez, é o signo sistema equivalente ao cubo, das vanguardas artísticas.

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Imagem 27: Jewish Museum em Berlim Fonte: Daniel Libeskind architects. Disponível em (http-//lilith.org/wp-content/uploads/2015/07/jewish-museum-berlin.jpg > acessado em 03/11/15). Créditos: Guenter Schneider



A arquitetura do Jewish Museum propôs experiências corpóreas e vias simbólicas inéditas de representação do trauma por meio da arquitetura. Recusou-se um olhar pornográfico (Jameson, 1996), fácil, que nada esconde e por vezes propôs exercícios de introspecção. Quem percorre suas salas e corredores que ora afunilam e ora se ampliam, pode se incomodar por uma sensação claustrofóbica. Vigas perfuram, como facas, corredores estreitos. Colunas diagonais estruturam o edifício em uma espécie instabilidade semiótica (Arantes, 2008) que parece quebrar. Rasgos deixam a luz zenital atravessar. Aberturas conformam pequenos jardins em seu interior. Algumas obras se instalam, numa relação inteiramente íntima com aquele lugar, tão íntima que só poderiam estar ali. O edifício, tamanho o impacto da experiência de percorrer seus ambientes, e tamanha a originalidade de suas formas, que ele mesmo tornou-se a própria obra de arte e monumento (Arantes). Hoje milhares de turistas se dirigem não apenas para ver seu conteúdo, mas para fotografalo. Fotografias essas que, associadas àquelas da grande mídia, se reproduzem e espalham-se pelo mundo por meio das redes sociais, websites e blogs de viagem, passando, assim, a atribuir seus próprios significados ao local.

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Imagem 27 e 28: Interior do Jewish Museum. Fonte: Architectual Review. Disponível em https://www.architectural-review.com/archive/viewpoints/architecture-becomesmusic/8647050.article > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

Imagem 29: Interior do Jewish Museum. Disponível em: http://cdn.c.photoshelter.com/imgget2/I00002jvEJHSMQng/fit=1000x750/Jewish-Museum-Berlin-QJEL-03 > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

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O zigzag do Jewish Museum tornou-se “marca registrada” de Libeskind, foi altamente divulgado pela mídia internacional e tornou-se cartão postal de Berlim. Desde então o arquiteto vem constantemente recebendo novas encomendas de edifícios – sejam eles museológicos ou memoriais – a serem projetados à luz do museu alemão62. Dentre eles o ainda não construído Memorial of Names, em Amsterdam, e o National Holocaust Monument Schenes, no Canadá. Portanto, como outros trabalhos do Holocausto o Jewish Museum ganhou uma dimensão totalizante, entrando na dinâmica da cultura de massa. Porém, por outro lado, ao ser divulgado nas mídias internacionais, esta mesma dimensão da globalização particularizou e localizou, abrindo espaço para trabalhos críticos com outras temáticas locais (Huyssen, 2000, p. 13)63. Tornou-se, assim, um projeto paradigmático a partir do qual outros arquitetos desenvolveram suas próprias compreensões e propostas focadas em outras temáticas da memoria de dor. O parque-memorial, em Buenos Aires, é exemplo emblemático disso. Como o Jewish Museum busca, através da desconstrução do signo de uma ferida, construir-se textualmente.

������������������������������������������������������������������������������������������������ Contudo isso era de se esperar, pois sabe-se que ao trabalhar prioritariamente sobre a forma as arquiteturas desconstrutivistas foram amplamente incorporadas pelo mercado imobiliário. Afinal, quanto mais destorcida e contorcido o objeto arquitetônico, maior seu sucesso com o público (Arantes, 2009). ��������������������������������������������� Foi o que Andreas Huyssen (2000) chamou de paradoxo da globalização. Ao mesmo tempo que os movimentos de memória, ao negarem as discursos metanarrativos olharam para as particularidades locais e negaram a dimensão totalizante da globalização, foram impactados e absolvidos por ela. As novas tecnologias e a expansão das mídias escrita e de imagens enfraqueceu e expandiu as barreiras nacionais contribuindo “de maneira deliberada para o vertiginoso redemoinho dos discursos de memória que circulam no mundo” (Huyssen, 2003, p. 95). As informações e narrativas de memórias locais passaram a ser divulgadas com rapidez e facilidade em outros países. Seja por meio dos canais de televisão internacionais da tv a cabo, dos jornais que podem ser consultados online ou dos filmes produzidos em diversas partes do globo, lemos sobre tudo e todos em um ritmo frenético. Como afirma Huyssen com precisão “Certamente a voracidade da mídia e seu apetite pela reciclagem parece ser um sine qua non dos discursos das memórias locais cruzando fronteiras, entrando em uma rede que ultrapassa as fronteira nacionais e cria a chamada cultura de memória.” (Huyssen, 2003, p. 95). Portanto, uma vez que a cultura da memória configurou-se a partir e através da globalização, o regionalismo, em parte absorvido por ela, encontra-se até hoje, nos entremeios das relações dinâmicas entre as esferas globais e locais.

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Imagem 28: Maquete do projeto do Amsterdam Holocaust Memorial to name Jews and Roma deported to nazi camp, de Daniel Libeskind. Fonte: http://www.irishtimes.com/ polopoly_fs/1.1830342.1402595817!/image/image.jpg_gen/derivatives/box_620_330/ image.jpg> Acessado em 10/09/2016.

Imagem 27: Maquete virtual do Nacional Holocaust Monument no Canadá, projetado por Daniel Libeskind. Disponível em: http://www.cbc.ca/news/canada/ottawa/nationalholocaust-monument-design-team-announced-1.2639860 > Acessado em 10/09/2016.

