MEMÓRIAS DE REMOÇÃO: DESFIANDO O INÍCIO DA HISTÓRIA DA CIDADE DE DEUS NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

June 2, 2017 | Autor: Zeca Teixeira | Categoria: Educação, Memoria, Favelas
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MEMÓRIAS DE REMOÇÃO: DESFIANDO O INÍCIO DA HISTÓRIA DA CIDADE DE DEUS NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

José Carlos Teixeira Júnior FAETEC/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro E-mail: [email protected]

Introdução Neste ano de 2016, a Cidade de Deus comemora seus cinquenta anos de história. Localizada em Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, a CDD1 surgiu na década de 1960 como um conjunto habitacional que recebeu, inicialmente, os desabrigados de uma das piores enchentes do então Estado da Guanabara e, logo em seguida, famílias removidas de diversas favelas da cidade, sobretudo da Zona Sul (ZALUAR, 2000). Trata-se, como nos sugere Paulo Lins (2006), de uma “neofavela de cimento” (2002, p. 16). Ou seja, uma localidade, conforme também nos sugere Burgos (2006), que apesar de guardar suas especificidades em relação a outras favelas, principalmente no que diz respeito à infraestrutura urbana e aos títulos de propriedade, apresenta, contudo, uma significativa proximidade com estas, sobretudo no que diz respeito à reiteração do que chama de uma cultura política de exclusão. Mergulhado na complexidade deste quadro brevemente apresentado, o presente trabalho de pesquisa tem como objetivo principal conhecer algumas memórias de remoção que deram início à história da Cidade de Deus. Trata-se de uma pesquisa que vem tornando-se possível em meio a um movimento de articulação entre Estado, sociedade civil e jovens moradores desta mesma localidade, realizado mais especificamente no cotidiano de uma escola municipal carioca: a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga. Assim, mergulhado na polifonia e dialogicidade (BAKHTIN, 2010) deste movimento de articulação (a chamada Gonzagão Digital), acreditamos que as memórias de remoção que tecem o início da história da Cidade de Deus – e o início da história de outros conjuntos habitacionais cariocas, muito provavelmente – nos sugerem um movimento de deslocamento e reinvenção em face de uma reiterada cultura política de exclusão: populações de diferentes localidades que foram obrigadas a se mudar para uma região na qual tiveram que recriar suas próprias histórias.

Gonzagão Digital A Gonzagão Digital2 é uma rádio escolar que surgiu de uma articulação entre Estado, sociedade civil e população periférica da cidade do Rio de Janeiro realizada no cotidiano de uma escola municipal carioca. Financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), mais especificamente através do edital Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro (PASSOS, 2013), assim como também inspirada na experiência paulofreireana do Musicultura3, a Gonzagão Digital surgiu como um projeto elaborado numa parceria entre a Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FE/UERJ), a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga e um grupo de jovens moradores da Cidade de Deus (formado por alunos e ex-alunos desta mesma escola), com o objetivo de conhecer o movimento de apropriação (produção e consumo) de arquivos digitais como uma performance em educação. A Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga – cotidianamente, e porque não, musicalmente chamada por seus estudantes, responsáveis, professores e funcionários de “a Compositor” – foi criada e assim nomeada pelo decreto nº 9.994 de 19/02/1991, tendo iniciado suas atividades escolares, contudo, em março de 1990, ano seguinte à morte de seu patrono, o chamado Rei do Baião4. Localizada em Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, esta escola oferece turmas dos dois segmentos do Ensino Fundamental (ou seja, turmas do primeiro ao nono ano) aos moradores da Cidade de Deus e de algumas outras localidades também próximas da escola. Todas estas, contudo, fortemente marcadas pelo estereótipo de violência5. O movimento de apropriação de arquivos digitais como uma performance educacional já se apresentava como uma prática cotidianamente realizada na referida escola municipal, mais especificamente pelo professor de música e estudantes do segundo segmento do Ensino Fundamental (ou seja, turmas do sexto ao nono ano). Desde o ano de 2011, com um Virtual DJ Free6 instalado em um netbook conectado, por um lado, a uma caixa amplificada via cabo P2-RCA e, por outro lado, a um aparelho celular via cabo USB, estes mesmos jovens tocavam seus repertórios semanalmente no pátio interno da escola durante seus vinte minutos de recreio. O caráter participativo desta performance musical e o uso constante da sala de aula como um importante tempo-espaço de “troca de experiências” (BENJAMIN, 1983), possibilitava a emergência e a justaposição7 de importantes questões que tecem o currículo da educação escolar, sobretudo no que diz

