Memórias Literárias: das práticas sociais ao contexto escolar (Dissertação,UFMT,2013)

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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

NEIVA DE SOUZA BOENO

MEMÓRIAS LITERÁRIAS: DAS PRÁTICAS SOCIAIS AO CONTEXTO ESCOLAR

CUIABÁ-MT 2013

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NEIVA DE SOUZA BOENO

MEMÓRIAS LITERÁRIAS: DAS PRÁTICAS SOCIAIS AO CONTEXTO ESCOLAR

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagem, Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, para Exame de Qualificação, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Estudos Linguísticos Orientadora: Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha Co-orientador: Prof. Dr. Luciano Ponzio

CUIABÁ-MT 2013

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte

B671m Boeno, Neiva de Souza. Memórias literárias : das práticas sociais ao contexto escolar / Neiva de Souza Boeno. -- 2013. 253 f. : il. color. ; 30 cm. Orientadora: Simone de Jesus Padilha. Co-orientador: Luciano Ponzio. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagem, Cuiabá, 2013. Inclui bibliografia. 1. Filosofia da linguagem. 2. Literatura. 3. Memórias Gênero. 4. Memórias literárias - Olimpíada de Língua Portuguesa. 5. Professores - Formação. I. Título. CDU 81:1+82.09-94/-95

Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Jordan Antonio de Souza - CRB1/2099 Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte

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DEDICATÓRIA

Aos leitores e interessados em Filosofia da Linguagem, Literatura, Semiótica, Didática e Formação de Professores!

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, a Oxum e ao meu Anjo da Guarda: pela energia vital! Agradeço a minha mãe Iracema, a meu pai Valdivino, aos meus irmãos: Márcio, Angela, Luiz e Jair, aos sobrinhos: Helena, Ana Helena, Rebeca, Andressa e Kadu: meu Porto Seguro, minha história de vida, minhas aprendizagens! Agradeço a minha família do Axé, Pai Dedo, Judite e irmãos do Axé: pela força, energia e paz! Agradeço a família Ponzio: Maria, Augusto, Luciano, Aloisio, Vito, Michail, Emanuel, Tânia, Julia, Susan, Maddy: pelo encontro, acolhida, alegria, paz e ensinamentos! Agradeço a família Cardoso: D. Maria – mãe adotiva, Fábio e Débora – irmãos, Amir – amigo querido, Eurides – amiga querida: pelo carinho, desprendimento, confiança e fé! Agradeço ao Luciano, por nosso encontro nesta vida, pela amizade, companheirismo, parceria, cumplicidade, pesquisas, alegrias, paz, saúde, palavras, atenção, amor! Em suma: pelo arco-íris em vida! Agradeço a meu amigo-irmão Fábio Cardoso dos Santos, da família Cardoso, pela alegria do encontro, carinho, atenção, parceria e cumplicidade! Agradeço aos amigos Maria de Fátima Agnelo e Francisco Assis, pela parceria, amizade que nasceu no seio da Educação! E em seus nomes, agradeço a todos os colegas, amigos e alunos da Escola Estadual Liceu Cuiabano Maria Arruda de Muller. Uma época inesquecível! Agradeço a amiga Maria Helena da Silva, pela confiança em meu trabalho, recémformada, pelas orientações especialíssimas, pela amizade, carinho, dedicação e torcida. Em seu nome, agradeço a todos os colegas, amigos e alunos da Escola Antônia Tita! Época maravilhosa, inesquecível! Agradeço às afilhadas de coração Daiane Campos e Andréa Rodrigues: pelo carinho, amizade, parceria e ensinamentos! Agradeço às amigas-irmãs Gláucia Ribeiro, Ludmilla Ferreira Cruvinel Veloso e Tânia Regina Maciel: pelo encontro, amizade, e parceria! Agradeço ao amigo Márcio Tadeu de Pereira Magalhães: pela amizade, confiança e diálogos! Agradeço aos meus alunos, eternos alunos de 1996 a 2008: pelo encontro e aprendizagens!

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Agradeço a minha eterna e amada Profa. Délia Carlesso: pelos incentivos, apoio e ensinamentos! E em seu nome agradeço a todos os profissionais que contribuíram para a minha formação, em especial aos de Paranaíta-MT! Ao Prof. Sérgio Dalate, in memoriam: pelo incentivo à pesquisa sobre Escritura e pelos ensinamentos! Agradeço à Profa. Catarina de Arruda Cortez, ao Gestor Paulo Henrique L. de Oliveira e ao Prof. Kapitango A-Samba: pelo carinho, confiança, incentivo, parceria, compreensão singular e inúmeros ensinamentos! Agradeço ao Prof. Rosemar Coengo, pelo incentivo às leituras, às amigas: Márcia Furtado, Leila Barros, Ely Miguel e Rozilene – Barbie, pela amizade, diálogos, carinho e paz! Agradeço a amiga de trabalho e parceira Ivanize Carneiro Geraldes, pelas boas conversas, orientações e carinho. Em seu nome agradeço a todos os amigos queridos da SEDUC – MT, das equipes por onde trabalhei e das equipes que são parceiras na vida funcional, na execução das ações educativas e na elaboração de políticas públicas para a Educação em Mato Grosso! Agradeço as amigas Jucelina Ferreira de Campos, Carolina Seixas Lima e Domingos França (Francis): pela amizade e carinho desde o tempo da graduação, encantadores e companheiros de lindos momentos! Agradeço aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem: Sérgio Flores, Danie Jesus, Solange Barros, Sirlei Silveira,Simone Padilha, Elias Andrade cujas aulas fizeram abrir alguns horizontes e também pelas contribuições teóricas que foram utilizadas nesta pesquisa! Agradeço ao amigo e parceiro Diego Sousa: pelas belas sugestões no início de minha pesquisa, incentivo e intelectualidade. Você é bravíssimo, querido amigo! E em seu nome, agradeço a todos os colegas do mestrado pelas leituras e reflexões dentro e fora do ambiente acadêmico! Agradeço a amiga Lucimeire Furlaneto: por ser minha parceira desde o momento que ingressei no mestrado, por compartilhar vários momentos e por abrir as portas de sua casa. Estendo os agradecimentos a seu esposo Antonio Marcos e filhos. Em nome da Lucimeire, agradeço a todos os companheiros de aulas e do Grupo de Pesquisa REBAK! Agradeço aos amigos demestrado Leni, Josilene, Izilene, Lucimeire, Francis, Nádia, Karla, Paulo Rogério, Mariana, Renata, Jean, Renato, Dinaura, Sebastiana, Rosemary e Capitão Neto, Sérgio, Shirlei, Elisangela e a todos os demais colegas, pelas leituras e reflexões dentro e fora do ambiente acadêmico! Agradeço a amiga Izilene Leandro, pela amizade e por me fazer voar pelas nuvens intercontinentais!

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Agradeço aos amigos Rosana e Marcus, pelo encontro, pelos diálogos interessantíssimos, parceria e a companhia em passeios italianos! Agradeço à Profa. Simone de Jesus Padilha (UFMT), minha orientadora, pela orientação, pela parceria e pela confiança que teve desde o primeiro momento de convivência na Pós-Graduação e na execução de projetos educativos! Agradeço ao Prof. Luciano Ponzio (UNISALENTO, Lecce, Itália), meu co-orientador, pela gentileza, atenção e alegria em compartilhar suas leituras e reflexões, incentivando-me a prosseguir pelas veredas da pesquisa que é sempre inacabada! Agradeço à Profa. Sheila Dias Maciel (UFMT-Roo), cuja elegância já marcada por sua avaliação escrita, no momento da qualificação, foi muita atenta, interessada e disposta a auxiliar em meu engrandecimento intelectual! Agradeço à Profa. Claúdia Graziano Paes de Barros (UFMT), cuja simpatia e disposição empenhou em contribuir para a melhoria de minhas reflexões e do meu texto! Agradeço à Profa. Maria Rosa Petroni (UFMT), cuja docilidade e alma grande soube me conduzir pelas boas práticas discursivas e tomar belas decisões em prol de minha pesquisa! Agradeço a todos os amigos, aqui não citarei nomes, cuja presença em determinados e distintos momentos da vida fazem dela algo lindo e um grande espaço de esperança. Infeliz daquele que não tem amigos, na mais variável escala de afetividade! Agradeço a Terezinha Furtado pela recepção na SEDUC-MT, desde 2008, sempre com carinho e atenção, e agora incentivando-me a ler um pouco mais sobre as questões indígenas, o que já sei, será um prazer! Agradeço a Profa. Rosa Sandes de Almeida, nossa Secretária de Estado de Educação, pela confiança e oportunidade singular de qualificação! E em seu nome, agradeço a todos os servidores públicos que fazem a Educação em Mato Grosso! Agradeço a todos os Multiplicadores do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro em Mato Grosso e aos parceiros e amigos da UNDIME-MT, na pessoa da Profa. Vera Lúcia Valadares, pelo interesse e compromisso com a Educação no Estado! Agradeço à Profa. Sônia Maddi, por continuar firme e forte à frente de projetos de Educação e de formação de professores! E em seu nome, agradeço a todos os profissionais que fazem pesquisas e trabalham com formação e projetos educativos por meio do CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária!

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Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir. Manoel de Barros (2009, p. 81)

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Memórias Literárias: das práticas sociais ao contexto escolar RESUMO Nesta pesquisa, reflito sobre a constituição e a didatização do gênero “memórias literárias”, um dos gêneros escolarizados no projeto de ensino do Caderno Se bem me lembro... do Programa Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF), instituído como política pública em 2008. Esse programa objetiva atender a duas finalidades: a) oportunizar formação continuada de professores na perspectiva de gêneros; b) propor o ensino de produção textual nas escolas públicas brasileiras em quatro gêneros: poemas, crônicas, memórias literárias e artigo de opinião. O programa apresenta material didático que circula nas escolas sem avaliação institucional. Desse material, o Kit que trabalha com “memórias literárias” motivou-me na realização desta pesquisa, primeiramente pelo estranhamento que o nome atribuído ao gênero me causou; e em segundo plano, o interesse pela compreensão desse gênero e da metodologia utilizada para seu ensino. As questões de pesquisa se focam na investigação da sócio-história do gênero e na análise dos encaminhamentos metodológicos para o ensino. Dessas questões decorre a pertinência desta pesquisa com base qualitativa, bibliográfica e documental, em função da formação teórica dos professores em sala de aula. Para a realização de meu trabalho, inicialmente recorri a diversas leituras, da Filosofia Clássica à Filosofia Contemporânea, passando pela Filosofia da Linguagem, Literatura, História, Linguística, Semiótica do Texto e também por textos de pesquisadores contemporâneos. Essas leituras ajudaram-me a construir a referência teórica que deu base às respostas desta pesquisa. Minhas reflexões e análises tiveram fundamento nos princípios da teoria enunciativo-discursiva de abordagem sóciohistórico de Bakhtin (1952-1953/1979), da teoria de ensino-aprendizagem cognitiva de Vigotski (1934;1935), e dos estudos de pesquisadores de Didática de Ensino de Língua Materna da Faculdade de Psicologia da Universidade de Genebra – e Schneuwly e Dolz (2004) que tomam a produção escrita como um ato interlocutivo, implicando sempre uma compreensão responsiva, ativa e criadora. As categorias principais de análise que utilizo para observar o projeto de escrita no gênero “memórias literárias” pertencem indissoluvelmente a “Arquitetônica da Responsabilidade” de Bakhtin: responsabilidade, exotopia e inacabamento. Dos resultados desta pesquisa, verifiquei algumas limitações que o Caderno Se bem me lembro... apresenta em relação ao ensino do gênero, como: definições do gênero de forma equivocada; ausência do contexto social e histórico do gênero; a utilização do conceito de gêneros do discurso como sinônimo de gênero textual; definição do parâmetro do gênero “memórias literárias” a partir de textos da Literatura Clássica e Contemporânea, classificando-os sem considerar suas formas arquitetônicas e composicionais. A partir da análise, proponho a revisão do Caderno Se bem me lembro... com base na Teoria da Literatura, Filosofia, História e Semiótica do Texto; inserção de textos literários nas atividades; reformulação dos conceitos de “memória” e do gênero “memórias” e sua especificidade na Literatura, ampliando a noção do gênero; inserção da história social do gênero; inserção de textos de “memórias” inseridos nas diversas esferas e textualidade. Acredito que o professor quando se apropria do conhecimento teórico consegue realizar seu fazer pedagógico com consciência e inovação. Palavras-chave: Olimpíada, memórias literárias, responsabilidade.

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Literary Memoirs: from social practices to school context SUMMARY In this research, I reflect on the constitution and didactization of the genre "literary memoir" , one of the genres schooled in the teaching project Notebook If I remember correctly... from the Portuguese language Olympics Writing the Future (OLPEF), established in 2008 as a public policy. This program has two purposes: a) create opportunities for continuing education of teachers in the perspective of genre; b) propose the teaching of writing in Brazilian public schools in four genres: poetry, chronicle, memoirs and opinion article. The program provides teaching materials for schools without institutional review. From this material, the kit that works with “literary memoir" motivated me to research, firstly by the strangeness the name of the genre caused me; secondly, the interest in understanding it and the methodology used for teaching it. The questions focus on the investigation of the socio- history of the genre and on the methodological analysis for teaching. From these issues derivate the relevance of this research, featured in qualitative, bibliographical and documental basis, according to the theoretical training of teachers in the classroom. For accomplishing my work I went through several readings, from the classical philosophy to the contemporary one , the philosophy of language , literature , history , linguistics, semiotics and also texts by contemporary researchers. These readings built a theoretical framework that supported the answers of this research. My reflections and analyzes were based on the principles of Bakhtin’s discursiveenunciation theory of socio-historical approach (1952-1953/1979), on the theory of cognitive teaching and learning of Vygotsky (1934;1935). Also based on the researchers’ studies about the mother tongue teaching of the college of psychology, university of Geneva - Schneuwly and Dolz (2004) who consider writing as an interlocutory act production, always implying a responsive, active and creative comprehension. The main categories of analysis I use to observe the writing in the genre “literary memoir” belong inextricably to Bakhtin’s “architectural responsibility”: responsibility, exotopy and incompleteness. From the results, I pointed some limitations the Notebook if I remember correctly… has in relation to the teaching of genre, such as incorrect definitions, lack of social and historical context.; besides that, the misuse of the concept of speech genres as synonymous for genre; definition of the “literary memoir” genre model from texts of classical and contemporary literature, regardless to their architectural and compositional forms. Thus, I propose a revision of the Notebook if I remember... based on the theory of literature, philosophy, history and semiotics of text; insertion of literary texts; reformulation of the concepts of “memory” and genre "memories” and their specificity in literature. This requires the enlargement of the notion of genre and the insertion of its social history by introducing texts of “memories” in various spheres and textuality. I believe that when the teachers assimilate theoretical knowledge they can perform with pedagogical awareness and innovation. This collaborates mainly for good public education that we all seek. Keywords: Olympics, literary memoirs, responsibility.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 Figura 6 Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 10 Figura 11 Figura 12 Figura 13 Figura 14 Figura 15 Figura 16 Figura 17 Figura 18 Figura 19 Figura 20 Figura 21 Figura 22 Figura 23 Figura 24 Figura 25 Figura 26 Figura 27 Figura 28 Figura 29 Figura 30 Figura 31 Figura 32 Figura 33 Figura 34 Figura 35 Figura 36 Figura 37 Figura 38 Figura 39 Figura 40 Figura 41

O pôr-do-sol no Pantanal, Rio Cuiabá, Barão de Melgaço-MT......... Souvenir de diversos lugares............................................................ Ilustração da Fábula “Achille e la tartaruga” (1995)........................... Esquema da Arquitetônica da Responsabilidade.............................. Imagem de Jano, o deus romano das faces em direções opostas... Esquema da interação dialógica: autor-herói-destinatário................ “Ecriture-Peinture, Le arti sorelle” (2007), Luciano Ponzio................ Pintura parietal – Maranhão.............................................................. Obra “Ceci n’est pás une pipe”, [Isto não é um cachimbo], de Magritte.............................................................................................. “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci.................................................... “L.H.O.O.Q.”, de Marcel Duchamp.................................................... Obra “Testo, Tessuto, Trama, Tela, Scrittura”, Luciano Ponzio........ Monumento ao Cristo Redentor (1931), Rio de Janeiro.................... Coleção Olimpíada............................................................................ KIT do gênero “Memórias Literárias”................................................. Logo do Programa OLPEF................................................................ Organização das Oficinas no Caderno Se bem me lembro... .......... Imagem da Capa do Caderno do Professor Se bem me lembro... ... Segunda capa (folha de rosto) do Caderno Se bem me lembro... ... Introdução ao gênero “memórias literárias” ...................................... Referências do Caderno Se bem me lembro... ................................ Conceito apresentado para o gênero “memórias literárias” ............. Primeiro texto grafado como “memórias literárias” ........................... Estrutura da abertura das Oficinas no Caderno Se bem me lembro... ............................................................................................ Oficina 1: Naquele tempo ................................................................. Primeira etapa: Início de conversa.................................................... Segunda etapa: Vestígio do passado................................................ Oficina 2: Vamos combinar?.............................................................. Primeira etapa: a situação e produção.............................................. Oficina 5: Tecendo os fios da memórias........................................... Texto de “memórias literárias” produzido pela aluna Kelli................. Terceira etapa: Conceito de narrador................................................ Oficina 8: Na memória de todos nós................................................. Terceira etapa: Como dizer............................................................... Uso dos recursos linguísticos............................................................ Questão de leitura............................................................................. Oficina 11: A entrevista...................................................................... Primeira etapa: O entrevistado e o tema........................................... Roteiro para entrevista...................................................................... Oficina 12: Da entrevista ao texto de memórias literárias................. Conceito de Retextualização.............................................................

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Quadro 2 Quadro 3 Quadro 4 Quadro 5

Quadro 6

Quadro 7 Quadro 8 Quadro 9 Quadro 10

Esquema das aproximações do gênero “memórias”, escritura entre realidade e ficção................................................................. Exemplificações do gênero “memórias” no âmbito das Esferas da Vida e da Arte........................................................................... A dimensão do “texto como enunciado”........................................ Esquema da Sequência didática................................................... Levantamento dos textos de referência para o gênero “memórias literárias” citados nas oficinas do Caderno Se bem me lembro... .................................................................................. Levantamento das oficinas pedagógicas e os objetivos delineados na sequência didática do Caderno Se bem me lembro... ........................................................................................ Levantamento da organização interna das oficinas selecionadas Os eixos organizadores dos conteúdos de Língua Portuguesa.... Relação do conceito de narrador com a Arquitetônica do Autor na teoria bakhtiniana..................................................................... Levantamento dos materiais didáticos sugeridos e dos gêneros auxiliares mobilizados nas oficinas selecionadas no Caderno Se bem me lembro... ..........................................................................

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Sumário

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 16 Prenúncio do Capítulo 1: Foto do pôr-do-sol no Pantanal (2013), Rio Cuiabá, autoria Luciano Ponzio .........................................................................................................22 CAPÍTULO 1 DISCURSO SOB O SIGNO DA MEMÓRIA ...................................................................... 23 1.1 Memória, Filosofia e Literatura ...................................................................................... 23 1.2 Memória, esquecimento, recordação .............................................................................. 26 1.3 Memória e História ......................................................................................................... 30 1.3.1 Memória na Antiguidade ......................................................................................... 31 1.3.2 Instituições-memória, documentos escritos e fotografia ......................................... 33 1.4 Memória e práticas sociais ............................................................................................. 35 1.5 Memória como signo ...................................................................................................... 39 1.6 Memória e Literatura ...................................................................................................... 41 1.7 Memórias: o gênero literário .......................................................................................... 43 1.7.1 Origem dos gêneros confessionais .......................................................................... 45 1.8 Memórias com valor biográfico ..................................................................................... 46 1.9 Memória compartilhada .................................................................................................. 47 1.10 Apontamentos memoriais ............................................................................................. 50 1.10.1 Questão de “gênero” e sua forma “relativamente estável” .................................... 50 1.10.2 O gênero “memórias” ............................................................................................ 53 1.10.3 Ampliando a noção de “memória” e “memórias” ................................................. 54 Prenúncio do Capítulo 2 Ilustração da Fábula Grega “Achiles e la tartaruga” (1995), autoria de Luciano Ponzio .................................................................................................... 57 CAPÍTULO 2 ENCONTRO: BAKHTIN E VIGOTSKI ............................................................................. 58 2.1 Elementos convergentes nas teorias de Bakhtin e Vigotski ........................................... 58 2.2 Bakhtin e a Arquitetônica da Responsabilidade ............................................................. 67 2.2.1 A estética da alteridade ............................................................................................ 71 2.2.2 Arte e ato responsável – Responsabilidade como unidade ...................................... 71 2.2.3 A relação indissociável entre responsabilidade, exotopia e inacabamento ............. 74 2.2.4 A relação autor e herói............................................................................................. 76 2.3 Vigotski e a mediação semiótica .................................................................................... 81 2.3.1 Construção de conhecimentos ................................................................................. 82 2.3.2 Arte e Educação Estética ......................................................................................... 92 Prenúncio do Capítulo 3“Ecriture-Peinture, Le arti Sorelle” (2007), de autoria de Luciano Ponzio ..................................................................................................................... 101 CAPITULO 3 O TEXTO EM POTENCIAL .............................................................................................. 102 3.1 Ponto de partida: primeiros apontamentos ................................................................... 103 3.2 Por uma Semiótica do Texto ........................................................................................ 104

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3.2.1 A Semiótica e a linguagem como prática social .................................................... 106 3.2.2 A linguagem como escritura .................................................................................. 108 3.2.3 Configuração de signo-texto em Peirce, Bakhtin, Barthes: pontos conexos ......... 114 3.2.4 Tradução como interpretação ................................................................................ 118 3.3 Textos primários e textos secundários na teoria bakhtiniana ....................................... 121 3.3.1 Os textos simples no contexto da vida .................................................................. 123 3.3.2 Textos complexos no “espaço estético” ................................................................ 124 3.3.3 A responsabilidade que cabe aos textos ................................................................ 125 3.3.4 O entrelaçamento entre “Arte” e “Vida” na teoria bakhtiniana............................. 127 3.3.5 O texto complexo como enunciação ...................................................................... 128 3.4 O texto moderno no discurso de Barthes ...................................................................... 130 3.4.1 Texto de fruição e Texto de prazer ........................................................................ 132 3.4.2 Texto como atópico ............................................................................................... 134 3.5 Leitura como interpretação, tradução e atravessamento ............................................... 136 3.5.1 A leitura e a escritura para além da convencionalidade ........................................ 139 3.6 Representação e Figuração/Rafiguração ...................................................................... 140 3.7 A escrita e a escritura: delineamentos .......................................................................... 142 3.7.1 A escrita e a escritura: sob a visão de Barthes em conexão com Bakhtin ............. 143 3.7.2 Leitura como escritura .......................................................................................... 147 3.8 Apontamentos textuais ................................................................................................. 148 Prenúncio do Capítulo 4“A descoberta da Literatura” (1994), de João Cabral de Melo Neto ........................................................................................................................................ 151 CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................ 152 MEMÓRIA DE PESQUISA E ENUNCIAÇÃO: EU E OS DADOS ............................... 152 4.1 O percurso inicial da pesquisa ...................................................................................... 153 4.2 Da abordagem sócio-histórica e qualitativa à definição dos objetivos ......................... 155 4.3 Metodologia de coleta de dados ................................................................................... 156 4.4 A seleção do corpus para análise dos dados ................................................................. 159 4.5 A Coleção da Olimpíada: situando o Caderno Se bem me lembro... ............................ 161 4.6 Os conceitos do Grupo de Genebra .............................................................................. 163 4.6.1 Modelo didático de gênero .................................................................................... 163 4.6.2 Sequência didática ................................................................................................. 167 4.6.3 – Gênero como “megainstrumento” ...................................................................... 170 4.7 Do nome do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) à releitura e didatização do gênero “memórias literárias” .................................................. 172 4.7.1 Da capa do Caderno Se bem me lembro... à Apresentação .................................... 178 4.7.2 O lugar onde vivo: alguns apontamentos .............................................................. 182 4.7.3 O gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro... ........................ 183 4.7.4 O nome do Caderno Se bem me lembro... ............................................................. 193 4.8 Corpus no Caderno Se bem me lembro...: as oficinas pedagógicas.............................. 194 4.8.1 A organização interna das oficinas selecionadas .................................................. 197 4.8.2 Os materiais e os gêneros auxiliares nas oficinas selecionadas............................. 220 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 225 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 245

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INTRODUÇÃO

Sou professora de Língua Portuguesa e Literatura, com diploma universitário em 1999, pois houve uma pequena greve, senão, teria recebido o diploma no segundo semestre de 1998. Estava cursando a academia, em 1996, quando foi publicada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB n. 9394/96), legislação que regulamenta o sistema educacional (público e privado) do Brasil (da educação básica ao ensino superior). Foi conteúdo de disciplina na academia, isso é importante falar, pois a linguagem era difícil para uma jovem estudante universitária, confesso. Na história do Brasil, essa era a segunda vez que a educação contava com uma LDB, que regulamentou todos os seus níveis. A primeira LDB foi promulgada em 1961 (LDB n. 4024/61). Eu nem tinha nascido. No ano seguinte, em 1997, o Ministério da Educação (doravante MEC) lançou os Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN) de 1ª a 4ª série, em um conjunto de dez livros, no dia 15 de outubro, Dia do Professor, em Brasília. Depois, em 1998, lançou os PCN de 5ª a 8ª série. Esses documentos não foram apresentados na academia, eram novidades e só os professores concursados recebiam os exemplares como subsídio para apoiá-los no projeto da escola e na elaboração do programa curricular, bem como, auxiliá-los em sua prática docente. Em 1999, houve concurso público para o cargo de professor, tanto para a rede estadual quanto municipal. Fui aprovada nos dois concursos. Em 2000, iniciei minha carreira oficialmente. Isso implica dizer que iniciei minhas atividades profissionais sem a leitura analítica dos documentos oficiais, dos PCN, porém preparada pela academia, o que me garantiu o acesso ao concurso público. Em 2010, as Orientações Curriculares para a Educação Básica (doravante OC) foram lançadas pela Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (doravante SEDUC). De lá para cá, houve mudanças na estrutura da educação, como o Ensino Fundamental de nove anos e a obrigatoriedade do ensino gratuito dos quatro aos 17 anos de idade como processo de desenvolvimento do ensino básico. Consequentemente, as Diretrizes Curriculares Nacionais ficaram defasadas. E neste ano, 2013, foram lançadas as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais que se voltam para a Educação e tentam amenizar as defasagens.

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Desses documentos oficiais, os PCN para o Ensino Fundamental, um dos documentos aqui analisados, não foram atualizados, mesmo diante de muitas pesquisas realizadas no âmbito das áreas, em especial, das linguagens. Esse fato retrata um pouco o afastamento existente entre as instituições e as academias. Recorro-me a essa base documental que fundamenta a prática educacional nas escolas para abordar a questão da teoria dos gêneros do discurso, do filósofo Bakhtin e seu Círculo. Na época da academia, não li as obras bakhtinianas, pois não era assunto ainda nas disciplinas do curso de Letras. No Brasil a teoria enunciativodiscursiva só chegou por volta de 1990, mesmo constituída na primeira metade do século XX. Nesse horizonte, os PCN de Língua Portuguesa já traziam em seus delineamentos orientativos a teoria dos gêneros, caracterizando-os como objeto de ensino. Nas últimas décadas, a teoria dos gêneros do discurso tem cada vez mais ganhado espaço de leitura e conhecimento nas academias, nas instituições educacionais e nas escolas. Eu mesma pude iniciar minhas leituras sobre essa teoria em 2008, com a responsabilidade técnica de organizar e desenvolver o Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (doravante OLPEF), representando a SEDUC. Esse programa, em essência, apresenta-se como proposta de formação continuada de professores, visando à melhoria do ensino da leitura e escrita nas escolas públicas brasileiras por meio de quatro gêneros didatizados: poema (5º e 6º ano do Ensino Fundamental, doravante EF), memórias literárias (7º e 8º ano do EF), crônicas (9º ano do EF e 1º ano do Ensino Médio, doravante EM) e artigo de opinião (2º e 3º ano do EM). O tema do Programa OLPEF para esses quatro gêneros é “O lugar onde vivo”. Para cada gênero, o Programa OLPEF elaborou os Cadernos Pedagógicos para o professor, os quais são compostos por atividades nominadas de “oficinas”, criadas a partir da releitura do conceito de “sequências didáticas” feita por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), da teoria da linguagem bakhtiniana e consoante com os documentos oficiais. Respondo pela coordenação do Programa OLPEF no estado de 2008 até a presente data, com a parceria colaborativa de colegas da SEDUC, da União dos Dirigentes Municipais de Educação de Mato Grosso (doravante UNDIME) e da Universidade Federal de Mato Grosso (doravante UFMT). Juntos, formamos o que o Programa OLPEF denomina de Rede de Ancoragem. De certa forma, essa ação

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contribuiu para uma aproximação entre a SEDUC e a academia, pela parceria com o Programa de Pós-Graduação (doravante PPG) em Estudos de Linguagem. Com a instituição do programa e a parceria, resolvi iniciar as leituras e reflexões na academia participando do Grupo de Pesquisa Relendo Bakhtin (doravante Rebak), na UFMT. Esse grupo é coordenado pela Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha e faz releitura das obras de Bakhtin, as quais têm foco na linguagem como interação social e na dimensão estética (BAKHTIN [1952-1953/1979], 2011). Por consequência, as leituras se ampliaram para o entendimento da metodologia das sequências didáticas, também citada nos PCN (1998). No desenvolvimento desta pesquisa, aprofundei minhas leituras, assim posso contribuir cada vez mais com minha compreensão responsiva sobre a teoria bakhtiniana e as teorias da Filosofia da Linguagem e da Literatura na formação continuada de professores e formadores dos Centros de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica (doravante CEFAPRO), por meio da SEDUC e do Programa OLPEF. Da instituição do Programa OLPEF no estado de Mato Grosso até este ano, já foram defendidas no PPG em Estudos de Linguagem - UFMT, duas dissertações com foco em dois dos quatro gêneros escolarizados: artigo de opinião e poema. Desses cadernos pedagógicos, interessei-me em pesquisar o Caderno Se bem me lembro... que traz uma sequência didática para o ensino do gênero “memórias literárias”. Este gênero me chamou atenção assim que o Programa OLPEF foi instituído, por dois motivos: o primeiro, pelo meu envolvimento com o gênero “memórias” e pela “Literatura” (associação provocada pelo nome divulgado), devido a minha constituição como pessoa e profissional, em especial, como leitoraescritora na esfera familiar, escolar e acadêmica; o segundo, devido a minha atuação profissional como responsável pelo desenvolvimento do Programa OLPEF, que devo compreender a teoria que estou a disseminar, a mediar junto aos colegas formadores no estado. Em relação ao nome do gênero “memórias literárias”, e por ser formada em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa e Literatura, até aquele momento, 2008, não tinha conhecimento e nem lido nada sobre esse gênero, por vezes cheguei a associá-lo ao gênero “memórias” situado na esfera literária, mas não como nome composto “memórias literárias”. Acredito que esta proposta tem sua relevância na área educacional quando se propõe a descrever e a didatizar o gênero “Memórias Literárias”, para uma melhor

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compreensão e dialogicidade com os demais gêneros produzidos e utilizados nas práticas sociais. Além disso, tem especial pertinência também em função da formação teórica dos formadores dos CEFAPROS e professores em sala de aula, pois acredito que o formador/professor quando se apropria do conhecimento teórico consegue realizar seu fazer pedagógico com consciência e inovação. Isso colabora, sobretudo, para o ensino público de qualidade social que todos almejamos. Pensando nisso e para obter êxito nesta empreitada, respondi as seguintes questões de pesquisa: 1. Qual é a origem e como se constitui o gênero “Memórias Literárias”? 2. Como o caderno da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) Se bem me lembro... relê e didatiza esse gênero?

