Memórias de uma guerra perdida: memória, identidade e imprensa na critica orwelliana à repercussão da Guerra Civil espanhola, 1937- 1942

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Memórias de uma guerra perdida: memória, identidade e imprensa na critica orwelliana à repercussão da Guerra Civil espanhola, 19371942.1 Matheus Cardoso da Silva (FFLCH/USP – mestrando história social, DH) Introdução: A Espanha de todos os corações Não houve na história intelectual uma essência tão fértil para os poetas como a Guerra Espanhola. O sangue espanhol exerceu um magnetismo que fez tremer a poesia de uma época. Pablo Neruda. Memórias.

Reconhecido na critica internacional como um dos grandes nomes da critica intelectual de seu período, George Orwell – pseudônimo do escritor anglo-indiano Eric Arthur Blair (1903-50) – deixou para a posteridade como legado, especialmente em sua obra de não-ficção, um mosaico critico sobre as principais questões que envolveram sua geração, na Europa das décadas de 1930 e 1940. Entre elas, como nos caberá aqui analisar, sua participação – como combatente, em primeiro lugar, e como crítico, posteriormente – na Guerra Civil espanhola (1936-9), entre dezembro de 1936 e junho de 1937, guarda especial relevância por dois motivos. Primeiro, por ter definido os horizontes de sua crítica contra o totalitarismo, já no final da década de 1930 – tema este que seria seu grande objeto do final da década de 1940, com suas duas principais peças ficcionais, o Animal Farm (1946) e o 1984 (1949). Em segundo, pela profusão de sua crítica a ação comunista em relação aos demais integrantes da resistência republicana – questão que, na verdade, evidenciaria a deflagração das disputas entre as diversas linhas ideológico-partidárias da resistência e exporia a cisão entre a liderança comunista e a dissidência que se formava, com anarquista e os demais partidos que não seguiam as determinações soviéticas. Tais disputas, que, na verdade, ocupam local privilegiado na crítica de Orwell, refletiam-se diretamente na repercussão dos fatos sobre a guerra na imprensa do período. Opunham, de um lado, aquela que já se acreditava ser a única força capaz de deter o avanço fascista na Espanha – as brigadas comunistas – e, de outro, os assim chamados “rebeldes’’, cuja imagem já se estruturava através do discurso propagandistico comunista em seus jornais oficias pelo mundo, como bandos 1

Trabalho apresentado no XIX Encontro Regional da Seção São Paulo da ANPUH, “Poder, Violência e Exclusão”, em Setembro de 2008, na Universidade de São Paulo, como parte da pesquisa de mestrado “O ultimo homem da Europa: a luta pela memória no universo não-ficcional da obra orwelliana, 19371949”, desenvolvida no Departamento de História da Universidade de São Paulo.

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desorganizados que atrapalhavam as ações do governo republicano. Com o decorrer da guerra, essa dissidência acaba por assumir uma imagem de “traidores” da causa republicana, para, por fim, assumirem o rótulo de “trotskistas”, ou aqueles que, como a propaganda oficial soviética argumentava, se constituíam no inimigo maior do proletariado internacional e da causa socialista mundial. Pensando nesta questão, justificam-se os marcos temporais que balizam nossa análise neste trabalho, em relação a produção não-ficcional de Orwell. Em primeiro lugar, o ano de 1937 – data que marca o inicio de suas reflexões criticas sobre os acontecimentos da Guerra, com a publicação do ensaio Spilling the Spanish Beans, no jornal New English Weekly, de 29 de Junho e 2 de Setembro de 1937. Já neste primeiro artigo, escrito pouco tempo depois de seu retorno da Espanha, Orwell se ocupará em analisar as disputas internas das diversas linhas que compunham, junto ao Governo Republicano, a resistência a Franco. Tais disputas, como ele irá destacar, na verdade, simbolizaram a cisão que culminou com a cassação do P.O.U.M (Partido Obrero de Unificaciòn Marxista) que, junto com anarquistas e outros partidos, compunham a dissidência à liderança comunista (e ao qual Orwell se filiou logo após sua chegada a Espanha). Alheio a este processo, dá-se a prisão de muitos de seus membros, pela acusação de alta traição e apoio aos fascistas. Inevitavelmente, tais disputas, como este primeiro trabalho de Orwell já se preocupou em destacar, influenciariam diretamente na construção da identidade dessa dissidência para o imaginário político internacional, devido à exposição que obtiveram na imprensa internacional, especialmente nos jornais de controle ou influencia comunista. Neste momento, Orwell se refere, principalmente, a jornais como o Daily Worker – jornal oficial do partido comunista nos EUA, o News Chronicle e o New Statesman, de orientação comunista, ambos publicados na Inglaterra. Em segundo lugar, acompanhando a produção crítica de Orwell voltada para a analise da Guerra Civil na Espanha, aparece-nos o ano de 1942, data da publicação de seu ensaio Looking Back on the Spanish War [no Brasil, publicado com o título de Recordando a Guerra Civil (2006)], seu último texto sobre o tema. Junto com seu livro Homage to Catalonia (1938), este ensaio compõe o quadro critico da obra orwelliana sobre a Guerra Civil espanhola, mais conhecido da critica à sua obra no Brasil, haja vista as suas duas publicações – primeiro, em 1986, editado junto com a primeira edição