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Imagem 30: Vista aérea do Jewish Museum. Fonte: Google Earth. Disponível em: https:// www.google.com.br/maps/place/Museu+Judaico+de+Berlim/@52.5017346,13.3958877,2 83m/data=!3m1!1e3!4m5!3m4!1s0x47a851d53dd14af9:0x4c2cd254ede6304f!8m2!3d52.5 023115!4d13.3954469?hl=pt-BR > Acessado em 10/09/2016.

Imagem 30: Vista aérea do Parque de la Memoria. Fonte: Google Earth Disponível em: http://www.cbc.ca/news/canada/ottawa/national-holocaust-monument-design-teamannounced-1.2639860 > Acessado em 10/09/2016.

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No Parque de la Memoria o “entrelinhas” não está conformado por um edifício fechado, mas pela linha da calçada, que separa o parque do monumento, e a linha costeira (Huyssen, 2003). O desenho minimalista conecta-se com a morte por meio da capacidade de visualização do percurso e sugestão de um exercício contemplativo. Assenta-se na topografia acidentada de onde, desde seu ponto mais alto, enxerga-se a paisagem que coloca um ideal de plenitude. A continuidade da paisagem as colunas gramadas de um verde intenso associadas ao rio, remetem ao silêncio, ao vazio da ausência e à paz de um morto distante dos problemas mundanos evocando, assim, um senso de esperança e tranquilidade. Ao mesmo tempo, estabelecem uma íntima relação com a natureza do local, como havia sido solicitado nas bases do Concurso de Ideas. Se o museu berlinense desvia das árvores pré-existentes o parque, por sua vez, rasga a árida coluna gramada. A alternância de cheios e vazios nas pedras que compõe as paredes provoca um jogo de mudança de aspectos: ora o pedestre se atenta ao conjunto de nomes, ora se aproxima de um deles. Parece necessário perguntar-se o quão vazia estão as pedras que não contém informações. Talvez a melhor palavra para elas não seja “vazio” e sim não identificadas. A ausência de inscrições, assim como as que estão completas, remete à presença de um desaparecido e, em conjunto, à quantidade deles.

Imagem 31: O monumento. Registro da autora em maio de 2016.

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Na Argentina o Siluetazo foi o primeiro ato que representou os desaparecidos individualmente e coletivamente. A primeira edição, de 1983, inseriu-se em um momento em que “se falava de números de desaparecidos, mas não de cada um deles” (Flores, 2016). Seja através da ação dos participantes que desenhavam e deixavam seus corpos serem desenhados; seja por meio da exposição das silhuetas que, coladas nos monumentais edifícios, faziam presentes os desaparecidos no vazio de suas entrelinhas. Embora as mães recusassem a nomeação nas silhuetas de início, pois uma silhueta deveria representar um e todos ao mesmo tempo, durante o ato foi demonstrando-se a necessidade de ter “a imagem ou o nome do meu pai, da minha mãe, do meu filho.” Como o zigzag do monumento, as referências fundamentais da proposta também partiram dos trabalhos em torno do Holocausto: a obra do polonês Jerzy Skapski sobre as vítimas de Auschwitz, em 1978; e a intervenção dos latino-americanos exilados na Europa, a AIDA (Asociación Internacional de Defensa de los Artistas Víctimas de la Desaparición en el Mundo), fundada em París, em 197964. No sentido contrário, após sua primeira edição, o Siluetazo argentino foi sistematicamente reproduzido não apenas na Argentina, mas em países como o México, Brasil e Chile. Quando o parque começa a ser pensado, o Nunca Más – informe que, na forma de publicação, conformou a bases para o Juício a las Juntas militares – ingressava em uma nova fase de difusão. Como afirma Emilio Crenzel (2008), nesse momento, o Nunca Más extrapolou o âmbito legal e foi incorporado como ferramenta de transmissão do conhecimento sobre a ditadura para as novas gerações. O livro foi incluído a currículos educativos, reeditado por jornais de alcance nacional, e utilizado em filmes sobre o período ditatorial. Seu título foi inscrito em placas, muros, cartazes

����������������������������������������������������� A obra de Skapski foi divulgada em 1978 na revista El Correo de la UNESCO. A edição mostrou um cartaz com vinte e quatro fileiras de pequenas silhuetas de mulheres, homens e crianças somavam os quatro milhões e trinta mil mortos durante a tragédia do Holocausto, acompanhadas do seguinte texto: “Cada dia em Auschwitz morriam 2.370 pessoas, justamente o número de figuras reproduzidas aqui”. O campo de concentração de Auschwitz funcionou durante 1688 dias, e esse é o número de exemplares impressos desse cartaz, no total morreram no campo aproximadamente quatro milhões de seres humanos.” (Longoni; Bruzzone, 2009, P. 27, tradução Minha). Por sua vez, a AIDA, realizou uma marcha em Paris em que os manifestantes carregavam estandartes e bandeiras com a imagem dos bustos dos desaparecidos.

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e obras de arte65. “Mediante esses usos o Nunca Más conservou um lugar de privilégio como interpretação desse passado mas, ao mesmo tempo, seus sentidos foram objetos de múltiplas ressignificações66.” (Crenzel, 2009, p. 19, traduzido por mim) . Com o passar dos anos, os nomes e rostos, apontados pelo relatório ou não, foram tomando conta de praticamente todos os lugares de memória. Seja na entrada da Faculdad de Arquitectura, Design y Urbanismo da UBA, nos ExCentros Clandestinos de Detención y Tortura ou em projetos como o desaparecidos. org, que criou um “muro virtual”, foram dispostos painéis que conglomeram os retratos das vítimas.

Imagem 32: Interior da FADU-UBA, homenagens aos estudantes desaparecidos. Registro da autora. Maio/2016.