Esta pesquisa, orientada pelas respostas às questões acima, constrói um percurso representado e materializado em quatro capítulos. O primeiro, intitulado: Discurso sob o signo memória, busca responder a primeira questão de minha pesquisa, que trata da história social do gênero “memórias literárias” cunhado pelo Programa OLPEF. Antes, porém, apresento um discurso de memória pelo viés da Filosofia, Literatura e História, já que o gênero em foco se situa na esfera literária e tem valor de “humanidade social”, como diz Bakhtin, na sua obra “Estética da criação verbal” (2011, p. 147). Esse discurso, além de ser referência teórica, contribui para a ampliação da compreensão sobre “memória” como fenômeno psicológico, individual e social, além de possibilitar as reflexões sobre os gêneros “memórias” situados na Esfera da Arte e na Esfera da Vida com múltiplas textualidades. No segundo capítulo, Encontro: Bakhtin e Vigotski, centro-me nos pontos convergentes entre as teorias do filósofo Bakhtin e seu Círculo e o do psicólogo Vigotski, ambos russos contemporâneos, pensadores que, em meio à efervescência política da União Soviética da primeira metade do século XX, formaram grupos de pesquisadores e delinearam suas teorias no âmbito da linguagem e da cultura. A discussão sobre signo ideológico, produção de sentidos por meio dos processos psicológicos e a dimensão estética e social da interação contribui para a ampliação da visão do professor sobre a sua própria prática, tornando-a reflexiva e dialógica. Esse agir corresponde ao “bom ensino” e possibilita uma “boa aprendizagem”,

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processo que valoriza os sentimentos e as emoções do ser humano e se interage com elas em prol de tal desenvolvimento, do outro e de si, para além do ensino de conteúdos. Ter conhecimento da teoria e conscientemente articulá-la à prática é essencial, principalmente, nas ações formativas. No terceiro capítulo, O texto em potencial, apresento o conceito de “texto como enunciado”, conforme os preceitos bakhtinianos e, para isso, considero os estudos da Semiótica do Texto como fundamento dialógico para essa definição. A noção de Semiótica parte dos princípios teóricos de Peirce (1839-1914), com foco na Teoria dos Signos, especialmente com referência ao ícone, uma das três partes do signo. Essa parte da iconicidade dá abertura para a leitura criativa, enunciativa, interpretativa dos signos não-verbais ou da linguagem não-verbal. Esses conceitos colaboram para a leitura do material didático, composto por signos verbais e nãoverbais, ampliando, assim, a visão analítica e crítica sobre as atividades descritas. Creio também que seja plausível o entendimento dos diversos gêneros do discurso, de texto, em sentido amplo, no momento de se decidir, analisar e planejar o ensino de um determinado gênero no âmbito educacional, incorporando outros gêneros na sistematização didática. Esse processo demonstra a riqueza da linguagem humana e a diversidade de processos mentais realizados nas atividades de leitura e escrita ou escritura de textos. No quarto e último capítulo, Memória da pesquisa e Enunciação: eu e os dados, respondo, em essência, a segunda questão desta pesquisa quando apresento a descrição e análise do corpus selecionado, o Caderno Se bem me lembro..., decomposto em oficinas e atividades. Utilizo-me dos conceitos e critérios provenientes dos três capítulos anteriores para identificar e analisar o modelo didático planejado para o ensino do gênero escolarizado nominado como “memórias literárias”. Antes da descrição e análise, apresento a memória desta pesquisa, relatando como ela se constituiu, a metodologia empregada que é de abordagem sócio-histórica e qualitativa e, por último, os critérios de seleção do corpus e definição das categorias de análise. Com a preocupação em não perder conceitos e formulações construídas se não forem aplicadas ao corpus, e ciente do curto prazo de realização desta pesquisa, tendo em vista o desempenho de outras funções sociais, como mediadora de

cursos online para formação

de professores de Língua

Portuguesa,

concomitantemente à realização desta escrita, pouco mais de um ano e meio,

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detenho-me nas seguintes categorias: responsabilidade, exotopia e inacabamento (bakhtinianas); aprendizagem colaborativa e educação estética (vigotskiana), para delinear meu ponto de vista sobre o objeto de pesquisa e as respostas encontradas com base nas teorias de Bakhtin e do Círculo, de Vigostki, dos filósofos e pesquisadores com os quais eu dialoguei. Ter-me restrito a essas categorias não implica que sejam as únicas leituras possíveis, porém foram as que me ative para responder as questões desta pesquisa. Em virtude dos estudantes do 7º e 8º ano do EF terem como desafio a escritura em primeira pessoa do singular - eu, no momento da produção textual no gênero “memórias literárias”, pelo Programa OLPEF, destituo-me neste ato da escrita acadêmica, em primeira pessoa do plural - nós, e adoto este mesmo desafio: o de escrever em primeira pessoa do singular (eu). Em alguns momentos, lanço mão de uma primeira pessoa do plural, pensando em contar com a cumplicidade dialógica do leitor de forma sincera, crítica e colaborativa durante o percurso de leitura que fará desta pesquisa. Proposta apresentada, resultado vindouro.

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Prenúncio do Capítulo 1

Figura 1: O pôr-do-sol no Pantanal, Rio Cuiabá, Barão de Melgaço - MT, em 21 de abril de 2013, fotografia de Luciano Ponzio Fonte: fotos próprias

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CAPÍTULO 1 DISCURSO SOB O SIGNO DA MEMÓRIA

Ninguém entra no mesmo rio, uma segunda vez, pois quando isso acontece, já não se é o mesmo, assim como as águas, que já serão outras. Heráclito

São muitos os estudos sobre memórias, especificamente nos últimos anos e em diversas áreas. No Brasil, as pesquisas se intensificaram após a defesa da tese Memórias e sociedade: lembranças de velhos, de autoria da Profa. Dra. Ecléa Bosi, em 1978. Pesquisa em que a autora entrevista antigos moradores de São Paulo e, desses relatos, compõe a história de vida pessoal e da cidade, um retrato composto por linguagens, histórias, memória, recordação. Esse livro faz parte de minha formação acadêmica, estudante de Letras, pois tive que dissertar sobre ele em uma das atividades avaliativas, uma pequena monografia, por assim dizer. E aqui, novamente, por meio desta pesquisa, encontro-me graciosamente com o assunto central que nos une, também em nível acadêmico. Tendo por base essa leitura e o objeto desta pesquisa, parto de alguns pontos de vista, como os da: Filosofia, Literatura, História, Filosofia da Linguagem e Semiótica, afinal, não posso abarcar todos os assuntos referentes à memória. Assim, elaboro um discurso sob o signo memória, uma das funções psicológicas superiores (VYGOTSKY, 1988), importante para o ser humano e também para compreender o meu objeto de pesquisa. Inicio meu discurso a partir da metáfora de “memória como rio” para refletir sobre a memória como um tecido fluente contínuo, que constitui o ser humano, que conserva, transforma e renova-se permanentemente.

1.1 Memória, Filosofia e Literatura

Parto do pensamento de Heráclito (535 a.C – 475 a.C), “pai da dialética”, considerado por estudiosos o mais importante filósofo pré-socrático por formular com veemência o problema da unidade permanente do ser diante da pluralidade e

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mutabilidade das coisas transitórias. Seus escritos conjugavam ciência, relações humanas e teologia. Desses escritos, escreveu a obra, por volta de 490 a.C., nominada tempos depois, “Da Natureza” (ou “Sobre a Natureza”, há diferentes traduções sobre o título de sua obra), composta por mais de 100 fragmentos. Seus aforismos, como são chamados os fragmentos, são considerados de difícil interpretação (SCHÜLER, 2000, p. 29), porém, a meu ver, são textos secundários, estão abertos a inúmeras interpretações, ligadas à visão do leitor. Heráclito especulando “sobre a natureza” visa ao que nela é essencial e permanente. Afirmava que todas as coisas estão em movimento como um fluxo perpétuo e que se processa por meio de contrários (exemplo: as coisas quentes esfriam; as coisas frias esquentam; as coisas úmidas secam). Por isso, Heráclito identifica a forma do ser no devir pelo qual todas as coisas são sujeitas ao tempo e à sua relativa transformação. Como o “pensador da mudança”, “o tudo flui, nada é permanente”, o filósofo de Éfeso crê na existência de algo primordial e unitário que persiste e explica as mudanças contínuas manifestadas pelas coisas da experiência. Por conta disso, utilizo-me do ponto de vista de Heráclito para introduzir este discurso sobre memória, sobre vida e sobre as relações do ser, consigo mesmo e com o outro, que por si são dinâmicas, transformam-se, bem como as suas experiências. Guimarães Rosa, em seu romance Grande Sertão Veredas, afirma: “O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não são sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou” (ROSA, 2010, p. 18). Recorro-me, inicialmente, ao discurso filosófico e literário para situar o signo da memória, que, segundo Heidegger (2006, p. 118), ela é “o pensar concentrado da lembrança do que cabe pensar, é a fonte da poesia”. Memória como função superior que dá acesso à linguagem; a própria relação entre homens e consigo mesmo; como traços herdados e produzidos socialmente; como história que se impõe e, sobretudo, fonte de misteriosas possibilidades do ser no devir, do se tornar. A percepção, outra função mental superior, faculdade do ser, capta os signos da vida, da realidade e os transforma em imagens, conceitos, experiências. Aproveito-me também do pensamento de Bosi (1977), quando diz que:

A experiência da imagem, anterior à palavra, vem enraizada no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem a partir do

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olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a supri o contacto (sic) direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência [...] A Imagem pode ser retida e depois suscitada pela reminiscência ou pelo sonho. Com a retentiva começa a correr aquele processo de coexistência de tempos que marca a ação da memória: o agora refaz o passado e convive com ele (BOSI, 1977, p. 13).

Ao “ato de ver”, incluo o ato de sentir, de ouvir, de tocar, de cheirar, ações que envolvem todos os sentidos do ser humano e que, portanto, captam a “imagem” dos objetos, das pessoas no mundo e em um tempo presente. Segundo Augusto Ponzio (1990), a percepção, os sentimentos, as emoções e as recordações pertencem ao processo de interpretação. Dessa forma, para ele, “a memória aparece, portanto, não como um processo de recuperação de uma construção precedente, mas como uma nova construção, que é, primeiro de tudo, construção de outras relações, tanto externas, quanto internas.” (ibidem, p. 51 [tradução própria]) É o discurso da enunciação na teoria bakhtiniana, os sentidos que se produzem na interação, internamente no próprio “eu” ou com o outro, os processos de compreensão e de interpretação daquilo com que se relaciona em um tempo e espaço determinado, situado. Assim, creio que o registro que traço, passando pelo pensamento filosófico, literário, histórico, em uma orientação para se pensar as relações sociais do sujeito e o espaço social como elemento também constitutivo desse ser, possa dar conta da base pensada na elaboração do referido programa institucional, que trabalha com o tema: “o lugar onde vivo”. Segundo as autoras do Caderno Se bem me lembro..., no artigo “O gênero memórias literárias e escola” publicado no site da Olimpíada, trabalhar com esse gênero “memórias literárias” possibilita o resgate das “memórias vivas das pessoas mais velhas que, passadas continuamente às gerações mais novas pelas palavras, pelos gestos, pelo sentimento de comunidade de destino, ligam os moradores de um lugar”. Esse elo entre gerações diferentes, entre cronotopos (termo bakhtiniano para se pensar o diálogo entre diferentes tempos e espaços, inicialmente entre Literatura e História), entre passado individual e coletivo, amplia-se pelos eventos que chamo de encontros com as histórias pessoais, as memórias que marcam cada ser humano e o lugar onde habita, o “espaço feliz” ou “espaço vivido”, como disse Gaston

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Bachelard (1884-1962) no seu livro “A poética do espaço” (BACHELARD, 2008, p.19). Ainda segundo este autor, não somente nossas lembranças, mas também nossos esquecimentos estão “alojados”, nosso inconsciente está “alojado”, nossa alma está “alojada”. Assim, lembrando-se do lugar onde habitou, o ser humano pode aprender a “morar” em si mesmo (ibidem, p. 20). Em suma, a evolução da humanidade é contemplada por essas vivências e experiências humanas. Isso se torna fonte para produções diversas. Creio ser interessante diferenciar os conceitos de memória, esquecimento e recordação, para compreender mais adiante o processo de produção textual.

1.2 Memória, esquecimento, recordação

Para falar sobre memória, esquecimento e recordação, recorro-me ao artigo de Augusto Ponzio (2009b), intitulado Fuori dalla memoria e dall’oblio: il ricordare1, que resenhei, pois penso serem importantes essas explanações em vista do objeto desta pesquisa: o gênero “memórias literárias”. Além disso, posso diferenciar os conceitos de memória e de recordação. Essas ações provêm do sujeito como algo que é trabalho da consciência como produto/hábito – no caso da memória - ou da inconsciência como produto evocado – no caso da recordação. Dessa forma, vejo-as como categorias essenciais a serem compreendidas para colaborar no ato do professor ensinar. Segundo Augusto Ponzio (2009b), a memória é indissoluvelmente ligada ao esquecimento. Trabalham juntas no sentido de tempo “presentificado”, um tempo que está na enunciação, pois

O tempo da memória é o tempo da presença, um tempo situado na sincronia da consciência, o tempo da sua contemporaneidade totalizante. [...] O tempo de recordar, ao invés, é o tempo que fora da presença, do poder do sujeito, é o tempo que se constitui na esperança da ausência do outro, da sua ausência já em presença, que à sua materialidade, irredutibilidade, alteridade. [...] É o tempo que vem do outro (PONZIO, A., 2009b, p. 145, [tradução minha]). Texto apresentado no Seminário chamado “Memoria e Oblio: Le Scritture del Tempo” [Memória e Esquecimento: A Escritura do Tempo, tradução própria], realizado entre os dias 24 e 26 de outubro de 2007, na cidade de Lecce – Itália. 1

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O recordar acontece na relação com o corpo, interno ao corpo, nesse sentido pode-se retomar dois conceitos, o de memória involuntária (BERGSON, 1990) e o movimento de deriva (BARTHES, 2010), de transcendência que afirma o caráter de “metafísico” do homem. Outra diferenciação que penso ser expressiva neste trabalho feita por Ponzio (2009b) sobre memória e recordação, sendo a primeira da ordem da significação como produtividade nos tempos contemporâneos e a segunda, da ordem da significância como excedência infuncional, sem o caráter de “uso”, de servir para alguma coisa. Nesse sentido, o “recordar” como excedência a respeito da utilidade da “memória” e como resistência à funcionalidade do esquecimento é uma prerrogativa exclusivamente humana, afirma Ponzio (2009b, p.147). A memória é ligada à identidade e a recordação à alteridade. Assim, em termos de escrita de textos primários, nas esferas do cotidiano, a “memória” faz parte da ordem do discurso, conforme abordou Foucault (1996), e também da ontologia, da história e da totalidade da vida. É um elemento constitutivo do sujeito, que define a identidade individual e coletiva (comunitária), portanto, é da ordem da funcionalidade do objeto. A “memória” como conservação (capacidade técnica de memorizar) permite a constituição do objeto, divulga a experiência em uma estrutura narrativa e identificada em variados gêneros, como, por exemplo, quando se processa o registro dos resultados de uma pesquisa, como faço ao escrever esta dissertação. Memória que se vale da escrita como transcrição e mnemotécnica (PONZIO, A., 2009b, p. 147). Já a “recordação” é um movimento involuntário, que acontece a qualquer momento, mesmo na escrita de textos primários, de diálogos diversos. Porém é atribuída também à escritura de textos secundários, nas esferas da arte (em termos bakhtinianos), como exposição da alteridade, que excede e é refratário à categoria de identidade, assunto que reporta ao papel do autor, de quem faz escritura na posição de alteridade, da posição de “outro”. Falarei desse assunto sobre o autorcriador no próximo capítulo, quando abordo a questão da arquitetônica do autor. A “memória” está na base da comunidade identitária, da coletividade: como raça, história, região, nação, civilidade, religião, classe, partido, sexo etc. e também individualidade atravessada pelas dimensões sociais e culturais. A memória reflete a imagem social de um povo.

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Reporto-me também a Aristóteles2 (Séc. IV a.C) que refletia sobre o tempo. A memória, para ele, era uma fruição da imagem. A fruição definida por ele é ampliada pela reflexão e leva ao acontecimento do passado como tal, o que Aristóteles chamou de recordação. O ato de recordar é uma capacidade imanente e unicamente do ser humano (PONZIO, A., 2007b). A palavra recordação é derivada de “recordar”, que etimologicamente foi formada por “re” + “cordis”, significando, denotativamente, “trazer de novo ao coração”3. Portanto, algo que não é controlado pela consciência, pelo sujeito. Dessa forma, pode-se associar a ideia como se as imagens (com o toque do coração, da afetividade, do sentimento) trouxessem de novo algo que, devido à ação do tempo, tenha ficado esquecido na memória, em algum lugar. Assim, como a memória e a recordação, o esquecimento é um processo mental também importante ao ser humano. Segundo Oliveira (2013), em seu texto “Os esquecimentos das palavras”, o esquecimento possui duas instâncias, a partir dos conceitos de lembrança e de recordação apresentados por Augusto Ponzio, respectivamente, que são:

[...] uma que se liga ao sujeito, à identidade, que é a vontade de apagamento, de cancelar as memórias conforme a necessidade prática. A outra é aquela ligada a alteridade, ao “estar sujeito”, é o esquecimento que se dá contra a vontade, aquele que resiste, como quando uma palavra não aparece quando se faz necessária (OLIVEIRA, 2013, p. 2).

Da mesma forma, como a memória está para o “eu” identitário, o esquecimento, como se delineou primeiramente na citação de Oliveira (2013), está relacionado a essa capacidade de memorizar, conforme sua vontade de não lembrar. Um exemplo prático desse movimento pode ser percebido na situação que vive um estudante ao realizar uma prova, para realizá-la o estudante estuda os conteúdos, optando por cancelar encontros agendados, focando-se no que deseja: aprovação do exame.

Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) filósofo grego que define, entre tantos conceitos, a essência (algo sem o qual aquilo não pode ser o que é) e os acidentes (algo que pode ser inerente ou não ao ser, mas que, mesmo assim, não descaracteriza-se o ser por sua falta) em alguma coisa. 3 Explicação dada pela Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, Ana Lima, em seu artigo “Recordar para Contar”, publicado na Revista Na Ponta do Lápis (ano V – n. 11, 2009) 2

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De certa forma, temos algum controle sobre o que desejamos lembrar ou esquecer, porém, nem sempre. Com relação ao esquecimento, Oliveira (ibidem) fala que os mistérios são ainda mais obscuros e atesta sua afirmação citando Nietzsche (FOSTER, 2011, p. 70, apud, OLIVEIRA, 2013, p. 2): “a existência do esquecimento nunca foi provada; apenas sabemos que alguma coisa não vem à mente quando queremos”. E conclui, de forma cautelosa, que “não estudamos o esquecimento senão pela memória”, e de que é interessante “refletir sobre como o esquecimento sempre implica em uma memória de algo relacionado ao esquecido”, e de que se pode conferir uma utilidade ao esquecimento. Sobre isso, Oliveira (2013) cita a explicação dada por Nietzsche: [...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento (NIETZSCHE, 2002, p. 47, apud, OLIVEIRA, 2013, p. 3).

Outra possibilidade de se falar do esquecimento, lembra Oliveira (2013), é entendê-lo como lembrança incompleta da mesma forma que se pode compreender o esquecimento incompleto como lembrança. Para justificar seu ponto de vista quanto à relação entre lembrança e esquecimento, Oliveira cita Freud e sua pesquisa com os “nomes substitutos”: aqueles que aparecem no lugar de um nome desejado inicialmente. Por uma espécie de compromisso, eles (os nomes substitutos) me lembram tanto aquilo que eu queria esquecer quanto o que eu queria recordar e indicam que a minha intenção de esquecer algo não foi nem um êxito completo nem um fracasso total (FREUD, 1901, p.22, apud, OLIVEIRA, 2013, p. 4).

Para Bakhtin (2002), a memória é questão de relação, de posicionamento efetivado pelo “eu” e pelo “outro” em uma relação dialógica como alternância de sujeitos, de consciências e de qualidades, ora como acabamento (textos primários), ora como inacabamento (textos secundários). Assim, o pensador russo distinguiu a memória em duas posições, uma de passado e outra de futuro. Essas posições da memória retomam a imagem do deus romano Jano Bifronte, aquele que marcava as mudanças dos sujeitos na vida e na Antiguidade.

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Uma efetiva vivência interior minha — na qual tomo parte ativa — não pode ser tranqüila, deter-se, terminar-se, findar-se, acabar-se, não pode escapar à minha atividade, cristalizar-se de repente numa existência autônoma, concluída, com a qual minha atividade nada mais teria a ver, pois o que vivo é vinculado às coerções do prédado, e, de dentro, nunca pode deixar de ser vivido, ou seja, não posso livrar-me da minha responsabilidade para com o objeto e o sentido. Não posso deixar de ser ativo no objeto, pois isso seria subtrair-me ao que constitui meu próprio sentido, seria transformarme numa máscara da minha própria existência, seria pregar-me a mentira de mim mesmo. Posso esquecer o objeto e então ele deixa de existir para mim, mas, se o guardo na memória (em seu valor), será no nível do que lhe é pré-dado e não do que o faz já-aqui. Para mim, a memória é memória do futuro, para o outro, memória do passado (BAKHTIN, 1997, p.81)4.

1.3 Memória e História

Falo de memória, agora do ponto de vista histórico, encantadoramente sugerido pelo meu colega Diego Pinto de Sousa, a quem agradeço a sugestão colaborativa para com minha pesquisa e o interesse desinteressado (conceito bakhtiniano). À memória, enquanto fenômeno individual e psicológico, é atribuída diferentes pontos de vista conforme a área de conhecimento (Antropologia, Filologia, Psicologia, Psiquiatria, Geografia, Biologia, Neurofisiologia etc.), que se alimentam em uma sociedade e se desenvolvem. Dessa forma, podemos dizer que a memória está ligada à vida social. Assim, podemos considerar a memória como componente essencial de/da vida, das particularidades do sujeito à totalidade societária, da individualidade à coletividade, da memória individual à memória coletiva. A memória se apropria essencialmente do tempo e tem a propriedade de conservar informações, registrar fatos que falam do passado e em vários suportes (pedra, tronco, papel, digital etc.). Recorrer à temática da memória, influente nos cursos e discursos da vida humana, vistos no percurso da história da Humanidade, tão bem descritos por 4

Nesta pesquisa, vou optar por duas edições do livro Estética da criação verbal, de 1997, traduzida por Maria Ermantina Galvão G. Pereira, e a outra de 2011, tradução de Paulo Bezerra. Ambas publicadas pela Martins Fontes. Isso por considerar que alguns palavras como vivência (1997), ao invés de vivenciamento (2011) contempla melhor as ideias que neste trabalho pretendo dissertar.

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Jacques Le Goff (2003), em sua obra "História e Memória", é promover um encontro com o passado, um encontro de gerações em um tempo e espaço presente, ressignificando a vivência e configurando os caminhos a serem projetados no futuro. Essa perspectiva ressalta a valorização das pessoas que viveram nas remotas épocas e que vivem na contemporaneidade, valorização das sociedades que não tinham a escrita em que os registros se faziam pela "memória oral". Com o advento da escrita foi expandida a memória oral para “memória escrita". Ambas as memórias, oral e escrita, convivem nas diversas sociedades. No século XX, após 1950, tivemos uma expansão em relação aos estudos sobre a memória, especialmente nas áreas de Filosofia, Linguística e Literatura, em que esse tema se tornou questão central nas análises discursivas empregadas nos diversos textos.

1.3.1 Memória na Antiguidade Ao se falar de memória, podemos considerá-la também sob dois prismas: uma individual e outra coletiva, que conservam traços de sujeitos únicos que têm um ponto

em

comum

que

é

a

conservação

da

cultura,

passando-se

pelo

desenvolvimento econômico, histórico e social. Foi com os gregos que se percebeu a evolução de uma memória oral para uma memória escrita. Segundo Le Goff (2003), nas sociedades em que a escrita se desenvolveu pela Filosofia e por outras áreas, a memória escrita acrescenta-se à memória

oral

sem

desconstruí-la,

transformando-a,

incorporando

novas

propriedades. Isso é interessante pelo sentido de conservação e expansão das várias formas de memória. Na Grécia arcaica tem-se a divinização da memória, inserida pela mitologia, em que a memória é representada por uma deusa chamada Mnemosine, mãe de nove musas, procriadas no decurso de nove noites vividas com Zeus. Segundo Le Goff (ibidem), Mnemosine é a deusa da inspiração, da imaginação e criatividade, por isso, preside a poesia lírica. Assim, quando ela revela ao poeta os segredos do passado, o introduz nos mistérios do além. Nessa perspectiva, a memória se torna um dom para o poeta e a poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sabedoria, uma sophia. A memória, para os gregos, é o antídoto do esquecimento e fonte de imortalidade, enquanto que a anamnesis, a reminiscência, é tida como uma técnica ascética e mística (LE

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GOFF, 2003, p.433). Talvez por isso, naquele contexto, para Homero: “versejar era lembrar” (ibidem, p. 434). A palavra poética, na origem grega, refere-se a uma inscrição viva que se grava na memória como no mármore, algo que nos reporta ao conceito bakhtiniano de "tempo grande", em que o que se fala reporta-se à vida, alimenta-se e expõe-se pela oralidade ou escrita e sobrepõe a existência do autor-homem (autor-escritor), em um tempo que ultrapassa gerações. Movimento da temporalidade na escritura literária percebida no tempo contemporâneo. Mesmo que Aristóteles (1991), com sua doutrina a partir de lugares e imagens, negasse a memória como elemento propulsor da inteligibilidade, dois grandes escolásticos da Idade Média, Alberto Magno (O Grande) e Tomás de Aquino, reconhecem o seu tratado De memória et reminiscentia como uma arte da memória comparada ao trabalho de Cícero, Rhetorica ad Herennium. Esses renomados escolásticos, no século XIII, retomam e atribuem um lugar importante à memória. Alberto Magno foi considerado o precursor da "melancolia", na época do Renascimento, pois considerava que esse era o estado de alma mais favorável a uma boa melancolia. Esse sentimento também nos remete ao Romantismo, séculos mais tarde, que de certa forma tinha a influência de seu precursor. Além disso, Alberto Magno insistia na importância da aprendizagem pela memória e nas técnicas mnemônicas, que foram inventadas pelo poeta Simônides de Céos (cerca de 556-468 a.C). Talvez, essa inclinação do uso mnemotécnico na aprendizagem perdure ainda com muita intensidade em muitas escolas brasileiras. Já Tomás de Aquino apresentava em seus postulados duas memórias: a "natural" como fenomenal e a "artificial", que era exercida no ensino de Alberto Magno, em Colônia. As teorias da memória, como se vê no período da Idade Média, desenvolvem-se na Retórica e na Teologia seguindo a linha do cristianismo do "homem interior" com intenção na imagem da memória (recorrente à imaginação), um auxiliar indispensável da prudência - sabedoria (LE GOFF, 2003, p. 449). Assim, a partir da doutrina clássica dos lugares e imagens foram formuladas regras mnemônicas que influenciaram os estudiosos e teóricos da memória, como: teólogos, pedagogos, artistas, sobretudo os teóricos do século XIV ao XVII.