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respeito às leis 10.639/20038 e 11.769/20089. Podemos destacar, por exemplo, questões como repertório, reprodutibilidade técnica, violência, estereótipo, sexualidade, consumo, territorialidade e relações de pertencimento, dentre outras certamente10. Com a Gonzagão Digital foi possível não apenas fortalecer esta performance educacional já realizada cotidianamente, principalmente com a aquisição de equipamentos melhores, mais diversificados e potentes, como também ampliar esta mesma prática musical, tanto com a participação mais direta de outros professores da escola, como também de outros moradores das localidades atendidas pela mesma. E foi justamente mergulhado neste movimento de fortalecimento e ampliação da apropriação de arquivos digitais que teve início o processo de registro das memórias da Cidade de Deus. No decorrer dos encontros11 semanalmente realizados entre professores e estudantes da FE/UERJ, da referida escola municipal e jovens moradores da Cidade de Deus no processo de criação e gestão participativa da Gonzagão Digital não foi difícil perceber a existência de importantes agentes culturais que tecem a complexidade do circuito comunicativo das localidades atendidas pela Compositor. Podemos citar, por exemplo, Carla Siccos, criadora e editora da CDD Acontece12, e Jonathan Híbrido, rapper e organizador da Batalha da Di Deus13, dentre outros14. E foi justamente destes debates, os quais têm possibilitado um significativo tensionamento do estereótipo de violência que marcam estas mesmas localidades ao evidenciar que seus conflitos cotidianos apresentam-se como elementos estruturantes de suas relações intersubjetivas e não uma exceção de um (pré)determinado padrão de sociabilidade15, que emergiu a proposta de organização de um acervo virtual com os registros audiovisuais das experiências narradas por estes agentes culturais a partir de entrevistas organizadas e produzidas pelos próprios jovens16. A partir de então, narrativas e apropriação de arquivos digitais passaram a compor, assim, uma mesma e complexa performance em educação17.

Memórias de remoção Segundo Burgos (2006), com o golpe de 1964 observa-se o fortalecimento de um discurso “remocionista” (p. 34) que ao enxergar as favelas cariocas de uma forma estereotipada, como um lugar de vícios, promiscuidades e bandidos, encarava-as como um problema urbano que deveria ser erradicado. Esse discurso, inclusive, ia ao encontro de alguns interesses político-econômicos específicos da época como, por exemplo, de

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alguns projetos de expansão imobiliária e da preocupação com alguns movimentos sociais que se organizavam nestas mesmas favelas. Sob esta perspectiva, a remoção da população favelada para conjuntos habitacionais construídos em localidades distantes dos bairros do Centro e da Zona Sul da cidade – como na Zona Norte (Cidade Alta, por exemplo) e Zona Oeste (Cidade de Deus e Vila Kennedy, por exemplo) – apresentava-se como uma solução bastante interessante e aparentemente possível. As memórias de remoção que tecem o início da história da Cidade de Deus tornaram-se questão de debate e de pesquisa na Gonzagão Digital, mais especificamente, apenas no início deste ano de 2016 quando do quinquagésimo aniversário desta localidade. Nas conversas sobre esta história e sobre as primeiras famílias que foram morar na Cidade de Deus, não foi difícil perceber o quanto estas memórias ainda estavam vivas e presentes no cotidiano da Compositor: – Professor, minha avó veio de uma favela da Gávea que pegou fogo! – dizia um estudante do 9º ano. – A minha avó veio de uma favela de Santa Teresa. Ela perdeu tudo numa enchente! – afirmava outro jovem desta mesma turma. E no decorrer deste mesmo movimento de emergência, também não demorou muito a surgir uma proposta, em meio a tantas outras recordações, na voz de outro jovem morador: – Vamos, então, entrevistar estas pessoas para que possam contar pra gente um pouco mais desta história! Assim, organizamos as principais questões que estruturariam as entrevistas que passariam a ser realizadas18 – entendendo, entretanto, que outras questões também poderiam surgir no decorrer do diálogo com estes familiares – e começamos a entrar em contato com estas pessoas, tanto para apresentar a proposta como também para realizar estas entrevistas, registrando-as em audiovisual. Enquanto experiências que foram, são e serão narradas, seja por quem as viveu, seja por quem apenas as ouviu, as memórias de remoção, conforme nos sugere Benjamin (1983), emergiram no cotidiano da Compositor como uma performance, ou seja, como uma arte de continuar contando, como um movimento de “estratificação de múltiplas renarrações” (p. 63). Em outros termos, estas experiências de remoção narradas, seja pelos estudantes em sala de aula, seja pelas suas avós nos encontros familiares ou nas entrevistas e nos registros audiovisuais que foram então realizados, seja nas transcrições