����������������������������������������������������������������������� Por exemplo, na pintura de Guillermo Kuitca, intitulada “Nunca Más”. 66 “Mediante estos usos, el Nunca Más conservó un lugar de privilegio como interpretación de ese pasado pero, al mismo tiempo, sus sentidos fueron objeto de multiplas significaciones.”

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Imagem 33: Website do projeto desaparecidos.org. Fonte: www.desaparecidos.org> acessado em 09/10/2015

Imagem 34: Homenagem aos desaparecidos no Centro de Automotores Orletti. Registro da autora. Maio/2016.

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Imagem 35: Homenagem aos desaparecidos na Ex-Escuela Mecánica de la Armada (ExESMA). Registro da autora. Maio/2016.

Imagem 36: Homenagem aos desaparecidos no centro da cidade. Registro da autora. Maio/2016.. Registro da autora. Maio/2016.

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Imagem 37: Base de dados disponível na sala Pays. Registro da autora em maio de 2016

No parque o conjunto de nomes começou a ser conformado em 1998, não apenas a partir do Nunca Más, mas também de diferentes fontes, que juntas conformaram uma base de dados pública inédita. Enquanto fontes primárias utilizou-se o relatório Nunca Más e as denuncias realizadas a posteriori diante de órgãos competentes, como a Secretaría de Derechos Humanos del Ministério de la Justicia y Derechos Humanos de la Nación e do Poder Judicial. Enquanto fontes complementares as informações da Equipo Argentina de Antropologia Forense, para os casos em que se encontraram os corpos, e das Abuelas de Plaza de Mayo, para caso das mulheres grávidas (Figueredo, 2016, entrevista concedida à autora). Na base de dados agrupou-se, então, as informações sobre a vida dos desaparecidos; bem como as circunstâncias de suas desaparições. Associado ao monumento, os dados foram disponibilizados em uma plataforma online, parcialmente aberta para consulta em computadores dispostos no interior da sala educativa Pasado Ahora y Siempre. A plataforma é dividida em três categorias de informações: uma de caráter inteiramente público, que pode ser acessada por qualquer pessoa que visita o parque; uma de caráter restrito,

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que pode ser acessada com a permissão do setor de monumento e se destina a pesquisadores; e uma terceira que ainda só os funcionários tem acesso. Com o tempo os campos de informação dessa base foram ampliando-se. Incorporou-se as causas judiciais, que hoje seguem vigentes, bem como revistas e publicações. Tendo em vista que o Estado recebe constantemente novas denuncias de desaparecidos, a nomeação do muro é considerada inconclusa. Nessa medida conformou-se um setor Investigación y Monumento. Este é composto por funcionários que, através das informações recolhidas, são responsáveis por administrar a base de dados para dar continuidade ao preenchimento das placas. Quando começou a ser construído os setores – de monumento, arte e educação – trabalhavam em espaços físicos distintos. Desse modo, quando o setor se transferiu para a sala PAyS as iniciativas documentais passam a articular-se com as exposições e eventos realizados nesse espaço. Assim é interessante ressaltar a importância que adquire não apenas a disposição dos elementos, mas também a acomodação das áreas administrativas. A nomina foi o principal objeto de disputa entre os envolvidos na construção. Discutia-se tanto quem, quanto como deveriam estar representados os desaparecidos. Assim, após um longo processo de debates optou-se por incluir além das vítimas da ditadura, as vítimas da violência de Estado do período de 1969-198367 incluindo atos marcados por resistência. Incorporou-se então as vítimas dos massacres de Trelew68 (1972) e Ezeiza (1973)69; as vítimas do acionar repressivo de organizações policiais de

������������������������������������������������������������������������������������������ O ano de 1969 foi marcado pelo início da resistência popular argentina contra o governo militar do general Onganía. Com os desdobramentos dos protestos, diversas vítimas foram assassinadas em protestos nas cidades de Corrientes, Rosário e Córdoba. O primeiro foi o Cordobazo, grande protesto que uniu milhares de trabalhados, estudantes e moradores da cidade de Córdoba e, posteriormente. �������������������������������������������������������������������������������������������� O massacre de Trelew consistiu no assassinato de 16 prisioneiros políticos, militantes de diferentes organizações de esquerda peronistas, por oficiais da marinha, depois de uma fuga. O massacre aconteceu perto da cidade de Trelew, na Patagônia. ������������������������������������������������������������������������������������������� Quando Juan Perón volta à Argentina depois de 18 anos de exilio, peronistas de direita e esquerda se enfrentam próximo ao Aeroporto de Ezeiza, devido às divergências políticas no movimento. O ato resultou na morte de 13-15 pessoas e mais de 300 feridos. (http://zh.clicrbs. com.br/rs/noticias/noticia/2013/06/o-episodio-em-que-peronistas-se-enfrentaram-atiros-4171435.html> acessado em 28/11/16.)

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direita70; e as vítimas do Operativo Independencia71, iniciado em Tucumán. Também incorporou os argentinos vítimas da Operação Cóndor72 e as crianças sequestradas junto aos pais que faleceram por conta das práticas repressivas da operação73. No inicio do percurso do monumento uma placa apresenta uma escritura, que reflete parte dos debates sobre como representar as vítimas: “A nomina desse monumento compreende as vítimas do terrorismo de Estado, detidos-desaparecidos, assassinados e os que morreram combatendo pelos mesmos ideais de verdade e justiça” 74. Na inscrição expõe-se, assim, a discussão sobre a identificação das vítimas, que apareceu pela primeira vez no Siluetazo. Quando os artistas responsáveis pela intervenção apresentaram a proposta inicial às Madres de Mayo, na qual as silhuetas deviam ser identificadas com os nomes, profissões e idade, as mulheres imediatamente solicitaram que tal informação fosse omitida, já que, segundo elas, cada silhueta deveria representar um e todos ao mesmo tempo (Flores, 2016). Ademais, as silhuetas não poderiam ser coladas no chão, para não aludir ao processo policial de contorno de um corpo morto em uma cena de crime. Como apontado no primeiro capítulo, tratava-se de uma posição política de resistência construída pelas Madres. Na busca por justiça e alguma satisfação elas recusaram, durante