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1.3.2 Instituições-memória, documentos escritos e fotografia A ordem dos sentimentos invadiu o século XIX, percebida principalmente pelo idealismo do Romantismo na Literatura, em substituição à ordem do saber como aconteceu no século XVIII, o que resultou em uma explosão do espírito de comemoração e é o que se vê nas escolas até nossos dias, por meio de um calendário comemorativo de datas. As comemorações foram criadas na França, conforme a Constituição de 1791, na qual, em seu Título 1, determina a criação da memória nacional para festejar os feitos do Estado. Uma tradição que as diversas esferas praticam no seu ano oficial. O ato de festejar, seja como ato institucional, da esfera educacional ou de outras, é um ato responsável e ideológico que está a serviço da memória. A história da Humanidade está repleta de registros realizados a partir da memória e que tinham a intencionalidade de perdurar pelos tempos. Uma das contribuições dos reis na Antiguidade é a criação de instituições-memória que continuam a existir na atualidade e cada vez mais modernas, são elas: arquivos, bibliotecas e museus. Cito aqui alguns exemplos dessas modernas instituiçõesmemória: o Arquivo Nacional, com sede no Rio de Janeiro; a Fundação Biblioteca Nacional, também com sede no Rio de Janeiro; o Museu da Língua Portuguesa e o Museu da Pessoa, museus com sede em São Paulo. Segundo Le Goff (2003), a criação de instituições-memória se deu a partir do Rei Zimrilim (por volta de 1782-1759 a.C.) que fez de seu palácio um centro arquivístico, no qual foram encontradas numerosas tabuletas. Naquela época, e principalmente na helenística, destacavam-se grandes bibliotecas como a de Pergamo e a célebre Biblioteca de Alexandria combinada com o museu, por sua vez, também muito famoso, criação dos Prolomeu (LE GOFF, 2003, p. 430). Os túmulos eram verdadeiros monumentos fúnebres construídos para a preservação dos feitos dos reis, bem como, por vezes, os monarcas gravavam na pedra anais (ou em extratos delas), em forma de narrativa. Tais documentos, esculturas, túmulos constituídos acabados nos mostram a fronteira em que a memória se torna “história” (ibidem). Com a invenção da escrita, essas inscrições assumidas pela memória desenvolvem-se e consequentemente amplia-se a conservação de uma memória coletiva, verificada de duas formas, como: comemoração e documento escrito.

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A primeira forma com função de comemoração ou celebração se apresenta por meio de um monumento, de um evento memorável, como já citamos acima no caso dos reis – época áurea das inscrições, especialmente as da Grécia e de Roma. Essa atribuição acabou gerando na época moderna uma ciência auxiliar da História, a Epigrafia, sendo os países gregos e romanos tipicamente uma civilização da epigrafia, devido aos seus templos, cemitérios, praças, avenidas das cidades e ao longo das estradas. Além dessas, também as inscrições em pedra e mármore serviram a uma sobrecarga de memória. Le Goof (2003) registrou que: “os ‘arquivos de pedra’ acrescentavam à função de arquivos propriamente ditos um caráter de publicidade insistente, apostando na ostentação e na durabilidade dessa memória lapidar e marmórea” (ibidem, p. 427428). A segunda forma de memória ligada à escrita é o documento escrito, basicamente com a evolução e desenvolvimento da sociedade, pode-se dizer que somos uma sociedade da escrita na contemporaneidade. Os sujeitos históricos e sociais se comunicam por gêneros discursivos nas diferentes esferas sociais e nas sociedades mais antigas, as formas de comunicação se concretizavam em intentos de registro sobre: osso, estofo, pelo, na Rússia antiga; folhas de palmeira, na Índia; carapaça de tartaruga, na China; e finalmente papiro, pergaminho e papel, na Antiguidade Clássica. O que vale ressaltar na Antiguidade é que todo o documento tinha em si um caráter de monumento e que não existia nele uma memória coletiva bruta. E a escrita passava a ter duas funções principais: o armazenamento de informações, que permite a comunicação através do tempo e do espaço fornecendo ao homem um processo de marcação, memorização e registro; e “ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual”, permite “reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas” (GOODY, 1977, apud: LE GOFF, 2003, p. 429). Já no século XX, aproveitando-me dos estudos de Le Goff (2003), cito duas manifestações acontecidas após a 1ª Guerra Mundial que foram importantes para a conservação dos acontecimentos e como memória da História. A primeira é a criação de monumentos aos mortos como um novo desenvolvimento para se ultrapassar os limites da memória; e a segunda, a fotografia, uma revolução no campo da imagem, pois se multiplica, democratiza-se uma verdade visual, antes tão restrita.

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O uso da fotografia, assim como os de souvenir, do francês “lembranças” (objeto que resgata memórias relacionadas aos lugares turísticos), foi disseminado sem limites como base memorialista e com o advento das tecnologias e redes sociais se concretiza em acervos virtuais que as pessoas montam atualmente, devido

às

novas

possibilidades

trazidas

pela

digitalização.

Outro

objeto

revolucionário para a memória e a conservação dos acontecimentos.

Figura 2: Souvenir de diversos lugares: Bélgica, Barcelona e Granada (Espanha), Bari, Roma e Milão (Itália), Paris (França), São Petersburgo (Rússia) e Fortaleza (Brasil). Fonte: fotos próprias – lembranças de viagens.

A fotografia é, além de base memorialista, o recorte de um instante eternizado na foto que tem o poder de reviver o passado no presente, também compreendida como base da identidade, critério básico para a identificação em todas as esferas da sociedade, escolas, empresas, instituições etc. Isso equivale a dizer que toda pessoa deve ter sido fotografada pelo menos uma vez, só assim ela terá o registro geral como cidadão (RG) e fará oficialmente parte de uma sociedade, para falar das sociedades civis e urbanas.

1.4 Memória e práticas sociais

Não é de hoje que a memória como processo cognitivo influencia e colabora nas ações dos seres humanos. A nossa constituição perpassa pela memória dos

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outros, que são nossos constituidores, que de certa forma, colaboram nas identificações que desempenhamos em sociedade, como: filha, mãe, pai, tio, professora, advogado etc. A memória, enquanto processo, funciona por associação e suas etapas podem ser condensadas em: prestar atenção, compreender, armazenar e recuperar. Todo esse processo é inconsciente na maioria dos atos, pois não temos controle sobre ele, mesmo quando falamos do método escolástico (que vigorou até pouco tempo ou ainda é muito utilizado nas escolas): o da memorização. Podemos recuperar fatos da vida vivida, das experiências boas ou ruins pelas quais passamos no momento atual, no aqui e no agora, de forma renovada, ressignificada com afetividade e responsabilidade. Por isso que, em nosso cotidiano, quando acionamos a memória, estamos sempre fazendo uma relação entre o que está acontecendo agora e o que já aconteceu. Ou seja, a memória do que já aconteceu está presente no que está acontecendo e sempre com um sabor diferente, nada é como antes, tudo se transformou e o sujeito-recordante também. A memória funciona em um paradigma de oposições, num jogo do aqui-lá; agoraontem; presente-passado. A recordação é acionada além da visão pelos outros sentidos humanos, pois o corpo, o nosso sistema corpóreo, é uma cadeia complexa de memória, carregada de informações genéticas transmitidas por meio dos genes que são as unidades hereditárias de informações que ocupam lugares fixos nos cromossomos integrantes do núcleo da célula (GRANDE ENCICLOPÉDIA BARSA, 2005, p. 489). Essa memória de hereditariedade, como “conjunto de processos biológicos por meio do qual determinadas características são transmitidas geneticamente por uma geração às seguintes” (ibidem, p. 548), dá forma ao corpo, ao funcionamento dos órgãos e ao comportamento, tanto dos seres humanos, quanto dos animais. Por isso, podemos entender que muitas de nossas características, constituição física e comportamento já nascem conosco. Esse processo de “memorizar”, “guardar informações” no corpo e pelo corpo ocorre sem que o ser humano tenha controle ou consciência disso. Muitos desses armazenamentos, arquivos trazem ao tempo presente em que se vivem momentos de alegria, como as recordações provenientes:

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a) do olfato: o cheiro de um bolo de milho saído do forno recentemente; do pão-de-queijo feito pela avó; de um café bem fresquinho, aquele da hora ou ainda a fragrância de um perfume. b) da audição: o choro de um bebê; uma música romântica dos anos 60; uma voz delicada; o motor de um carro. c) do tato: um aperto de mão; ao tocar uma pétala de flor; ao toque de espinhos ou de um papel amassado, ou mesmo de um tecido de cetim. d) do paladar: uma mordida em um chocolate branco; o gosto da pimenta picante no molho do macarrão; a suavidade de um vinho bom; o sabor de uma comida feita pela mãe. Os sentidos construídos no ato enunciativo nos fazem recordar, quantas lembranças nos veem à mente em momentos díspares e a todo o momento. E como as memórias são úteis no momento do exercício das atividades profissionais, tornam-se essenciais na prática profissional. Cito alguns recortes das lembranças que são acionadas pela consciência e que favorecem o fazer técnico. Na esfera educacional recorremos à memória para a escrita de: diários de sala de aula (muito difícil o professor conseguir registrar toda sua aula, diariamente, como se pede o nome “diário”, mesmo com o advento da tecnologia que já nos permite acesse ao diário eletrônico); boletins de ocorrência por causa de incidentes de várias naturezas no âmbito escolar; ata para os momentos de reuniões e decisões coletivas; relato de professores em reunião de Conselho de Classe etc. Le Goff (2003) para falar do ato mnemônico recorre à pesquisa feita por Pierre Janet (1972), que considera como ato mnemônico fundamental ao ser humano o "comportamento narrativo" caracterizado, segundo ele, pela sua função social, uma vez que se trata de comunicar a outro uma informação. O sujeito situado, em um espaço e tempo, se exprime do seu interior, revelase como produto da inter-relação social, nesse envolver-se com outro(s). Essa atividade do interior, atividade mental do sujeito constitui um território social, assim como a expressão exterior. Somos sujeitos constituídos em territórios sociais, num determinado tempo. Conceitos imbricados pelo duplo da expressividade: identidade e alteridade. O ato de enunciar, por ser essencial ao ser humano, aproxima a linguagem (produto da sociedade) à memória que é

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A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se interpor quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isto significa que, antes de ser falada ou escrita, existe certa linguagem sob a forma de armazenamento de informações na nossa memória (ATHAN,1972, in: GOFF, 2003, p. 421).

Toda enunciação proveniente da atividade mental é organizada e formada também em relação aos elementos do exterior (do contexto imediato), carregados de um conteúdo (signos) ou de um sentido ideológico (vivencial) que se renova sem cessar em um movimento dialético vivo entre o psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida exterior. Os signos possuem natureza objetiva, são fenômenos do mundo exterior e aparecem nas experiências do sujeito como efeitos ou respostas: ações, reações, geração de novos signos que se geram no meio social circundante. Por isso, Volochinov e Bakhtin (2002, p. 57) falam que “O signo ideológico é o território comum, tanto do psiquismo quanta da ideologia; é um território concreto, sociológico e significante. É sobre este território que se deve operar a delimitação das fronteiras entre a psicologia e a ideologia”. Retomando algumas esferas para situar o uso da memória, falo da esfera policial ou de segurança pública: Boletins de ocorrência (BO), em que o policial ouvirá atentamente a vítima que ao contar sua versão sobre o fato ocorrido, recorrerá às suas memórias. Na esfera comercial: apresentações de entrevistas em programas de TV, que por vezes, o entrevistador questiona o entrevistado (geralmente celebridade) que recorre, também, às suas lembranças para responder tais questões. Na esfera médica: uma prescrição médica, por exemplo, só poderá ser transcrita numa receita se o médico ouvir a paciente rememorando os fatos de seu mal estar e, para isso, a paciente recorrerá às suas memórias. Na esfera acadêmica: elaboração do relatório semestral das várias participações em eventos educativos e de comunicação para os mestrandos e doutorandos; elaboração de monografia, dissertações e teses com base na memória (consciente) ou registrada em anotações (arquivo de computador ou mesmo cadernos). Assim, a recordação e a memória são processos mentais essenciais ao ser humano

para

o

seu

viver

ressignificando

os

saberes

e

conhecimentos

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cotidianamente, assim, como o esquecimento, pois nem tudo que se viveu é digno de ser relembrado. O nosso corpo e nosso cérebro têm a função do esquecimento, se não fosse assim, não teríamos espaços nos neurônios para tantas informações e sem utilidade prática, como por exemplo, uma dor causada por um acidente ou mesmo a dor de um parto no caso conhecida só pelas mulheres. Por fim, os processos mentais individuais se caracterizam em um corpo social e o estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente em que a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento (LE GOFF, 2003, p. 422).

1.5 Memória como signo

Nesta pesquisa também olho para a memória como signo com base na teoria dos signos de Peirce (1839-1914) e no trabalho de Gilles Deleuze (1925-1995), na obra “Proust e os signos”. Nessa obra, Deleuze escreve sobre uma obra literária, a de Marcel Proust (1871-1922), denominada À la recherche du temps perdu5 (publicado entre 1913 – 1927). A leitura filosófica dessa obra, feita por Deleuze, é importante para mim, particularmente, pois fala sobre a Recherche, que pode ser traduzida por busca ou pesquisa como “um sistema pluralista”. Seu ponto de vista consiste na análise dos signos da vida, da semiose de diferentes tipos, efeitos, relações, associações na construção de sentidos. O sujeito em movimento com suas faculdades, como diria Vigotski (1988), com as suas “funções mentais superioras” ou as “atividades mentais” do “eu”, nos dizeres de Bakhtin (2011), como categorias do pensamento (linguagem, consciência). O assunto da obra literária é o encontro contingente com os signos extracorpóreos, que forçam o ato de pensar, que produzem a necessidade de um ato de pensamento. Diante disso, os signos têm lugar fundamental na Recherche, forçam a pensar, a buscar sentidos. Deleuze vai nominar os signos plenos, afirmativos e alegres da arte como superiores em relação aos signos mundanos, aos signos amorosos ou signos sensíveis, pois se tratam de uma aprendizagem

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Em busca do tempo perdido, do francês À la recherche du temps perdu, é uma obra romanesca de Marcel Proust, escrita entre 1908/1909 e 1922, publicada entre 1913 e 1927, em sete volumes, os três últimos, postumamente.

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temporal que se converge para a arte. Daí a relação com o título, a arte transforma o tempo perdido em tempo redescoberto e possibilita conferir a cada tipo de signo o seu sentido, a sua verdade, dada apenas na relação social e por meio da interação. Esse elo entre Filosofia e Literatura também se manterá nesta pesquisa, que continua e se aprende no caminho, como diz Deleuze, pois a pesquisa, a Recherche é voltada para o futuro e não para o passado. Proust dizia que “aprender é ainda relembrar” (DELEUZE, 2010, p. 4). Na leitura de Deleuze, por mais importante que seja o papel da memória, ela só intervém como meio de aprendizado. Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são considerados objetos de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Cito dois dos exemplos apresentados por Deleuze, justificando sua afirmação: 1) alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira; 2) e só se torna médico, tornando-se sensível aos signos das doenças (DELEUZE, 2010, p. 3-4). Sensibilidade se dá inicialmente pela “percepção”, “consciência” e “inteligência”: três funções mentais superiores. Nessa interpretação, Deleuze (2010) apresenta a memória com papel secundário na formação humana, porém, importante, e vai discorrer sobre seu processamento ao longo de sua obra. Ainda, segundo ele, a obra de Proust não está voltada para o passado e as descobertas da memória, sua direção é o futuro e o progresso do aprendizado (ibidem, p. 26). Essa compreensão é pertinente à esfera educacional, em especial, onde atuo, pois faz com que o sujeito na função (papel social) de aluno aprenda um conceito por meio do desafio proposto pelo professor mediador (no sentido de fazê-lo pensar), desde que ele seja/esteja sensível aos signos que permeiam esse conhecimento. O objeto de análise desta pesquisa é o gênero “memórias literárias” e pela denominação é possível situá-lo na esfera literária, área que tem suas especificidades no trabalho com a linguagem como: o uso de palavras objetivadas para rafigurar a realidade, apresentá-la de outro ponto de vista (posição exotópica do autor-criador); a utilização da escritura como ato criativo, enunciativo e interpretativo da realidade etc. Assim, como pensar a memória e a origem desse gênero literário articuladamente ao ensino e aprendizagem dos alunos? Sigo no exercício da exploração de memórias (vivências, livros, links no meio digital etc.) como essência da pesquisa apontada por Deleuze, por meio dos signos

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que encontrei pelo caminho das leituras, o compromisso com o futuro, com o que está em construção. Um mergulho dos signos do passado com os signos do presente. Bosi (1977), em seu livro O ser e o tempo da poesia, refere-se a esse mergulho no passado como uma forma encontrada pela Literatura para resistir ao caos imposto pelas relações pragmáticas das sociedades capitalistas. De certa forma, a lembrança dos tempos passados corresponde à restituição da ordem que o mundo parece ter perdido: A saudade de tempos que parecem mais humanos nunca é reacionária [...] Reacionária é a justificação do mal em qualquer tempo. Reacionário é o olhar cúmplice da opressão. Mas o que move os sentimentos e aquece o gesto ritual é, sempre, um valor: a comunhão com a natureza, com os homens, com Deus, a unidade vivente de pessoa e mundo, o estar com a totalidade (BOSI, 1977, p. 153).

Penso que na criação literária, como Bosi fala, são os valores intrínsecos e extrínsecos que concretizam o diálogo entre a Literatura e o elemento social. Assim, tomo algumas palavras da obra Literatura e sociedade de Antonio Candido para falar sobre esse elo, partindo do princípio de que “certas manifestações de emoção e de elaboração estética podem ser melhor compreendidas, portanto, se forem referidas ao contexto social” (CANDIDO, 2006, p. 79). Essa é uma importante constatação que o professor deve saber para o ensino do gênero que lida com as memórias, as recordações, as emoções. Dessa forma, o elo que a Literatura mantém com a sociedade é um aspecto que precisa ser averiguado com singular atenção, pois “a criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo” (ibidem, p. 65).

1.6 Memória e Literatura

As obras literárias são de várias naturezas, assim, as memórias, que perpassam a vida real, perpassam também os variados gêneros literários. Nesses gêneros, as memórias correspondem aos textos narrativos ficcionais como escrita de si, seja em uma perspectiva individual ou coletiva, com personagens reais ou ficcionais, produzidos por escritores que retomam em seu processo criativo as

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experiências vividas. Para isso, os autores, na visão estética, na escritura literária, recorrem ao trabalho com a linguagem literária, ao uso das figuras de linguagem, à seleção das palavras, sempre orientado por uma visão obtusa (BARTHES, 2010) ampliada pelos critérios estéticos que atribuem ao texto ritmo e produzem diferentes efeitos de sentido em seus leitores. O leitor, por associação, identificar-se-á com as situações narradas nos gêneros literários. Essas narrativas têm como ponto de partida as experiências e vivências estéticas vividas pelo autor, as quais são narradas a partir da tradução dessas lembranças realizada no ato criativo. Por isso, as memórias ou reminiscências passam por uma releitura, uma ressignificação no processo da escritura literária. No tecido do gênero “memórias” é percebível que as narrativas se aproximam dos “textos ou relatos históricos” por narrarem uma realidade vivida, mesclando fatos históricos e sociais da vida real e concreta das pessoas. Nessa escritura prevalecem os processos mentais da consciência e o uso do tempo pretérito. E também se aproximam do “romance” ou “novela” pela escritura que resulta de um trabalho literário, criativo, com fatos inventados (ficção) ou imaginários, que implica no uso do inconsciente, das experiências estéticas. Resumidamente, elenco algumas aproximações que o gênero “memórias” evidência:

Textos históricos

Romance

Narram a realidade vivida

Resulta de um trabalho literário

História real

Memórias

Ficção

Natural

Aproximam-se

Imaginário

Consciente

Inconsciente

Tempo pretérito

Desejo de tempo futuro

Quadro 1: Esquema das aproximações do gênero “memórias”, escritura entre realidade e ficção.

A escritura de um gênero literário tem vida prolongada e pertence ao conceito de “tempo grande”6 (BAKHTIN, 2011, p. 362). Essa concepção bakhtiniana se refere às obras que “dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos” (idem). Para Bakhtin (2011): Algumas traduções são trazidas como “grande tempo”, como na obra Estética da criação verbal, edição de 2003, p. 362, porém, vou optar nesta pesquisa por utilizar-me da tradução “tempo grande”, por entender que esse termo contempla melhor a ideia de transposição da existência de uma obra por vários séculos. 6

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[...] uma obra não pode viver nos séculos futuros se não reúne em si, de certo modo, os séculos passados. Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto é, em sua atualidade), não desse continuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substancial, não poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele (BAKHTIN, 2011, p. 363).

Nesse sentido, o texto literário no processo de sua “vida” se enriquece com novos significados, novos sentidos, como se ele superasse o que foi na época de sua criação. Dessa forma, Bakhtin (2011, p.363) disse que “nem o próprio Shakespeare nem os seus contemporâneos conheciam o grande Shakespeare que hoje conhecemos”, pois ao lermos suas obras introduzimos “coisas inventadas que não havia nelas”. Bielinski, citado por Bakhtin (2011), dizia que “cada época sempre descobre algo de novo nas grandes obras do passado”. Na Literatura Brasileira e Portuguesa encontram-se inúmeras obras de “memórias” de autores consagrados que escreveram suas próprias memórias na Literatura e na música, mesclando suas vivências com ficção. Outras obras, também de autores consagrados, contam-nos “memórias” de outros, sejam com base em personagens reais ou fictícios ou com base em documentos, cartas, bilhetes, fotografias etc. A arquitetônica estética da obra literária de “memórias” possibilita diversos pontos de vista, além de seus traços mais característicos também permearem outros gêneros literários como poemas e contos escritos por Manoel de Barros; crônicas por Tatiana Belinky e Fernando Sabino; memórias por Zélia Gattai. Poderiam ser citados inúmeros escritores consagrados no gênero memórias, porém elenco alguns como: Oswald de Andrade, José Américo de Almeida, Cyro dos Anjos, Zélia Gattai, Murilo Mendes, Érico Veríssimo, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, José Lins do Rêgo, Mário Quintana etc.

1.7 Memórias: o gênero literário

O gênero memórias, como é conhecido na esfera literária, é uma narrativa ficcional escrita em primeira pessoa ou ainda em terceira pessoa, na qual o autor conta as lembranças de sua vida ou da vida de outra pessoa. É uma escritura que

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possibilita uma visão do passado. As reminiscências relatadas são baseadas em fatos reais com tons de ficção, pois toda Literatura é potencialmente autobiográfica criada a partir das experiências estéticas dos autores. O autor-criador pode ser heterodiegético, aquele que narra em terceira pessoa ou intradiegético do tipo autodiegético, aquele que narra a sua própria história; ou intradiegético do tipo homodiegético, aquele que narra a história de outra pessoa. Os gêneros confissão, memórias, diário, relato, biografia e autobiografia são formas não canônicas da Literatura. As formas canônicas são as narrativas, conto, romance, novela e crônica. No artigo “A Literatura e os gêneros confessionais”, de Sheila Maciel (2004), verifiquei que o gênero “memórias” era chamado de gênero confessional e com ele também recebiam essa classificação os gêneros diários, autobiografia. Essas narrativas escritas em primeira pessoa foram por muito tempo consideradas “literaturas menores” e seguiram seu caminho separadas das tidas “altas literaturas” (PERRONE-MOISÉS,1998, apud, MACIEL, 2004, p. 75). A característica peculiar desses gêneros é a escrita entrecortada por fatos imaginados, pela ficção. Uma forma de tecer o texto conforme o desejo e escolhas do autor. A experiência como joia rara, como fonte para a escritura, que figura a realidade e a torna um discurso também com valor social e cultural, que não exclui outros discursos. Os gêneros confessionais e os demais gêneros literários (crônicas, poemas, odes etc.) têm como fonte de criação a vida, a experiência humana no mundo, seja a do autor ou a partir de sua visão de mundo. Nesse sentido, Maciel (2004) diz que nesse universo confessional existem muitas obras que são puramente ficcionais, em que os autores se utilizam da forma autobiográfica como um recurso da própria linguagem (MACIEL, 2004, p. 77). Para Maciel (2004), a Literatura Confessional é Literatura e afirma que é infrutífero propor uma separação entre a Literatura das formas autobiográficas, podendo, talvez, ser uma questão de implicações teóricas relativas ao uso da primeira pessoa. Fato que não ocorreu na história. Nos últimos anos, a escritura de gêneros confessionais tem se destacado nas livrarias e em outros negócios que comercializam livros, sendo os mais vendidos de “ficção” e “não-ficção”. Destaque para os gêneros: autobiografias, biografias, memórias, diários e relatos. Fato que comprova dois desejos inatos no homem:

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primeiro, de contar histórias, de comunicar e o segundo, de saber sobre a vida íntima de outra pessoa. O mercado editorial aposta nesse perfil.

1.7.1 Origem dos gêneros confessionais Maciel (2004), em sua pesquisa constatou que o instinto autobiográfico do ser humano é tão antigo quanta a escrita, é tão antigo quanto o desejo humano de se registrar as vivências, os feitos, as conquistas. Esse pensamento se pode verificar na história dos impérios antigos, quando o Rei mandava construir um monumento para imortalizar a sua obra, seja no Egito, seja em Roma. Acreditavam que isso iria conservar e propagar os seus feitos, a sua maneira de ser. Outras experiências de que o ser humano fez para conservar sua memória, sua vivência: as pinturas, nas cavernas da primeira Era; os monumentos criados pelos reis, na era clássica; as confissões no sentido religioso, a exemplo das Confissões do Santo Agostinho, na Idade Média; no Renascimento, quando se compreendia o homem como o centro dos valores e o surgimento dos diários e memórias póstumas; no século XVIII, quando florescem a ideia da intimidade e o Romantismo na Literatura; no século XX, com o desdobramento das confissões; e o século atual, com o apogeu do gênero confessional. Segundo Sheila (2004), a Literatura íntima só começou a se fortalecer como gênero a partir do estabelecimento da sociedade burguesa, praticamente quando o ser humano adquiriu convicção histórica de sua existência. Naquele contexto, mesmo que já houvesse obras esparsas como De bello Gallico (51 a.C), de Júlio César, ou Ensaios (1580), de Montaigne, de escrita autobiográfica, e mesmo que já existissem textos centrados no sujeito, somente no século XVIII pode-se pensar em gêneros confessionais, segundo a pesquisa de Maciel (idem). Na Antiguidade, os textos de natureza autobiográfica, que registram o reconhecimento axiológico do “eu” individual, não eram justificáveis, não existiam fronteiras entre as formas ficcionais e as formas de apresentação do "eu". Na era Medieval, o caminho autobiográfico se torna impossível porque a experiência do “eu” se integra a um comportamento moral, de forma impessoal. Segundo Costa Lima (1986, apud, MACIEL, 2004, p.78), "a observação e a

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descrição do mundo externo desaparecem por completo atrás da representação de fatos e experiências espirituais". Outro gênero confessional, o diário íntimo, de acordo com Alain Girard (1996, apud, MACIEL, 2004), tem origem situada entre dois séculos, por volta de 1800, como fruto da exaltação dos sentimentos e da moda das confissões, que assolavam a Europa um pouco antes da eclosão romântica. Naquela época, a igreja perdia sua força e o homem não encontrava apoio nem na Ciência, foi nesse ambiente que a subjetividade começou a ser cultivada. A descoberta do “eu” individual fez com que a burguesia passasse a se interessar cada vez mais pelo mundo interior recém-descoberto. Depois, com o crescimento da população houve também o impulso pelas narrativas autobiográficas, inicia-se o interesse pelas vivências e a interioridade do ser humano, do outro. Juntamente com a ideia do reconhecimento da interioridade humana houve também a valorização da privacidade que impulsiona o aparecimento, segundo o historiador Peter Gay (1998, apud, MACIEL, 2004), de uma infinidade de novelas, diários e autobiografias. Esse mesmo historiador, disse que a privacidade era algo impensável, tendo em vista que os membros de uma família eram obrigados a dormirem juntos, num mesmo quarto, situação muito comum no Século XVIII. O mundo de hoje está repleto de uma profusão de relatos produzidos por um “eu” que se desvela, devido à globalização e à modificação dos comportamentos humanos na sociedade. Praticamente, a sociedade encontra-se “sem identidade própria”, de forma que as narrativas autobiográficas e biográficas trazem um encontro com o passado, uma grande possibilidade de ligar os dois mundos, o atual e o do passado (MACIEL, 2004).

1.8 Memórias com valor biográfico

Na recordação que temos habitualmente de nosso passado, esse outro é muito ativo e marca o tom dos valores em que se efetua a evocação de si mesmo (nas recordações da infância, é a mãe incorporada a nós mesmos) Bakhtin (1997, p.168). [...] a contemplação da minha própria vida não é mais que a antecipação da recordação que essa vida deixará na memória dos outros — dos meus descendentes, da minha família, ou simplesmente dos meus próximos (a amplitude do caráter biográfico

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de uma vida é variável); valores idênticos presidirão à organização da vida e à organização da recordação. Bakhtin (1997, p. 169).

Bakhtin (2011), no capítulo O autor e a personagem na atividade estética, no livro Estética da criação verbal, fala das formas intermediárias e da arquitetônica do autor, especificamente sobre gêneros que vão das “confissões” à “autobiografia”, marcadas por contradições internas, as quais aparecem no fim da Idade Média, que ignorava os valores biográficos e no início do Renascimento (ibidem, p.166). Bakhtin (2011) entende biografia ou autobiografia como narrativa de uma vida, uma forma que possibilita a transcendência, a objetivação do meu “eu” e “minha vida” num plano artístico. Para ele, o que conta é o “valor biográfico”. Dessa forma, opta por falar apenas da “biografia” e começa por dividi-la em dois tipos: o primeiro, como dimensão do contexto de valores que podem ser percebidos na consciência, que chamou de “aventura heróica”, algo que retoma a época do Renascimento e do pensamento nietzschiano; o segundo, da dimensão da autoridade que marca a alteridade. A esse último tipo, Bakhtin (2011) o chama de “sócio-doméstico”, que retoma o sentimentalismo em parte devido ao realismo (ibidem, p. 170). Como experiência prática e também alicerçada na metodologia desta pesquisa, faço minha escrita, baseada no segundo tipo de “biografia” apresentada por Bakhtin, como dito acima, na qual a história é dada por uma visão social, de “humanidade social” (BAKHTIN, 2011, p. 147), como diz o pensador russo. Nessa concepção histórica de humanidade, segundo Bakhtin (2011), o que constitui o centro de valores são os valores históricos e culturais. Portanto, o valor biográfico, do tipo “sócio-doméstico”, faz com que a própria vida do ser humano possa ser expressa na contemporaneidade, isolando os valores desse contexto em sua relação com o passado e o futuro.