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realizadas no presente texto, emergiram como as marcas da tigela de barro nas mãos do oleiro de que nos fala este mesmo autor: não se trata de “transmitir o puro 'em si' da coisa, como uma informação ou um relatório”, mas sim de mergulhar “a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela” (p.63). Por conta dos limites deste texto, optamos por mergulhar e extrair este início da história da Cidade de Deus, mais especificamente, na vida de duas senhoras que passaremos a chamar aqui de Ilza e Elô. Mesmo autorizadas as respectivas narrativas, a escolha por utilizar estes nomes fictícios, não verdadeiros, justifica-se basicamente por dois motivos. Em primeiro lugar, por apresentar-se como uma forma de garantir a privacidade destas duas antigas moradoras da CDD. Em segundo lugar, por acreditar – conforme nos sugere tanto aquela imagem benjaminiana da tigela de barro nas mãos do oleiro, como também as próprias experiências narradas – que esta mesma história não se apresenta como exclusiva destas senhoras, mas também carregadas das marcas das “mãos” de outros tantos moradores desta mesma localidade.

a) Ilza e a pior enchente da cidade “O deslizamento foi no dia 10 de janeiro de 1966!”, afirmava srª. Ilza, com uma precisão cirúrgica, a data de quando começou sua relação com a Cidade de Deus. Uma precisão, na verdade, que deixava evidente o sofrimento de quem sofreu na pele aquilo que foi considerada a pior enchente da história da cidade do Rio de Janeiro. Segundo recente reportagem da Agência Brasil abordando os cinquenta anos deste desastre19, esta enchente provocou ao menos 250 mortos e cerca de 50 mil desabrigados dentre os quais aqueles que se tornariam os primeiros moradores da CDD. Trata-se de um desastre “natural”, inclusive, que contribuiu de forma bastante significativa ao projeto remocionista. Gonzagão Digital (GD): Como era o lugar que a senhora morava antes de vir para cá? Sr.ª Ilza (Iz): nós morávamos num lugar de risco, mas ali nunca tinha acontecido nada que viesse, assim, assustar a gente ali. Porque ali, naquela ladeira, moravam várias pessoas. Tinha um prédio enorme na lateral da nossa casa. E aí, quando aconteceu isso, foi um imprevisto, realmente, na vida de todo mundo... do Estado em geral... quando aconteceu o acidente, que a ribanceira desceu, a minha mãe estava na sala... então, a ribanceira veio trazendo tudo... a minha mãe ficou, assim, imprensada na parede da sala...

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e a geladeira... foi um desespero, né. Você nem imagina. A gente era tudo criança... e aí foi pânico geral. Meus irmãos ficaram todos apavorados, porque não sabiam o que fazer, né. E aí veio a vizinhança, quando viu a terra descer, quando viu que a terra desceu exatamente na direção da nossa casa, né... nós éramos muito antigos ali. Aquela casa tinha uns cem anos já... GD: Isso foi onde? Iz: Em Santa Teresa. Então, aquilo ali foi um choque geral. A ladeira que a gente morava se apavorou e fez o socorro, né... eram sete crianças... E aí conseguiram tirar a minha mãe, mas quando conseguiram remover a minha mãe, correram porque desceu o restante todo. Desceu e soterrou os bichos que ela criava, porque ela criava os bichos lá para o nosso sustento. Era porco, era galinha, tinha muito ali. Daí ela tirava o nosso sustento. Que antes disso, a gente passou muita fome, porque não tinha de onde tirar sobrevivência. Então quando aconteceu isso, esse acidente da natureza, que retiraram minha mãe... minha mãe estava desmaiada, a gente em pânico... e aí a vizinha que morava do lado contrário, ela se sensibilizou, lógico, e ofereceu uma casa dela, que ela tinha uma casa vazia, para a gente ficar até que tivesse uma alternativa para a gente. Porque a gente não tinha mais alternativa mesmo. A casa desceu e acabou. Desceu a casa, soterrou os bichinhos, acabou tudo, acabou. E aí, o que aconteceu depois? Então, o Estado, na época... ele nunca teve uma estrutura para esgoto, saneamento, agora tem um pouco mais, mas na época não tinha nada... então alagou mesmo, o Estado da Guanabara alagou tudo. E os bombeiros começaram a se mobilizar, os médicos, o exército, retirando as pessoas destas áreas de risco e levando para abrigos. No caso, a gente foi lá para a Escola Canadá, no Rio Comprido. Não sei se você conhece. Então nós ficamos ali, tipo assim, a chuva começou no dia 10, no mesmo dia nós fomos para a casa dessa senhora, pois no mesmo dia a ribanceira caiu, ficamos lá uns dois dias, quer dizer até o dia 12 de janeiro... GD: Isso foi quando? Iz: Em 1966. E aí fomos tirados ali e fomos para essa Escola Canadá. Aí ficamos na escola até finalzinho de fevereiro, porque ia começar o ano letivo, então as escolas tinham que estar desocupadas. Aí o que o Estado fez? Digo, assim, o Negrão de Lima. Ele exigiu que desocupasse a Escola, que retirassem a gente e colocasse no Estádio Mário Filho. Nós fomos morar no Maracanã. Eu morei no Maracanã! Aí, ficamos ali no Maracanã uns dois ou três meses. Que até então eles estudavam onde iam assentar essas 50 mil pessoas desabrigadas. Era gente pra cassete. Era muita gente. E ele não tinha

