Memórias de Kim il-Sung: memórias da propaganda ou propaganda das memórias?

June 29, 2017 | Autor: Nuno Canas Mendes | Categoria: Visual propaganda, Propaganda, Memories, Kim Il Sung, Coreia do Norte
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Memórias de Kim il-Sung: A propaganda da memória ou a memória da propaganda?
Lição inaugural do 2.º semestre à graduação e pós-graduação em Relações Internacionais, UFSC, 19.08.2015

Senhor Embaixador
Senhora Tradutora
Senhor Coordenador
Caros estudantes e demais público

Gostaria, em primeiro lugar, de agradecer o privilégio que é participar nesta sessão inaugural do 2.º semestre da graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da UFSC. Privilégio pelo significado simbólico de esta ser a lição inaugural mas também e sobretudo pela oportunidade de alargar a minha experiência e os meus conhecimentos enquanto professor visitante desta Universidade. O facto de o mote desta sessão ser o lançamento da tradução em Português das Memórias de Kim il-Sung só contribui para o meu estado de júbilo, já que me tenho dedicado ao estudo da região Ásia-Pacífico e da sua história recente. Uma convergência de aspectos positivos que têm de ser assinalados com a manifestação pública do meu reconhecimento.

Em segundo lugar, gostaria de tecer algumas considerações a título de preâmbulo, com uma nota pessoal a propósito das Memórias que hoje são lançadas. Quando eu era estudante de graduação, entre os já longínquos anos de 1987-1991, era ainda o tempo da Guerra Fria. Um tempo de referências seguras, de inimigos declarados, de combates ideológicos bem identificados, do equilíbrio pela dissuasão. Assim vivia o mundo, entre guerras e crises, num bipolarismo em que a inquietude do terror nuclear se baseava numa interessante dialética de opostos. Era a velha ordem, que a indefinível nova viria substituir; era o advento de um pós-modernismo, em que a insatisfação com a arquitectura e com as matrizes preexistentes foi dando lugar a debates intermináveis e tantas vezes estéreis. Do bipolarismo ao unipolarismo, ao unimultipolarismo e ao apolarismo.

Quando eu era estudante caíu o muro de Berlim e com ele alicercei a ideia de que as revisões do status-quo são sempre possíveis. Ou talvez não. Como diria o sempre lúcido Príncipe de Lampedusa, é preciso que tudo mude para que tude fique na mesma. Hoje mais do que nunca, com uma grande Rússia de feição pós-czarista que parece ter ainda um 'léxico' e uma acção impregnados de reminiscências, com uma União Europeia a soçobrar e uns Estados Unidos num 'desinvestimento' atlântico que compensam numa recentragem para um Oriente que também pode ser Ocidente, dependendo do ponto de vista ou do planisfério que se usa. Para muitos a Guerra Fria não terminou, continuou de outro modo. Mas essa é uma questão que não quero trazer para aqui, sob pena de fazer sucumbir a assistência. Acresce que a Guerra Fria deixou vários legados vivos, que subsistiram até aos nossos dias e com uma inscrição especial na Ásia Oriental, com destaque para a persistência da situação de Taiwan e para a divisão da península coreana.

Esta sobrevivência tem por base dois regimes peculiares, onde a propaganda teve e tem um lugar especial. Quer a República Popular da China quer a Coreia do Norte têm sistemas políticos que eu designaria de persistentes e que despertam uma atenção continuada dos politólogos do Ocidente que lhes estudam a natureza e causas, com destaque para as características das democracias populares e das nuances totalitárias do autoritarismo. Com efeito, os líderes fundadores de um e de outro montaram toda uma estrutura política à sua imagem e semelhança, cuja funcionalidade, não deixando nunca de estar à prova, está demonstrada pelo tempo, não obstante as reinterpretações a que tem sido sujeita pelos seus sucessores. A forma como estes sistemas se aplicaram à sociedade produziu efeitos diferenciados, tomando, na Coreia do Norte, uma feição isolacionista, numa autarcia que o modelo Juche consolidou, também por via dinástica e pela continuidade do culto ao pai-fundador da pátria. Tem, portanto, o maior interesse percepcionar a personagem Kim il-Sung num contexto internacional e igualmente compreender de que modo articulou o seu projecto político com uma mundivisão particular.

As memórias políticas têm sempre um valor documental relevante como fonte primária e todas têm um cunho incontornável de auto-justificação, de partilha com os comuns de um percurso de vida invulgar, pondo em evidência a distinção das qualidades do líder, reforçando a sua imagem, agigantando-o. Neste sentido, não se distinguem de outro tipo de obra do regime, como uma estátua ou um mausoléu, sobretudo em casos em que a personalização do poder atinge níveis de grande intensidade. Em todo o caso, as memórias políticas são um registo de um discurso de que não se pode prescindir para entender o regime, a sua fundação e evolução, pelos olhos de quem o concebeu. Num autismo em si mesmo muito revelador de uma concepção do poder, é certo, mas mesmo assim muito expressivo e revelador. Na sua luta contra o imperialismo, e consequentemente contra o que refere como a 'propaganda imperialista', Kim foi um escritor prolixo, partilhando a história pública da sua vida desde o berço. Portanto a leitura da obra deve ser encarada, segundo o meu ponto de vista, como um documento histórico e os documentos históricos, enquanto 'versões oficiais', nunca são neutros. A neutralidade é, aliás, uma abstracção, mas adiante.