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do Lutando na Espanha (tradução do título Homage to Catalonia), e uma nova reedição em 2006, junto com uma nova tradução do texto do Homage to Catalonia2. Neste ensaio, Orwell se propõe a um “balanço” final daquilo que havia representado a experiência da Guerra Civil, tanto em sua formação intelectual – quando vai repassar vários tópicos de suas analises em textos anteriores – quanto para o próprio imaginário político europeu, após a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Seu tópico mais importante, contudo, pensado num contexto posterior ao termino da Guerra Civil espanhola, é, como em seu primeiro ensaio de 1937, sua reflexão sobre o processo de construção da memória da Guerra, dentro e fora da Espanha. Neste sentido, o que nossa leitura aponta acerca deste texto, é o papel fundamental que a imprensa do período – pró e contra a Republica – deteve neste processo, através da construção da identidade de seus atores. É interessante notar que, assim como a historiografia da Guerra iria posteriormente reconhecer, estas disputas internas da resistência republicana – e sua repercussão através do discurso oficial comunista – tanto quanto o discurso oficial do governo franquista posteriormente, através das inúmeras políticas de (re)construção da memória coletiva da Guerra (Cenarro, 2002; Richards, 2002) – iria desempenhar papel fundamental para a construção das diversas memórias do conflito (tanto para o lado vencido, quanto para o lado vencedor). A obra de Orwell, desta forma, cujos textos contidos neste intervalo podem ser apreendidos como um continuum reflexivo sobre o tema, serve ao historiador como um norte reflexivo sobre a função da imprensa (enquanto veículo de comunicação de massa) no processo de construção e (re)afirmação das identidades coletivas das sociedades, através também de sua participação na construção de sua memória pública, relação esta que também é afirmada por Enne (2004). Nesta perspectiva, a imprensa é tomada, segundo as considerações de Nora(1984), como um “lugar de memórias”, por caracterizar-se como um espaço discursivo, onde a própria memória é institucionalizada também enquanto discurso, para as diversas linhas ideológicas que a instrumentalizam no presente. Ë desta forma, que estas diversas “versões do passado” que se criam para as diversas linhas oficiais, apropriam a memória (e, consequentemente, a própria história) como um recurso de poder dos quadros políticos hegemônicos. Como aponta Michael Pollak (1992), esta

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Ambos publicados pela Editora Globo.

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questão é fundamental para a compreensão da construção das identidades coletivas, pois ela própria é o resultado da construção e desconstrução continua das memórias dos agentes envolvidos neste processo. Assim, o que se evidenciará na critica orwelliana ao longo deste período entre 1937 e 1942, enfocando principalmente sua analise das disputas internas da resistência republicana é, ao mesmo tempo, por um lado, a construção da identidade de seus agentes, tanto no sentido de construir uma imagem autorizada que legitime as ações comunistas, quanto que descaracterize as ações dos demais partidos dissidentes enquanto resistência ao fascismo espanhol. Por outro, um processo de construção da memória da guerra (e da memória da própria resistência republicana), através da identificação da dissidência comunista pela imprensa internacional, como traidores da causa republicana, a serviço de Franco e do fascismo na Espanha.