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mesmo alternativa, não tinha, porque foi um acidente mesmo, natural. Foi a pior enchente que já teve nesse Estado. Foi a pior mesmo. Foi muita tristeza. Aí, o que aconteceu? Ficamos no Maracanã até resolver esse impasse, aí como Carlos Lacerda, na época, tinha um projeto, né... essas casas estavam começando a construir... eles até aceleraram... estavam começando a construir para funcionários públicos. Não era para desabrigados, não. Isso era para funcionários públicos. Aí, devido ao que aconteceu, o que o Negrão de Lima ordenou? Terminar de construir, acelerar, e assentar estas pessoas. Quando a gente veio para cá, não tinha nada nas casas. Era só as paredes. Era as paredes, não tinha vaso sanitário, não tinha pia, não tinha nada. Não tinha bica, não tinha chuveiro, não tinha nada. Só um buraco no chão do banheiro para eles fazerem ali as instalações. E aí com o tempo, eles foram fazendo estas instalações, aí eles fizeram as triagens, aí começaram a construir os apartamentos, que na época não tinha nada pro lado de cá, nada. Era só, tipo assim, algumas quadras, tipo a meia nove, tipo a vinte e duas, que é a minha, a vinte e três, umas quadras, assim, que depois foram expandindo. As ruas eram buraco, lama, buraco, lama. Não tinha como você andar de carro de jeito nenhum. Não tinha. Eles começaram a colocar condução quase um ano depois. Que os moradores já tinham sido assentados, eles começaram a colocar um ônibus da CTC que a gente chamava de “cata mendigo”. Que a gente ali era uns mendigos, né. Como é que a gente viveu ali quando foi pra lá? Quando eles colocaram a gente ali, quer dizer, a gente foi pra lá com uma mão na frente e outra atrás e alguns saquinhos de roupa... porque a gente não tinha nada além disso, foram doações que a gente ganhou no Maracanã. GD: Por que vocês tinham perdido praticamente tudo, né? Iz: Não tinha mais nada além da roupa... Então, quando a gente veio para cá, a gente estava mais ou menos nesta situação. A gente só tinha um saquinho de roupa. Quando chegamos aqui, a primeira alternativa que o Estado fez, o Exército né, foi o alimento. Porque a gente tem que se alimentar. E cederam esteiras, essas esteiras de palha, pra gente se acomodar. Lampião de querosene pra não ficar no escuro... Como todo começo é difícil, a gente se adaptou, né. Porque tem que se adaptar! No meu caso e no caso da minha família, a gente não tinha mais nada mesmo. A gente tinha que agradecer a Deus porque estava vivo. Então, eu penso assim, enquanto a gente tem vida, tem esperança! A gente consegue, se quiser. Então dali por diante, nesse comecinho, a gente levantava de manhã... eles doaram copo... copo não, caneca de alumínio, prato de alumínio, talherzinho, panela tipo canecão pra você buscar o alimento, porque fazer

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comida não tinha como... Então o Exército passou a doar alimento pra gente. Tipo assim, você tinha que ir de manhã com a caneca que tinha recebido... você tinha que acordar cedinho, enfrentar uma fila da comunidade e receber uma caneca de café com leite e um pãozinho... E no almoço, você pegava aquela panela... que eles davam o material de acordo com o número de pessoas que a casa tinha. E davam o alimento, a sopa, de acordo com o número... pra não ter divisão errada. E com isso a gente levou um bom tempo, um bom tempo mesmo. Aí, eles deram esse tempo assim para as pessoas buscarem alternativas, começar a tentar trabalhar, mas isso durou muito tempo, porque pra chegar até a Freguesia você fazia um percurso daqui até lá a pé para poder pegar o ônibus pra achar um trabalho. Então as pessoas madrugavam aí caminhando na rua. Era horrível. Mas por outro lado... era horrível, né... mas por outro lado você tinha assim, você via o céu pertinho de você. Tudo escuro! Era penumbra mesmo. Você olhava assim, as estrelas pertinho de você. Era lindo! E por outro lado também, o sossego. A comunidade, o pessoal que estava ali assentado, era o pessoal que tinha vindo do Maracanã naquela primeira enchente, porque depois... em sessenta e sete foi acontecendo... Então, o pessoal que estava ali... eram pessoas mais pacíficas, pessoas que não se envolviam muito na droga... Então, a gente pegava aquela esteira, como dentro de casa não dava pra dormir por causa do calor, a gente botava as esteiras na praça e dormia na praça. Entendeu? Porque a gente tinha essa segurança. Aí depois, quando começou a vir de outras favelas... Tipo assim, eles tacaram fogo na Praia do Pinto pra poder tirar eles de lá... O pessoal da Cruzada, o pessoal de não sei mais de onde, foi vindo... da Macedo Sobrinho... foi vindo e as pessoas foram se misturando... E cada um tem uma cabeça, né. Uma forma de buscar a vida, uma forma de ver a vida, uma forma de achar o que é bom pra si..