1.9 Memória compartilhada

Ecléa Bosi (2003), em seu livro O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social, explora o campo de experiência pessoal com os eventos do dia-adia, registrado na memória e recordados e contados para outrem. É em uma relação

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com o outro nas várias esferas do cotidiano em que o sujeito age e interage. Nesses atos sempre há um interlocutor, um ouvido atento e disponível para o ato da escuta, momento em que a memória é partilhada ou, melhor dizendo, compartilhada. Essa é a admirável sensibilidade do ser humano. Na História oficial, aquela registrada nos livros é a expressão de uma memória social com acabamento para fins didáticos e informativos. Não é a História viva, tal como aconteceu. É sempre escrita, registrado por meio de uma visão, de uma versão do autor-criador. Nessa obra de Bosi (2003) se percebe a expressão e a importância da memória individual, que cada ser humano vai construindo no curso de sua vida, com suas nuances, silêncios, reticências. Em uma sessão de Psicologia, o paciente falante narra sua vida e experiências ao psicólogo, que utiliza, nos tempos atuais, os últimos recursos tecnológicos para gravar a conversa com seu paciente. Essa gravação tem o objetivo de auxiliar o profissional na análise do paciente no apontar caminhos para seu tratamento. Esse movimento de escuta realizado pelo profissional de Psicologia pode acontecer mais de uma vez. Isso permite uma análise mais detalhada, com mais propriedade perante o corpo da voz e da forma como foi pronunciado o discurso do paciente-falante expressando os atos de sua vida singular, a partir de suas lembranças. A recordação de fatos do passado vivenciado ocorre a cada sujeito de forma aleatória, sem tempo preciso, determinado. Esse acontecer se refere à atividade mental do eu-para-mim (BAKHTIN, 2011) em um diálogo ou discurso interior, que se processa por meio dos recursos da memória, na dimensão da inconsciência. Os atos vivenciados,

as pessoas,

os objetos, as imagens e

lugares

recordados

correspondem ao falante (ou locutor) a um tempo vivo em sua memória, com cores, cheiros e sabores. Muitas pessoas chegam a registrar suas memórias em diários ou autobiografias. É pela conversa, como os diálogos praticados na praça pública (BAKHTIN, 2010a), que ocorre o relato propriamente dito como essencial ao ser humano, uma enunciação viva, um discurso vivo numa língua viva. É aquele "contar" feito a outrem, no diálogo face a face ou mesmo por meio da tecnologia (skype, telefone, celular) que tem não só um interlocutor atento, mas ganha uma testemunha do que se viveu. Portanto, esse relato (diálogo) é de dimensão social, colabora-se para a efetividade de uma memória coletiva, a partir da memória individual. Esse tipo de

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diálogo como primordial também contribui com esse outro (que se pôs a escutar e interagir) na ampliação de suas experiências pessoais pelo diálogo que compartilhou (ou partilhou) à memória do falante. Na Psicologia social, esse sujeito falante se chamaria "depoente", segundo Bosi (2003). Nesse diálogo há sempre uma troca e cumplicidade, há respostas, há compreensão respondente de maior ou menor grau. Grandes escritores da Literatura escreveram suas memórias, histórias de vida, do seu ponto de vista, que é outro, mesmo sendo sua vida, suas experiências. No ato da escritura o autor-homem é outro, escreve de outra posição, de um lugar exotópico. Um deles é Gabriel Garcia Marques (1928), colombiano, Prêmio Nobel de Literatura, que após escrever muitos romances de relevante destaque internacional, narrou sua vida no livro Viver para contar, 2003, de maneira emocionante, que contagia o leitor que, presente e bem atento, capta as experiências e emoções da infância (tempo de escola, professores e amigos), da juventude como escritor até o exercício do jornalismo. Lembranças que foram suscitadas a partir do encontro (reencontro) com a mãe, anos depois. Trata-se de uma memória de eventos únicos, uma memória bergsoniana das coisas em constante transformação graças a uma imagem que surpreende e infunde força àquilo que parece ter a eternidade do concreto. Para Bosi (2003), o lugar onde se viveu narra histórias e está em constante transformação porque tem

[...] sua infância, juventude, velhice... as casas crescem no chão e vão mudando: canteiros, cercas, muros, escadas, cores novas, a terra vermelha e depois o verde umbroso. Arbustos e depois árvores, calçadas, esquinas... uma casa pintada de azul que irradia a luz da manhã, os terrenos baldios, as ruas sem saídas que terminam em praças ermas... o bairro acompanha o ritmo da respiração e da vida dos seus moradores. Suas histórias se misturam e nós começamos a enxergar nas ruas o que nunca viríamos, mas nos contaram (BOSI, 2003, p. 79)

As imagens, os lugares (no passado e no presente) contam coisas que só a nós cabe dar o tom, cabe expressar conforme nossa afetividade e emoção. A memória traduzida em palavras e que transmite uma experiência vivida é de interesse da Psicologia, da Medicina e, em especial, da Educação, tendo em vista as discussões sobre identidade e cultura nos tempos de globalização. As pesquisas em Ciências Humanas estão em evidência, especialmente a partir do final do século XX.

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A memória compartilhada socialmente articula três memórias: individual (locutor), outra (interlocutor) e coletiva (dimensão social e ideológica). O sujeito, por meio de sua memória individual, constitui o testemunho para a memória coletiva, em um tempo coletivo. No momento da interação com o outro, o sujeito conta suas experiências, reflete com esse outro suas lembranças por meio de suas crenças, costumes e comportamento adquiridos em seu grupo, que tem raiz temporal, que são marcados por eventos ocorridos no mundo global, os quais qualificam o tempo vivido. Cito alguns eventos que marcam a memória coletiva e individual: a campanha das “Diretas já”, em 1984; a passagem do cometa Halley em 1986; a morte do piloto de fórmula 1, Airton Senna, em 1994; o atentado de “11 de setembro”, em 2001; o incidente na Boate Kiss, Santa Maria - RS, em janeiro de 2013; a renúncia do Papa Bento XVI, em fevereiro de 2013 etc. Esses eventos pertencem ao tempo coletivo e cada sujeito na sua singularidade viveu o seu tempo individual perpassando pelas nuances desse outro tempo mais global.

1.10 Apontamentos memoriais

Dos discursos sobre a “Memória” aqui delineados, posso elaborar algumas considerações em relação à concepção de “memória” e do gênero “memórias”, porém antes farei a reflexão desse conceito de “gênero” pelo viés da teoria bakhtiniana.

1.10.1 Questão de “gênero” e sua forma “relativamente estável” Sabe-se que a linguagem não é algo imóvel, morta, petrificada, ela é dinâmica, está em constante movimento e seu desenvolvimento segue o da vida social. Este movimento progressivo da linguagem e também da língua é realizado no processo de comunicação humana, que não é só um processo produtivo (setor econômico), mas também verbal e não-verbal. Na comunicação social elaboram-se diversos tipos de enunciações correspondentes aos diferentes tipos de atividades, os quais Bakhtin (2011) os denominou como “gêneros do discurso”.

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Compreendo “gênero” como meio de produção de conhecimento, pelo qual o ser humano opta em seus afazeres cotidianos oficiais e não oficiais, significado pelo próprio meio, uma vez que contém determinada concepção da realidade, de sujeito e de interação. Na comunicação, os sujeitos utilizam enunciados que refletem as condições específicas e as finalidades de cada campo por meio do seu conteúdo temático (o que é dizível em um determinado gênero), pelo estilo, tanto do autor, quanto do gênero e por sua construção composicional (forma). Todos esses elementos estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado, de forma orgânica. E cada enunciação, por si, é única, irrepetível, singular (BAKHTIN, 2011). Dessa forma, há de se pensar que existe um leque infinito de diversidade de gêneros, tendo em vista às inúmeras atividades humana e de que cada campo de atuação é dotado de um repertório de gêneros discursivos, que se modificam, conforme a demanda e a complexidade do campo (esfera), ou caem em desuso. Para se compreender também a questão de gênero, além da obra de Bakhtin, Estética da criação verbal (2011), indicamos a obra de Medviédev (2012), O método formal nos estudos literários: introdução a uma poética sociológica, que, segundo Beth Brait, [...] demonstra, criteriosa e detalhadamente, que gênero é o conjunto dos modos de orientação coletiva dentro da realidade, encaminhado para a conclusão de que, por meio do gênero, é possível compreender novos aspectos da realidade, ou, em outras palavras, a realidade do gênero é a realidade social de sua realização no processo da comunicação, ligados de forma estreita ao pensar (BRAIT, 2012, p. 17).

Esses aspectos da realidade do gênero, ligados a realidade social, devem ser estudados e compreendidos com muita leitura e diálogo entre os pares. Só assim, cada vez mais o entendimento de que a escrita ou escritura de um gênero conforme a escolha do autor requer capacidade de inventividade, de inovação, de construção e de reconstrução, atividades7 que encontram expressão nos textos verbais e nãoverbais.

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O termo atividade aparece muito na obra de Bakhtin como o exercício de alguma ação, o desempenho de uma função. Por vezes se dá com intensidade e outras não. Assim, o tradutor Paulo Bezerra, na introdução à obra Estética da criação verbal (2011), esclarece que traduziu tal termo como atividade estética - sem a ideia necessária de intensidade - e ativismo, para a atividade

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Outra questão que pensamos ser interessante é o da particularidade dos gêneros com base na teoria bakhtiniana da linguagem e da cultura, uma vez que Bakhtin e seu Círculo abordaram as questões dos sujeitos da enunciação e dos objetos da cultura, em especial, sobre os gêneros. Os gêneros, por si, possuem uma memória, “memória do objeto”, que se trata de uma memória que está na cultura, em seus objetos. O conceito bakhtiniano em que a memória do objeto aparece de maneira mais sistemática é o conceito de gênero do discurso (BAKHTIN, 2011), pois ele vive do presente e recorda o seu passado. Assim como o gênero, a própria palavra é objeto portador de memória coletiva e o “falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez” (ibidem, p. 300). Diante disso, compreende-se que não há gênero (nem palavra dita) totalmente “virgem”, criado sem referência e pela primeira vez, como o mito de Adão, a existência do primeiro homem. Segundo Bakhtin (2011):

[...] alguma coisa criada é sempre criada a partir de algo dado (a linguagem, o fenômeno observado da realidade, um sentimento vivenciado, o próprio sujeito falante, o acabado em sua visão de mundo, etc.). Todo o dado se transforma em criado (BAKHTIN, 2011, p. 326).

Para isso, é necessário compreender que a sócio-história de cada um dos gêneros fornecerá dados decisivos como as condições de produção: esfera de atividade em que circulam; situação de comunicação característica; papel social do enunciador e/ou do enunciatário; tipo de objetivo específico etc. E o que é mais importante do que a classificação, o “enquadramento” de cada gênero, é a compreensão do seu projeto de dizer, é a construção de sentido que se dá nas enunciações. Os deslocamentos possíveis no uso da linguagem se devem também aos gêneros que são, por sua própria natureza, “relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2011, p. 262), portanto, nunca estão cristalizados em suas formas e funções, são mais flexíveis que os carros do tipo total flex. Nessas mudanças de função, os gêneros também mudam de forma; às vezes, o suficiente para que um novo gênero seja reconhecido. enérgica – ação intensa do sujeito sobre o objeto. Definições que colaboram no fazer pedagógico também.

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A existência ou usufruto de um gênero é para atender a demandas de comunicação próprias de uma determinada esfera de atividade. Naturalmente, o gênero se constitui nesse âmbito. E, uma vez constituído, torna-se um instrumento útil também para tarefas afins.

1.10.2 O gênero “memórias” Após a reflexão sobre o conceito de gênero na teoria bakhtiniana, apresento alguns apontamentos acerca do gênero “memórias”. Em primeiro lugar, como se viu pelos discursos sobre a “memória” e o gênero “memórias” neste capítulo, é preciso compreender que esse gênero compõe diversos outros gêneros na rede da comunicação humana, além de sua própria singularidade como texto narrativo ficcional. Pode ser situado nas esferas de atividades humanas que correspondem à esfera da vida e à esfera da arte (BAKHTIN, 2011). Em segundo lugar, é preciso registrar que nem todas as “memórias” são literárias, apenas as que possuem um trabalho com a linguagem literária, própria da Literatura. Assim, todas as formas de “memórias”, como narrativas, são textos ficcionais. Porém, nem tudo que é texto de ficção é texto literário como “memórias históricas”, “memórias familiares”, “memórias sociais” etc. Esses exemplos situam-se na esfera da vida, são gêneros primários, conforme os conceitos da teoria bakhtiniana (BAKHTIN, 2011). Em uma terceira reflexão, penso que as “memórias” literárias situadas na Esfera Literária, escritas por consagrados autores da Literatura, apresentam narrativas ficcionais mesclando vivências éticas (de sua própria vida ou da vida observada) e estéticas. E por dispor dos recursos da linguagem literária, o autorcriador cria cenários e situações não reais, como se percebe nas obras “Memórias da Emília”, de Monteiro Lobato (1936), “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis (1881), e “As memórias de um cabo de Vassoura”, de Orígenes Lessa (1971), nas quais as personagens principais são: uma boneca de pano, um defunto e um objeto de limpeza, respectivamente. Por entender que Literatura não é realidade, pode-se compreender a arquitetônica do autor, nos termos bakhtinianos, de um texto de memórias literárias ou memórias na esfera literária, em que ocorre uma visão exotópica do escritor ou

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autor-homem ao se posicionar como narrador ou autor-criador. Nesse sentido, o autor-criador ou narrador de um texto literário é sempre um narrador ficcional. Em relação ao destinatário ou leitor de textos literários, o texto de memórias ganha sentido na relação e sob a visão do leitor, em suas reflexões, refrações, dialogismo e construção de sentidos, o qual não se interessa em identificar no texto lido as experiências vividas, mas sim as relações que se processarão em sua memória como recordação e vivência própria constituída.

1.10.3 Ampliando a noção de “memória” e “memórias” Depois do grande número de informações que apresentei sobre o conceito de “memória” e “memórias”, cabe precisar com qual conceito sigo ao desenvolver esta pesquisa. Inicialmente, definirei os conceitos de “memória”, “esquecimento” e “recordação”, ações que partem do sujeito do discurso. A memória como função psicológica mental tem uma atribuição que é funcional, a de conservar, arquivar, armazenar informações. Disto, compreendo que a memória opera na consciência, signo que externa experiências singulares, traços identitários, individuais, coletivos, sociais e culturais. O esquecimento é uma função psicológica que tende a apagar as informações que não são desejadas e nem necessárias às ações do sujeito. A recordação ou reminiscência consiste na lembrança involuntária, proveniente do inconsciente, do desejo provocado por um signo externo ao sujeito. É uma função psicológica de caráter infuncional, sem função técnica ou lógica operativa. Essas funções psicológicas do cérebro são essenciais ao desenvolvimento e formação do sujeito e colaboram especialmente na comunicação humana. Memórias na qualidade de gênero é um texto de natureza narrativa que propaga escrituras de um “eu”, individual ou social, e se apresenta em diversas formas composicionais e nas diversas esferas da atividade humana ou, melhor dizendo, utilizando-me da teoria bakhtiniana, das esferas da Arte e da Vida. O conteúdo temático se enuncia por uma narrativa verbal, não-verbal ou mista (linguagem verbal e não-verbal), apresentando fatos, história de pessoas, animais e coisas, história da vida observada, conservando informações diversas no mundo contemporâneo desde a pré-história da Humanidade.

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No âmbito da forma composicional assumida, o gênero “memórias” na Esfera da Vida, do cotidiano, da esfera de comunicação humana, ou mesmo na Esfera da Arte ganha contornos diferenciados, recebendo por vezes outras denominações ou classificações. O estilo do gênero “memórias” será de acordo com a forma composicional assumida como gênero discursivo e o estilo do autor-criador se refere a suas escolhas em torno da linguagem que colabora no delineamento do gênero escolhido. Por assim dizer, esse movimento geral diz respeito à forma arquitetônica do gênero “memórias” no âmbito das esferas de comunicação humana. Em suma, posso delinear inicialmente um quadro com exemplificações desse universo do gênero “memórias” no âmbito das esferas da Vida e da Arte. Na primeira coluna, refiro-me às “memórias” que se ocupam dos processos de “memória” e de “consciência” e são correspondentes às narrativas de histórias verídicas, documentais, informativas, referenciais e também de cunho sócio-histórico. Essas narrativas recebem nominações diferenciadas conforme as esferas ordinárias a que se referem. Na segunda coluna, elenco alguns exemplos do gênero “memórias” de natureza ficcional que se situam na dimensão da Arte em suas várias faces. A parte artística é a mais ampla por envolver escultura, pintura, obra de arte, artes cênicas etc. Essas “memórias” são também narrativas em linguagens diversas que contam histórias de vida, de escritura de um “eu”, individual ou coletivo, na dimensão social e histórica. Esferas da Vida Cotidiano: Diário; vídeo de memória; Autobiografia; Biografia; Conversa face a face. Jornalística: Crônica esportiva Artigo de opinião Entrevista Política: Lei; Projeto de Lei Portaria Resolução Profissional: Memorando Carta; Contrato Institucional: Memória de reunião

Esferas da Arte Literatura: Memórias Conto Crônica Romance Poemas Literatura Infanto-Juvenil Contos de fadas Fábulas Livros de imagem Artística: Esculturas Obra de arte Monumento Música clássica Letra de canção Fotografia Souvenir Arquiteturas

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Ofício Boletim de ocorrência

Artes cênicas

Educacional: Memorial descritivo; Seminário Memorial circunstanciado Relato de experiência; Ata Memórias sociais Memórias históricas Quadro 2: Exemplificações do gênero “memórias” no âmbito das Esferas da Vida e da Arte

A intenção de apresentar alguns gêneros discursivos que ganham vida pela construção do autor-criador através dos processos da “memória” (signos apropriados e/ou conservados) e da “recordação” (signos que emergem suscitados por outros signos) é de constituir elementos de reflexão e assim se compreender que o gênero “memórias” se enformar em uma gama de formas composicionais que circulam na sociedade e que se apresentam como narrativas no processo de escrita, na esfera da Vida, ou de escritura, na esfera da Arte. Um espaço de criação e recriação da realidade, no âmbito artístico, ou ainda de transcrição da realidade, no âmbito da esfera da Vida, porém sempre no sentido de olhar a vida de um modo singular. Refletindo nesse horizonte, acredito que os professores que estão à frente do ensino e aprendizagem de alunos não correm o risco de limitar sua visão sobre o gênero discursivo memórias, sejam literárias (da Literatura), artísticas (da Arte de forma geral) ou não (as memórias da Esfera da Vida), focando-se apenas em uma visão parcial do gênero. Penso que nesse processo de ensino e de compreensão responsiva, tanto pelo professor quanto pelo aluno, a classificação do gênero não seja a parte mais importante, mas sim o entendimento da forma arquitetônica do gênero em função de sua esfera de produção, circulação e recepção. Além disso, as “memórias” não são concebidas em suas formas arquitetônicas como estáticas, pois promovem um trabalho com a linguagem que singulariza o modo como cada sujeito, cada autor-criador vê o mundo se posicionando como um deus grego Jano Bifronte, de dupla face, olhando o passado, situado em um tempo presente e escrevendo, lendo, pintando o futuro. Essa é a releitura dos conceitos de “memória do passado” e “memória do futuro” que constam na teoria bakhtiniana.

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Prenúncio do Capítulo 2

Figura 3: Ilustração da Fábula "Achille e la tartaruga” (1995), Autor: Luciano Ponzio; fonte: cortesia do autor

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CAPÍTULO 2 ENCONTRO: BAKHTIN E VIGOTSKI

Neste capítulo, recorto elementos comuns entre a teoria de Bakhtin e o seu Círculo e a teoria de Vigotski, por acreditar que tais elementos colaboram no delineamento da análise do objeto que faço a seguir, e, tendo em vista, que já trilhei outros discursos, que juntos formam um “tecido” dialógico e categórico para uma análise profícua. O elo comum nessas teorias, que delimito aqui, é a particularidade dos fenômenos psíquicos (imagens e representações) humanas em seu caráter de “mediados”. Essa mediação acontece devido às necessidades de expressão e de comunicação social, que envolvem os signos e a linguagem e é realizada por meio dos objetos produzidos e utilizados na cultura, em formas sociais determinadas.

2.1 Elementos convergentes nas teorias de Bakhtin e Vigotski

Bakhtin e Vigotski têm a base cultural e ideológica comum em meio à propulsão de pesquisadores e intelectuais ao impulso de desenvolver o marxismo nos diferentes campos da pesquisa científica na União Soviética nos anos 20. Naquela época, todo o trabalho concretamente iniciado na elaboração de uma teoria linguística, de Arte, de Literatura, de Psicologia, que avançassem além da solução rápida da questão da língua, da consciência, da Arte etc., foi sufocado com a ascensão do stalinismo, conforme estudos de Augusto Ponzio (2013, p. 145-146). Bakhtin e Vigotski dedicaram-se aos mesmos campos de pesquisa, partindo do caráter deficitário do marxismo acerca do estudo da consciência, da linguagem e das particulares formações ideológicas como Arte (ibidem, p. 145) e as categorias “estruturas”, “superestruturas”, “classe”, “signo”, “significado” e “sentido”. A questão da relação entre pensamento, linguagem e signo foi tratada por Vigotski e também preocupação na teoria de Bakhtin e seu Círculo. Ambos se

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opunham à redução da “reação verbal” (BAKHTIN, 2001) a um fenômeno de caráter unicamente fisiológico do qual se exclui o componente sociológico e afirmava a necessidade da “abordagem materialista-dialética em Psicologia, voltada a colher a específica

natureza

histórico-social

dos

processos

psíquicos

humanos

fundamentais” (PONZIO, A., 2013, p. 148). A relação entre “individual” e “social”, entre “estrutura” e “superestrutura”, entre “consciência” e “ideologia social”, entre “signo” e “ideologia”, entre “psique individual” e “psicologia social” superam os campos disciplinares individuais e se tornam pontos obrigatórios no enfrentamento dos problemas específicos como aquele da determinação da “originalidade da arte” (VYGOTSKY, 2001a) e da sua peculiaridade em relação às outras formas ideológicas, a peculiaridade do “fato literário”, como abordou Medviédev (2012), da especificidade da “psique individual” (VYGOTSKY, 2001a), do “signo verbal”, e da relação pensamento-linguagem (VYGOTSKY, 2008). Todos esses conceitos se relacionam nas teorias de Bakhtin e de Vigotski, perpassando suas obras. A primeira parte da obra “Psicologia da arte”, de Vigotski (2001a), do “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, de Volochinov/Bakhtin (2002) e de “O método formal nos estudos literários”, de Medviédev (2012), abordam tais conceitos, relativos à teoria geral das ideologias, por meio do caráter de mediação, afirmam que é insuficiente a caracterização de “superestrutura” para definir o fenômeno ideológico. Tomam “posição contra a redução da vida psíquica social a algo secundário, derivante da vida individual” (PONZIO, A., 2013, p.148). Outros pontos de convergência temáticos e metodológicos entre os trabalhos de Vigotski e aqueles de Bakhtin e seu Círculo se referem à dimensão estética, tanto da Psicologia da Arte de Vigotski e da Teoria da Literatura de Bakhtin. Pontos que foram delineados pelo “Marxismo e filosofia da linguagem” e pela teoria vigotskiana na direção do “comportamento humano por meio de signos, que antecipa também essa, como dizia Ivanov, as concepções atuais da função dos sistemas semióticos na cultura humana” (VYGOTSKY, 1925 A, apud, PONZIO, A., 2013, p. 150). O problema do diálogo e do enunciado, nos estudos do “discurso interior” ou “psique individual” ou ainda “consciência” também são ditos como base para uma abordagem adequada sobre o tipo de discurso. Ainda com relação à concepção estética, Vigotski demostra interesse por problemas pertencentes a setores

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disciplinares diferentes: a Psicologia, a Ciência da Arte e da Literatura, a Filosofia da linguagem, a Semiótica (PONZIO, A., 2013, p. 147). No início de suas pesquisas, Vigotski ocupou-se dos problemas da crítica artística, de Teoria da Literatura, da “Psicologia da arte”. Sistematizou uma Psicologia que se contrapôs à psicologia empírico-subjetiva e a toda a forma implícita ou explícita de psicologismo. Segundo Vigotski (apud, PONZIO, A., 2013, p.149): “Por ideia central de uma psicologia da arte não entendemos o reconhecimento da prevalência da forma artística sobre o material, ou seja, que é o mesmo reconhecimento da arte como técnica social do sentimento”. A produção artística pode ser considerada um complexo, uma teia de “signos estéticos” que, na enunciação, constroem sentidos, provocam emoções. Sentimento bem explicitado no livro de Vigotski, “Psicologia da arte” (2001a). Esse livro, escrito entre 1915 e 1922, influenciou e direcionou as futuras pesquisas de Vigotski que, a partir de 1924, passa a ocupar-se dos problemas fundamentais da Psicologia, a dedicar-se ao estudo da função dos signos na regulação do comportamento humano. Estudos que continuam a desenvolver a concepção estética exposta na obra que cito acima. Essa mesma preocupação consta nos livros de Bakhtin e seu Círculo, O método formal nos estudos literários (2012) e Marxismo e filosofia da linguagem (2002). A questão do método formal, na qual se situam as posições de Bakhtin e seu Círculo e de Vigotski, implica a problemática do “signo”, da função e do significado, conforme aponta Augusto Ponzio (2013, p. 150-151). Eles afirmam o caráter objetivo e histórico-social de qualquer manifestação produtiva propriamente humana, que entra na esfera dos signos verbais e não-verbais, no “contexto psíquico do homem social”. Esse contexto age como mecanismo intermediário entre as relações econômicas e as ideológicas que adquirem novos significados quando se considera a função dos signos, o complexo semiótico em tal mecanismo. Nesse ponto, evidencia-se o termo mediador entre base e superestrutura, identificado por Bakhtin e Vigotski no signo e em particular, no signo verbal, que constitui o material de todas as relações sociais, cotidianas, trabalho, lazer, artístico, cultural etc., entre o nível das ideologias institucionalizadas, não oficias ou em formação. O elo entre “estrutura” e “superestrutura” é, observa Bakhtin, na sua real existência material, uma interação sígnica verbal e, se abstraída desse processo real

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de comunicação verbal (da comunicação sígnica em geral), a “psicologia social” ou “psicologia do corpo social” se torna uma noção mítica, metafísica: a alma coletiva, o inconsciente coletivo, o espírito do povo etc. (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p.41). A questão das ideologias apresentada nas obras de Bakhtin e Vigotski, afinal, compreende o atravessamento social pela consciência individual. Para Volochinov/Bakhtin (1929, apud, PONZIO, A., 2013, p.152), as ideologias se desnudam, apresentando-se como uma possibilidade de definição e de análise em geral pelo caráter semiótico de todos os fenômenos ideológicos, a premissa de que tudo é “signo”, portanto, é “ideológico”. A vida psíquica do indivíduo, que é social, é também condicionada pelas relações econômicas e ideológicas, como se lê em Vigotski: É de fato, uma vez que seja repudiada a existência de uma alma popular, de um espírito do povo, e assim por diante, como é possível fazer a distinção entre a psique da sociedade e aquela do indivíduo? É justamente a psicologia do indivíduo, é justamente aquilo que está no cérebro desse último, aquilo que constitui aquela realidade psíquica, objeto de pesquisa da psicologia social. Nenhuma outra realidade psíquica existe. Todo o resto, ou é metafísica ou é ideologia (VIGOTSKI, 1925, p.36, apud, PONZIO, A., 2013, p.152).

A Psicologia, diz Vigotski (2001a), não se ocupa das concretizações das cristalizações ideológicas. A verdadeira tarefa da Psicologia é a realidade psíquica de uma sociedade ( ibidem, p. 35). Nessa linha de pensamento, também se expressa Bakhtin (MEDVIÉDEV, 2012, p. 60) no sentido de que à Psicologia cabe a tarefa de penetrar no “laboratório social” onde as ideologias se criam e se formam. Esse é o ponto de união entre a Psicologia e a Ciência da Arte, e também, a Teoria da Literatura. É nesse espaço de interconexão que se evidencia a importância e o sentido de uma “psicologia da arte”, de onde a arte obtém seu próprio material.

In statu nascendi o artista os escuta, por vezes, melhor do que o “homem da ciência”, o filósofo ou o prático cautelosos. A formação do pensamento, da vontade ética e dos sentimentos, suas divagações, suas buscas pela realidade que ainda não ganharam forma, sua fermentação surda nas profundezas da assim chamada “psicologia social”, todo esse fluxo ainda não articulado da ideologia em formação reflete-se e refrata-se no conteúdo das obras literárias. O homem, sua vida e destino, seu “mundo interior”, sempre são refletidos pela literatura dentro do horizonte ideológico; tudo, aqui, realiza-se no mundo de parâmetros e valores ideológicos. O meio

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ideológico é a única ambiência na qual a vida pode realizar-se como objeto da representação literária (MEDVIÉDEV, 2012, p. 60).