���������������� Por exemplo a Alianza Anticomunista Argentina (Triplice A), o Comando Libertadores de America, e a Concentración Nacional Universitaria. ����������������������������������������������������������������������������������� O operativo independência foi uma ordem do exército argentino, durante o governo constitucional de Isabelita Perón, que pretendeu “ejecutar las operaciones militares que sean necesarias a efectos de neutralizar y/o aniquilar el accionar de elementos subversivos que actúan en la provincia de Tucumán”. Dentre eles estava o Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), que ganhava força nas áreas da província. ����“A Operação Cóndor, formalizada em reunião secreta realizada em Santiago do Chile no final de outubro de 1975, é o nome que foi dado à aliança entre as ditaduras instaladas nos países do Cone Sul na década de 1970 – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai – para a realização de atividades coordenadas, de forma clandestina e à margem da lei, com o objetivo de vigiar, sequestrar, torturar, assassinar e fazer desaparecer militantes políticos que faziam oposição, armada ou não, aos regimes militares da região” > http://www.cnv.gov.br/index. php/2-uncategorised/417-operacao-condor-e-a-ditadura-no-brasil-analise-de-documentosdesclassificados > Acessado em 27/07/2016. ������������������������������������������������������������������������������������ http://parquedelamemoria.org.ar/conformacion-de-la-nomina> Acessado em 22/11/2016. 74 La nómina de este monumento comprende a las víctimas del terrorismo de Estado, detenidos-desaparecidos y asesinados y a los que murieron combatiendo por los mismos ideales de justicia y equidad”(apud Vezzetti, 2005, p. 106).

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todo o processo de luta, reconhecer seus filhos como mortos “porque com vida os levaram e com vida os queremos” (Flores, 2016). No parque, a discussão é retomada por um grupo composto por parte das Madres, na figura central era Hebe Bonafini. Nesse sentido vale retomar a carta antes citada onde, em nome do grupo, expõe o repudio não apenas ao parque, mas à ideia de expor os nomes das vítimas (Vezzetti, 2009, p. 289)75: [o parque é construído pelos] mesmos que perdoaram os assassinos e que, em muitos casos, se alinharam com eles. Se for necessário usaremos pico, martelos e cortaferros para apagar os nomes gravados nesse monumento que, para nós, ofende a nossos queridos revolucionários. (Bonafini apud Valdez apud Vezzetti, 2009, p. 280)

Como debate Hugo Vezzetti (2009, p. 242), recusar a identificação significou, na verdade, a vontade de reconhecer os desaparecidos como combatentes. Segundo o autor trata-se do choque entre as memórias épicas das esquerdas revolucionárias, na figura dos combates que lutavam contra o governo ditatorial – como exalta Bonafini quando fala do uso de armas; e a ideia de construção de um monumento, que inevitavelmente carrega a ideia de luto. Entretanto, resta saber se é interessante, do ponto de vista da transmissão do conhecimento nos lugares de memória, a construção de figuras heroicas à luz dos soldados desconhecidos76 do século XIX, aos quais se erigiam estatuas épicas. Ou se possibilitaria uma maior identificação para com os visitantes representar as vítimas como os homens, trabalhadores, estudantes, meninos e meninas comuns que eram. Já para outra parte das Madres o monumento é de grande importância. Como disse uma delas, citada por Vezzetti (2009) no dia da inauguração do local: “os nomes dos nossos filhos vão estar a altura para que possamos tocar”.

���������������������������������������������������������������������������������������������� Como cita Hugo Vezzetti (2009) essa carta foi exposta por Patrícia Valdez no texto “Parque de la Memoria” ������������������������������������������������������������������������������������ Tratam-se dos monumentos sistematicamente construídos na Europa no século XIX aos soldados que morreram em guerra sem ter seu corpo identificado.

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Apesar de controverso é inegável que o monumento ampliou as dimensões legais das informações através das quais se conforma. Ainda sob a perspectiva de Vezzetti (2009, p. 238), nele se encarnou a possibilidade de uma nova consciência pública, que evita estabelecer uma relação nostalgica com o passado. O projeto arquitetônico, enquanto uma aposta incerta no modo como o lugar será apropriado (Vezzetti, 2009, p. 238) oferece usos simbólicos e ritualísticos. As pedras nomeadas foram capazes de provocar em familiares um sentimento de auto identificação e auto representação. Como se fossem pequenas gavetas funerárias, algumas possuem flores e mensagens, deixadas por aqueles que não tiveram a oportunidade de realizar um ritual fúnebre. “Trata-se de uma interpretação dos tempos passado e presente, ao mesmo tempo que se estabelece uma distância com o passado, na medida em que este é inacessível ”.