b) Elô e a praia dentro de outra praia Em maio de 1953, Vinícius de Moraes escrevia em uma crônica: “Há uma praia dentro de outra praia. Uma é a praia do Leblon, e a outra não é praia — é Praia do Pinto” (MORAES, 2009, p. 61)20. Nesta crônica, intitulada “Praia do Pinto”, o referido poeta fazia uma referência à favela de onde, já na década seguinte, teria início a história da Sr.ª Elô na Cidade de Deus. Em outras palavras, Moraes nos sugere uma praia híbrida. Uma hibridez que enuncia uma contradição estruturante: o Leblon, historicamente um dos bairros com o metro quadrado mais caro da cidade do Rio de Janeiro, não existiria sem sua própria

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favela, local em que morava boa parte dos trabalhadores que construíram seus luxuosos imóveis. Entretanto, com a progressiva expansão imobiliária e a consequente valorização das terras que a favela ocupava, esses trabalhadores foram obrigados a se mudar para conjuntos habitacionais localizados nas zonas Norte e Oeste, como Cidade de Deus, Cidade Alta e Vila Kennedy. Neste período, inclusive, houve um grande incêndio que destruiu toda a favela e que, segundo relatos de seus moradores, teria sido criminoso (BRUM, 2012). Gonzagão Digital (GD): Como era o lugar em que a senhora morava antes de vir para cá? Sr.ª Elô (El): Olha, antes de vir para cá eu morava na famosa Praia do Pinto, na Gávea. E saímos de lá nem sei porquê. Porque nós saímos de lá antes de um incêndio que teve lá. E... quando chegamos aqui... a gente não entendia direito porque nós viemos para cá. Porque... não sei se eles queriam construir alguma coisa, como hoje é construído um monte de prédio rico, um condomínio de rico, e... nós viemos para cá. Quando eu cheguei, tipo assim... antigamente não era o Gardênia, mas a gente passava pelo Gardênia... Quando eu cheguei, eu falei: “o quê que nós estamos fazendo aqui? Que lugar é esse? Que lugar feio!”... Nós viemos. Botaram nossa mudança num caminhão e vamos embora! Aí viemos morar aqui na Cidade de Deus. GD: Vocês foram obrigados a sair de lá? El: Não... Eu não me lembro porque a gente era pequeno, já que eu vim prá cá com 12 anos... Aí eu não sei bem porque que nós saímos. Mas depois que nós saímos, passou... agora eu não me lembro se foi um mês, se foi um ano, teve o tal do incêndio lá... GD: Qual foi a sensação de vir morar aqui na Cidade de Deus? El: Ih, era muito ruim. Eu não gostava não. Quando eu cheguei aqui que eu dei de cara com esses apartamentos, eu falei: “Que lugar é esse? O que que nós estamos fazendo aqui? Por que que nós saímos de lá?”. Como até hoje ninguém sabe porque, eu pelo menos eu não sei porque... entendeu? Mas quando eu cheguei aqui eu não gostei. GD: Como era morar aqui no início? El: Assim, no começo não tinha quase ninguém. Os nossos prédios foram os primeiros a ser construídos. E depois foram os de lá. Era mil maravilhas, mas aí é aquele negócio: vai chegando a população e as coisas vão mudando um pouco. Nada é como a gente imaginava, porque no começo era até pior do que onde eu morava. Eu morava na favela, aí nós viemos para cá. Achamos, assim... no começo foi mil maravilhas... dormia

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ali na frente. Tinha um jardim imenso e a gente dormia. Hoje em dia não dá para você fazer isso. Depois foi chegando a população, foi chegando a Macedo Sobrinho, foi chegando pessoas de outros locais, como aqui também foi chegando pessoas de outros locais... as coisas foram mudando. Assim, como eu sou muito conhecida, me dou com todo mundo, para minha família não aconteceu nada de mais, mas teve família aqui... Mas a gente é obrigado a gostar da onde a gente mora, né. Nós somos obrigados a gostar... GD: Como era lá na Praia do Pinto? El: Na Praia do Pinto era mil maravilhas! Na Praia do Pinto era, assim... tem coisas que a gente não pode dizer... mas era melhor do que aqui. Respeitavam mais os moradores... os vagabundos respeitavam mais em tudo. E a gente brincava. Já passamos necessidades, entendeu, de ir para os apartamentos, que ficavam quase perto da onde a gente morava, esperar o leiteiro... que antigamente tinha o leiteiro que botava as garrafas de leite nas casas das pessoas que tinham dinheiro... a gente ficava escondidinho. Quando eles colocavam as garrafas de leite e o pão, a gente ia lá no sapatinho e pegava. Mas isso era por causa da necessidade que a gente tinha que fazer isso, não porque a gente gostava, entendeu. E depois as coisas foram melhorando, claro, a gente não ia continuar nessa vidinha de sempre. E as coisas foram melhorando. Mas era muito bom. Por mim, eu não saía de lá. GD: E como era conviver com as pessoas daqui assim que chegou? El: É, porque a maioria daqui era quase do mesmo lugar. Era da Praia do Pinto, de onde é o minhocão, da Cruzada São Sebastião... A maioria das pessoas a gente conhecia, então um vizinho ajudava o outro. Tanto que quando nós chegamos aqui, já tinha gente nesse prédio aqui, entendeu, que veio da Cruzada, que veio do... ai esqueci o outro nome, entendeu. Então, quer dizer, foi um ajudando o outro, um olhando o filho do outro. Era muito bom, muito bom sim, não tenho nada a reclamar, mas por mim não vinha não, continuava lá, mas como tinha que vir, nós viemos.