Nesse movimento, criam-se as convergências entre os estudos da vida psíquica (em suas funções mentais superiores) e os estudos dos signos (pelas semioses e semiótica) e define-se o caráter mediado. Em suas pesquisas, Bakhtin e Vigotski identificam a especificidade das funções psíquicas humanas em seu caráter mediado. Tal mediação é realizada pelos instrumentos e signos produzidos e utilizados em práticas sociais determinadas. O “signo”, para Vigotski, opera como elemento da comunicação social, [...] não leva a mudanças no objeto da operação psicológica, é o meio da influência psicológica sobre o comportamento, do outro ou próprio, o meio da atividade interior, endereçado ao domínio do próprio homem; o signo é endereçado ao interior (VIGOTSKI, 1960, p. 137, apud PONZIO, A., 2013, p. 154).

Obrigatoriamente, a formação da consciência individual se dá pelo movimento dinâmico de “passagem ao interior” por meio dos signos utilizados no contato exterior em uma comunicação e em determinada cultura. Bakhtin e Vigotski compreendem os signos, a linguagem verbal em particular, como instrumentos de transmissão de significados (muito menos individuais, já prontos antes de sua organização sígnica) e instrumentos de significação, de constituição de experiências individuais, que também são sociais. Assim, como os signos. Augusto Ponzio (2013), citando Ferrario, faz um paralelo entre “sentido” e “significado”, para Vigotski, e “tema” e “significado”, para Volochinov/Bakhtin (2002). Segundo ele: Vigotski faz a distinção entre “sentido” e “significado”, entendendo “sentido da palavra” “o conjunto dos eventos psicológicos despertados na consciência da palavra”, ou seja, “uma formação dinâmica e complexa, com muitas zonas de estabilidade desigual”, e por “significado” “aquilo que permanece constante, mesmo quando acontecem mutações no ‘sentido’, em correspondência a uma mutação do contexto” (VIGOTSKI, 1934, p. 212), é em grande parte homóloga à distinção introduzida por Volochinov (1929) entre “tema” e “significado” (PONZIO, A., 2013, p. 155).

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Esse paralelo retoma o fenômeno da “reação verbal”, apresentado na obra “Freudismo” (BAKHTIN, 2001)8 e retomado no início deste capítulo, uma vez que se refere ao momento da enunciação em que se produzem os “sentidos” e pode se verificar os instrumentos e signos que se situam no contexto. Na obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 93-94), Bakhtin distingue o “signo” do “sinal”: o signo é descodificado, lembrando-se que o “processo de descodificação” é o de “compreensão”, característica que o torna adaptável a contextos situacionais, sempre novos e diversos; o sinal é identificado e nesse sentido tem função prefixada, imutável, de direção única: “não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada” (BAKHTIN, 2002). Para Bakhtin (2001), isso tudo se explica, pois:

Todos os atos essenciais da vida do homem são motivados por estímulos sociais nas condições do meio social. Se conhecermos apenas o componente físico do estímulo e só de forma abstrata o componente fisiológico resposta, então ainda entendemos muito pouco os atos humanos (BAKHTIN, 2001, p. 19).

Diante disso, nas pesquisas, há de se levar em conta que as reações verbais ou “respostas verbais” (discurso interior que acompanha cada ato consciente) não podem ser estudadas de modo exclusivamente fisiológico, e sim, como “manifestação especificamente social do organismo humano” (ibidem). Ainda na obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, pode-se verificar o posicionamento de Bakhtin e do Círculo sobre a irredutibilidade dos “signos sociais” aos “sinais”, material que se ocupava a reflexologia naquela época: Somente um concurso infeliz de circunstâncias e as inextirpáveis práticas da reflexão mecanicista puderam induzir certos pesquisadores a fazer desses “sinais”, praticamente, a chave da compreensão da linguagem e do psiquismo humano (do discurso interior) (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 94).

Nesse aspecto, fica evidente a analogia com a concepção de Vigotski acerca do signo, que também faz distinção entre “signo” e “sinal”, entre “significação” e Obra publicada oficialmente por Volochinov em 1927, em São Petersburgo – Rússia. No Brasil, a obra Freudismo: um esboço crítico foi traduzida por Paulo Bezerra com autoria de Bakhtin. Compreendo as obras dos pensadores que participavam do círculo de Bakhtin como as obras de Bakhitn e seu Círculo. 8

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“sinalização”, entre a compreensão da linguagem e a simples expressão de reações correspondentes a sinais sonoros (VIGOTSKI, 1960, p. 125-133, apud, PONZIO, A., 2013, p. 156). O comportamento humano e a comunicação social seguem formas de comportamento histórico-social como a consciência, a linguagem etc., por isso, o terceiro componente da “resposta verbal” (ou “reação verbal”), pensada por Bakhtin/Volochinov (2001), possui um caráter sociológico, que diz respeito ao “significado das palavras” e o modo de “compreensão desse significado”. A “reação verbal”, como prefiro mencionar, nesse caráter, se apresenta na forma de “discurso exterior” e de “discurso interior”, no qual consiste todo o ato de consciência. Tanto o discurso interior (consciência) quanto o exterior (materialidade do signo) são feitos constituídos de material histórico-social (PONZIO, A., 2013, p. 157). As funções psíquicas que caracterizam o comportamento humano, afirma Bakhtin/Volochinov (2001), podem ser compreendidas em termos objetivosociológicos, verbal e não-verbal, em ações e em discursos (interior e exterior). A consciência, como uma das funções mentais superiores psíquicas, é linguagem, é “discurso interior” e “exterior”, ambos objetivos, materiais, histórico-sociais. O meio social deu ao homem as palavras e as uniu a determinados significados e apreciações; o mesmo meio social não cessa de determinar e controlar as reações verbalizadas do homem ao longo de toda sua vida. Por isso, todo o verbal no comportamento do homem (assim os discursos exterior e interior) de maneira nenhuma pode ser criado (sic) atribuído a um sujeito individual tomado isoladamente, pois não pertence a mas sim ao seu grupo social (ao seu ambiente social) (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2001, p. 87).

Disso decorre que a formação individual, em ambas as teorias bakhtiniana e vigotskiana é, antes de tudo, formação social, coletiva, em comunidade e faz parte de uma ideologia que é também social. Não há ação verbal individual que seja propriedade privada e exclusiva, mas que pertence a um grupo social. Para Augusto Ponzio (2013),

A consciência faz parte da ideologia social de certa comunidade, de certo grupo, de certa classe. Cada conteúdo da consciência individual não é nunca algo imediato, espontâneo, privado, um dado

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primário e original; esse é sempre, ao mesmo tempo, resultado e momento, parte ativa, de uma elaboração ideológica segundo códigos sociais, é já mediado por certa organização cultural, por certa tradição histórica; é um anel da mesma cadeia da criatividade ideológica da qual fazem parte os mais refinados produtos da cultura (PONZIO, A., 2013, p. 157-158).

É fato de que na sociedade, o nível de desenvolvimento, da consciência (psique individual) e da ideologia é diferente em cada ser humano, mas entre eles não existe uma diferença de princípio. A diferença se dá no grau de elaboração dos conceitos e conteúdos da consciência, pela diferente capacidade de utilização e apropriação dos instrumentos e signos como produtos sociais. Portanto, referem-se à diferença de processamento semiótico (sígnico) ou processamento verbal. Entre a consciência (psique individual) e a ideologia social existe uma continuidade como as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro ou em um concerto, nas diferentes reuniões sociais, “em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológicas, nos encontros fortuitos

da

vida

cotidiana,

nas

relações

de

caráter

político

etc.”

(VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 41), em que a primeira (consciência), como discurso interior, se apropria da segunda (ideologia social), como discurso exterior. Nunca chegaremos às raízes verdadeiras e essenciais de uma enunciação singular se as procurarmos apenas nos limites de um organismo individual singular, mesmo quando tal enunciação concernir aos aspectos pelo visto mais pessoais e íntimos da vida de um homem. Toda motivação do comportamento de um individuo, toda tomada de consciência de si mesmo (porque a autoconsciência sempre é verbal, sempre consiste em encontrar um determinado complexo verbal) e a colocação de si mesmo sob determinada norma social, é, por assim dizer, a socialização de si mesmo e do seu ato. Ao tomar consciência de mim mesmo, eu tento como que olhar para mim pelos olhos de outra pessoa, de outro representante do meu grupo social, da minha classe. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2001, p. 88).

Neste recorte quis evidenciar os pontos de convergência entre as teorias de Bakhtin e seu Círculo e de Vigotski para delimitar o ponto de vista desta pesquisa que se dá no “território social” como lugar da ideologia recheada de “material social dos signos criados pelo homem” em um processo histórico-social. Ambas as teorias tem foco no desenvolvimento do ser humano, partindo da consciência que toma

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forma e substância no material dos signos, criados em um grupo organizado e no movimento de interação social, nas enunciações diversas. As atividades mentais (BAKHTIN, 2011) ou funções mentais superiores (VYGOTSKY, 1988) se instauram nesse “lugar da ideologia” como lugar objetivo, material, indo de signo a signo em uma corrente forte, fluídica e ininterrupta. O significado de um signo é expresso por um outro signo, cujo significado é expresso por um outro signo, e assim, num processo continuum. Nesse processo, “o homem é um signo” também, diz Peirce (BONFANTINI, 2003). Falando de significado refiro-me à língua, reportando-me ao discurso metafórico da fábula grega antiga de “Aquiles e a tartaruga”, ilustração apresentada no prenúncio 2 – abertura deste capítulo, na qual “Aquiles” representa a língua como sistema fechado, limitado em si. E a “tartaruga” representa a significância, que está sempre avante ao significado, inacessível à “língua” como instrumento e cilada linguística. A tartaruga do poder da significância, enunciação irrepetível, se mostra sempre como “outro”, ineliminável, indizível, indisponível e antipático à língua representacional. Por isso, para Bakhtin, a característica singular do signo é a sua ideologicidade, considerado no âmbito dos sistemas sígnicos histórico-socialcultural. O signo como objeto material adquire uma função ideológica.

A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas. A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 36).

A consciência do ser humano como “inquilino do edifício social” se relaciona com os signos ideológicos que lhe são exteriores, somente nessa relação intercorpórea socialmente organizada é que o objeto material externo pode ser signo. Tudo o que faz parte da realidade material pode tornar-se signo e adquire tal valor somente na dimensão histórico-social, campo que embasa esta pesquisa. Os processos psíquicos fundamentais do homem, por meio da consciência, como a percepção, a memória, a associação, o raciocínio, o cálculo etc. tem sua

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origem na prática social e mudam com as variações dessa prática e da organização das relações sociais e identificam-se no signo em geral (PONZIO, A., 2013). Segundo Augusto Ponzio (2013): O signo não é somente o meio, o veículo, para externar, para comunicar a experiência pessoal, mas é o material com o qual é constituída a própria experiência que, por mais que seja pessoal, privada, subjetiva, é organizada, desde a sua origem, em acordo com códigos e sistemas avaliativos sociais [...] (PONZIO, A., 2013, p. 163).

Nesse horizonte discursivo, Volochinov (2002) diz que entre “experiência interior ou pessoal” e a “sua expressão” não existe salto qualitativo, trata-se de processos inteiramente semióticos, nos quais se dá a passagem de um tipo de material sígnico para um outro sem fugir à materialidade dos signos. Daí sua afirmação de que “tudo que é ideológico possui um valor semiótico” (ibidem, p. 32) Ponzio (2013) explica a noção do termo “signo ideológico”, que pode parecer redundante devido ao acréscimo de “ideológico” ao termo “signo”, que pertence ao “território social”, portanto, por natureza, é “ideológico”. Ainda, segundo o pesquisador, com o referido acréscimo, Bakhtin entende referir-se aos signos propriamente humanos, histórico-sociais. Nisso consiste que o ponto de vista, o contexto situacional e a orientação prático-avaliativa são “socialmente determinados” e a “ideologicidade, que coincide com a signicidade é um produto inteiramente social” (PONZIO, A., 2013, p. 175).

2.2 Bakhtin e a Arquitetônica da Responsabilidade

O filósofo russo Bakhtin (1898-1975), em suas formulações teóricas e filosóficas, retomou o conceito kantiano de “arquitetônica”, concebendo-o, segundo Luciano Ponzio (2013b),

[...] como dispositivo espaço-temporal e axiológico de organização do mundo centrado em torno de um eu em sua relação singular com os outros e com os acontecimentos. Com base em suas leituras filosóficas, cunha os conceitos centrais de sua pesquisa, como transgrediência, extraposição, extralocalização, ‘vnenakodimost’ (PONZIO, L., 2013b, p.49, grifos meus, [tradução minha]).

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Além de preocupar-se em compreender a vida do ponto de vista da Filosofia, Bakhtin também se interessou pela Literatura como criação verbal, em especial, pela relação entre “autor” e “herói”, posição verificada em essência no seu primeiro artigo de 1919, intitulado “Arte e Responsabilidade”. Em seguida, em 1920, apresenta sua Filosofia Moral, em outro texto, que tenho particular admiração, intitulado “Para uma filosofia do ato responsável”. A Filosofia e a Literatura permearam sua pesquisa e tornaram-se suas preferidas temáticas desde a adolescência, conforme a declaração de Bakhtin (2008) registrada por ocasião da entrevista feita por Viktor D. Duvakin, em 1973:

Pode-se dizer que comecei muito cedo a praticar um pensamento independente e a dedicar-me por conta própria à leitura de importantes livros filosóficos. E inicialmente eu era, acima de tudo, apaixonado exatamente por filosofia. E por literatura (BAKHTIN; DUVAKIN, 2008, p. 40).

E, por isso, já na primeira conversa com Duvakin, Bakhtin declarou-se: “Sou um filósofo. Sou um pensador.” (BAKHTIN; DUVAKIN, 2008, p.45). Esse pensador russo se ocupou das reflexões sobre a criação verbal, que podem ser estendidas à arte, de forma geral, e dos problemas de estética, sobretudo em função do seu interesse por Literatura. Na primeira fase de sua pesquisa, 19191924, Bakhtin focou sua visão sobre a problemática da Arte, não somente pelo interesse à Literatura, mas também em relação aos interesses por uma filosofia moral, em torno da questão da “responsabilidade” (PONZIO, L., 2008, p. 12). Os elementos que compõem a Filosofia Moral de Bakhtin foram expostos por ele a Maria Veniaminovna Yudina e Lev Vasileviche, em um dos passeios que fizeram perto de Nevel, sentados às margens de um lago, que passaram a chamá-lo de “Lago da Realidade Moral” (BAKHTIN; DUVAKIN, 2008, p. 240). Essa primeira fase das pesquisas de Bakhtin e do seu Círculo, interessa-me particularmente, pois dela retiro as categorias para análise do meu objeto como respostas a segunda questão deste trabalho. Assim, falo dos escritos de Bakhtin que me orientam a compor a arquitetônica da responsabilidade e com base também nas pesquisas efetivadas por Luciano Ponzio (2008), em seu livro Icona e Raffigurazione: Bakhtin, Malevich e Chagall. O primeiro artigo de Bakhtin escrito e publicado na Revista Russa “O dia da arte” [título traduzido por mim, com base no título italiano “Il giorno dell’arte”

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traduzido por Luciano Ponzio, da língua russa] foi Arte e responsabilidade de 1919. Nesse texto, Bakhtin delineia a essência de sua filosofia, mostra como a conexão entre “arte” e “vida” se realiza em uma mútua e recíproca responsabilidade e também de culpabilidade. Por isso, segundo Bakhtin (2011), “o poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte” (ibidem, p. XXXIV). Depois desse artigo, ainda na fase de 1920-1924, Bakhtin escreve mais três textos, todos com traduções em Língua Portuguesa, os quais menciono nesta pesquisa. O primeiro é “Para uma filosofia do ato responsável” (BAKHTIN, 2010b), publicado postumamente também. Nessa obra, o filósofo reflete sobre a responsabilidade moral “sem álibi”, que consiste em compreender que cada ser humano decide o próprio comportamento em relação a si mesmo, ao mundo e aos outros. De forma ampla, sua filosofia não é de ordem teórica e sim é da ordem de uma filosofia moral, pela qual cada sujeito deve observar a vida e refletir sobre ela do ponto de vista da “arte” (PONZIO, L., 2008, p. 13). O segundo texto é “O autor e o herói na atividade estética” 9, que foi publicado no livro “Estética da criação verbal”, de 1979, como primeiro capítulo. Segundo Luciano Ponzio (2008), esse texto de forma fragmentária foi publicado na versão russa original somente no ano de 1986, junto com o texto “Para uma filosofia do ato responsável”. É o texto considerado fundamental para os leitores e interessados nos conceitos principais da teoria bakhtiniana, concernente particularmente a “arte verbal”, à Literatura. Porém, a arquitetônica pensada por Bakhtin é ampla, podendo ser utilizada também para as diversas artes, para citar uma, por exemplo, as visuais. Para análise do meu objeto, esse texto é texto-base. O terceiro texto dessa primeira fase é o intitulado “Problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, publicado em 1975, na coletânea Questões de literatura e de estética – A teoria do romance (versão em português de 1988). Nesse texto, o discurso de Bakhtin é sobre a escritura literária, particularmente, organizado como crítica ao formalismo russo, que também será objeto de discussão É a versão que traz a tradução do nome do capítulo de “Estética da criação verbal” (1979) que mais se aproxima da tradução feita em italiano, diretamente da língua russa. Opto por gosto pela tradução que traz o termo herói, ao invés de personagem que está à disposição nas traduções mais recentes, como por exemplo a de 2011. 9

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no livro de 1928, de Pável Nikoláievitch Medviédev, chamado “O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica”. Além dessa temática, dentre outras coisas, um aspecto essencial discutido e de interesse para quem estuda os gêneros é a diferença entre forma composicional e forma arquitetônica. Nesses três artigos, Bakhtin mostra a relação entre “arte” e “vida”, de onde destaco

as

categorias

para

esta

pesquisa:

responsabilidade,

exotopia

e

inacabamento, interessantes e expressas nessa primeira fase da pesquisa bakhtiniana. Essas categorias estão imbricadas uma na outra, porém trabalhei de forma

didática

ao

expô-las

separadamente

assim

como

as

represento

cientificamente por meio da figura abaixo. Essas categorias percorrem toda a obra bakhtiniana, unificadas por um só tema em várias fases de desenvolvimento, como o próprio Bakhtin declara nos Apontamentos 1970-1971: “Minha paixão pelas variações e pela diversidade de termos aplicados a um fenômeno” (BAKHTIN, 2011, p. 392).

Figura 4: Esquema da Arquitetônica da Responsabilidade

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2.2.1 A estética da alteridade Bakhtin e o seu Círculo interessavam-se pela questão da dialogicidade que está estritamente ligada tanto à categoria de “alteridade” e sua insistência sobre a responsabilidade “sem álibi”, quanto às suas reflexões sobre a comicidade popular, sobre o carnavalesco, sobre o corpo não individualizado e separado de outros corpos, porém situado na intercorporeidade, portanto, indissolúvel e vital. Nesse sentido, para Bakhtin, o “diálogo” não é o encontro voluntário de pessoas (encontro marcado, horário de aulas, conversas em bares, reunião de trabalho etc.), mas a ligação que envolve a vida de cada ser humano, no seu agir cotidiano e situado, responsavelmente “sem álibi” (PONZIO, L., 2002, p. 19). Nas questões centrais que discutem a identidade do “eu”, da língua, classe, cultura, nação, Bakhtin mostra a presença irredutível da alteridade que opera uma revolução copernicana (PONZIO, L., 2002), no sentido de uma revolução de ideias, de transformação que altera o entendimento da relação entre o homem e o universo. Para tal abordagem, Bakhtin fala da imagem adequada do corpo como unidade, com o conceito de “corpo grotesco”, corpo inseparavelmente ligado a outros corpos (individual/coletivo; público/privado) como se exprime nos signos e na linguagem da cultura popular.

2.2.2 Arte e ato responsável – Responsabilidade como unidade Bakhtin, em seu livro Para uma filosofia do ato responsável (2010b), fala sobre o problema da conexão entre o “mundo da vida”, completamente vivenciada e o mundo considerado de um ponto de vista científico, filosófico, historiográfico, estético. Esse mundo pode ser chamado “mundo da cultura”, produto do homem na evolução social. Assim, o ponto de conexão mostrado por Bakhtin entre esses dois “mundos” (vida e arte) é o da “responsabilidade moral”, que é a “responsabilidade sem álibi”, que

se

distingue

da

“responsabilidade

especial”

ou

“técnica”

que

é

a

“responsabilidade com álibi”, que é relativa às funções ou papeis sociais, às convenções, aos contratos convencionais etc. e que são delimitadas, fechadas nas esferas das atividades humanas e técnicas. Essa responsabilidade com álibi também está relacionada àquela velha expressão conhecida: “saída pela tangente”,

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que é elaborada, inteligente e geralmente convincente, que reflete o “não se comprometer” com algo ou alguma coisa em dado momento. Portanto, para Bakhtin, a separação entre cultura e vida pode ser superada se o ser humano incluir a responsabilidade especial na responsabilidade moral. Esta é a questão da não-indiferença do ato responsável que estabelece uma relação entre a cultura e a vida; entre consciência cultural e consciência viva. Sem essa relação, os valores culturais, cognitivos, científicos, estéticos, políticos se mostram como valores absolutos, perdendo assim, cada possibilidade de verificação, de funcionalidade, de transformação (PONZIO, L., 2002, p. 25). Para Bakhtin (2011) a solução para compreender o problema da relação entre arte e vida, entre cultura e vida, entre responsabilidade especial e responsabilidade moral está no próprio sujeito, desde que tenha o entendimento de que: “Os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade” (BAKHTIN, 2011, p. XXXIII). Somente pela unidade da responsabilidade é que o sujeito pode garantir a ligação interna dos elementos da personalidade, pois “arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade” (ibidem, p. XXXIV). Em suma, a responsabilidade especial é compreendida como aquela relativa a um setor da cultura, a um papel social, a certa função técnica. Responsabilidade que é delimitada e que pode ser transferível a outros sujeitos que desempenhem o mesmo papel social. Para exemplificar, falo da substituição de uma professora de Língua Portuguesa, lotada em uma determinada escola pública, que se aposentou. No dia seguinte a oficialização de sua aposentadoria, os alunos continuam tendo aulas de Língua Portuguesa porque já foi contrata nova professora no lugar da professora que se aposentou. Por isso, à responsabilidade especial cabe substituição, pois depende da técnica, da capacidade teórica. Já a responsabilidade moral, responsabilidade sem álibi é compreendida como aquela que o sujeito não delega, não transfere a outros, que é própria de cada ser humano, independentemente do papel social (professora, pai, mãe, tio, avó, Papa, advogado etc.). Portanto, esse tipo de responsabilidade traduz a singularidade do ser humano, como único, como insubstituível por outro.

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Bakhtin (2010b) diz que o ato da atividade de cada sujeito é orientado segundo essa dupla responsabilidade, vislumbrada pela imagem do Jano bifronte 10, que olha em duas direções opostas: uma para o lado de domínio da cultura, da arte e a outra para o lado da singularidade irrepetível da vida (BAKHTIN, 2010b, p. 43).

Figura 5: Imagem de Jano, o deus romano das faces em direções opostas Fonte: Acesso em: 21 ago. 2013.

Bakhtin, ao se referir à imagem de Jano na obra “Para uma filosofia do ato responsável” (2010b), mostra a questão pela qual essa figura tem peso na realização da estética pensada por ele e na qual se encontram e convivem teoria e prática, história e contemporaneidade, teoria estética e fazer artístico. Segundo Bakhtin, cada sujeito deve encontrar um único plano para refletir em ambas as direções, deve “encontrar a unidade de uma responsabilidade bidirecional, seja em relação ao seu conteúdo (responsabilidade especial), seja em relação ao seu existir (responsabilidade moral)” (BAKHTIN, 2010b, p.43). Por isso, um pesquisador ocupa um lugar particular de sua unicidade, não intercambiável, seu ponto de vista é único, da mesma forma que o observado (objeto) lhe é único e irrepetível. A responsabilidade sem álibi mostra como o “eu” está em relacionamento com o outro, não-indiferente, mas com envolvimento concreto com o passado, o presente As duas direções opostas de Jano retratam a separação entre “mortais” e “imortais”, de um lado, a porta da esperança (Câncer) cruzada pelas almas mortais e de outro, a porta do Reconhecimento (Capricórnio),que é a porta dos deuses imortais. 10

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e o futuro de pessoais reais, das relações que estabelece na vida e na cultura. Cada sujeito em sua vivência só ocupa o seu lugar e ninguém pode ocupar o lugar do outro, a exemplo da vivência e sentimento de uma mãe ao perder um filho, que sente a morte de um filho. Ninguém sentirá a morte desse ser humano como a mãe dele. Cada um responde a uma concreta arquitetônica que tem como centro um “eu” com a sua responsabilidade moral, sem álibi. A visão da arquitetônica requer um ponto de vista que leve em conta os parâmetros fundamentais do sujeito situado: eu-para-mim, outro-para-mim, eu-paraoutro. Somente sobre essa base, cada sujeito pode construir valores e novas significações nas relações espaço-temporais da arquitetônica aqui desenvolvida, que se constitui e se distribui pelas dimensões da vida e da arte.

2.2.3 A relação indissociável entre responsabilidade, exotopia e inacabamento A arquitetônica da responsabilidade não pode ser entendida pelo mesmo sujeito em torno do qual o ato responsável se organiza. Esse sujeito é incapaz de ter uma visão ampla, porque esta requer um ponto de vista externo, requer uma posição exotópica. Conforme Luciano Ponzio (2008), essa arquitetônica [...] pode não ser compreendida se realizada pelo mesmo sujeito unitário em torno do qual ela se organiza, se pertencer ao gênero discursivo ‘confissão’ ou a algum outro gênero do discurso direto, que, como tal, seja incapaz de proporcionar uma visão global (PONZIO, L., 2008, P. 40)

Essa necessidade de exotopia deixa de lado a identificação, a identidade, e se não fosse assim, cada sujeito reproduziria uma só visão no lugar de duas posições reciprocamente externas, como reflete a imagem de Jano, que apresentei no item anterior. A compreensão desse ponto de vista exotópico não pode coincidir com o ponto de vista cognitivo, objetivo. A visão compreensiva deve inserir-se na vida para compreendê-la, a chamada “compreensão responsiva” na qual o sujeito ao relacionar-se responde voluntária ou involuntariamente. É um ser inacabado e o que descreve em atos deve ser aberto e inacabado.

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As três categorias que já mencionei,

responsabilidade, exotopia e

inacabamento, são centrais para se compreender a arquitetônica pensada para a “responsabilidade sem álibi” ou responsabilidade moral delineada por Bakhtin e mantêm entre si uma relação indissociável. Essa relação pertence ao ponto de vista estético, artístico, do gênero complexo no discurso da filosofia moral. Em suma, o filósofo russo individualiza no ponto de vista artístico a condição da arquitetônica do ato responsável e por consequência a sua rafiguração (PONZIO, L., 2002, p. 28). Por outro lado, a compreensão respondente requer uma relação entre dois centros de valor: “eu” e “outro”, que são os dois centros de valor pertencentes a uma mesma vida, segundo Luciano Ponzio (2002, pp. 28-29). Sobre isso, completa o pesquisador, é necessário que esses dois centros de valor permaneçam outros, não há graus de importância entre um e outro, pois não há sobreposição de pontos de vista, nem questão de superioridade de um em relação ao outro. Para Bakhtin, essa visão se realiza na arte, especificamente, na Literatura. A arte mostra uma visão arquitetônica organizada em torno de um centro de valor, um centro participativo, que é a visão do “eu” na sua singularidade como único, insubstituível e com suas limitações de tempo e de espaço, de extralocalização. Assim, os conceitos de alteridade e de exotopia têm uma relação próxima. O conceito de exotopia, como posicionamento do exterior, de distanciamento da obra estética e do sujeito, foi discutido por Bakhtin inicialmente no livro “Para uma filosofia do ato” (2010b), quando o pensador russo tratou da responsibilidade implicada na assinatura do autor. Para Amorim (2009, p. 25), “assinar é iluminar e validar o pensamento com aquilo que somente do meu lugar pode-se ver ou dizer. Esse lugar único daquele que pensa ou cria é aquele do conceito de exotopia (...)”. Ainda segundo Amorim (2006), a referência entre espaço-tempo interliga os dois conceitos que se apresentam nos referidos textos: O tempo é dimensão alteritária por excelência, pois é nele que, incessantemente, deixo de coincidir comigo mesmo. Sabemos que é no espaço que se mede o tempo e que, sem espacialização, o tempo é totalmente impalpável. Essa tensão aparece no conceito de exotopia tal como ele será desenvolvido no texto sobre o autor e o herói (AMORIM, 2006, p. 19).

Concluo esta parte, retomando a questão da alteridade, que é, portanto, uma condição possível para a compreensão capaz de configurar a arquitetônica da

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responsabilidade e de responder por ela. Esse conceito que se presentifica na identificação com o outro ocupará destaque também no capítulo “O autor e o herói na atividade estética” (BAKHTIN, 2011), do qual colho a compreensão para dissertar sobre a relação entre autor-herói na obra bakhtiniana.

2.2.4 A relação autor e herói Neste subtítulo, para falar da relação entre autor e herói, farei menção à obra Estética da criação verbal, publicada em 1979, como coletânea póstuma que recolhe vários escritos de Bakhtin. Essa obra mostra como os valores que se referem ao “eu” são esteticamente improdutíveis, sem consistência estética. Em todas as formas estéticas, a força organizadora é dada pelo valor do outro, da relação com o outro, considerada do ponto de vista da exterioridade, exotopia, excedente de visão. A compreensão da arquitetônica completamente vivida e a sua imagem podem ser mostradas na obra estética. A relação autor-herói é essencial desde que se permita manter os dois centros de valor, um considerando o outro na sua alteridade e, ao mesmo tempo, interagindo de sua posição exterior, com o ponto de vista transgrediente, ponto de vista outro (PONZIO, L., 2002, p. 30). Segundo Augusto Ponzio (2008), a reação do herói é representada não

[...] mais objetiva, mas objetificada, distanciada do autor-pessoa, ela é sua própria reação. Tanto a distinção entre ‘objetivo’ e ‘objetificado’ quanto a distinção entre o ‘autor-pessoa’ e ‘autor-criador’ desempenham um importante papel na concepção de Bakhtin e podem, de fato, ser traçadas por todo o curso de sua produção (PONZIO, A., 2008, p. 42).