Quando se pensa em Kim il-Sung, surgem de imediato as imagens dos coloridos cartazes onde o "Querido Líder" se representa e onde representa o projecto nacional que pôs de pé. E aqui, numa nota mais íntima, tenho de confessar que é uma matéria que esteticamente me fascina, pelo que quando me propuseram dissertar sobre o tema ocorreu-me que se poderia aplicar o jogo de palavras para articular o que está aqui eminentemente em discussão hoje: as memórias da propaganda ou a propaganda das memórias. Quanto às cenas selecionadas, à disposição dos actores, ao pano de fundo, às cores escolhidas há todo um universo semiológico para desbravar noutro local que não este. Não há no jogo de palavras mencionado nenhum juízo de valor, apenas um valor histórico a considerar: o de uma narrativa do poder e enquanto tal válida para o historiador e para o politólogo.

Com efeito, o modo como alavancou o seu poder, interna e externamente, através da sua poderosa máquina de propaganda, conformando o que os politólogos designam de 'totalitarismo', Kim construiu uma nova Coreia, 'pela monopolização de todos os poderes no seio da sociedade' e pela 'necessidade de gerar uma sustentação das massas', como dira Gianfranco Pasquino. A ideologia explica o curso da história e é promovida freneticamente pela propaganda, sincronizando, politizando e vigiando todas as actividades da sociedade. O líder é o depositário da ideologia, que interpreta e recria. A este propósito o insuspeito Kissinger escreveu que 'o povo tende a preferir líderes carismáticos a industriosos homens de Estado'. A história está cheia de fenómenos de galvanização: no caso da Coreia do Norte conhecemos mal, por razões compreendidas pela generalidade do público, a dinâmica dos processos, as articulações e nexos no aparelho do poder, as dissensões internas, o modo como a sociedade reagiu à utopia.

Na génese do país, a colonização japonesa, que gerou uma natural reacção contra a raça 'Yamato', deixou evidentemente um traço profundo; do mesmo modo que a divisão da península e o alinhamento imperialista da sua parte sul com os EUA permitiram que fossem declarados os inimigos. A influência soviética foi determinante, muito embora a propaganda tenha uma influência significativa da cultura chinesa e mesmo da cultura japonesa (por exemplo, na menção ao líder como o 'Sol da Nação' ou nas referências à 'raça pura e virtuosa' ou ao Monte Paektu, um equivalente lateral ao Monte Fuji). Kim foi o escolhido pela URSS para assumir o governo do norte da península em Fevereiro de 1946, não só porque acreditavam nas suas potencialidades como porque acreditavam na sua lealdade. Em Agosto formou-se o Partido, do qual Kim assumiria a chefia em 1949, lançando, em 1950, a ofensiva contra a Coreia do Sul. O modelo soviético impôs-se de uma forma bastante eficaz, sem dar lugar a movimentos de contestação organizados.

Kim, até à sua morte em 1994 - e mesmo depois por efeito da sua 'imortalidade' -, parece ter seduzido o povo promovendo um nacionalismo pictoricamente definido em tons suaves e diáfanos, sem agressividade de formas. Os cartazes descrevem cenas de Kim em comunhão com a natureza e com a tradição histórica, em convívio directo com as pessoas, crianças e velhos, camponeses e soldados, na mais perfeita e idílica inocência. Deste modo, procurou criar um fenómeno de identificação por incarnar com particular credibilidade um modelo de 'homo coreanicus' inserido num fundo mitológico de contornos ilimitados. O seu ar jovial e descontraído, a bonomia e a corpolência por certo terão ajudado. As suas fotografias nas escolas, nas casas, nas repartições públicas, nas fábricas, nas ruas ou nos transportes públicos reiteravam a omnipresença. A formação 'cívica' era assegurada pelos cerca de 45000 Centros de Investigação Revolucionários Kim. Uma empatia condicionada, pavloviana por assim dizer.

A adopção de laivos do Confucionismo também teve um papel relevante neste processo, na defesa do respeito pelos mais velhos, pelos antepassados e pela postura benevolente. O Confucionismo havia sido introduzido na Coreia há muito (cerca de dois milénios) e na versão local assumiu um cunho tradicionalista, de centralização, hierarquização, obediência e subordinação à autoridade. Transpor esta prática para os tempos modernos só pediu a Kim il-Sung que conformasse a psicologia colectiva. E a História foi sendo re-escrita (subtraindo do discurso, por exemplo, a menção à ajuda chinesa na Guerra da Coreia).