Considerações finais Diante do brevemente exposto nas páginas anteriores, creio, em primeiro lugar, que as memórias de remoção das senhoras Ilza e Elô apontam de forma bem clara para a ambivalência de um movimento de deslocamento e reinvenção. Segundo suas próprias narrativas, estas duas senhoras foram obrigadas a sair de onde moravam – e ambas as saídas não apresentaram qualquer possibilidade de retorno, vale ressaltar – e, neste

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mesmo movimento, tiveram que recriar suas histórias e, consequentemente, de suas famílias. “Como todo começo é difícil, a gente se adaptou, né. Porque tem que se adaptar! No meu caso e no caso da minha família, a gente não tinha mais nada mesmo”, nos contou Sr.ª Ilza a experiência de deslocamento a que foi submetida. E logo em seguida, enunciou também a possibilidade de sua própria reinvenção: “a gente tinha que agradecer a Deus porque estava vivo. Então, eu penso assim, enquanto a gente tem vida, tem esperança!”. Nas palavras da Sr.ª Elô, essa reinvenção também não foi diferente: “foi um ajudando o outro, um olhando o filho do outro. Era muito bom, muito bom sim, não tenho nada a reclamar”. Uma reinvenção, contudo, fortemente trançada naquele mesmo deslocamento: “mas por mim não vinha não, continuava lá, mas como tinha que vir, nós viemos”. Um movimento de deslocamento e reinvenção, inclusive, que nos sugere uma proximidade bastante significativa com o mais de um século de história da favela carioca21 e a própria diáspora negra22. Em segundo lugar, creio que enquanto uma arte de continuar contando, enquanto um movimento de estratificação de múltiplas renarrações, conforme nos sugeriu Benjamin, estas mesmas memórias de remoção apresentaram-se presentes e vivas no cotidiano escolar. A Compositor, neste sentido, tornou-se mais uma dentre tantas outras marcas que compõem este início da história da Cidade de Deus. Uma marca, inclusive, que ocupa uma posição não apenas responsiva com estas memórias, mas também responsável (BAKHTIN, 1993). E a Gonzagão Digital, conforme tentamos também mostrar, tem procurado criar possibilidades para a emergência da polifonia e dialogicidade que tece esta posição. Uma responsabilidade, enfim, que nos obriga a encarar a questão ét(n)ica que apresenta-se estruturante ao próprio currículo da educação escolar.

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Forma como seus moradores se referem, cotidianamente, à Cidade de Deus.

Nome dado pelos próprios estudantes da Compositor. O termo “Gonzagão”, até aquele momento, era uma referência bastante comum ao campeonato de futebol realizado anualmente na escola. Já o termo “Digital”, era uma referência também bastante comum às equipes de som daquelas e de outras favelas da cidade (ex.: Bloco Velho Digital, da Cidade de Deus). 2

Segundo Araújo et al, “o projeto Musicultura parte do próprio Estado, através da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a partir da efetivação de uma parceria com uma organização fundada por moradores da favela da Maré, e busca implementar na prática a ação conjunta entre poder público e população, no planejamento de políticas públicas protagonizadas, de fato, pelos jovens. Nesse sentido, o grupo Musicultura trabalha com dois conceitos básicos: o primeiro, de que os jovens não estão “perdidos” e, portanto, não necessitam serem “salvos” de coisa alguma, e o segundo é a própria dinâmica do projeto que parte da concepção freireana de produção dialógica do conhecimento. Ou seja, a ideia central do projeto é o foco na participação efetiva da juventude no processo de criação e formulação de atividades de pesquisa, manifestando a liberdade de opinião, sem hierarquias e privilegiando, dessa forma, a participação política na própria periferia e, de uma maneira geral, na sociedade” (ARAÚJO et alli, 2006, p. 1). 3

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Luiz Gonzaga, popularmente conhecido como o Rei do Baião, nasceu em 13 de dezembro de 1912, em Exu, e morreu em 2 de agosto de 1989, em Recife. 5

Apesar da grande maioria dos estudantes da Compositor residir em Cidade de Deus, uma minoria reside em localidades também próximas da escola como Gardênia Azul e Rio das Pedras, por exemplo. Em linhas gerais, o estereótipo de violência que marca fortemente estas localidades está estreitamente vinculado ao discurso monologizante (BAKHTIN, 2010) sobre o tráfico de drogas (mais especificamente em relação à Cidade de Deus) e sobre as milícias (mais especificamente em relação à Gardênia Azul e Rio das Pedras).