Por isso, a relação entre autor e herói está no âmbito da atividade estética, no texto literário e ampliada para outros textos de ordem estética, como aborda Luciano Ponzio em seu livro “Icona e Raffigurazione” (PONZIO, L., 2008). O autor não é indiferente ao herói, mas reage a ele, às suas decisões, aos seus comportamentos verbais e não-verbais, aos seus valores, às suas escolhas, nos confrontos de situações, pessoais e coisas. Bakhtin fala de uma “reação a uma reação” (BAKHTIN, 1997, p. 26)11, individuando isso àquilo que constitui a condição Na tradução de Paulo Bezerra de 2011, p. 3, encontrei a expressão “uma resposta à resposta”, porém utilizarei a tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira, da edição de 1997. 11

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essencial da obra artística. Todavia, essa rafiguração (reação) não se mostra de maneira neutra, indiferente e não participativa. Isso indica a particular relação que na obra de arte se vem estabelecer nos confrontos da vida: a vida é vivida pelo herói; o autor deixa que o herói viva e reaja às suas próprias reações. Portanto, a reação do autor com a vida na obra artística não é mais direta, mas indireta, mediada pelo herói que se mostra pela a rafiguração (PONZIO, L., 2002, p.30). Destarte acontece na vida, pois reagimos à “reação” dos outros, mas fazendo assim, vivemos de forma direta, vivendo a vida “dentro da própria vida”, da esfera da vida cotidiana. Na arte, a vida refratada, que é a vida do herói, é vista “de fora”. Dessa forma, Bakhtin situa o autor como centro da arquitetônica da arte e o herói, como centro da arquitetônica da vida e a criação literária imerge completamente na existência humana.

[...] a vida não se encontra só fora da arte, mas também nela, no seu interior, em toda a plenitude do seu peso axiológico: social, político, cognitivo ou outro que seja. A arte é rica, ela não é seca nem especializada; o artista é um especialista só como artesão, isto é, só em relação ao material. [...] A atividade estética [...] cria a unidade concreta e intuitiva desses dois mundos, coloca o homem na natureza, compreendida como seu ambiente estético, humaniza a natureza e naturaliza o homem (BAKHTIN, 1998, p. 33).

2.2.4.1 Arquitetônica do autor: autor-homem e autor-criador O autor-criador faz parte do texto12 complexo, artístico, faz parte do mundo da arte. Já o autor-homem ou autor-pessoa se ocupa somente de textos primários e pertence à esfera da vida. No mesmo autor (homem e criador) há uma dupla orientação: a do autorcriador tem a possibilidade de criação, de uma construção nova do mundo, quando isso ocorre, o autor-homem se cala. Assim, o autor-homem deve se calar, esteticamente falando e esse movimento se chama exotopia, o mesmo que dizer que o autor-homem deve se distanciar do ponto de vista do autor-criador. Autor-criador se alimenta esteticamente na vida e trabalha entre arte e vida. Para representar essa arquitetônica do autor, Bakhtin (2011) retoma a imagem do 12

Trabalho com o termo texto compreendido como enunciado e, nesse sentido, relacionado também ao conceito de gênero discursivo, ambos pertencentes à teoria bakhtiniana.

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deus Jano bifronte, de dupla face, duplo sentido no mesmo tempo. O autor olha para o futuro e para o passado, também ao mesmo tempo; olha a vida real e vê uma outra possibilidade de vida, a vida do herói. O herói bakhtiniano é definido como o objeto de pesquisa, de estudo do autorcriador. O herói pode ser um personagem animado, em um romance, pode ser uma coisa inanimada, pode ser a história de uma cadeira, uma cor etc. Essa é uma das figuras para o conceito de herói bakhtiniano. O herói pode coincidir com o autor-homem ou autor-primário, no caso da escrita de uma autobiografia, de um diário, na esfera da vida. O diário e a autobiografia são textos primários. Mas, também, o herói pode coincidir com o autorcriador ou autor-secundário, quando escreve uma história de “faz de conta”, inventada, cheia de fantasias. Essa narrativa ficcional tem como protagonista um “eu” como “autor-criador”, na versão imaginária, em uma outra versão, fora da realidade. Esse tipo de escritura pertence à esfera da arte. O texto produzido é uma obra aberta, inacabada, que possibilita infinitas leituras. Outro exemplo é a questão de autorretrato, quando o artista pinta o seu rosto, paradoxalmente se tem a possibilidade de se mostrar, não como o autor-homem, não como identidade, mas como outro, como alteridade. O herói mostrado no autorretrato não é o autor-homem, mas é autor-criador, como este se vê e como deseja ser. Não é de fato como o autor-homem é na vida real e social, mas mostra sua alteridade, a outra parte do “eu” identitário. Nesse mesmo sentido de autor-criador, há a posição do poeta que não pode ser substituído por outro poeta porque sua visão é única no mundo. Essa responsabilidade insubstituível, Bakhtin chama de responsabilidade “sem álibi”. A responsabilidade do autor-homem, da esfera da vida, das funções sociais é uma responsabilidade com álibi, pois é técnica em relação à responsabilidade do autorcriador.

2.2.4.2 O diálogo: autor-herói-destinatário O diálogo no interior da obra, como Bakhtin mostra nos seus estudos sobre Dostoiévski, não é somente entre autor-criador e herói. A arquitetônica da obra artística é influenciada pelo diálogo com um terceiro protagonista, o destinatário

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(PONZIO, L., 2008, p. 33). Nessa relação, temos uma interação dialógica envolvendo os três parceiros principais:

Figura 6: Esquema da interação dialógica: autor-herói-destinatário

A obra é influenciada por essa relação de participação entre autor e herói; autor e destinatário; capaz de alcançar valores artísticos e de sair do “tempo pequeno”, dos interesses da contemporaneidade, da comunicação, vivendo no “tempo grande”, o tempo filosófico da criação estética. Essa relação não é subordinada à expectativa da ideologia dominante e o destinatário não coincide com o público. Para Bakhtin (2011), o destinatário é um elemento estrutural, interno à obra, que influencia fortemente a forma artística; interno ao seu discurso, como ouvinte, leitor, expectador, como destinatário ideal. Esse destinatário ideal é diferente do destinatário-público, a quem permanecem subalternos, por exemplo, o editor, o sistema capitalismo e burocrático, o mercado de arte, a galeria, os cálculos relativos à demanda de mercado etc. Evidente que o autor-criador também pode se interessar pelo público, não somente o autor-homem. Nesse caso, se o autor-criador dá atenção aos gostos e a exigência do público, esse fator é extrínseco, fora da arte, o que não contribui para o valor artístico da obra. Já ao contrário, se o autor-criador se mantém fora das exigências do público, a obra adquire valor artístico, o que significa também que essa relação se torna dialógica. O autor-criador, nesse caso, estabelece uma relação de alteridade com o outro.

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Na obra artística, o herói pode ser um homem, uma coisa, um sentimento, um animal, pode ser o próprio autor-homem, que se torna herói em sua obra autobiográfica e esta pode se tornar obra artística se o autor-homem mantém com ela uma relação de não-identificação, de participação à distância, de exotopia (PONZIO, L., 2008, p.34-35). O herói pode ser um personagem da obra narrativa, o elemento natural personificado em uma poesia lírica, uma noção abstrata como um vício ou uma virtude em uma obra alegórica. Numa obra pictórica, a cor, a figura geométrica, a exemplo do quadrado de Malevich, pode ser o herói. A diversidade do que se fala, o herói, na obra artística é múltipla. Em todos esses casos é na relação entre autor-herói-destinatário que se decide a estrutura da obra artística. Essa relação dialógica é interna à obra e se constitui como componente da obra. Esse tipo de diálogo se trata de um ponto de vista não necessariamente expresso verbalmente, mas também presente nas artes figurativas como: pintura, fotografia, cinema, Histórias em Quadrinhos etc. Para Bakhtin a relação autor e herói é uma relação entre arte e vida e, mais precisamente, uma relação entre conteúdo (arquitetônica centrada em torno do herói) e forma (arquitetônica centrada em torno do autor-criador, a arquitetônica da obra artística). Nos estudos do diálogo pela obra de Dostoiévski, Bakhtin demostra como a relação entre forma (autor, arte) e conteúdo (herói, vida) são dialogicamente estruturados (PONZIO, L., 2008, p. 35). Para Ponzio (ibidem), a relação entre autor-herói e forma-conteúdo é: 1. Uma relação dialógica do signo artístico com o signo da vida concreta. 2. Uma relação dialógica do ponto de vista artístico com o ponto de vista extra-artístico e valores da realidade social. 3. A relação dialógica da forma artística com o conteúdo da vida social. 4. A relação dialógica do valor estético com os valores extraestéticos. É nessa tensão dialógica, continua o pesquisador, que se constitui a “rafiguração”, a produção artística do mundo, que ao penetrar internamente à vida real com todos os seus valores instaura com essa vida uma relação dialógica do ponto de vista externo, exotópico. Firmando, assim, uma relação de alteridade, que a própria estrutura dialógica possibilita. A alteridade da forma artística, a alteridade do ponto de vista do autor-criador é o resultado de uma relação dialógica. É esse diálogo que permite sair da relação

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cognitiva, objetiva e de rafigurar a arquitetônica do ato responsável. Também é só pelo diálogo que se realiza a “responsabilidade” da obra de arte e a relação de responsabilidade recíproca entre arte e vida. E só na relação dialógica que se pode exercer uma exotopia, que não é nem indiferença e nem identificação (PONZIO, L., 2008, p. 36). Finalmente é o diálogo que faz o inacabamento do herói rafigurado na obra artística e que impede que o ponto de vista do autor-criador seja uma visão reduzida, resumida, sinóptico de um espectador externo que o abraça e o representa objetivamente. Em suma, o inacabamento do herói é a sua alteridade na relação dialógica com o autor-criador. Os estudos de Bakhtin sobre o diálogo (dialogismo) no romance de Dostoiévski, na questão da alteridade no projeto arquitetônico do autor, colaboram para o entendimento de que a obra artística se realiza e deve incluir os conceitos fundamentais de responsabilidade, exotopia e inacabamento e de forma intrínseca.

2.3 Vigotski e a mediação semiótica

Lev Semionovich Vigotski nasceu em Orsha - Bielorússia, em 17 de novembro de 1896 e morreu ainda jovem, de tuberculose, em Moscou no ano de 1934. Casouse e teve duas filhas. Após a escola secundária, em Gomel, aos 18 anos, Vigotski ingressou na Universidade de Moscou para estudar direito, filosofia e história. Durante seus estudos (secundários e universitários), adquiriu formação no domínio das Ciências Humanas: Língua e Linguística, Estética e Literatura, Filosofia e História, além de produzir ensaios sobre Literatura e Educação Estética. Aos 20 anos de idade escreveu um estudo sobre Hamlet. Poesia, teatro, Língua e problemas dos signos e da significação, Teorias da Literatura, cinema, problemas de História e de Filosofia, tudo o interessava intensamente, antes de passar a se dedicar à pesquisa em Psicologia. Após a revolução de 1917, na Rússia, tornou-se professor de Literatura e seu interesse por Psicologia intensificava-se com a leitura de Freud. Na função de professor, passou a se preocupar cada vez mais com os problemas referentes ao desenvolvimento da

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aprendizagem. A publicação da obra Psicologia da arte (2001a) conduziu Vigotski, definitivamente, para a Psicologia. Aos 28

anos,

devido

ao

seu

posicionamento

crítico

à

teoria

do

condicionamento de comportamentos, a Pavlov, foi convidado a pesquisar no Instituto de Psicologia de Moscou e, logo depois, criou o Instituto de Estudos das Deficiências. Coordenou também grupos de pesquisas sobre estados patológicos e não-patológicos em Psicologia. Trabalhou por 10 anos, em suas pesquisas, acompanhado por dois amigos pesquisadores, Luria e Leontiev, que deram continuidade às investigações iniciadas e publicaram postumamente sua obra. Vigotski pode ser considerado representante de uma outra maneira de entender a origem e evolução do psiquismo humano, as relações entre indivíduos e sociedade e, como consequência, um modo diferente de entender a Educação: a concepção interacionista (REGO, 2010, p. 92). Inspirado nos princípios do materialismo dialético, Vigotski considera o desenvolvimento da complexidade da estrutura humana como um processo de apropriação pelo homem da experiência histórica e cultural. Portanto, o biológico e o social não estão dissociados, organismo e meio exercem influência recíproca. A premissa é de que o homem se constitui através das suas interações sociais, por isso, é visto como alguém que transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada cultura. Diante desse percurso, seu pensamento ficou conhecido por sociointeracionista (REGO, 2010, p. 93).

2.3.1 Construção de conhecimentos Vigotski (1896-1934) parte da premissa que o desenvolvimento cognitivo não pode ser entendido sem referências ao contexto social e cultural. Para sua definição, ele focaliza mecanismos que são de origem e natureza sociais, peculiares ao ser humano. A teoria de Vigotski, por assim dizer, tem como um dos pilares a asserção de que os processos mentais superiores (pensamento, linguagem, comportamento volitivo, memória etc.) do indivíduo têm origem em processos sociais. O segundo pilar são os instrumentos e signos, que medeiam a relação dos sujeitos com os elementos extracorpóreos, de forma que os processos mentais só podem ser compreendidos se entendermos tais objetos da cultura.

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E por último, o terceiro pilar é o chamado “método genético-experimental”, utilizado por Vigotski na análise do desenvolvimento cognitivo do ser humano (MOREI RA, 1999, p. 109-110). Sua teoria tem tudo a ver com a sua atuação social. Vigotski foi, pessoalmente, muito engajado em atividades pedagógicas, era educador e muito competente para a profissão, segundo Ivic (2010). Foi muito atuante na sociedade, membro de diferentes órgãos dirigentes da Educação russa, fato que o levou a agir sobre problemas práticos com os quais se confrontava no sistema educacional soviético da época, “incluindo o da passagem do ensino ‘complexo’ para o ensino por disciplinas escolares na escola primária”. Em sua vida, interessou-se pela educação de crianças deficientes (IVIC, 2010, p.30). Retomando o desenvolvimento cognitivo, Vigotski diz que tal desenvolvimento é a conversão de relações sociais em funções mentais de forma mediada, pois é na socialização que se dá o desenvolvimento dos processos mentais superiores. A mediação inclui o uso de instrumentos e signos. Segundo Moreira (1999): Um instrumento é algo que pode ser usado para fazer alguma coisa; um signo é algo que significa alguma outra coisa. Existem três tipos de signos: 1) indicadores, são aqueles que têm uma relação de causa e efeito com aquilo que significam (fumaça indica fogo, porque é causada por fogo); 2) icônicos, são imagens ou desenhos daquilo que significam; 3) simbólicos, são os que têm uma relação abstrata com o que significam. As palavras, por exemplo, são signos linguísticos, os números são signos matemáticos; a linguagem, falada e escrita, e a matemática são sistemas de signos (MOREIRA, 1999, p. 111).

Esses três tipos de signos fazem referência à teoria de Peirce, quando ele os distingue em três valências: índice, símbolo e ícone. Da mesma forma, tais signos ou tais valências referem-se aos instrumentos na concepção vigotskiana. Por sua vez, o uso desses instrumentos na mediação, como domínio da natureza ao invés de somente utilizá-los, é parte da tradição de Marx e Engels, que influenciou Vigotski. A inovação desse pensador russo se deu ao estender essa ideia para o uso de signos, pois segundo ele, as sociedades criam não só instrumentos, mas também sistemas de signos. Instrumentos e signos são criados ao longo da história da humanidade, evoluem, modificam-se e influenciam o desenvolvimento social e cultural. Por isso,

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para Vigotski, é com a apropriação (internalização) de “instrumentos” e “signos” produzidos na sociedade, na cultura, que se dá o desenvolvimento cognitivo (VYGOTSKY, 1988). Essa capacidade é apenas do ser humano, responsável pelo desenvolvimento das funções mentais ou dos processos psicológicos superiores. Necessariamente, como se vê, o desenvolvimento passa por uma etapa externa, extracorpórea, uma vez que cada uma das funções mentais superiores é, antes, uma função social. Assim, segundo Moreira (1999), citando Vigotski (1930, apud Rivière, 1987), a essas funções se aplicaria a Lei da Dupla Formação, de Vigotski: No desenvolvimento cultural da criança toda função aparece duas vezes – primeiro, em nível social, e, depois, em nível individual; primeiro, entre pessoas (interpessoal, interpsicológica) e, depois, se dá no interior da própria criança (intrapessoal, intrapsicológica). Todas as funções mentais superiores se originam como relações entre seres humanos (MOREIRA, 1999, p. 111).

2.3.1.1 Interação social Vigotski ao assumir a valorização da cultura e das relações nas quais os sujeitos produzem cultura e também são produzidos culturalmente rompe com a ideia de determinação exclusivamente biológica para o ser humano. A crítica de Vigotski (1988) recai sobre a determinação de que as condições de aprendizagem estão determinadas pelo desenvolvimento biológico de um indivíduo, contrário ao pensamento de Piaget. Para ele, não é preciso esperar que se atinja certa idade, por exemplo, sete anos, para uma criança se alfabetizar. Acreditava que é possível aprender antes mesmo de se desenvolver uma estrutura para isso e de que em muitas situações conquista-se a maturidade, desenvolvem-se aprendizagens.

Quando se demonstrou que a capacidade de crianças com iguais níveis de desenvolvimento mental, para aprender sob a orientação de um professor, variava enormemente, tornou-se evidente que aquelas crianças não tinham a mesma idade mental e que o curso subsequente de seu aprendizado seria, obviamente, diferente. Essa diferença entre doze e oito anos ou entre nove e oito anos, é o que nós chamamos a zona de desenvolvimento proximal. Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível

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de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1988, p. 97).

Por isso, o elemento estruturante da teoria de desenvolvimento cognitivo de Vigotski, ou teoria da mediação, conforme assevera Moreira (1999), é a interação entre o sujeito e o contexto. Assim, na perspectiva vigotskiana, a interação social é o veículo fundamental para a apropriação dos conhecimentos social, histórico e culturalmente construídos, passando da relação de intercorpórea para intracorpórea. Relacionados à teoria bakhtiniana teremos o movimento do “discurso externo” (“instrumentos” e “signos”) para o “discurso interno” (consciência). A interação social pressupõe no mínimo a relação entre duas consciências e um certo grau de reciprocidade, volitividade e envolvimento ativo. Nesse movimento relacional há sempre eventos de experiências e conhecimentos, tanto qualitativos quanto quantitativos. Em sociedade não se vive isolado, por mais que se queira, sempre estamos abertos e nos relacionando com outros. As crianças, por exemplo, interagem com os pais, com outros adultos e as pessoas, de forma geral, interagem em casa, na rua, na escola, na igreja, no comércio etc. Para Vigotski (1988), a interação social é fundamental ao desenvolvimento cognitivo de cada ser humano e, por isso, a questão dos significados está diretamente ligada a ela.

2.3.1.2 Pensamento e linguagem A teoria de Vigotski foi constituída por referenciais diversos compondo um complexo quadro dialógico que reflete em si tanto o momento histórico pelo qual o autor desenvolveu sua teoria, quanto pelo seu processo de formação intelectual, que preconizava os estudos e a formação filosófica. Vigotski resgata a Linguística de Humboldt a partir de Alexander Potiebnyá13, cujas reflexões estão presentes em sua crítica realizada a essa teoria quando faz uma análise da reação estética da obra de arte em “A Psicologia da Arte” (1925). A teoria de Humboldt, além de constituir-se como um braço da história do pensamento moderno, oferece a Vigotski elementos básicos para a formulação de sua teoria sobre pensamento e linguagem englobando a forma. Vigotski 13

Famoso filólogo e linguista russo que Vigotski comenta ao longo de toda a sua obra.

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compreendia a estrutura do signo dotado de uma forma externa, uma imagem e um significado que se articulam a partir das relações entre o homem e a vida. Não é foco desta pesquisa, porém penso que seja interessante considerar o fato de que Humboldt e Potiebnyá também consideravam o significado das palavras como algo em contínua expansão, modificação. É desse fato que Vigotski se apropria para discorrer sobre o processo de evolução histórica da linguagem e a existência de modalidades de pensamento, divergindo nos aspectos internos e no percurso pela qual a palavra chega a designar, a nominar. Sua teoria sobre pensamento e linguagem foi se moldando conforme os contextos de sua carreira, o que propiciou um princípio geral que articulou o desenvolvimento cognitivo da criança em relação ao meio social. Marca maior de seus escritos. Isso também veio a contribuir com a reestruturação da própria Psicologia, pois sua teoria se constituiu como uma ruptura epistemológica nesse campo do conhecimento, modificando a forma de compreender e analisar as funções mentais superiores. O processo histórico foi compreendido por Vigotski (1988) e em sua teorização teve influência de Marx, até por conta de sua base epistemológica, a do materialismo dialético, como aquele que evolui do mais simples ao mais complexo. Esse pensamento partiu dos teóricos da Psicologia animal e da Psicologia do desenvolvimento infantil e teve por objetivo analisar um fenômeno histórico pela perspectiva que considera sua historicidade. Daí seus escritos com evidências históricas sobre o pensamento verbal. Vigotski, em sua formação intelectual, constituiu-se a partir de momentos históricos diversos vivenciados na Rússia pré-revolucionária, partindo das leituras de Wilhelm Von Humboldt e Alexander Potiebnyá, de quem obteve o ponto de partida para sua concepção de linguagem, e na Rússia pós-revolução de 1917, com as leituras dos representantes do materialismo histórico-dialético - Marx e Engels, de quem estabeleceu o território conceitual com o qual interpretou a relação dialética entre o homem e o mundo. O ponto forte da sua teorização da linguagem é a internalização (reconstrução interna) de signos que é fundamental para o desenvolvimento humano. Segundo Vigotski, os signos medeiam a relação do sujeito com outros sujeitos e consigo mesmo. Um dos processos mentais, a consciência humana, em seu sentido mais pleno, é particularmente o “contato social consigo mesmo”. Essa relação

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intracorpórea tem uma estrutura semiótica, constitui-se por signos, portanto, com origem cultural e função instrumental de adaptação. “É por isso que Vigotski diz que a análise dos signos é o único método adequado para investigar a consciência humana’” (RIVIÈRE, 1987, p. 93, apud MOREIRA, p. 113).

O desenvolvimento dos processos que finalmente resultam na formação de conceitos, começa na fase mais precoce da infância, mas as funções intelectuais que, numa combinação específica, formam a base psicológica do processo de formação de conceitos amadurece, se configura e se desenvolve somente na puberdade. Antes dessa idade, encontramos determinadas formações intelectuais que realizam funções semelhantes àquelas dos verdadeiros conceitos, ainda por surgir. No que diz respeito à composição, estrutura e operação, esses equivalentes funcionais dos conceitos têm, para com os conceitos verdadeiros, uma relação semelhante à do embrião com o organismo plenamente desenvolvido (VYGOTSKY, 2001c, p. 167).

O ser humano para internalizar signos precisa captar os significados já construídos social, histórica e culturalmente para então compartilhar significados aceitos no contexto social em que se encontra (MOREIRA, 1999, p. 113). Vigotski e os autores da corrente sócio-histórica se interessavam pelo mecanismo da apropriação, do saber e do fazer, via cultura, via sociedade porque acreditavam que “o desenvolvimento humano passa, necessariamente, pelo outro” e, que “portanto, a história de cada uma das funções psíquicas é uma história social” (PINO, 2005, p. 66). As funções psíquicas foram pensadas em termos de “pensamento” e de “linguagem” compreendendo as atividades e o desenvolvimento humano como resultado do trabalho, desse que se materializa no produto, que não é só o “apenas fazer”. O tema do pensamento e da linguagem situa-se entre as questões de Psicologia em que aparece em primeiro plano a relação entre as diversas funções mentais superiores, nas diversas atividades da consciência. Aqui se instala uma relação entre o pensamento e a palavra (linguagem), como uma unidade do pensamento verbalizado. Por isso, o método de investigação, naquele momento, era o método da análise semântica, da análise do sentido da linguagem restrita, do significado da palavra.

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Em termos de desenvolvimento, essa relação entre pensamento e linguagem se realiza de forma diversa, não paralela e desigual. Há momentos em que o desenvolvimento converge e diverge constantemente, cruzam-se, nivelam-se, confluem-se e bifurcam-se (IVIC, 2010, p.42). A linguagem interior (discurso interior, consciência) e o pensamento nascem nas inter-relações diversamente estabelecidas no dia-a-dia e dali se originam os processos volitivos no ser humano. Cito como processo volitivo: aprender a andar de bicicleta, jogar bola, podendo ser na idade escolar ou na fase adulta. A diferença essencial consiste nas relações das aprendizagens com o processo de desenvolvimento, por isso, não há limite de idade para o “aprender”. Algumas aprendizagens não alteram as características psicointelectuais do homem, por exemplo, aprender a manusear o computador, um laptop, um smartphone. Isso significa, na realidade, estabelecer certo número de hábitos, comportamentos. Uma aprendizagem desse gênero aproveita um desenvolvimento já elaborado e completo, sem muitos desafios ao cérebro e, por isso, contribui pouco para o desenvolvimento geral do ser humano. A relação entre os processos de aprendizagem e de desenvolvimento, ainda que ligados, não se produzem de modo simétrico, porém, estão todos ligados ao desenvolvimento do sistema nervoso central. A aprendizagem escolar da aritmética escrita, ciências naturais ou de outros conhecimentos e saberes orienta e estimula os processos internos de desenvolvimento. Nessa linha de pensamento, vale dizer que cada disciplina escolar tem uma relação própria com o curso do desenvolvimento da criança (ou estudante) e que muda com a passagem de uma etapa para outra. Para Ivic (2010), a análise do processo educativo consiste em verificar o desenvolvimento interno no momento da aprendizagem escolar. Essa ideia está centrada na hipótese de Vigotski (1988) sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizagem, que em síntese: [...] pressupõe necessariamente que o processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, o processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem, que cria a área de desenvolvimento potencial. O segundo momento essencial dessa hipótese é a afirmação de que aprendizagem e desenvolvimento da criança, ainda que diretamente ligados, nunca se produzem de modo simétrico e paralelo (VYGOTSKY, 1988, p. 116).

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2.3.1.3 Zona de desenvolvimento proximal Vigotski distingue dois níveis de desenvolvimento: “desenvolvimento real ou efetivo” e “desenvolvimento potencial”. O desenvolvimento real é percebido pelas atividades cognitivas que o ser humano realiza sem auxílio de um parceiro mais experiente, refere-se às conquistas já efetivadas. O desenvolvimento potencial é manifestado nas atividades que o sujeito realiza com auxílio, relaciona-se às capacidades em vias de serem construídas e têm potencialidade de se concretizarem

como

estrutura

cognitiva.

Desse

pensamento

decorre-se

a

valorização de Vigotski e de seus seguidores sobre as experiências interativas, colaborativas e coletivas de conhecimento. Segundo Vigotski (1988), por meio de sua teoria, o ser humano pode amadurecer intelectualmente e atingir um nível real de desenvolvimento cognitivo se for desafiado por seus parceiros. Dessa forma, aprendizagem e desenvolvimento estão em relação de mútua criação. Formalmente, a zona de desenvolvimento proximal (ZPD) é definida por Vigotski como a distância entre o nível de desenvolvimento cognitivo real do indivíduo,

tal

como

medido

por

sua

capacidade

de

resolver

problemas

independentemente, e o nível de desenvolvimento potencial, tal como medido através da solução de problemas sob orientação (de um adulto, no caso de uma criança) ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1988, p. 97). A ZPD define as funções que ainda não amadureceram, mas que estão no processo de maturação. É uma medida do potencial de aprendizagem; representa a região na qual o desenvolvimento cognitivo ocorre; é dinâmica e

está

constantemente mudando. A interação social que provoca a aprendizagem deve ocorrer dentro da ZPD e também tem papel importante nos limites dessa zona. O limite inferior é fixado pelo nível real de desenvolvimento e o limite superior é determinado por processos instrucionais que podem ocorrer no brincar, no ensino formal ou informal, no trabalho independentemente do contexto, pois o que importante é a interação social (DRISCOLL, 1995, p. 233, apud, MOREIRA, 1999, p.120). Para Vigotski, a educação estava ligada ao desenvolvimento e este, ocorre no meio sociocultural real, nas relações sociais, e suas análises, a partir disso, recaem

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sobre a educação escolar. Em sua concepção, a educação não se resume à aquisição de informações múltiplas, mas é uma das fontes de desenvolvimento, entendida como “desenvolvimento artificial” (IVIC, 2010). Por ter sido professor, Vigotski atribuía a maior importância aos conteúdos dos programas educacionais, destacando, sobretudo, os aspectos estruturais e instrumentais desses conteúdos. Nessa instituição social, mesmo que se faça abstração dos conteúdos que aí são ensinados, subentende-se certa estruturação do tempo, do espaço e repousa sobre ela um sistema de relações sociais (entre aluno e professor, entre os próprios alunos, entre a escola e o entorno etc.). Como se viu, o “desenvolvimento artificial”, por meio da escolarização, é devido, em grande parte, a esses aspectos peculiares da esfera escolar e da cultura. Segundo Ivic (2010, p. 30), a noção vigotskiana de “zona de desenvolvimento proximal” tem de início uma marca teórica. Assim, para Vigotski, a criança não deveria ser considerada isolada de seu contexto sociocultural, por isso a noção sociocultural de desenvolvimento permeia toda a sua obra. Sua justificava se dá com o fato de que os vínculos estabelecidos com os outros fazem parte de sua própria natureza constituinte. Essa situação ilustra a concepção de ZPD desenvolvida por Vigotski, em que a “zona” é definida como a diferença expressa em unidades de tempo, entre os desempenhos da criança por si própria e os desempenhos da mesma criança trabalhando-se em colaboração e assistência de um “par mais avançado”. A concepção da ZPD, aplicada à pedagogia, colabora no sentido de que não é necessário se esperar que a criança atinja um nível de desenvolvimento “X” para se iniciar a educação escolar. O desenvolvimento é mais produtivo se a criança tem contato com aprendizagens novas que atuam na ZPD e que podem ser adquiridas com mediação e não deixada por conta própria (IVIC, 2010, p.33). Essa relação pode acontecer com qualquer ser humano e de idade diferenciada, pois aprender está no percurso da vida como ação contínua. As formas de colaboração na ZPD de um aprendiz por um adulto ou par mais avançado são diversas: exemplos dados, diálogos que façam apelo à reflexão, demonstrações de métodos, anotações dos conhecimentos por parte do par avançado etc. Notadamente é a colaboração nas atividades partilhadas, quaisquer que sejam: leitura, escrita, escritura, desenho, canto etc., que é o fator construtivo do desenvolvimento, é o princípio básico da noção da ZPD.