Imagem 38: León Ferrari depositando flores no monumento em homenagem aos seus entes desaparecidos. Fonte: parquedelamemoria.org.ar > acessado em 07/08/2015

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Desde o monumento enxergam-se as esculturas dispostas no gramado(ver imagem 31). Ao contrário da austeridade que propõe os muros, elas estão pulverizadas (Silvestri, 2000) ao longo do espaço. Das oito esculturas selecionadas dentre as seiscentas e sessenta e cinco propostas apresentadas no Concurso de Esculturas, sete estão implantadas hoje. São elas: o Monumento al Escape (David Oppenheim, Estados Unidos); Victoria (Willian Tucker, Estados Unidos); Pensar es un hecho revolucionário (Marie Orensanz, Argentina); Carteles de la Memoria (Grupo de Arte Callero, Argentina); 30.000 (Nicolás Guagnini, Argentina); e Reconstrución del retrato de Pablo Miguez (Claudia Fontes, Argentina). Além das selecionadas no concurso, acrescentam-se os artistas que foram convidados por “seu prestigio, trajetória e compromisso com a defesa dos direitos humanos”. São eles: Leon Ferrari Roberto Aizenberg (Argentina), Juan Carlos Distéfano (Argentina), Norberto Gómez (Argentina), Leo Vinci (Argentina), Magdalena Abakanowicz (Polonia) y Jenny Holzer (Estados Unidos). Desses últimos estão implantadas as obras Sin Título (Roberto Aizenberg, Argentina) e A los derechos humanos (León Ferrari, Argentina), totalizando dez esculturas. As esculturas, fruto do concurso posterior ao de arquitetura, foram inicialmente concebidas como complementares ao monumento. O programa de arte pública foi então criado com o objetivo de proporcionar “um modo de reflexão crítico mas sensível, capaz de colocar em cheque a memória rotineira, apelando para um diálogo em que o visitante se envolva não só através de seu intelecto, mas por todos os seus sentidos” 77. Assim, a comissão pró-monumento optou por selecionar obras que evitavam um olhar apoiado na estética tradicional e propusessem uma apreensão reflexiva sobre a temática (Battiti, 2010). Do ponto de vista espacial, elas de fato aparecem de forma secundária. Isso porque a relação entre o tamanho do terreno, a escala das esculturas e, evidentemente, onde estão implantadas, não permite que sejam, por nenhuma perspectiva de visão, apreendidas em conjunto. Para conhecer as obras é necessário percorrer o parque, o que “produz uma sensação de escassa

77 “un modo de reflexión crítico pero sensible, capaz de poner en crisis la memoria rutinaria, apelando a un diálogo con el visitante que involucre no solo su intelecto, sino todos sus sentidos.”

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Imagem 39: Espaço expositivo no interior da sala Pays. Fonte: Parque de la Memoria. Disponível em www.parquedelamemoria.org.ar > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

densidade” (Silvestri, 2000, p. 7, traduzido por mim) . Ao contrário do zigzag, que propõe um caminho único a ser seguido, não há percurso que direcione o visitante ao conjunto poli-escultural. A não ser aos finais de semana, quando são oferecidas, pelo setor educativo, visitas guiadas no parque. Evita-se, assim, que os visitantes apreendam as obras por uma perspectiva direcionada, privilegiando, a exploração corporal e visual das obras. Do ponto de vista do funcionamento do parque, o conjunto ocupa um papel central. Sob responsabilidade do setor de arte pública, o agenciamento das obras estão associadas às exposições temporárias. Bem como, mais indiretamente, ao setor educativo. Isso permite que as ações realizadas na sala expositiva e no setor educativo sejam complementárias e não redundantes. Seja pelas visitas guiadas oferecidas, que se destinam principalmente à escolas primárias; seja pelas exposições temporárias, realizadas na sala Pasado Ahora y Siempre, que exploram diferentes entradas da arte contemporânea – como vídeos, pinturas, fotografias, performance, etc – e que expandem a temática. Lá, para além das exposições, estão o setor administrativo e um auditório. A coordenadora do setor é Florencia Battiti, contratada pela Comisión pró monumento para produção e instalação das esculturas no parque. Isso significa, segundo Battiti (entrevista concedida à autora, 2016), realizar a interlocução necessária entre o Estado e os artistas para a implantação da

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obra. Associado à ela está Alberto Varas, ex sócio do Estúdio Baudizzone 78, e um dos principais responsáveis pelo projeto do parque dentro do escritório. O arquiteto, que demonstrou interesse na época do início da construção do parque, é encarregado, até hoje, por realizar os ajustes necessários entre o projeto concebido para o concurso e sua realização prática 79. Apesar de nenhum dos arquitetos estarem presentes no júri do Concurso de Esculturas, posteriormente o conselho do parque julgou necessária sua contratação para que se mantivesse uma unidade entre a arquitetura e os demais elementos do parque. A indicação do local de implantação das esculturas não foi obrigatória no Concurso de Esculturas. Ao que parece, a relação entre a arquitetura projetada e as esculturas, não era uma questão central para a seleção das obras. Além dos arquitetos ganhadores não terem participado do jurado80, tampouco as bases da concorrência concediam uma explicação cuidadosa sobre o projeto arquitetônico anteriormente aprovado. Como aponta Silvestri (2000), citada no capítulo anterior, os limites impostos aos participantes eram bastante genéricos do ponto de vista político-moral, o que cooperou para a conformação de um conjunto desastroso. As obras apresentadas se repetiam exaustivamente e não levantavam propostas capazes de articular, efetivamente, memória íntima e memória social. A produção era, segundo a autora, desarmoniosa e, mesmo as obras implantadas, pouco dialogam com o local, trabalhando, assim, prioritariamente sobre si próprias. Frente à crítica de Silvestri, Florencia Battiti, em texto escrito para o catálogo institucional do parque, se opõe a esse ponto de vista. Segundo Battiti, “um conjunto considerável dos artistas que se apresentaram ao concurso não só assumiu o desafio e enfrentou as contradições que consideravam relevantes, como também elaboraram projetos que entrecruzam, eficazmente política e poética, ética e estética” (Battiti, 2010, p.77, traduzido por mim). Battiti argumenta com o exemplo da obra de Claudia Fontes (Argentina,

���������������������������������������������������������������������������� Após ganhar o concurso o escritório dividiu-se devido à questões internas. ���������������������������������������������������������������������������������������������� Como exemplifica Battiti (2016) o parque carecia de um pavilhão de acesso na praça central, por onde se ingressa no local. Varas ficou responsável, portanto, pelo projeto desse pavilhão. ������������������������������������������������������������������������������������������ Apesar da enorme competência dos jurados, que incluiu importantes artistas, curadores e críticos de arte argentinos, que estão envolvidos com a temática.