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Software gratuito que simula, virtualmente, o equipamento típico de um DJ: dois toca-discos e um mixer.

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Ao dialogar com as dimensões política e estética da textualidade aberta que estrutura algumas obras de arte negra na era da simulação digital, a qual propôs abordar como “montagem”, Gilroy assim escreve: “Uma ênfase estética é atribuída à distância social e cultural absoluta que anteriormente separava os elementos diversos agora deslocados em novos significados por sua provocativa justaposição auditiva” (GILROY, 2001, p. 213). Creio que o currículo da educação escolar, sob esta perspectiva performativa da Gonzagão Digital, também não deixa de apresentar-se como uma montagem. 8

Lei federal que determina a obrigatoriedade da cultura negra e africana no currículo da Educação Básica brasileira. 9

Lei federal que determina a obrigatoriedade da música no currículo da Educação Básica brasileira.

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Para uma discussão mais detalhada sobre estas mais diferentes questões que emergiram e se justapuseram no processo de criação e gestão participativa da Gonzagão Digital, veja LONGA, 2014, 2015; SANTOS, 2015; TEIXEIRA JR., 2013, 2014a, 2014b; PASSOS e TEIXEIRA JR., 2015. Conforme nos sugere Passos, “entendemos o encontro, na pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, como uma experiência de interação entre sujeitos, que pode ser produzida/ organizada/promovida pelo pesquisador, ou pode se dar ao acaso. Ao longo dos trabalhos desenvolvidos foi possível observar que no processo da pesquisa acontecem encontros entre sujeitos que vão suscitar outros encontros e outros encaminhamentos para a produção do conhecimento” (PASSOS, 2014, p. 234). 11

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Nascida em Madureira, Zona Norte da cidade, ainda criança foi morar em Cidade de Deus. Mudando de residência diversas vezes dentro desta mesma localidade por conta de diferentes conflitos cotidianos, no decorrer dos cerca de trinta anos de moradora da CDD, Carla conheceu suas mais diferentes microlocalidades (ALVITO, 2006). E foi justamente esta condição que lhe permitiu criar o jornal virtual “CDD Acontece”. Trata-se de uma página no Facebook (https://www.facebook.com/cddacontece?fref=ts) que procura divulgar e discutir as mais diferentes questões que tecem o cotidiano desta localidade. Atualmente, esta página possui mais de trinta mil seguidores (SICCOS, 2015). 13

Nascido em Cidade de Deus, Híbrido é rapper e organiza semanalmente uma batalha de rima como forma de ocupar um espaço em baixo da Linha Amarela, via expressa que desde 1997 atravessa esta localidade (HÍBRIDO, 2015). 14

Vale ressaltar que a percepção da existência de importantes agentes culturais não limitou-se apenas ao complexo circuito comunicativo das localidades atendidas pela escola municipal em questão, mas também de outras localidades como, por exemplo, da Baixada Fluminense, região em que um professor de português da escola participante do projeto nasceu, cresceu e tornou-se não apenas professor, mas também vocalista de uma banda de rock (TEIXEIRA JR. e ARANHA, 2015). 15

Paulo Lins nos oferece uma interessante tradução da violência como elemento estruturante das relações intersubjetivas/discursivas: “Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons de minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes nos conchavos de becos, nas decisões de morte. A areia move-se nos fundos dos mares. A ausência de sol escurece mesmo as matas. O líquido-morango do sorvete mela as mãos. A palavra nasce no pensamento, desprende-se dos lábios adquirindo alma nos ouvidos, e às vezes essa magia sonora não salta à boca porque é engolida a seco. Massacrada no estômago com arroz e feijão a quase-palavra é defecada ao invés de falada. Falha a fala. Fala a bala” (LINS, 2002, p. 21). 16

O referido acervo virtual, assim como as entrevistas destacadas, encontra-se no seguinte endereço eletrônico: https://www.youtube.com/channel/UCtMWkL4XdM5BFbChhrLjt_w 17

Creio, mais uma vez, que a justaposição de memórias e apropriação de arquivos digitais reforça ainda mais a possibilidade (e a complexidade) de se discutir o currículo da educação escolar como uma montagem. 18

As perguntas então sugeridas foram as seguintes: 1. Onde e como era o lugar em que você morava? 2. Qual o motivo da saída de onde você morava? 3. Qual foi a sensação de ir morar na Cidade de Deus? 4. Como era a Cidade de Deus no início? 19

Reportagem disponível em http://www.ebc.com.br/noticias/meio-ambiente/2015/12/pior-enchente-dorio-de-janeiro-completa-50-anos.