Memória, identidade e imprensa na construção da imagem da dissidência comunista na Guerra Civil espanhola.

A edição do livro Orwell in Spain (2001), lançado na Inglaterra, e que reúne todos os textos de Orwell relacionados à Guerra Civil espanhola3, vem reafirmar para o publico contemporâneo a importância de sua crítica sobre os acontecimentos de um dos conflitos mais importantes na Europa do século XX, tanto para a construção de seu léxico, quanto para a crítica política européia das décadas de 1930 e 1940. Da mesma forma, sua tradução no Brasil – Lutando na Espanha: homenagem a Catalunha, recordando a guerra civil e outros textos (2006) – vem apresentar, pela primeira vez para o publico brasileiro, uma versão completa de suas reflexões sobre a Guerra Civil espanhola, contida em sua obra de não-ficção. Ambos os textos – o original lançado na Inglaterra e sua tradução brasileira – acompanham a linha do revisisonismo da obra orwelliana a partir da década de 19804.

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Da mesma forma como com o lançamento da The Complety Works of George Orwell (Secker and Warburg, 1998. 20 vol.), na Inglaterra – coleção da qual os textos reunidos nesta coleção de 2001, foram retirados. Nesta nova edição, assim como nas Obras Completas, encontram-se muitos textos inéditos até então para o publico, os quais não haviam sido incluídos na única coleção de não-ficção de Orwell editada até então – The Collected Essays, Journalism and Letters of George Orwell (1968). 4 Quando sua obra de não-ficção é reproblematizada em várias áreas de conhecimento – história, ciências políticas, economia, lingüística, etc.- especialmente nos EUA. Tem-se, neste momento, a produção de uma larga bibliografia – principalmente através de artigos – que reproblematizam a obra de Orwell (especialmente sua não-ficção) em inúmeros tópicos. Com isso, assiste-se a uma ampliação do quadro interpretativo de suas analises e criticas sobre a sociedade européia das décadas de 1930 e 1940.

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Nesta fase, principalmente, a critica a sua obra reconhece sua participação na Guerra Civil Espanhola como fundamental para a compreensão de seus trabalhos do final da década de 1940, tal qual Meyers (1975) e Crick (1997). Da mesma forma, os debates que cercaram a ascensão fascista no continente Europeu na década de 1930 – especialmente nos círculos intelectuais da esquerda – transformaram a Guerra contra Franco na Espanha em um baluarte moral contra o fascismo na Europa. Para Orwell, não diferente, lutar na Espanha contra o fascismo, tornou-se uma obrigação moral. Neste sentido, como Orwell entendia, sua ação, como a de tantos outros combatentes anônimos, era não apenas frear o avanço de uma ideologia que se expandia para além de seus Estados irradiadores, a Itália e a Alemanha – mas, assegurar que o socialismo, tivesse terreno para assumir a dianteira no processo de reconstrução da Europa, assolada pela crise da década de 19305. Como Orwell escreveria no ensaio autobiográfico Why I write, de 1946: Every line of serious work that I have written since 1936 has been written., directly or indirectly, against totalitarianism and for democratic socialism, as I understand it. (Orwell, 2004:5)

Assim, a Guerra civil espanhola, como um marco de sua geração, simbolizou, para a figura do intelectual-militante que surgiu com as vanguardas do final do século XIX, segundo a visão de Orwell, a luta pela “integridade” com que este deveria assumir em seu papel na esfera publica. Questão que para Orwell (ibid:8-9), se consubstanciou numa obrigação moral imposta pelo contexto político-social dos anos de 1930. Esta concepção do papel que o ‘’homem de letras’’ assume diante de sua imagem enquanto ‘’homem-publico’’, fundamentará para o revisionismo da obra orwelliana a própria definição da figura de Orwell (enquanto intelectual) para sua geração. Como analisa John Rodden (1990:252-3), ao considerar a figura de Orwell em meio ao círculo intelectual da esquerda britânica dos anos de 1930:

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Essa questão é fundamental para a compreensão do desenvolvimento do pensamento orwelliano, pois reafirma sua orientação socialista, claramente explicitada em seu livro anterior, The Road to Wigan Pier (1936), lançado pouco tempo depois de seu embarque para a Espanha. Assim, diferentemente do que a critica pós-Segunda Guerra Mundial estruturou, principalmente baseando-se numa leitura superficial de seus dois últimos romances (e os de maior repercussão) – Animal Farm e o 1984 – a critica de Orwell, se tomada no contexto dos debates dos círculos de esquerda das décadas de 1930 e 1940, se estabelece não como um ataque a ideologia socialista (como sinônimo das idéias da Revolução de outubro de 1917). Mas, como sua obra de não-ficção atesta como uma critica ao stalinismo, diante das ações politicoadministrativas soviéticas, após a ascensão de Stalin, em 1928. Fator este que está claramente explicitado em sua análise dos acontecimentos na Guerra Civil espanhola, especialmente no que se refere as ações comunistas contra sua dissidência.

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(...) O exemplo de Orwell, contudo, possuí mais que o mero interesse histórico, pois representa não apenas as disputas entre um homem e seus companheiros “intelectuais”.Sim, sinaliza a posição emergente do escritor-intelectual moderno na Inglaterra, respondendo a dois novos paradigmas históricos dos anos de 1930: o nascimento de uma intelligentsia “radical” e a ascensão do totalitarismo na Europa.

O livro Homage to Catalonia (1938), por exemplo, tido como um dos grandes trabalhos do realismo literário do século XX6, assumiu, já na década de 1940, papel central na crítica político-social européia sobre o conflito. Primeiramente concebido como um relato jornalístico de suas experiências na Guerra, o livro assume, logo em seguida a seu lançamento, um caráter de “denuncia”. Para Orwell, aquilo que ele pode presenciar em seu período como combatente na milícia republicana do P.O.U.M. (porém sem abandonar o olhar crítico do jornalista atento), compreendeu um processo que ele identificou ser a ação da liderança comunista em suprimir as demais linhas partidário-ideológicas que compunham a resistência do Governo republicano. Em particular, denotava a clara cisão ideológica dos partidos anarquistas e os demais partidos socialistas de não orientação soviética, todos aqueles que não aceitavam as estratégias de ação imposta pela liderança comunista. Tais críticas contra um processo que iria se confirmar pouco tempo depois do inicio da Guerra, com as disputas entre anarquistas e comunistas em Maio de 1937 em Barcelona7, valeram a Orwell, uma dura censura a publicação de seus textos na Inglaterra. Como ele se queixou, por exemplo, em uma carta a Jack Common, de maio de 1938 (Orwell, 1968:329-30), seus textos – artigos, revisões e, inclusive, seu livro Homage to Catalonia, recusado por seu teor anti-stalinista, por seu editor8 – sofreram

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É também, ao lado do livro de Franz Borkenau, The Spanish Cockpit (1937) – o qual Orwell resenha para o jornal Time and Tide, de 31 de Julho de 1937 (Orwell, 2001:229-31) – considerado um dos livros mais lúcidos sobre a Guerra Civil Espanhola, lançado até então – principalmente em relação a atuação anarquista durante a Guerra. 7 Os acontecimentos iniciados em 3 de Maio de 1937 em Barcelona citados por Orwell, foram de suma importância para o lado republicano, pois desnudaram a cisão definitiva entre anarquistas de um lado, representando a maior parte da dissidência as determinações soviéticas, e comunistas de outro, cuja preponderância bélica financiada pela Estado soviético, já lhe valia a ascensão a frente da resistência do governo Republicano. A crise se agravou ao ponto de ruptura, com a invasão da Central Telefônica de Barcelona – quartel general da CNT - por forças policias comunistas, com a justificativa do roubo de armas do arsenal republicano, e cuja acusação, segundo a imprensa internacional comunista, indicava a participação de milícias anarquistas e de membros do P.O.U.M.. Esse questão justificou, posteriormente a cassação do P.O.U.M., com a prisão de toda sua cúpula, assim como a cisão definitiva entre comunistas e toda essa dissidência, sob a acusação de alta traição e apoio a Franco. 8 Victor Gollancz, editor do Left Book Club, de Londres, que havia publicado seu livro anterior, The Road to Wigan Pier (1936).