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Imagem 40: Escultura de Claudia Fontes. Disponível em https://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/5/54/Reconstrucci%C3%B3n_del_retrato_de_Pablo_M%C3%ADguez_ por_Claudia_Fontes_Parque_de_la_Memoria.JPG > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

Imagem 41: Escultura de Nicolás Guagnini. Fonte: Parque de la Memoria. Disponível em www.parquedelamemoria.org.ar > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

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1964) e de Nicolás Guagnini (Argentina, 1966). A primeira trata-se de uma escultura implantada sobre o rio que retrata Pablo Miguéz, um adolescente desaparecido, através de um jogo de desaparição/aparição; por meio desse mesmo jogo, a obra autobiográfica de Guagnini, implantada no gramado, convida o visitante a encontrar o ângulo de visão ideal onde o auto-retrato do autor se conforma por inteiro nas colunas brancas que o compõe, de outro ponto de vista a figura desaparece. Por entre elas, quando a figura desaparece, enxerga-se a paisagem do rio. Desse modo, segundo a autora (Battiti, 2010, p.77), em resposta direta a Silvestri (2000), ambas estão longe de “competir com o traçado original do projeto arquitetônico” (apud Silvestri, 2000) ou de apresentarem “uma ausência de reflexão específica sobre o sítio e forma” (apud Silvestri, 2000). O descompasso entre a arquitetura previamente projetada e as esculturas, embora seja admirável os esforços de Battiti e Varas para acomodar as esculturas de forma mais coerente possível com o espaço, é também motivo de disputa entre os dois funcionários (entrevista concedida à autora, 2016). Battiti, referindo-se à Varas, aponta para a dificuldade de “um arquiteto que ganhou um concurso com um desenho tão despojado como esse, aceitar que venham artistas colocar esculturas sobre seu projeto. Isso lhe custou [a Varas] um pouco, mas nunca deixou de participar de todo o processo” (Battiti, entrevista concedida à autora, 2016). Um exemplo concreto citado por ela foi o processo de implantação da obra do Grupo de Arte Callero, cinquenta e três placas, que indicam os lugares de memória pela cidade, implantadas na orla do Río del Plata. Apesar da indicação de implantação ter sido apresentada no Concurso de Esculturas, no seu processo de execução, Varas argumentava que as placas impediriam um contato visual pleno entre a área construída e o rio. Battiti, em contraposição, ressaltava que a obra, previamente aprovada para aquele sítio, só faria sentido ali, já que remete, através da sinalização ao longo do local, a um novo percurso topográfico de dor. Entretanto, nem artistas, nem arquitetos, nem os gestores do parque conseguiriam resolver inteiramente o problema de articulação entre arte e arquitetura. Afinal, sua origem está diretamente relacionada não apenas ao processo de seleção das esculturas, mas às questões internas ao campo da arte

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Imagem 42: Escultura Grupo de Arte Callejo. Fonte: Parque de la Memoria. Fonte: Parque de la Memoria. Disponível em www.parquedelamemoria.org.ar > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

contemporânea81 – especialmente aquelas relativas ao problema da autonomia da obra de arte. Sabe-se que a arte hoje, ao recorrer sistematicamente às suas próprias técnicas, história e métodos, tende a falar de arte para artistas e, assim, “está longe de superar as distâncias com “os não entendidos” (Silvestri, 2000). Nesse sentido a atuação do setor educativo, por meio de tours guiados, se faz necessário como uma ponte de interlocução entre a obra e o público. Contudo, por outro lado, além da arte ter um papel fundamental no funcionamento do parque, ela também assume uma grande importância política e simbólica. Afinal, não a toa essa foi uma escolha dos envolvidos na construção do parque. Apesar da aparente liberdade das artes visuais na contemporaneidade, ela ainda fala de aspectos muito concretos (Silvestri, 2000). Já do ponto de vista espacial, tal desproporção torna-se evidente especialmente quando nota-se que as únicas esculturas que indicaram um

����������������������������������������������������������������������������������� Essa é uma perspectiva possível de análise do parque, a qual não será amplamente desenvolvida aqui, já que a presente pesquisa teve como foco as problemáticas relativas à arquitetura do lugar.

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local de implantação dialogam com o rio, preexistente, e nunca com a arquitetura construída. O parque abre-se para o rio, foi construído em sua referência, mas também em sua homenagem. Como as placas vazias, o rio não revela nenhum dos nomes. Porém, embora suas cicatrizes, ao contrário daquelas inscritas na terra ou nas pedras do monumento, sejam invisíveis na uniformidade das águas, ele também pode, sobretudo aqui, ser lido como construção [cambiante] das histórias e culturas. É possível compreendelo, então, como parte material da cidade (Schindel, 2012, p. 390) e, nessa medida, como espaço de disputa composto por camadas históricas, onde memórias e esquecimentos são agenciados em prol de interesses geopolíticos, econômicos e simbólicos.