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A concepção da ZPD não está restrita ao âmbito educacional, ela está inserida e pode ser observada nas diversas esferas da atividade humana. Aqui cito a aplicação dessa noção na educação em família. Posso dizer que os exemplos de minha mãe e sua vontade de se comunicar com sua progenitora, por meio de carta, fazendo-me escrevê-las, orientou-me justamente na ZPD, criando-me experiências com a escrita e possibilitando-me encontros com a cultura do grupo no qual me constitui. Evidentemente que sua orientação foi espontânea e suas intervenções foram precisamente na ZPD. Em sua tese, Vigotski (2001c) repetiu muitas vezes de que a Educação deve ser orientada mais para a ZPD proporcionando ao aprendiz novas experiências e encontros com sua cultura, apoiada em um mediador na função de parceiro nas construções comuns, depois, como organizador da aprendizagem. Vale registrar, segundo Ivic (2010) que

Vygotsky pouco desenvolveu sua crítica da educação escolar a não ser na linha de seu sistema de pensamento: a escola não ensina sempre sistemas de conhecimento, mas, frequentemente, sobrecarrega os alunos com fatos isolados e desprovidos de sentido; os conteúdos escolares nem comportam instrumentos nem técnicas intelectuais e, muitas vezes, não há, na escola, interações sociais capazes de construir saberes etc. (IVIC, 2010, p. 31).

Mesmo com essas críticas iniciais, a educação escolar, por sua vez, segundo Ivic (2010, p. 33-34), “poderia ser considerada como um meio poderoso de reforço do desenvolvimento natural, ou como uma fonte relativamente independente.” A pedagogia ainda pode avançar mais na utilização dessa teoria, no tempo atual, pois tem potencial como instrumento de renovação educacional, processando-se melhor o seu funcionamento e aplicando-se em mais pesquisas.

2.3.1.4 Interação entre aprendizagem e desenvolvimento Vigotski atribui enorme importância à dimensão social que fornece instrumentos e signos os quais medeiam a relação do sujeito com o mundo. Assim, cada ser humano mobiliza seus mecanismos psicológicos e as formas de agir neste mundo.

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A aprendizagem, nesse contexto, se torna condição para o desenvolvimento das funções mentais superiores, desde que se situe na ZPD, portanto, ela é necessária,

possibilita

e

movimenta

o

desenvolvimento.

Pensando-se

no

desenvolvimento pleno do ser humano, este só será possível dependendo do aprendizado que se realiza em um determinado grupo cultural e a partir da interação social. É importante retomar que a interação social promove a aprendizagem que deve ocorrer dentro da ZPD. Dessa forma, para Vigotski (2008), o bom ensino é aquele que está à frente do desenvolvimento cognitivo e o orienta. Por consequência, a boa aprendizagem é aquela que está avançada em relação ao desenvolvimento. No ensino, precisa-se levar em conta o papel do professor como mediador na aquisição de conceitos contextualizados e aceitos culturalmente, a relação entre professor e alunos dentro da ZPD, a origem social das funções mentais superiores, a linguagem, os instrumentos e signos. O ensino se concretiza quando aluno e professor compartilham significados, pois cada um na relação estabelecida se compromete e se responsabiliza por aprender

e

ensinar

respectivamente.

Evidentemente

que

nesse

processo

interacional, o professor também aprende, na medida em que clarifica ou incorpora significados à sua organização cognitiva, mas como professor, ele ou ela está em posição distinta do aluno no que se refere ao domínio de instrumentos, signos e sistemas de signos, contextualmente aceitos, que já internalizou e que o aluno deverá ainda internalizar (MOREIRA, 1999, p. 120).

Esse processo de aprendizagem para o aprendiz é compreendido como complexo,

evolutivo

e

com

muitos

matizes

contextuais

e

depende,

consequentemente, da interação social, do dialogismo intenso, da relação com o contexto, dos instrumentos, dos signos em busca da construção de sentidos.

2.3.2 Arte e Educação Estética Vigotski, além da Psicologia, também se dedicou a pensar Arte e Educação estética. Destaco duas obras que são referências nesses assuntos: Psicologia da Arte (1925) e Psicologia Pedagógica (1926), traduzidas e publicadas no Brasil pela Editora Martins Fontes. Na obra Psicologia da Arte (1925), o autor reflete sobre o

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sentido da arte para a experiência e a formação humana e a concebe como prática necessariamente mediada pela linguagem e marcada por seu caráter transformador de emoções e ideias. Segundo Vigotski (2001a): A verdadeira natureza da arte sempre implica em algo que transforma, que supera o sentimento comum e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma inquietação, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que nelas está contido. E este algo a mais supera esses sentimentos, elimina esses sentimentos, transforma a sua água em vinho, e assim se realiza a mais importante missão da arte (VYGOTSKY, 2001a, p. 307).

Diante dessa reflexão, a função central da Arte não se reduz a contagiar e provocar emoções, se isso procedesse todas as obras contagiariam um grande número de pessoas, fato que é constatável mesmo nos tempos atuais. Isso indica que entre o leitor e a obra de arte existe uma série de fenômenos da linguagem que impedem uma transitividade mecânica e objetiva sobre o objeto estético para quem o percebe. Ainda sobre pensar a função da arte, Vigotski (2001a) acrescenta que a obra não se limita à expressão de sentimentos. Ele entende que, por meio da arte, refletimos sobre o mundo criando ideias, linguagens, saberes, conceitos e transformando nossos sentimentos. Assim, conclui que a Arte não é uma prática determinada pelo exterior, seja pelo autor ou leitor, e nem espontânea sem mediações, mas uma técnica criada para dar uma existência social aos sentimentos, oportunizando ao ser humano que se relacione com esses sentimentos como um objeto, algo externo que se interioriza por meio da catarse, em termos da categoria aristotélica. O social existe até mesmo onde há apenas um homem e as suas emoções individuais. Por isso, quando a arte realiza a catarse e arrasta para esse fogo purificador as comoções mais íntimas e mais vitalmente importantes de uma alma individual, o seu efeito é um efeito social. A questão não se dá da maneira como representa a teoria do contágio, segundo a qual o sentimento que nasce em um indivíduo contagia a todos, torna-se social; ocorre exatamente o contrário. A refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade. A peculiaridade essencialíssima do homem, diferentemente do animal, consiste em que ele introduz e separa de seu corpo tanto o dispositivo da técnica quanto o

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dispositivo do conhecimento científico, que se tornaram instrumentos da sociedade. De igual maneira, a arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser. Seria mais correto dizer que o sentimento não se torna social, mas, ao contrário, torna-se pessoal,quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar social (VYGOTSKY, 2001a, p. 315).

Ao delinear sua concepção estética no livro Psicologia da Arte (1925), Vigotski contextualiza o momento em que teoriza, em que foi lançado um número excessivo de teorias diversas, cada uma das quais explicava a seu modo os processos da criação artística ou da percepção. Para o psicólogo russo só interessava aquelas teorias que constituíam um mínimo de sistematização acabada. Naquele momento histórico, a fórmula primeira e mais conhecida com que se depara Vigotski ao enfocar a Arte se define da seguinte forma: “arte como conhecimento”. Essa compreensão da Arte tem os estudos de Humboldt como ponto de partida. Bakhtin (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002) fala das duas grandes linhas de estudo da linguagem àquela época, uma que denominou de “objetivismo abstrato” e a outra de “subjetivismo idealista”. É interessante retomar tal consideração, visto que Vigotski também fala desses estudos e faz sua crítica à Psicologia que tenta fixar todo problema da Arte na percepção. Por isso, Vigotski (2001a, p. 25) defende a tese de que a Psicologia da arte deveria “tomar por base não o autor e o espectador, mas a própria obra de arte”. Falando um pouco do subjetivismo idealista, seu representante foi Wilhelm Von Humboldt (1767-1835), político e filólogo alemão que fundou a Universidade de Berlim, além de ser considerado um dos criadores da linguística comparada. Alexander Potiebnyá, representante da literatura e linguística russa, e seus adeptos adotam as premissas de Humboldt na Rússia, à época de Bakhtin. Vigotski concorda com os estudos de Potiebnyá que afirmaram “que os processos psicológicos da percepção e criação da obra de arte coincidem com os processos similares na percepção e na criação de determinada palavra” (VYGOTSKY, 2001a, p 34). Nesse mesmo pensamento, Vigotski acrescenta: “ocorre que na obra de arte a imagem está ligada ao conteúdo, como na palavra a representação está ligada à imagem sensorial ou ao conceito” (ibidem).

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A noção apresentada pelo filólogo e linguista Potiebnyá, um pouco modificada, aproxima-se, segundo Vigotski (IVIC, 2010, p. 102), à doutrina amplamente difundida e originária da remota Antiguidade, segundo a qual a arte é o conhecimento da sabedoria e tem como um dos seus fins principais pregar lições de moral e servir de guia. O ponto de vista dessa teoria é a analogia entre a atividade e o desenvolvimento da Língua e a Arte, pois naquele momento, a linguística era a ciência da expressão e coincidia com a estética. Para essa noção como sistema psicológico de Linguística, em cada palavra se pode distinguir três elementos básicos: a forma sonora externa; a forma interna (ou imagem) e o significado. Nisso consiste o pensamento que é posto em relevo na explicação dos fenômenos da Arte, na análise do prazer estético. Para Vigotski (2001a), a própria natureza psicológica da palavra quase sempre exclui a representação evidente. Quando o poeta diz “cavalo”, sua palavra não inclui a imagem (crina, corrida etc.). Essa complementação é acrescentada pelo leitor e de forma arbitrária. Costuma-se dizer, segundo Vigotski, que o leitor ou a fantasia do leitor completa a imagem produzida pelo artista (IVIC, 2010, p. 108). O que corresponderia à produção de sentidos na enunciação para Bakhtin (2011). Nessa obra, Vigotski (2001a) analisou todas as formas de representação verbal e o surgimento das representações como a fábula, o drama, a poesia, o teatro, a pintura, a escultura, a arquitetura. E citando Meyer chega à conclusão de que a representatividade e a evidência sensorial não são propriedade psicológica da emoção poética e que o conteúdo de toda a descrição poética está fora da imagem por sua própria essência.

Por conseguinte, em toda parte formos forçados a entrar em contradição com o dogma que afirmava ser o conteúdo sensorial em arte um fim em si mesmo. Distrair os nossos sentimentos não constitui objetivo final na intenção artística. O principal em música é o inaudível, nas artes plásticas, o invisível e o intangível (VYGOTSKY, 2001a, p.55).

A percepção, que decorre do contato com os signos exteriores, é um dos problemas mais importantes da Psicologia da arte, juntamente com os problemas do

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“sentimento” e da “imaginação”. Porquanto, segundo Vigotski ([1915], 1999)14, é preciso não iniciar a psicologia da arte no campo das emoções estéticas elementares e sim com os problemas do sentimento e da imaginação. O comum na Psicologia da arte é buscar nas coisas belas a expressão da Arte e não na relação dos sentimentos e da imaginação. Ao longo de sua obra Vigotski esclarece que o estudo em Psicologia da arte deve ser feito pela combinação dos diversos pontos de vista sobre imaginação e sentimento. Somente o estudo desses elementos em relação direta com a percepção possibilita uma interpretação mais ampla. Entendia, também, que o processo de conhecimento e criatividade se estende à ação de quem conhece pelas interações com: contextos, pessoas, objetos, desafios etc. Isso oportuniza respostas e provocações cognitivas, bem como afetivas, produzidas nas e pelas interações. Vigotski (2001a) afirma que o ser humano não é passivo em seu processo de conhecimento, como mero depositário de informações, mas que tem compreensão, reelabora enunciados, constrói sentidos em tudo que vê, ouve e lê diversamente. Vigotski (2001a) nega o padrão de comportamento imposto (em crítica ao materialismo dialético como sua referência epistemológica) e, devido a sua visão dialética, permite a compreensão de que o ser humano é construído em interação até conflituosa. Em todo momento, na obra Psicologia da Arte, o autor reitera sua posição em favor de um estudo da arte baseado não apenas no ato perceptivo sensível da obra, seja ela visual ou escrita, mas no processo de formação intelectual que acompanha o processo de interpretação de determinada obra, como processo de pensamento completo e integrado. Nesse trabalho, analisa a fábula, o drama, a poesia, o teatro, a pintura, a escultura, a arquitetura. Vigotski cita Marx, que aponta como questão mais importante da arte a elucidação de causas, a exemplo da epopeia grega e as tragédias de Shakespeare, obras de épocas há muito passadas, e que mantém hoje o sentido de norma e modelo inacessível, mesmo sem conexão com a base das ideias e relações em que elas se situavam. Mesmo que a mitologia tenha perdido o sentido real, exceto o

14Obra

intitulada A tragédia de Hamlet, príncipe de Dinamarca (1915-1916), traduzida em português, na qual Vigotski apresenta sua crítica que ele próprio denominou como “crítica do leitor”. No prefácio consta a essência de sua proposta: “Essa crítica não se alimenta de conhecimento científico ou de pensamento filosófico, mas de impressão artística imediata. É uma crítica francamente subjetiva, que nada pretende, uma crítica do leitor” (VYGOTSKY, 1999, p. XVIII).

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histórico para os tempos contemporâneos, Vigotski (2001a) diz que a arte grega, base da mitologia grega, continua a emocionar leitores atuais. Essa teoria, segundo o russo, combina com a teoria da mutabilidade permanente da ideologia da sociedade, em função da mudança das relações de produção. Situação que se mostra como e por que muda a impressão psicológica de uma mesma obra de arte, mesmo mantendo-se inalterada a forma dessa obra. Nesse sentido, não se refere ao conteúdo que o autor inseriu na obra, mas o conteúdo (os valores axiológicos) que o leitor traz de sua parte. O conteúdo da obra de arte é uma grandeza dependente e variável, uma função do psiquismo do homem social situado e modifica-se com esse psiquismo (IVIC, 2010, p. 107). Em suma, “o mérito do artista não está no minimum de conteúdo que ele imaginava ao criar, mas em certa flexibilidade da imagem, na força da forma interna para suscitar o mais variado conteúdo.” (VYGOTSKY, 2001a, p. 45). Disso tudo, Vigotski conclui que pareceria explicada a mutabilidade histórica da obra de arte. Além disso, para Vigotski (1915) o leitor é alçado a um grau de importância fundamental na relação com a obra, pois a ele são atribuídas a reprodução, recriação e elucidação da referida obra. Essa é uma das peculiaridades trabalhadas no ensaio de 1915, na qual Vigotski também considera que “uma vez criada, a obra de arte separa-se do seu criador; não existe sem o leitor; é apenas uma possibilidade que o leitor realiza” (VIGOTSKI, 1999, p. XIX). Essa concepção sobre a obra, o autor e o leitor com sua compreensão responsiva na leitura de uma obra é análoga às ideias de Bakhtin, com relação à obra que vive no “tempo grande” ou “grande tempo” (BAKHTIN, 2011, p. 410), o tempo filosófico, que só condensa sentidos no momento da enunciação, por isso o leitor contemporâneo, com sua constituição histórico-social e ideológica, seus valores axiológicos “completará” o sentido da obra. Vigotski (2001b), ao analisar a questão da Educação Estética, critica as várias maneiras de utilização da arte na escola com objetivos estranhos e externos à relação propriamente estética entre o sujeito e a obra de arte. Sua critica se focaliza na Educação Estética que não promove aquele que seria o momento da vivência estética, conhecida como catarse:

Uma observação bastante breve da reação estética já nos permite observar que o seu objetivo final não é repetir alguma reação real,

98

mas superá-la e vencê-la. [...] Assim, a arte não é uma complementação da vida, mas decorre daquilo que no homem é superior à vida. [...] toda obra de arte sempre implica algum tema real concreto ou uma emoção absolutamente comum ligada ao mundo. Mas a tarefa do estilo e da forma consiste justamente em superar esse tema referencial real ou o colorido emocional do objeto e transformá-lo em algo absolutamente novo. Por isso desde tempos remotos compreende-se o sentido da atividade estética como catarse, ou seja, libertação do espírito diante das paixões que o atormentam. [...] E só por esse caminho podemos compreender os valores cognitivo, moral e emocional da arte. É indubitável que estes podem existir, mas apenas como momento secundário, como certo efeito da obra de arte que não surge senão imediatamente após a plena realização da ação estética. O efeito moral da arte existe, sem dúvida, e se manifesta em certa elucidação interior do mundo psíquico, em certa superação dos conflitos íntimos e, consequentemente, na libertação de certas forças constrangidas e reprimidas, particularmente das forças do comportamento moral (VYGOTSKY, 2001b, p. 339-340).

Disso, compreende-se que Vigotski (2001b) não desconsidera a importância dos efeitos morais em uma vivência estética, porém enfatiza que a relação do sujeito com a obra de arte deve ser, por natureza, estética e somente pela mediação dessa relação é que a arte poderá exercer um papel formativo. A Educação Estética pode ser considerada um processo de aproximação da arte como conhecimento e é ação mediada por linguagem e pensamento, de forma articulada à experiência individual emocional. Devido às leituras das obras de Freud e suas formulações sobre o inconsciente, Vigotski (2001a) defendia que:

E provável que os futuros estudos mostrem que o ato artístico não é um ato místico celestial da nossa alma, mas um ato tão real quanto todos os outros movimentos do nosso ser, só que, por sua complexidade, superior a todos os demais. [...] o ato artístico é um ato criador e não pode ser recriado por meio de operações puramente conscientes [...] (VYGOTSKY, 2001a, p. 325).

Assim, penso que tal aproximação acontece no espaço cultural e requer Educação que não associe e nem reduza a Arte (os textos complexos) a lições de moral, à política, a conteúdos de disciplinas ou campos diversos. Creio na Educação como trabalho que permite consciência sobre emoções, que permite ampliação nos modos de pensar e dizer a vida, em um movimento

99

dialógico de experiência e de criação de linguagem entre consciente e inconsciente, entre individual e social, entre emoção e razão. Para Vigotski (2001b), a Educação Estética não se limita a uma formação do artista, quando diz que se propõe a aproximar o ser humano da Arte e do mundo, da vida de forma a ampliar o universo cultural, bem como as condições de pensar e se expressar na vida. Ele fala de formação do ser humano de maneira ampla, como direito de todos os homens em criar linguagem e de melhor se expressar na vida. Por isso, para o autor, a Arte não pode ser entendida como complementação no conjunto da experiência humana. Isso provoca transformação na visão do professor e, em especial, a do sujeito aprendiz. O objeto desta pesquisa, o Caderno Se bem me lembro... traz uma antiga questão que percorre o âmbito educacional, que é a questão do talento. Vigotski (2001b) também nos oferece elementos para se pensar nesse assunto. Segundo ele, talento não é algo com o qual alguns nascem, como se pensa no senso comum, mas é algo com o qual todos nascem e alguns perdem no decorrer de seu desenvolvimento, por diversos fatores. Um desses fatores se refere ao processo educacional que busca padrões únicos e universais nas manifestações culturais, bem como a padrões dessa mesma natureza referente às inteligências e criações artísticas. A concepção de Educação Estética, segundo Vigotski (2001b), não deve permitir esta perda, pois O talento se torna também uma tarefa da educação, enquanto na antiga psicologia figurava apenas como condição e fato dessa educação. [...] A possibilidade criadora para que cada um de nós se torne um coparticipante de Shakespeare em suas (sic) tragédias e de Beethoven em suas sinfonias é o indicador mais nítido de que em cada um nós existem um Shakespeare e um Beethoven (VYGOTSKY, 2001b, p. 363).

Assim, os aspectos das obras desses pensadores têm lugar de destaque: a Arquitetônica da Responsabilidade, de Bakhtin, falando sobre o agir e produzir discursos pelo sujeito situado; a relação autor, herói e obra tanto para Bakhtin quanto Vigotski; a preocupação de Vigotski em defender a necessidade da vivência estética da obra de arte, na produção e construção de sentido; a relação de

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aprendizagem e desenvolvimento a partir da colaboração de um par mais avançado; a concepção de Educação Estética. Esses aspectos das teorias de Bakhtin e Vigotski, discutidos neste capítulo, são conceitos atravessados pelo viés da interação social, da enunciação em num dado contexto, tempo e espaço social e indicam possibilidades para a produção de compreensões responsivas e mais avanços nas pesquisas em Ciências Humanas, Filosofia da Linguagem, Educação, Linguística e Literatura, bem como em relação às práticas pedagógicas em escolas públicas.

101

Prenúncio do Capítulo 3

Figura 7: "Ecriture-Peinture, Le arti Sorelle" (2007), autor: Luciano Ponzio; Fonte: cortesia do autor

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CAPITULO 3 O TEXTO EM POTENCIAL

A atitude humana é um texto em potencial [...] Bakhtin (2011, p. 312) Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento. Bakhtin (idem, p. 308)

Neste capítulo, delimito o que passo a compreender por “texto”, depois das leituras realizadas dentro e fora da academia, sob o ponto de vista das Ciências Humanas, Linguística, Semiótica, Antropologia Cultural e Filosofia da Linguagem. Esse percurso de leitura, que vai da Filosofia de Heráclito a Emmanuel Lévinas, estendendo-se aos estudos da Semiótica e Linguística, ajuda-me a refletir em grande parte sobre a vida, a linguagem e a cultura, em que o homem é signo, sob a configuração de textos. Esses textos me deram base para situar e analisar o meu objeto de pesquisa. Para tanto, lanço mão fundamentalmente dos conceitos da Semiótica do Texto, que abarca a concepção de texto, difundida e ampliada com as teorias, particularmente, de Bakhtin, Peirce, Barthes, Sebeok e as contribuições dos pesquisadores-estudiosos da linguagem de Universidades da Itália (Bari e Lecce), nas quais desenvolvi parte desta pesquisa: Professor Augusto Ponzio, na Filosofia da linguagem; Professora Maria Solimini, na Filosofia e Antropologia Cultural; Professor Luciano Ponzio, na Semiótica do texto artístico; e Professora Susan Petrilli, na Filosofia e Semioética. Ao optar pela terminologia “texto”, a contribuição me é dada por Luciano Ponzio, em seu livro “Visioni del testo”, publicado pela primeira vez em 2002, quando, entre tantos pontos de vista, faz uma diferenciação entre “texto” e “discurso”, além de poder estabelecer uma relação direta, enunciativa com minha pesquisa. Segundo o pesquisador Luciano Ponzio (2002), o termo “texto” sugere algo de “estabilidade”, “estaticidade” com caráter de autoridade, mais ou menos questionável e o “discurso”, algo de “fluidez” e “dinamicidade”, ligado mais diretamente ao exercício comunicativo ordinário, significando também “movimento”. É evidente que o “texto” e o “discurso” têm uma relação dialógica, uma relação

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mútua, de não-indiferença e aberta à alteridade, dessa forma, um está imbricado no outro. Ainda nesse elo discursivo, o que me chama atenção é o “texto” como rede sígnica, corpo organizado e estruturado por um diálogo interno, para além do diálogo entre corpos (“texto” e “discurso”). O “discurso” como “movimento” perpassa essa enunciação corpórea e interfere na elaboração dos textos. Nesse percurso teórico sobre “textos”, apresento o “texto” como enunciado concreto, objeto palpável, não como algo já dado, mas com capacidade dialógica que melhor evidencia o “discurso” que ali perpassa. Conforme diz Luciano Ponzio (2002): A dialogicidade sígnica, ou seja, inventiva, inovação, alteridade, parece depender mais do discurso do que do texto. Todavia, é sobre este aspecto que temos insistido bastante, está nos textos e em certos tipos de gêneros textuais, que a dialogicidade dos discursos pode ser melhor evidenciada, seja na sua faticidade e atualidade, seja na sua potencialidade. Não só: é neles que a dialogicidade pode ser conscientemente desenvolvida (PONZIO, L., 2002, p. 117, [tradução minha]).

Para dar sequência, aponto algumas particularidades principais sobre o entendimento de “texto”, conforme estabelecidos por esses estudiosos, com o intuito de clarificar a compreensão “moderna” do que virá posteriormente e deixar evidente sob qual perspectiva sigo em minha pesquisa. Esse percurso faz parte da metodologia aqui empregada.

3.1 Ponto de partida: primeiros apontamentos

A proposta deste trabalho é a da concepção enunciativo-discursiva de Bakhtin e do seu Círculo, portanto, o recorte teórico tem como ponto de partida a teoria e as reflexões feitas pelo filósofo russo. Bakhtin em seu artigo sobre O problema do texto na Linguística, na Filologia e em outras Ciências Humanas, publicado em Estética da Criação Verbal (2011, p. 307), apresenta a configuração do texto em um sentido amplo, como “conjunto coerente de signos” que tido como “dado primário” (oral ou escrito) interdisciplinar ou

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mesmo dado “implícito”, tem uma essência que extrapola a ação física. Nisso concerne o conceito de dialogismo que permeia toda a obra bakhtiniana. Os textos dialogam com outros textos e no mínimo entre “duas consciências”: pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos (BAKHTIN, 2011, p. 307). E é nessa parte que se apresenta o diferencial nos estudos de Bakhtin, a importância fundamental da história do pensamento no campo das Ciências Humanas orientada para o pensamento, para a produção de sentido, para a significação dada pelo outro, que se concretiza na enunciação, somente em forma de texto. A atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude humana e não ação física) unicamente no contexto dialógico da própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de motivos) (BAKHTIN, 2011, p. 312).

Por isso, Bakhtin fala que “não existe um texto dos textos, potencial e único”, pois cada texto não pode ser traduzido até o fim, haverá sempre um continuum de relações dialógicas entre textos e no interior dos textos. O que já se sabe é que os textos não se constituirão jamais como “textos puros”. Assim, cada “texto como enunciado” (ibidem, p. 308), é algo individual, singular, único, mas também pleno de enunciados outros, uma metáfora para a escuta da alteridade na vida e na arte. Retomando a questão do sujeito comunicativo, o homem é um texto por natureza, seu corpo “fala”, pois está em diálogo, antes mesmo que se expresse verbalmente. Por isso, as Ciências Humanas se referem ao homem em sua especificidade. O homem que se expressa sempre, que cria textos, ainda que potenciais, que podem comunicar, que podem informar e interagir, mesmo contra sua vontade ou consciência, fato concernente à responsabilidade “sem álibi”. O homem ao estar no mundo responde a ele, “reação a uma reação” (BAKHTIN, 2011), posiciona-se frente a si mesmo, às coisas, aos outros e ao mundo em que está situado. 3.2 Por uma Semiótica do Texto

Nesta seção, apresento alguns fundamentos da teoria do texto com as visões da Filosofia, Semiótica, Linguística, Literatura, Antropologia, Filosofia da linguagem e

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Antropologia Cultural. Por Semiótica do Texto compreende-se, nesta pesquisa, a teoria desenvolvida a partir de Peirce (1839-1914), que vai se ocupar do signo verbal e não-verbal, configurando a Semiótica como uma Semiótica de Interpretação, como Ciência da Significação e do sentido, em diálogo com outros filósofos e pensadores modernos. Existem outras teorias semióticas, como a desenvolvida por A. J. Greimas e pelo Grupo de Investigações Sêmio-linguísticas, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, porém, neste trabalho, faço o percurso já citado, sem fazer comparações entre as diferentes propostas. A opção pela Semiótica de linha americana deve-se a motivos vários, alguns mesmo de ordem pessoal por meio das leituras e merece referência o caráter de “teoria do texto” que assume a visão aqui escolhida. Na leitura das obras de Bakhtin e de Barthes, verifiquei que ambos abordam, na configuração de seus conceitos, a teoria de texto. Diante disso, penso que ao abordar tal teoria e apresentar a visão única de cada um com intersecções, como faço ao longo deste capítulo, só foi possível considerando a relevância dos discursos e dos conceitos das Ciências dos Signos, que se insere em diversos campos de atuação e orientação discursiva. Posso, nesse entendimento, dizer que todas as Ciências são Ciências dos signos. Primeiramente, situo como Ciências dos Signos as próprias Ciências da vida: Medicina, Sintomatologia, Biologia, Biossemiótica, Genética etc. pelo fato de que se ocupam diretamente dos signos da vida, da semiose. Além dessas, cito a Lógica, as Ciências Físicas e Matemáticas porque foram criadas pelo homem; e em particular, as Ciências Humanas, como: Psicologia, Sociologia, Antropologia Cultural, Linguística, Crítica Literária, Estética etc. Por fim, elenco as duas que diretamente identifico como sendo as centrais Ciências dos Signos: a Semiótica que é a teoria ou Ciência Geral dos signos e a Filosofia da Linguagem, como pensamento geral e mestre de todas as Ciências e, por isso, ocupa-se de todas as linguagens e seus fundamentos. Em seu cerne estão: os fundamentos da Semiótica, da Lógica, da Matemática, das Ciências Humanas e Naturais, da Filosofia etc. Contemporaneamente, a Semiótica ampliou seu campo de pesquisa e orientações. Para citar algumas, temos a Antropossemiótica, que se ocupa dos signos do homem em sua trajetória histórico-social e cultural; a Zoossemiótica, que estuda as trocas sígnicas entre os outros animais, tidos como irracionais; a

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Cibersemiótica, que pesquisa os signos entre os instrumentos tecnológicos, e no sistema interno de cada máquina, como o computador, por exemplo; a Fitossemiótica, que se ocupa dos signos das plantas; a Micossemiótica, que estuda os signos relativos aos fungos; entre outros desdobramentos existentes. Todas essas categorias fazem parte de diversas orientações que se preocupam e trabalham com a “vida” em toda sua inteireza: “onde está a semiose, fica a vida”, ao contrário não existe comunicação, não existe uma troca entre signos, segundo Sebeok (PETRILLI; PONZIO, 2011, p. 31). Por tudo isso, acredito que esses filósofos e linguistas, em suas pesquisas tomaram o texto, em direções diversas e conexas às vezes, por considerarem que tal conceito tem relação muito próxima com o signo em geral. O signo-texto passa a se apropriar dos conceitos da Semiótica e configura-se em uma visão particular como Semiótica do texto. Após essa breve contextualização e posicionamento teórico, falo da intersecção entre a teoria da Semiótica e a teoria da linguagem e cultura bakhtiniana, pois me interessa e por contribuir para o estabelecimento de uma Semiótica da Interpretação, Semiótica da Comunicação e, em especial, uma Semiótica do Texto, pela qual demarco minhas análises discursivas dialógicas.