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duro boicote pela imprensa britânica, principalmente em meio aos círculos editoriais de orientação comunista. O que Orwell pode apreender pouco tempo depois de sua chegada a Espanha, como seus textos demonstram, era a evidente divisão existente nas forças republicanas, que transformava a guerra num conflito “triangular”9 (Orwell,2001:176). Através das Brigadas internacionais e da ajuda logística e financeira da URSS – única potencia estrangeira a auxiliar o Governo republicano, em detrimento do apoio de italianos e alemães a Franco – as forças comunistas assumiram, ao longo dos primeiros meses de conflito, posição central na resistência do Governo republicano a insurreição liderada por Franco. Contudo essa liderança não apenas ignorava a ação engendrada, principalmente pelas milícias anarquistas, cuja ação fora fundamental para os primeiros meses da resistência republicana – como obrigava-a, junto as demais organizações nãoalinhadas as determinações soviéticas, a se sujeitar as estratégias e definições do Cominterm, que, na verdade, representavam muito mais os objetivos da política externa soviética nos anos de 1930, do que os interesses republicanos espanhóis.10 Neste sentido, o relato das experiências de Orwell, tanto quanto sua análise das disputas internas da resistência, assumem papel preponderante justamente por se focar na ação da liderança comunista no processo que culminou com a cassação do P.O.U.M., Ou seja, outro partido de orientação socialista, mas que não seguia as determinações

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Como Orwell descreve no cap. 5, do livro Homage to Catalonia (2001:179), enquanto se mantinha a guerra contra Franco, as disputas entre anarquistas e comunistas, no seio do Governo republicano, trasnformava a guerra numa disputa entre tr6es ideologias diferentes. Em relação às forças republicanas, Orwell nota que se dividiam, já nos primeiros meses depois de iniciado o conflito, em três linhas ideológicas (e, consequentemente, estratégicas em relação às ações militares) claras: de um lado, as forças comunistas, composta basicamente das milícias internacionais das Brigadas comunistas sob orientação do Cominterm e representado em Barcelona pelo P.S.U.C. (Partido Socialista Unificado de Cataluña). De outro, as milícias anarquistas, representadas pela C.N.T. (Confederacion Nacional de Trabajo) e pela F.A.I. (Federacion Anarquista Iberica). Num outro extremo, Orwell exemplifica através do P.O.U.M. (Partido Obrero de Unificacion Marxista), um dos vários partidos socialistas de não-orientação soviética. Devido ao pensamento comum de que a guerra empreendida contra o levante fascista espanhol não podia se desatrelar do processo revolucionário socialista, o P.O.U.M. se alinhou as forças anarquistas, atuando junto a suas milícias desde o inicio do conflito em junho de 1936. 10 Como a historiografia da Guerra largamente analisou, principalmente em livros como os de Victor Alba Sthephen Schwartz (1988). Spanish marxism vs. Soviet communism: A history of the POUM., e Burnett Bolloten (1991). The Spanish Civil War: Revolution and counterrevolution..Em ambos, a cisão entre as forças do governo republicano, logo em 1937, ou seja, alguns meses depois de iniciado o conflito, apenas evidenciaram o conflito ideológico entre os interesses nacionais da política espanhola e os interesses regionais soviéticos, em relação a promoção da revolução socialista, concebida no plano de ação anarquista para a Guerra.