Imagem 43: Vista desde o monumento. Registro da autora em maio de 2016

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Imagem 44: Final do monumento - vista desde o rio. Fonte: Parque de la Memoria. Disponível em www.parquedelamemoria.org.ar > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

Imagem 45: Final do monumento. Fonte: Parque de la Memoria. Disponível em www. parquedelamemoria.org.ar > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

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conclusão

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O parque-memorial deslocou tanto o significado fluvial do Río del Plata central no desenvolvimento da economia agroexportadora argentina; quanto o glamour da época de Marcelo D’Alvear, o qual pretendeu-se retomar quando se pensa a “requalificação82” da Costanera Norte. Iluminou, portanto, uma camada histórica específica daquelas águas: sua relação com a ditadura militar e com os Vuelos de la Muerte quando o rio, sem marcas como a terra, se mostrou o lugar perfeito para esconder os crimes (Schindel, 2012, p. 395). Hoje, para quem conhece essa história, os ruídos das turbinas dos aviões em meio a calmaria do parque podem ser extremamente incômodos. Por meio desse fato o monumento guia o visitante até o rio que, por sua vez, tem suas significações expandidas pelas pedras do parque. A relação com o rio, com os nomes dos desaparecidos, os espaços que provocam um caminhar mais lento, uma voz mais baixa, estabelecem conexões complexas com a Costanera do passado. A expansão do sentido tradicional de monumento, a sua desconstrução, a forma singela do traço, o destaque dado,

����������������������� No jargão marketeiro.

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através do artificialmente construído, à topografia e à natureza, constroem uma série de vazios que dão espaço para imaginarmos o inimaginável. Com a construção do monumento, e assim como o próprio, as águas adquiriram um caráter simbólico e ritualístico. Muitos dos parentes das vítimas, mães, filhos, e irmão prestam, ali, no lugar onde ainda se encontram vários dos corpos, homenagens. Levam flores, rezam ou apenas meditam frente aos corpos invisíveis. Sabe-se que os rios operaram como eixo de ligação e expansão das cidades. No parque, por sua vez, o Río del Plata tornou-se, em todos os sentidos, nó central do parque e elo de ligação nas suas diferentes escalas de alcance. Para o visitante que chega de ônibus pela Costanera Norte ele acompanha a paisagem do trajeto, anunciando a chegada do parque. Com a topografia de dor, especialmente com os ex centros clandestinos e com o aeroporto, ele estabelece a conexão por meio das práticas de extermínio dos Vuelos de la Muerte; com a arquitetura do parque, através dos enquadramentos por ela proporcionada; e, globalmente, por meio das imagens estonteantes de tais enquadramentos, que ao serem resignificadas através das diferentes mídias, fazem com que o parque aconteça também por meio de sua divulgação.

Imagem 46: Homenagem de visitantes ao rio. Fonte: Parque de la Memoria. Disponível em www.parquedelamemoria.org.ar > Acessado em 11/12/16. Autor desconhecido.

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Por outro lado, o truculento processo da construção que, não apenas se refletiu na espacialidade – por exemplo na desconexão entre a arte e a arquitetura – como deixou inacabado os outros caminhos de acesso desde a cidade até o local. Os usos propostos para um parque, em seu sentido tradicional, ficaram, assim, prejudicados. Quase não há pessoas andando de bicicleta, fazendo piquenique ou passeando; bem como o tempo de permanência dos visitantes se restringe, em média, à 1h30 – segundo dados do Google Pesquisa83 – tempo razoável para conhecer os elementos do parque, mas que indica que o lugar não configura-se como espaço de estar. Nessa medida o governo da cidade, através de medidas muitas vezes violentas – como foi o caso da Aldea Gay – parecia, como antes dito, mais interessado na propaganda do que em uma abordagem política séria que exige a delicadeza do tema (Silvestri, 2000). As memórias da ditadura, que iam gradualmente se consolidando e ganhando visibilidade na mídia, foram tidas como o tema perfeito para tal intento. Nesse sentido o Parque de la Memoria procurou ser aqui tratado entendendo as complexidades e contradições inerentes ao tema das memórias dolorosas. Por um lado sua construção evidencia muitos avanços no processo público de discussão sobre a memória da ditadura na Argentina. Ao contrário dos centros clandestinos, que foram criados a partir das marcas de violência cravadas em suas terras, o parque, enquanto monumento, cria um novo ponto na cidade. Significou, assim, uma parceria inédita entre grupos de direitos humanos e Estado; uma nova discussão do tema desde o âmbito acadêmico; e contribuiu para a busca de caminhos simbólicos originais de representação desse trauma. Já, por outro lado, apresenta também contradições seja nas intenções propagandísticas84, da negação de outros direitos, bem como dos limites da gestão de um projeto não finalizado.

Tendo em vista que o parque opera pelos campos da museologia,

������������������������������������������������������������������������������ https://www.google.com.br/search?sclient=psyab&site=&source=hp&q=parque+de+l a+memoria&oq=parque+de+la+memoria&gs_l=hp.12...0.0.2.5972.0.0.0.0.0.0.0.0..0.0....0... 1c..64.psy-ab..0.0.0.RQr6Gv3EBFw&pbx=1 > acessado em 8/12/16. ������������������������������������������������������������������������������������� Deve-se ressaltar que, conforme mencionado anteriormente, a divulgação por meio de imagens também torna-se fundamental para os trabalhos de memória no parque. Entretanto seu uso encontra-se em um limite muito tênue com o âmbito espetacularizante que sistematicamente adquirem na contemporaneidade.