Esta dinâmica nova foi dando lugar a um distanciamento face à União Soviética e à apresentação da ideologia Juche, um conjunto de preceitos que valorizam a auto-confiança nacional e o culto ao líder. A ideia foi introduzida em 1955, num discurso que sublinhava a importância da independência política, económica, securitária e ideológica do país, fundando assim as bases da política externa do país (prosseguindo o afastamento em relação à URSS e à RPC e proclamando a vontade de reunificar a Coreia). A discussão sobre o seu conteúdo não trouxe conclusões esclarecedoras: a ideia juche não é definível na medida em que é o fundamento da continuidade do poder, reforçando a individualidade da Coreia do Norte e engrandecendo o pensamento de Kim. Tem, portanto, uma função de princípio instrumental. A Constituição consagra-o do seguinte modo:

"A República Popular Democrática da Coreia adopta a ideologia Juche como uma visão do mundo centrada no povo, que procura atingir a realização da independência das massas, o princípio orientador das suas acções. Para as massas populares serem um sujeito independente da revolução, têm de estar unidas numa organização com uma ideologia sob a liderança do partido e do seu chefe. Só as massas, que estão unidas organizacional e ideologicamente, podem traçar o seu destino de forma independente e criativa".


Juche era a 'religião' do 'Pai' e ia ao encontro dos orgulhosos sentimentos nacionalistas da população, que a vassalagem à China seguida da invasão e colonização nipónicas, no início do século XX, vieram acentuar dando origem a uma resistência que actuou, equipada com uma língua e uma cultura ancestral. O Juche só acolheu uma 'coreanização' do estalinismo que Kim abraçara durante a sua juventude até chegar ao poder. A militarização da sociedade e a política de defesa (songun) eram evidentemente pilares do status-quo, a que o filho Kim Jong-Il deu nova ênfase, mas este já não é tema para hoje. A capacidade nuclear era o instrumento para consolidar a sua autonomia internacional. E esta deriva foi-se acentuando, com a substituição das referências constitucionais ao Marxismo pelo songun.

No que toca às relações internacionais, Kim il-Sung, tendo concretizado uma espécie de cisma com a URSS e a China, optando pela prudente e instrumental 'equidistância' e obtendo favores ora de um ora de outro, veio a estabelecer laços com outros países comunistas como o Vietname do Norte e Cuba ou com a Europa de Leste (encontrou-se, por exemplo, com Honecker e com Ceausescu). Seguidor da jawi, que propunha a igualdade e o respeito entre Estados suportando a autodeterminação, a marca mais importante na condução das relações externas foi a ideia de sustentar o valor supremo da independência (aliás 'independência, paz e solidariedade', como estatui o artigo 17.º da Constituição). O seu espaço natural de manobra era o emergente Terceiro Mundo e a participação no Movimento dos Não-Alinhados. Kim considerava que "os povos da Ásia, da África e da América Latina têm um interesse comum e estão em posição de se apoiar uns aos outros na sua luta 'anti-imperialista' e anti-EUA, enquanto a África e a América Latina não forem livres".

Foi esta orientação que dominou os anos 60 e 70. Nos anos 80, houve uma aproximação significativa à URSS, com fornecimento desta de ajuda económica e de armamento; foi uma década marcada pelo desenvolvimento dos seus programas de investigação nuclear, uma forma de combater a 'superioridade tecnológica' do imperialismo. Uma verdadeira saga, com muitos episódios até aos nossos dias, desde a criação do programa nuclear até à proibição da inspecção da Agência Internacional da Energia Atómica, passando pelo lançamento episódico de mísseis ou ainda pela assinatura do Tratado de Não-Proliferação. Também por esta altura o envolvimento em actividades terroristas, granjear-lhe-ia, de forma mais vincada, várias críticas, situação que se agravou com o fim da Guerra Fria e que o estabelecimento de relações da URSS com a Coreia do Sul em 1990 veio sublinhar. Foi então que surgiu a 'sunshine policy' com vista à incontornável questão da reunificação, mas o sol não conseguiu brilhar. Em 1994, a sua condição de mortal imporia uma mudança do seu estatuto, corpóreo pelo menos. As exéquias atingiram proporções que superariam a imaginação de uma pessoa comum. Permaneceu o legado do isolamento. Agravaram-se os problemas da insuficiência alimentar. A fronteira foi murada para dissuadir tentações. Kim Jong-Il e Kim Jong-Un, herdeiros de uma personagem eterna, tiveram de fazer opções estéticas diferenciadas no que toca à propaganda, com resultados porventura menos galvanizadores.

Sem mais delongas, porque o assunto é inesgotável, concluo com esta frase notável que lhe é imputada: "O meu Deus não é outro senão o meu povo. Só as massas populares são omniscientes, omnipotentes e todas-poderosas na terra. Portanto o meu lema de vida é: 'o povo é o meu Deus'". Ora o 'querido líder', pertencendo ao povo, incorporava as massas e portanto era Deus de si próprio e, por antonomásia, uma espécie de Deus do povo. Poucos foram tão longe…
Muito obrigado








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