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impostas pela liderança internacional comunista11. Outro fator fundamental na critica de Orwell deve-se a suas considerações as ações posteriores à queda na ilegalidade do partido. Neste sentido, o que se assistiu, foi todo um processo de incriminação, prisão e execução de muitos de seus membros12. Estas ações resultariam em toda uma ação propagandistica engendrada, tanto na imprensa comunista espanhola quanto na imprensa internacional, através dos veículos oficiais dos PC’s, de construção de uma imagem de “traidores” da “causa republicana” dessa dissidência. Por exemplo, no artigo Eye-Witness in Barcelona, publicado no jornal Controversy: The socialist Forum, vol.1, nº 11, de Agosto de 1937, Orwell irá contrapor as diversas “versões” apresentadas na imprensa comunista internacional, com suas próprias lembranças pessoais sobre os fatores que levaram a cassação do P.O.U.M, e todos os acontecimentos a sua volta. Neste artigo, Orwell se refere essencialmente aos jornais Daily Worker (NY) e New Statesman (Londres)13, dos quais analisa as noticias que justificaram o rompimento comunista com a dissidência, e a construção de uma campanha difamatória contra o partido.

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Como demonstra, por exemplo, Victor Alba, El Processo del POUM: Documentos Judicialies y Policiales (Barcelona, 1989) O caso do P.O.U.M ganhou notoriedade na historiografia da Guerra Civil espanhola depois da reabertura democrática na Espanha, na década de 1970. Diante de todas as dificuldades na recuperação da memória da guerra – de ambos os lados – devido ao longo processo de silencio imposto pela ditadura franquista, através do chamado Pacto del Olvido. O caso da cassação do P.O.U.M. e, posteriormente, todo o processo de incriminação de seus membros, demonstram toda uma ação de apropriação da memória da resistência, pelo discurso oficial comunista, através da identificação de seus dissidentes enquanto traidores da causa republicana e da luta contra Franco. 12 Dois casos são emblemáticos: a prisão, em 15 de Junho de 1937, e posterior morte de Andrés Nin, líder do P.O.U.M. – a qual precedeu a de toda a cúpula do partido e sua posterior cassação. E a de Bob Smillie, também em Junho de 1937 – jovem militante socialista escocês, que, como Orwell, se integrou ao P.O.U.M, por sua ligação ao I.L.P. (Independent Labour Party). Para Buchanan (1997), a morte de Smillie, justificada misteriosamente como um agravamento de uma pneumonia numa prisão republicana pelas autoridades comunistas, na verdade, sinaliza o agravamento das relações entre o I.L.P (uma dissidência do comunismo na Grã-Bretanha) e o PC britânico, que o acusava abertamente de ser “trotskista”. Por esse motivo, as causas de sua morte foram encobertas pelas autoridades locais e por muitos membros do próprio I.L.P., que buscavam um maior alinhamento com as determinações comunistas britânicas. 13 Owell se refere a uma noticia publicada em 22 de Maio de 1937, no New Statesman, sobre as acusações contra o P.O.U.M., em relação a um roubo de armas do arsenal republicano e a prisão de Andrés Nin. (Orwell, 2001:237). Contudo, é também no Homage to Catalonia que Orwell fará o maior numero de referências a artigos e noticias publicadas na época sobre os acontecimentos na Espanha, especialmente nos jornais comunistas. Desta forma, por exemplo, Orwell (2001:199) se referirá a uma mate’ria do Daily Worker, de 11 de Maio de 1937 (e a uma série de artigos publicados entre 6 de Maio e 21 de Junho do mesmo ano), que se referia ao P.O.U.M. e a seus militantes como “Quinta Coluna de Franco”, atuando como “espiões trotskistas” no Governo Republicano. Com o mesmo teor, por exemplo, são as referências que Orwell faz a uma matéria publicada no jornal New Republic (op.cit:221), que afirmava terem os milicianos do P.O.U.M., terem jogado futebol com soldados fascistas na frente de batalha num ato de confraternização.