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“Há uma praia dentro de outra praia. Uma é a praia do Leblon, e a outra não é praia — é Praia do Pinto. Há uma praia dentro de outra praia, uma onde vem bater, verde-azul, a onda oceânica, e outra onde vai desaguar o Rio escuro, em sua mais sórdida miséria. Há uma praia dentro de uma praia. Ah, brinquemos de falar bobagem, brinquemos de inventar cirandas, porque a verdade é que há realmente uma praia dentro de outra, uma praia de fome, sujeira e lama, e ela se chama Praia do Pinto. Fica no Leblon, como um imundo quintal raso de apartamentos de arrogante gabarito. Não há nessa praia areia branca, barracas coloridas e coxas morenas absorvendo ultravioleta. Nessa praia que não é praia, é favela, há, isso sim, barracões de lama e zinco cheirando a imundície; há a Sífilis dormindo com a Tuberculose, no chão úmido da terra; há um enxame de Disenteriazinhas engatinhando no lodo, um mundo de Verminosezinhas patinhando nos próprios excrementos, e há Descalcificações e Reumatismos Deformantes muito velhos, pitando solitariamente na noite fétida em torno. São centenas de casebres sórdidos, a abrigar milhares de seres humanos, cuja única diferença de mim é a pele negra, negra talvez para esconder melhor o próprio sofrimento na treva povoada de moléstia, molejo de mulher e música malemolente. São milhares de dentes brancos a iluminar a noite espessa de samba, álcool e luxúria, enquanto, em torno, as criancinhas morrem, os meninos lutam no aprendizado necessário da valentia e os macróbios da resistente e dura vida negra se imobilizam como estátuas invisíveis, no pensamento de antigos deuses nunca esquecidos. É a Praia do Pinto, praia da pinimba, praia da porcaria. São negrinhas de ventre pontudo, levando, apenas púberes, os frutos da ignorância e do ócio dos homens. São negras a carregar não ânforas gregas, mas latas d’água para o cotidiano patético. São negros esgalgos, de camisa de malandro, a se experimentarem em passos de capoeira. São dois malandros de siso grave a se encontrarem, no enflorescer de uma aurora cor de seio, para disputar, a faca ou a navalha, o abandono de uma mulata com pele de dá e o olhar de vem. É o golpe rápido, o estertor surdo, o ventre vomitando as vísceras de uma só vez. É música. Música de violões se contrapontando. Música de batucada na tendinha; música de Ogum no terreiro. Às vezes, a voz estelar das pastoras, enredando em fios cristalinos a trama de um samba de enredo ou de uma marcha de sua escola. Adiante, os apartamentos miram o mar, o mar que por vezes ruge e se precipita, demagógico, como a querer varrer do bairro a miséria da favela inelutável. Atrás é a lagoa serena, rodeada de casas brancas, gordas e espapaçadas. No meio é a Praia do Pinto, a Praia do Pinto, a Praia do Pinto!” (MORAES, 2009, p. 61-62). 20

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Esta estreita relação entre as (neo)favelas e a cultura negra já havia sido destacada anteriormente por outros autores como, por exemplo, Alvito e Zaluar (2006). Segundo estes autores, por exemplo, “falar de favela é falar da história do Brasil desde a virada do século passado. É falar particularmente da cidade do Rio de Janeiro na República, entrecortada por interesses e conflitos regionais profundos. Pode-se dizer que as favelas tornaram-se uma marca da capital federal, em decorrência (não intencional) das tentativas dos republicanos radicais e dos teóricos do embranquecimento – incluindo-se aí os membros de várias oligarquias regionais – para torná-la uma cidade europeia. Cidade desde o início marcada pelo paradoxo, a derrubada dos cortiços resultou no crescimento da população pobre nos morros, charcos e demais áreas vazias em torno da capital. Mas isso também se deveu à criatividade cultural e política, à capacidade de luta e de organização demonstradas pelos favelados nos 100 anos de sua história. E a capital federal nunca se tornou europeia, graças à força que continuaram a ter nela a capoeira (ou pernada ou batucada), as festas populares que ainda reuniam pessoas de diferentes classes sociais e raças, as diversas formas e gêneros musicais que uniam o erudito e o popular, especialmente o samba” (ALVITO e ZALUAR, 2006, p. 7). Segundo Gilroy, por exemplo, “sob a ideia-chave da diáspora, nós podemos então ver não a ‘raça’, mas sim formas geo-políticas e geo-culturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem” (GILROY, 2001, p. 25). 22

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