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da arquitetura, dos monumentos, da arte e da educação, uma das chaves passíveis de compreensão é o da memória cultural85, que também carrega consigo essas ambiguidades. Se por um lado, mostra-se uma ferramenta efetiva de transmissão de saberes e discursos, por outro, sabe-se que a cultura, nas mais variáveis formas de produção estética (Jameson, 1994), vem sendo sistematicamente meio de propaganda internacional. Assim, as melhores intenções podem ser distorcidas ou viradas ao avesso (Arantes, 1993). No caso das memórias de dor isso carrega problemas éticos profundos, já que trata-se de uma ferida aberta naqueles que ainda sofrem com a perda de seus entes queridos. Por esse caminho recaímos sobre um tema eminentemente conflituoso: a transformação de um lugar da barbárie em um lugar da cultura. Segundo Didi-Huberman (2014), lugares aparentemente distantes mas que, dado que os lugares da barbárie também foram construídos por determinada cultura – política, ética e estética – apresentam diversos pontos de convergência entre si. Afinal, como aponta o autor, a cultura não é a cereja do bolo. É um lugar de conflito onde a história torna-se visível, não importa quão bárbaros sejam os atos e as decisões (Didi-Huberman, 2014, p. 20). Procurou-se ainda atentar-se aos “perigos”, sobretudo éticos, que carrega qualquer tipo de trabalho com a memória, inclusive o acadêmico. O primeiro é que uma cultura de memória substitua ou esqueça a justiça o que, tendo em vista que em alguns casos uma justiça satisfatória para as partes envolvidas é difícil de conseguir, pode gerar graves efeitos sociais; o segundo é que a política de memória se degenere em “vitimologia”; e o terceiro é que a própria reclamação sobre os abusos da memória acabe servindo para

������������� A noção de memória cultural elaborada por Jan e Aleida Assmann (2000 apud DolffBonekämper, p.30), diz respeito ao modo como as memórias coletivas (Halbswachs,1954) perpetuam no tempo através de documentos, objetos, músicas, filmes e, também, lugares. Segundo os autores os bens materiais tornam-se fundamentais na preservação e conservação da identidade de grupos assumindo, assim, um importante papel cultural e político. Dentro disso diferença-se a memória arquivo, que apenas designa o modo como se conversa e cataloga; e a memória funcional que trata do lançamento das memórias individuais no campo da cultura pública através de instituições educativas. Amadurecendo essas noções Assmann construiu a ideia de memória comunicativa, um estado anterior à memória cultural, que abarca os saberes de avós e pais e que, ao longo das gerações, se transforma na própria memória cultural. Porém, além da memória cultural não compreender as relações entre a materialidade e a organização social da memória, não se aclara a como uma memória comunicativa pode se transformar em uma memória cultural.

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o esquecimento, de modo que a reclamação sobre os abusos da memória torne em si um abuso (Huyssen, 2010). A abordagem escolhida teve como horizonte então olhar para o parque sem negar sua posição na cultura, mas afirmando o seu caráter simbólico e, principalmente, da transformação dessas memórias em ações de justiça e resistência. Acredita-se que a análise espacial do Parque de la Memoria e dos processos que lhe deram origem amplia as questões sobre a representação das memórias da ditadura. Os avanços, mas também os paradoxos, que o caso apresenta dão luz a novos meios de tornar essas memórias presentes na cidade. Ele é, assim, exemplo brilhante das três problemáticas centrais – não as únicas – que atravessam a intersecção entre arte, arquitetura e terror mencionadas por Ileana Diéguez (apud Andrea Giunta) as quais busquei desvendar durante a pesquisa e desenvolver ao longo do texto: a fascinação que pode produzir a contemplação de um espetáculo horroroso – onde insere-se o empresariamento nas cidades contemporânea; a possibilidade estética e ética da arte de representar o horror; e a necessidade de fazer arte em tempos de terror e violência (Dieguéz, 2013, p. 53). Nesse sentido o caso auxilia para que pensemos, especialmente desde a arquitetura e do urbanismo, novas possibilidades de trabalho com as memórias da ditadura no Brasil. Certa vez, Diana Taylor, pesquisadora e professora norte-americana, falou que ao tomarmos consciência das barbaridades do passado, como foram as torturas, aprisionamentos e sequestros nas ditaduras latino-americanas, passamos a ter a responsabilidade de cooperar, de algum jeito, para que isso nunca mais aconteça. Concordando com ela escrevo essas páginas, em 2016, poucos meses da saída da presidente eleita Dilma Rousseff no Brasil. No processo de votação da abertura do processo de impeachment na câmara dos deputados estava Jair Bolsonaro, político e militar da reserva, que exaltou publicamente um dos acusados de cometer torturas no Brasil durante o período ditatorial, o já falecido Ustra – ele próprio torturador da então presidente Rousseff 86. Este, dentre os vários episódios semelhantes que

������������������������������������������������������������������������������������������ http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/04/19/dilma-critica-bolsonaroe-terrivel-alguem-homenagear-o-maior-torturador-do-brasil.htm > acessado em 03 de novembro de 2016.

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vêm acontecendo87 ; bem como de outras violências, massacres e torturas que afetam o cotidiano das cidades, demonstram a urgência de falar sobre o assunto, que torna-se prisma para pensar outras temáticas. Pretendi aqui, bem como pretendo nas novas agendas de pesquisa que se seguem, agir com as ferramentas que tenho. Desde uma escola de arquitetura e urbanismo em São Paulo, pensar como representar o irrepresentável, o inimaginável, que foram as violências e que são as dores mais profundas daqueles que perderam seus entes queridos. Sim, inimagináveis, mas que, como afirma Didi-Huberman (2014) devem ser imaginadas apesar de tudo para que jamais se repitam.

������������������������������������������������������������������������������������������� Inclusive grupos de pessoas que pedem em protestos públicos a volta do regime ditatorial.

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Agradecimentos

à Escola da Cidade. à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) à querida orientadora Marianna. à minha amada mãe, Beth e ao meu irmão Leo. aos amigos. à orientadora da bolsa BEPE Ana Guglielmucci. ao Parque de la Memoria e todos os funcionários que me receberam. à Maria Freier. à Monica Hassenberg. a Julio Flores. à Florencia Battiti. ao Estudio Baudizzoni, especialmente a Jorge Lestard. a todos os funcionários que, sempre atensiosos, me receberam os ex CCD. ao Renato Cymbalista à Ileana Diéguez às amigas Fernanda Lins, Manuela Porto, Maria Fernanda Basille, e ao estudio Deixa.

Enfim, a todos que fizeram essa pesquisa possível.

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