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Assim escreve Orwell no livro Homage to Catalonia, sobre a construção da campanha difamatória contra o P.O.U.M., na imprensa comunista internacional: (...) the POUM was declared to be no more than a gang of disguised Fascists, in the pay of Franco and Hitler, who were pressing a pseudo-revolutionary policy as a way of aiding the Fascist cause. The POUM was a ‘trotskyist’ organization and ‘Franco’s Fifth Column’. This implied that scores of thousand of working-class people, including eight or tan thousand soldiers who were friezing in the front-line trenches and hundreds of foreigners who had come to Spain to fight against Fascism, often sacrificing their live hood and their nationality by doing so, were simply traitors in the pay of the enemy. And this story was spread all over Spain by means of posters, etc., and repeated over and over in the Communist and procommunist press of the whole world.(Orwell, 2001:184)

A questão mais importante desta campanha engendrada pela propaganda comunista, dentro e fora da Espanha, desencadeada contra os anarquistas desde o inicio da Guerra, mas que atingi o P.O.U.M, principalmente depois de Maio de 1937, é, como Orwell descreve, a construção da imagem desta dissidência enquanto “trotskista”. É fundamental notar que, no imaginário político da década de 1930, o conceito “trotskista” assume, principalmente através do discurso oficial comunista, uma conotação muito mais abrangente do que simplesmente aquele (ou aquela dada organização) que se alinhava ao pensamento de Leon Trotsky. Como o próprio Orwell também analisaria em seu primeiro texto publicado sobre a Guerra Civil espanhola, Spilling the Spanish Beans (op.cit:219), quando ele vai pensar na ação da máquina propagandística comunista no processo de construção da imagem da dissidência - primeiro enquanto “fascista” e depois como “trotskista” – o próprio termo assumia na discurso oficial comunista, um caráter contraditório: entre aqueles que eram partidários de Trotsky (e, consequentemente, partidários de seu pensamento estratégico para o movimento comunista internacional), e aqueles que, simplesmente, discordavam das determinações de Stalin e do Comintern, colocando-se com isso, automaticamente contra a causa socialista e o proletariado internacional.14

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Uma visão construída pelas determinações da III Internacional Comunista de 1919, que definiram as diretrizes de ação para o movimento comunista internacional. Neste momento, o Partido Comunista Russo e a liderança soviética, passaram a representar a liderança internacional do movimento, tendo, por isso, total respaldo na definição das diretrizes de ação para o movimento comunista. Desta forma, com a cisão entre Stalin e Trotsky, este passa a representar, segundo a propaganda stalinista, o ideólogo de um movimento internacional contra-revolucionário, inimigo da URSS e, consequentemente, do proletariado internacional, sendo todos os seus seguidores e partidários, inimigos dos ideais da Revolução de Outubro de 1917.

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Neste mesmo ensaio, Orwell descreve a construção de uma imagem demonizada dessa dissidência, através da propaganda oficial stalinista, por meio da imprensa internacional15. Desta forma, o rótulo de “trotskista”, se enquadrava para todos aqueles que se opunham as determinações soviéticas durante a Guerra Civil – imagem que atingiu tanto o P.O.U.M., quanto aos partidos anarquistas. Como ele escreve no ensaio Spilling the Spanish Beans (...) In Spain, everyone whose opinions are to Left of those of the Communist Party, is soon or later discovered to be a ‘trotskyist’, or at least, at traitor. At the beginning of the war the POUM, an Opposition Communist Party roughly corresponding to the English I.L.P. [Independent Labour Party] was an accepted party and supplied a minister to the Catalan Government; later it was expelled from the Government; then it was denounced as ‘Trotskyist’; then it was suppressed, every member that the police could lay their hands on being flung into jail. (Orwell, 2001::221)

Desta forma, como Orwell escreverá novamente no Homage to Catalonia, a construção da imagem da dissidência comunista enquanto “trotskista” pela propaganda comunista, se acomodará, por exemplo, no imaginário britânico, através de sua significação como sinônimo de traição dos ideais comunistas: (...)The communist accounts of the opening incident, the raid on the Telephone Exchange, are illuminating; they agree in nothing except in putting the blame on the other side. It is noticeable that in the English Communist papers the blame is put first upon the anarchists and only later upon the POUM. There is a fairly obvious reason for this. Not everyone in England has head of ‘Trotskyism’, whereas every English-speaking person shudders at the name ‘Anarchists’ an implicated, and right atmosphere of prejudice is established; after that the blame can safely be transferred to the “Trotskyists”. (Orwell, 2001:201)

O que a leitura destes textos de Orwell nos permite apreender é um processo de homogeneização da dissidência pelo discurso oficial comunista. Sob o rótulo de “inimigos da causa socialista”, que, na verdade, era o sinônimo para a significação “trotskista”, a propaganda oficial comunista, através de sua imprensa, estabeleceu uma ação de construção da identidade dessa dissidência, já nos primeiros meses depois de iniciado o conflito.

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Ver, por exemplo, a carta que Orwell envia a Frank Jellinek, de 20 de Dezembro de 1938 (Orwell,2001:319-23), quando faz referência aos diversos meios que a propaganda comunista tinha para construir uma imagem maléfica de sua dissidência. O que Orwell se refere, especialmente na Inglaterra, é o grande espaço que este tipo de noticia tinha em jornais como o News Chronicle e o New Stasteman (ibid.:321), enquanto a versão não comunista tinha pouco espaço para divulgação no jornal Manchester Guardian.

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Através do discurso oficial soviético, apresentado, principalmente em seus veículos de informação oficiais, pode-se identificar uma ação de mão-dupla: por um lado, a desqualificação das ações dessa dissidência, tanto quanto de seus agentes; por outro, a legitimização das ações comunistas, reconhecidas então como única força capaz (ideológica e militarmente) de confrontar a ascensão fascista na Espanha. Neste processo, encobre-se, principalmente, a posição conservadora das forças comunistas diante da tentativa de promoção da revolução socialista na Espanha, concebida nas estratégias de ação anarquistas. O que Orwell nos faz ver, neste sentido, é a importância desses debates no seio do Governo Republicano, para a construção posterior da própria identidade de seus membros (neste processo, identificada unicamente as Brigadas Internacionais) e, consequentemente de sua memória. Esta preocupação – ou seja, da construção da memória do governo republicano e, como conseqüência, também da própria guerra – será fundamental em seu último trabalho que aborda a Guerra Civil Espanhola como tema central, o ensaio Looking Back on the Spanish War, de 1942. A leitura deste ensaio evidencia, para Orwell, toda a disputa interna do Governo republicano, e na verdade, influenciaria diretamente na construção da própria história da guerra para as gerações futuras. Como ele escreve: (...) How will the history of the Spanish war be written? If Franco remains in power his nominees will write the history books, and (to stick to my chosen point) that Russian army which never existed will become historical fact, and school children will learn about it generations hence. But suppose Fascism is finally defeated and some kind of democratic government restored in Spain in the fairly near future; even then, how is the history of the war to be written? What kind of records kept on the Government side are recoverable – even so, how so a true history of the war to be written? For, as I have pointed out already, the Government also dealt extensively in lies. From the anti-fascist angle one could write a broadly truthful history, unreliable on every minor point. Yes, after all, some kind of history will be written, and after those who actually remember the war are dead, it will be universally accepted. So for all practical purposes the lie will have become truth.(Orwell, 2001:353)

O que Orwell demonstra nesta passagem é uma clara preocupação na utilização da história e, conseqüentemente da memória, como seu veículo ou mecanismo de acesso ao passado, como meio de manipulação ideológica das sociedades. O que Orwell indaga

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é sobre a possibilidade de ser escrita uma historia da Guerra Civil que contemple toda a problemática política que cercou, não apenas a luta contra Franco e o fascismo, mas as próprias disputas internas do Governo Republicano. Neste sentido, se reivindica uma história que abranja a participação dos diversos grupos que constituíram essa resistência e que integre, desta forma, toda a dissidência comunista, renegada então como “trotskista” e traidora da causa republicana. Na verdade, o que Orwell vai afirmar, já no inicio da década de 1940, é que as disputas entre comunistas e sua dissidência, tanto quanto a censura da ditadura franquista pós-guerra civil, iriam desempenhar papel fundamental na construção da memória da Guerra e de seus combatentes. Da mesma forma, iriam desempenhar papel fundamental também na construção identitária de seus membros, através da repercussão internacional dos fatos da Guerra pela imprensa mundial, cuja ação propagandística comunista, iria determinar a visão do mundo em relação à ação anarquista e de outros partidos, como o P.O.U.M., na luta contra Franco.

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