3.2.1 A Semiótica e a linguagem como prática social Como abordei inicialmente, todas as Ciências na contemporaneidade se ocupam de observar a vida, principalmente as ações e o comportamento humano em situações cotidianas, que estão impregnadas de signos e que enunciam algo, com respeito aos estudos da Semiótica – um dos saberes mais antigo da humanidade – e da Linguística (que trata dos signos linguísticos). Duas áreas do conhecimento reconhecidas recentemente. O estudo da Semiótica (uma ciência considerada nova, sistematizada a partir de Charles Sanders Peirce – 1839/1914) tem seu princípio na antiguidade com uma disciplina da área médica chamada Semeiotica, onde Hipócrates15 e Galeno16 são os Médico notável, nasceu em Cós – Grécia (460 a.C.), considerado o “Pai da Medicina” pelas suas contribuições à saúde, muitas delas são válidas ainda hoje. 16 Cláudio Galeno, mais conhecido como Galeno de Pérgamo, nasceu em Pérgamo – Grécia (129 a.C.), proeminente médico e filósofo romano de origem grega, foi influenciado pelas teorias de Hipócrates e o primeiro que conduziu pesquisas fisiológicas. 15

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notáveis precursores nas observações dos sinais, dos sintomas que o corpo apresentava (Sintomatologia médica). Assim, tais sinais davam a direção ao tratamento, possibilitando a indicação dos remédios para a cura do paciente. Esses sintomas no corpo davam indícios da causa, diziam algo ao outro (nesse caso, ao médico). Nessa perspectiva, pode-se dizer que o corpo humano é material primário que confere a função de signo ideológico a um fenômeno da realidade como material externo (material secundário semiótico em relação ao corpo), da vida, elementos esses chamados de extracorpóreos. O corpo humano, portanto, é o ponto de partida da valoração axiológica que se manifesta no material externo, ou, melhor dizendo, surge da relação do corpo com os elementos do contexto. Essas expressões são percebidas

em

nossas

práticas

sociais,

cada

vez mais

apuradas,

mais

desenvolvidas. De lá para cá, os sinais, os signos na vida não deixaram de nos importar, em especial, na esfera educacional, em que os profissionais da Educação agem em prol de uma Educação inclusiva e de qualidade social. Aqui vale a pena separar e referenciar duas das necessidades mais recentes, principalmente no âmbito educacional, uma delas surgiu com a inclusão de alunos surdos nas escolas públicas, o que exige de todos os profissionais da educação o conhecimento e a utilização da linguagem dos sinais (Língua Brasileira de Sinais), e a outra diz respeito à linguagem tecnológica, que também demanda formação, pois a cada dia, em virtude do desenvolvimento econômico e social, essa linguagem evolui aceleradamente e influencia todos os setores da atividade humana. Os homens da idade da pedra utilizaram por longo tempo a escritura, aquela particular e específica tendência do animal-humano a raciocinar/refletir sobre os signos próprios e a dos outros e, assim, configurar o seu mundo. Uma escritura ante litteram (não-verbal: por gestos, por mímica, corporal, pictural etc.) que só secundariamente, no curso da História muda para instrumento de comunicação, como escrita, transcrição da oralidade. O “falar” vem depois da “linguagem” (ou escritura). Portanto, o homem não é “o animal que fala”, mas, sobretudo, o animal que

faz

escritura

como

capacidade

sintática

desconstrução e reconstrução (SEBEOK, 2003).

de

modelação:

construção,

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3.2.2 A linguagem como escritura Aqui penso ser oportuno falar um pouco mais sobre a linguagem que, na verdade, despojada da identificação incorreta atrelada à função de comunicação, não é nada mais do que um "sistema de modelação da espécie-específica humana" (SEBEOK, 2003). Em outras palavras, a linguagem é a capacidade de produzir, por meio de um número limitado de elementos, um número infinito de mundos diferentes, fantasias, utopias, diferentes realidades por meio da capacidade sintática17. Conforme Sebeok (2003), podemos definir a linguagem como um processo de modelagem e, como tal, não nasceu com a função de atender as necessidades de comunicação, mas sim como "faculdade de conceituação, organização do mundo". Durante a evolução humana, a linguagem apareceu antes da fala que foi desenvolvida como um sistema de comunicação alternativo a outros sistemas de comunicação não-verbal, baseado em um “processo de adaptação regulada pela linguagem de modelação” (PONZIO, A., 2002, p. 56). Posteriormente, com a evolução da espécie humana, em termos de desenvolvimento da capacidade física, neurológica e do aparelho fonador, na sequência de um processo de "exattamento"18, a linguagem verbal e a conversação assumem funções de comunicação. Enquanto a linguagem é o processo de modelagem primária, a conversa e a fala são processos de modelagem secundária. A linguagem verbal ou língua como sistema de códigos compreende a modelagem secundária (ibidem, p.57). Na verdade, sem a linguagem como modelagem primária, segundo a Teoria de Modelação de Sebeok, não teríamos a linguagem verbal ou a palavra falada e o homem não seria capaz de combinar os diferentes fonemas, morfemas, palavras, frases para fazer pronunciamentos intermináveis. Um bom exemplo que apoia a teoria de Sebeok, quanto à modelação, consiste na Comunidade Surda, que apesar de não utilizar o “falar”, utiliza-se de outros meios alternativos de comunicação. A ausência do “falar” para o sujeito surdo

17

Sintassi, como disse Sebeok, é a capacidade de articulação ou a possibilidade de significação diversa sobre um mesmo objeto com função de interpretação. Termo que capta melhor a disposição espaço-temporal dos objetos de estudo. Para evitar confusão com a “sintaxe” no sentido linguísticoverbal e no sentido da lógico neopositivista, Ponzio prefere falar em “sintática”, termo emprestado da tipologia das dimensões da semiose e da Semiótica proposta por Morris (PONZIO, A., 2002, p. 59). 18 Termo italiano que se refere à expressão “exaptation”, de S.J. Gould e E.S. Vrba (idem, p.57)

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não prejudica a sua capacidade de comunicação e interação por meio da linguagem e nem a aprendizagem de outras linguagens. A principal diferença entre os signos não-verbais pertencentes aos signos humanos e não-verbais pertencentes ao âmbito dos outros animais é que, o primeiro corresponde à linguagem pelo processo de modelação primária, incluída no que Charles Peirce chamou de “o jogo do fantasiar” (expressão que deu nome a uma obra de Sebeok, “Il gioco del fantasticare”, tradução italiana, 1984), que possibilita a criação de outros mundos e outros modelos, além dos atuais, por meio de reflexões e refrações; o segundo se exclui dessa capacidade, pois os outros animais (irracionais) não refletem sobre a vida e o mundo, portanto, não criam ou reorganizam outros mundos. Esse movimento de criar ou reorganizar outros mundos corresponde ao ato de criação e se aproxima do conceito de exotopia (BAKHTIN, 2010b, 2011) que se refere ao distanciamento como uma possibilidade de “sair” da realidade e construir um novo mundo, um outro mundo. Essa visão distanciada está presente no conceito de escritura. A escritura não é só uma escritura verbal (como a literária), mas é também uma escritura que veio antes da letra, antes da linguagem alfabética, como escritura não-verbal. O homem primitivo já escrevia, sem falar, sem usar a escrita alfabética, escrevia por meio da pintura parietal: uma série de signos que delimitava uma parte do território naquela sociedade.

Figura 8: Pintura parietal - Maranhão Fonte: GP1 home page, disponível em: Acesso em: 19 ago. 2013.

A capacidade de escritura do animal humano também pode introduzir o discurso de Semioética elaborado por Ponzio e Petrilli (2003). Esse discurso apresenta o animal humano, centro de valor no mundo, como único responsável por seu signo próprio e de outros em geral. Se o animal humano mudar o mundo da

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abelha, ela com certeza morrerá, pois ela não tem a capacidade sintática (PETRILLI; PONZIO, 2011) para criar um outro mundo. Por isso, esse discurso insere o homem como único responsável por si e pelo outro. O movimento de criação é exotópico, pois é o primeiro a ser efetivado pelo escritor como “autor-criador” no campo estético. O autor-criador deve sair do mundo da representação, do mundo já pronto, para olhar a realidade de um outro ponto de vista e, então, dizer coisas novas, introduzindo no mundo uma visão inédita, também invisível. O resultado do novo ponto de vista, novo olhar é escritura. Além disso, a capacidade de criar mundos compreende também a “dupla visão” abordada por Giacomo Leopardi, em julho de 1820, quando elaborando sua “Teoria do prazer”, escreveu: [...] Chegamos à inclinação humana para o infinito. Independentemente do desejo de prazer, existe no homem uma faculdade imaginativa, que pode conceber as coisas que não são, e de uma forma em que as coisas não são reais. [...] A alma imagina o que ele não vê, essa árvore, que de cobertura, que se esconde na torre, e vagueia em um espaço imaginário, e descobrir coisas que você talvez veja, se sua visão se estender a tudo, porque o verdadeiro exclui a imaginária (LEOPARDI, 1991, p. 4418 [tradução minha]).

Essa "dupla visão" que Leopardi aponta no Zibaldone di Pensieri19, não se localiza somente na escritura como uma condição do texto poético, mas também como uma maneira de sair do idêntico, da identidade, do mundo da representação, em um movimento de visão que não coincide com uma vida “triste”, sem singularidade, sem “outro ponto de vista”, sem outras possibilidades de ver a vida. Leopardi (1991), no Zibaldone, afirma que para o homem sensível e imaginoso, que vive como ele mesmo viveu, de certa forma isolado em Recanati (Itália), sentindo continuamente e imaginando, o mundo e os objetos são de certa forma “duplos”. Enquanto esse homem “verá com seus olhos uma torre, uma campina; escutará com seus ouvidos um som de um sino, ao mesmo tempo, com a imaginação verá uma outra torre, uma outra campina, escutará um outro som” (LEOPARDI, 1991, p. 4418 [tradução minha]).

19

A obra Zibaldone di Pensieri é composta por mais de 4 mil páginas, na forma de diário com apontamentos e reflexões de Leopardi, escritos entre 1817 à 1832. Obra conservada na Biblioteca Nacional de Nápoles.

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Pode-se dizer que as coisas e os lugares da vida, como citados por Leopardi, ganham um “ar” universal pertencente à imaginação, que dá voz a sensações indeterminadas, vagas, infinitas da memória, da lembrança. Retomo neste percurso de escritura a linguagem das mãos – como chamou, convencionalmente, Bakhtin em um de seus artigos publicados no livro organizado por Augusto Ponzio intitulado “Linguaggio e Scrittura”20 (BAKHTIN, 2003). Mesmo assim, os “sons certamente poderiam acompanhar essas enunciações faciais, gestuais, mas ainda eram gritos inarticulados e constituíram-se, principalmente, de emoção, que expressa um estado de ânimo/humor a um alto grau de excitação” (BAKHTIN, 2003, p. 99 [tradução minha]). Com o desenvolvimento do aparelho fonador, os homens foram articulando melhor os sons, os gestos e as mímicas, condição necessária para o sucesso das atividades produtivas e, consequentemente, acompanhadas dos determinantes do trabalho coletivo. A linguagem das mãos, gestos, mímicas e outras foram se aperfeiçoando, assim como o corpo humano e a comunicação verbal foi se constituindo como instrumento

especial

do

processo

econômico,

o

que

nos

indica

na

contemporaneidade a conceituação que Bakhtin atribuiu à linguagem: de que sua natureza é social. Além disso, segundo Bakhtin (ibidem, p. 117), “através da linguagem são criados e formados os sistemas ideológicos, como a Ciência, a Arte, a moral, a lei e ao mesmo tempo criou e formou a consciência individual” ([tradução minha]). Diante dessas considerações, podemos nos considerar seres semióticos (amplamente falando) e linguísticos (por conta do uso dos textos verbais). Portanto, somos humanos (em desenvolvimento, sem acabamento) que utilizamos a linguagem, em sua diversidade, conforme as necessidades e os contextos impregnados de valores ideológicos, além de levarmos em conta o diálogo e o outro. A Antropologia Cultural, Ciência que estuda o homem e a humanidade em sua totalidade, deve ser levada em consideração nos estudos da linguagem, principalmente nos tempos contemporâneos, tendo em vista a grande migração de

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Coletânea composta por quatro artigos de Bakhtin publicados em diversas revistas russas, no período de 1926-1930. Os artigos são: 1. “A palavra na vida e na poesia”; 2. “As mais recentes tendências do pensamento linguístico ocidental”; 3. “Estilística Literária” (que compreende três artigos publicados em sucessão: “O que é linguagem”, “A construção da enunciação”, “A palavra e a sua função social”); 4. “As margens entre a poética e a linguística” [tradução minha].

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povos e o intenso diálogo entre culturas (SOLIMINI, 2005). A alteridade, o pensamento no outro permeiam essas discussões e aqui ficam registradas no âmbito das reflexões sobre a realidade. Toda a forma de linguagem e os vários signos estão impregnados de ideologia, de uma acentuação valorativa, axiológica e pragmática (aspectos relacionados ao signo ideológico abordado por Volochinov e Bakhtin no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, 2002). A ideologia nas comunicações oficiais (sociais) e não oficiais (cotidianas) é a expressão de um posicionamento prático, de uma orientação, que não é particular, é social e pode ser compreendida como o conjunto de reflexões e refrações da realidade social, processado pelo cérebro humano e expressa por meio de palavras ou outras linguagens. Sobre esse assunto, sugerimos a leitura do artigo “O que é linguagem”, de Bakhtin, que compõem a coletânea organizada por Ponzio (BAKHTIN, 2003), em que se aborda mais explicitamente a definição de ideologia. Após essas reflexões sobre a linguagem como prática social repleta de signos, podemos dizer que as atitudes humanas, mediadas pela linguagem, têm o contínuo movimento de desenvolvimento e de acordo com as necessidades, com o crescimento da sociedade e com o resultado dos fenômenos inexoráveis da migração, que imediatamente repropõe a questão de viver consigo mesmo, com o outro, a questão da alteridade. A linguagem não é algo imóvel, morta, petrificada, ela é dinâmica, está em constante movimento e seu desenvolvimento segue no contexto da vida social. Este aspecto marca a presente pesquisa e reflete o movimento progressivo da linguagem e também da língua realizado no processo de comunicação humana, que não é só um processo produtivo (setor econômico), mas também verbal e não-verbal. Na comunicação social elaboram-se diversos tipos de enunciações correspondentes aos diferentes tipos de atividades, os quais Bakhtin (2011) os nominou como “gêneros do discurso” e em outros momentos de sua teoria chamou-os de “textos simples” ou “textos primários” (esfera da vida) e “textos complexos” ou “textos secundários” (esfera da arte). Abordaremos essa configuração de texto na teoria bakhtiniana mais adiante e utilizaremos as noções de “texto simples” e “texto complexo”.

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3.2.2.1 Linguagem e Comunicação Erro comum, em grande parte devido à difusão geral das tendências glotocêntricas, é reduzir a linguagem a um mero instrumento de comunicação, de ter a função de fornecer informações. Essa visão é devido à preeminência do modelo que premia a marca nominativa em relação ao signo não-verbal. Na verdade, penso que os signos verbais ocupam apenas uma pequena parte da "Semiosfera21", conforme diz Lotman, no espaço das semioses, em que por semiose pode-se entender "a habilidade instintiva de produzir e compreender os signos” (SEBEOK, 2003, p. 74). Uma contribuição importante nesse sentido foi dada por Thomas Sebeok (1920-2001), semioticista americano que deu impulso para disciplinas como Zoosemiótica e Biossemiótica, inclusive dentro de signos semióticos e sistemas de comunicação não-humanos. Na verdade, Sebeok (PETRILLI; PONZIO, 2011) considera não só uma grande parte da comunicação feita pelo homem corresponde ao âmbito do nãoverbal, mas também que há todo um mundo feito de milhões de animais, como o homem, que são capazes de produzir e interpretar os signos. Não só isso, a perspectiva de Sebeok (2003) se estende também para a semiose de plantas, microorganismos e dos mecanismos que ocorrem dentro do corpo (como o código genético ou o imunoensaio), em um processo de identificação entre a vida e a semiose. E é precisamente Sebeok (2003) que delineia a visão de "semióticas globais". A distinção entre as duas orientações diferentes na formação da história do estudo dos signos considera como "tradição menor" os estudos de matriz saussuriana, que corroborou apenas com um signo (o linguístico), de que ele tinha a função intencionalmente comunicativa, baseada na ciência dos signos, chamado de Semiótica, e a "grande tradição" referindo-se aos estudos de Charles Morris e Charles S. Peirce. Sebeok (2003) tem dado um grande impulso para o último, Peirce, quando, em meados dos anos sessenta, desenvolveu uma Semiótica com a hipótese global de que tudo o que é vida, é signo.

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O termo dota o ambiente de materialidade, de concretude, na medida em que a cultura se manifesta em textos ou sistemas de signos cujo processamento só é possível nesse espaço semiótico específico.

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A principal intenção do Sebeok (2003) é afirmar a autonomia dos sistemas de signos não-verbais em relação aos signos verbais e a importância de ambos na interação social humana. Pode-se dizer que o tráfego de mensagens ocorre em quatro dos cinco reinos e é completamente não-verbal, mensagens verbais foram encontradas apenas em animais e entre estes surgem em apenas uma subespécie, ou seja, Homo sapiens. A característica peculiar dos seres humanos é que eles só, em toda a vida terrestre, têm dois grupos distintos de linguagem e um repertório de signos, embora, obviamente, completamente interligados: o primeiro refere-se à linguagem não verbal – derivada dos antepassados mamíferos (especialmente os primatas); o segundo refere-se a uma camada sobreposta verbal, exclusivamente humana. A discussão

e

preocupação

de

Sebeok

(2003),

no

entanto,

concentra-se

principalmente sobre a não-verbal ou em matérias relacionadas com ambos os diretórios

(verbal

e

não-verbal),

porque

os

signos

não-verbais

são

esmagadoramente mais abundantes, não só na natureza, mas também em trocas interpessoais (SEBEOK, 2003). Esse discurso sobre o signo não-verbal e o ponto de vista sobre a linguagem interessa a esta pesquisa, de forma que os sujeitos envolvidos em uma prática social compreendam a linguagem no sentido amplo que merece, assim, libertada da noção de linguagem a partir de sua identificação apenas com o signo verbal (linguístico).

3.2.3 Configuração de signo-texto em Peirce, Bakhtin, Barthes: pontos conexos Abordo aqui o dialogismo que há entre a configuração do signo na Semiótica de Peirce, a configuração estética de Bakhtin e a teoria do texto de Barthes. Peirce (1995) divide o signo em três partes, de modo que o signo passa a ser considerado da perspectiva de seu objeto, visto, portanto, como ícone, índice ou símbolo. São três possibilidades de orientação que o signo pode assumir conforme a compreensão do sujeito interpretante. Essa configuração do signo dividida didaticamente está sempre presente internamente no signo, com diferença de incidência, cada parte mais ou menos presente.

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O símbolo tem uma relação com o objeto (signo) com base na convencionalidade, em um código já estabelecido e por meio de uma lógica indutiva. A língua que utilizamos é fortemente simbólica, faz parte de um código, de um sistema linguístico. A bandeira com as cores branca, vermelha e verde, por exemplo, é símbolo da Itália. O índice tem uma relação com o objeto que se realiza por meio de uma lógica dedutiva. Como exemplo posso citar duas situações: 1. Quando um investigador de polícia tenta solucionar um crime, ele vai pesquisando as pistas e se movimenta por meio do signo-índice; 2. Algumas pegadas na areia: dedutivamente se pode chegar a uma conclusão de que pertencem ou foram deixadas por um ser humano ou um animal. E, às vezes, é até possível deduzir, se fosse animal, que tipo de animal teria passado naquele lugar. Além desses textos (pistas do crime e as pegadas na areia), podemos citar também o texto fotográfico. A fotografia é um signo, um texto não-verbal, no qual a parte mais acentuada é a do índice, em detrimento às partes do “símbolo” e do “ícone”, pois esse tipo de texto funciona como uma impressão da realidade, tem uma relação muito estreita com o objeto. O ícone é a parte mais interessante para uma Semiótica da Interpretação e Semiótica do Texto, pois se trata da parte criativa, que conduz o signo à interpretação infinita, a uma lógica abdutiva (BONFANTINI, 2003). O ícone tem uma relação com o objeto que se passa pelo conceito de semelhança. Como exemplo, podemos citar o famoso quadro de René Magritte (1898-1967), intitulado “Ceci n’est pás une pipe” (Isto não é um cachimbo).

Figura 9: Obra Ceci n’est pás une pipe [Isto não é um cachimbo], de Magritte Fonte: disponível em Acesso em: 18 ago. 2013.

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Magritte é um pintor do período do Surrealismo que quando desenhava o objeto em seus quadros fazia-o com muita fidelidade ao objeto original. Para ele, esse tipo de pintura era uma forma de criticar a própria arte de pintar. Fazia uma pintura mimética, jogando com as dimensões do objeto. Seu quadro “Isto não é um cachimbo”, à época, foi muito discutido e “censurado” criticamente, revelou Magritte em texto publicado na contracapa do livro com o mesmo título de sua obra, escrito por Foucault (1988), em que diz:

O famoso cachimbo... Como fui censurado por isso! E entretanto... Vocês podem encher de fumo, o meu cachimbo? Não, não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu tivesse escrito sob meu quadro: ‘Isto é um cachimbo’, eu teria mentido (FOUCAULT, 1988, s.p).

Sua obra é muito interessante do ponto de vista semiótico, pois o objeto representado não é o objeto em si, o da vida real, como ele explicou acima. Nesse jogo interpretativo semiótico, o quadro é considerado um ícone do objeto cachimbo, pela relação de semelhança. Sobre esse aspecto, Magritte22 teoriza:

A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de parecer. O pensamento parece tornar-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituir aquilo que lhe é oferecido, ao mistério no qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento. A inspiração é o acontecimento onde surge a semelhança (FOUCAULT, 1988, s.p.).

Como se percebeu a pintura como “texto artístico” tem a parte icônica (o desenho não designa) mais acentuada por ter propriedade de obra aberta e a capacidade de “reenviar” o texto a interpretações diversas. Não só a pintura, mas também outros “textos artísticos” por conta da possibilidade de jogar com os objetos da linguagem e da cultura, numa relação de semelhança, em que a parte icônica, como dissemos, é mais presente. Neste mundo globalizado e repleto de “textos simples ou primários” da esfera da vida, a parte icônica dos signos é muito pequena, ressaltando-se mais a parte do símbolo e do índice. Para uma Semiótica da Interpretação, os “textos complexos ou secundários” possibilitam a imaginação e múltiplas interpretações. 22

Texto publicado na contracapa do livro de Foucault (1988) de autoria de René Magritte, extraído do prefácio à exposição “René Magritte” de Dallas, 1961.

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O ícone configurado por Peirce (1995) tem uma relação com o discurso estético bakhtiniano e essa relação possibilita o diálogo entre as duas teorias, as quais colaboram nas análises de textos da vida e da arte, com objetivo de reflexão e refração sobre a linguagem e a cultura. Barthes (2012), nos caminhos da Semiótica de Interpretação, faz um discurso sobre fotografia em seu livro A câmara clara: nota sobre fotografia, orientando o seu pensamento e pesquisa na direção do signo icônico, criando um movimento através do conceito de escritura, como escritura fotográfica. Nesse percurso, Barthes (2012) critica o conceito de identidade, pois a fotografia, pela natureza indicial, tem uma relação mais próxima com a identidade. Nesse mesmo livro, Barthes (2012) pesquisa muitas fotografias, resultado de suas viagens e leituras do mundo, porém há uma parte de sua escritura que coincide com um de seus momentos de vida. Tal momento acontece quando ele pesquisa uma fotografia em busca da imagem de sua mãe, morta há pouco tempo. Ele encontra a fotografia que comporta a imagem de sua mãe, com fisionomia de criança. Evidentemente Barthes não viveu essa “imagem”, cronologicamente falando, porém, ele fala dessa fotografia como uma imagem que representa sua mãe, fala da “essência” de sua mãe. Essa passagem está no capítulo “A Fotografia do Jardim de Inverno” (idem, p. 64). Outro aspecto interessante, na pesquisa de Barthes (2012) sobre a imagem que representa sua mãe, é que ele não insere a foto em sua escritura no livro, ao contrário do que faz com as outras. Para Barthes, a relação dele com sua mãe era uma relação de único a único, uma relação singular. E a “Fotografia do Jardim de Inverno, esta era bem essencial, ela realizava para mim, utopicamente, a ciência impossível do ser único”, apontou Barthes (2012, p. 68). Por essa razão, se a foto fosse inserida, o leitor teria outra visão, que não corresponderia à visão de Barthes a respeito da “essência” de sua mãe (SOLIMINI, 2006, pp. 224-231). Esse conceito de “essência” refletido por Solimini (2006) a partir da pesquisa de Barthes tem uma relação com o conceito de “ícone” de Peirce. Essa relação aproxima os pensadores por trabalharem com a noção de semelhança e de representação. Portanto, a “essência” é importante porque o discurso icônico é um discurso de interpretação. Assim, quando há interpretação de um signo, de um objeto, o interpretante tem uma posição única, em relação à outra posição, a uma outra interpretação.

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3.2.4 Tradução como interpretação Tendência comum, quando se trata de tradução, é considerar apenas o que diz respeito em relação a um texto entre duas línguas diferentes, ou, usando a terminologia

proposta

por

Roman

Jakobson

(2007),

tradução

sublingual

(interlingual). Nesse contexto, geralmente, considera-se como tradução apenas a relação entre duas línguas diferentes. Isso é um equívoco, pois a raiz dessa atitude está na crença de que a ação de traduzir esgota-se em um simples mecanismo de decodificação e recodificação. A Semiótica Cognitiva de Peirce, embora não trate de forma sistemática a questão da tradução, fez uma contribuição significativa a esse respeito, afirmando que a tradução é inerente ao signo, se cada sujeito assumir que o significado de um signo é dado por sua relação com um interpretante, com outro signo que o traduza. Para Peirce (1995):

Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen (PEIRCE, 1995, p. 46).

Do ponto de vista de Peirce, portanto, há tradução de signos, "o significado existe na relação mútua de tradução entre os signos" (PETRILLI, 2001 [tradução minha]). Para isso, devem-se levar em conta outros tipos de tradução que podem envolver, por exemplo, duas linguagens específicas e diferentes que fazem parte da mesma língua, linguagem verbal e não-verbal (signo verbal e não-verbal). Considerando a tradução como um processo de interpretação, o mecanismo de decodificar e recodificar compõe apenas uma parte desse movimento, mesmo na tradução sublingual, “que consiste na interpretação de signos verbais de uma linguagem por meio de signos verbais de outro idioma” (PETRILLI, 2003, p. 326 [tradução minha]). Parece redutiva a ideia de considerar a tradução como uma mera transcrição de um texto original. Quando se entende ou se interpreta o significado de um signo que pertence a um sistema linguístico diferente, o pertencimento verbal do intérprete para a língua (ou linguagem) que traduz é apenas o culminar de um

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processo que não é simplesmente mudar de uma língua para outra, esse é um limite. Apropriar-se da outra cultura, contribui para a melhor compreensão dessa outra linguagem. Pode-se, portanto, dizer que o processo intermediário entre um texto e seu desenvolvimento em outra língua é certamente de ordem semiótica. Isso ocorre porque um texto faz parte de uma rede de signos. Em um contexto de insinuações isso significa que, a fim de compreender o significado, deve-se usar dos interpretantes que não são apenas de ordem verbal, mas que precisam ser levados em conta no trabalho de tradução. Lendo a tradução de um texto, tem-se a impressão de que a voz do tradutor é completamente cancelada. O que pode ser percebido nessa situação é a pretensão de relatar o discurso do autor sem qualquer intervenção, trata-se do uso da língua como transcrição. O papel do tradutor, dessa maneira, torna-se um papel marginal, a função de um simples "porta-voz", cuja função é simplesmente mostrar. De fato, na tradução de um texto de uma língua para a outra, em que o tradutor está na posição de ter a sua interpretação, é inevitável que haja uma mudança, que normalmente coloca a tradução em uma relação de subordinação com o texto original que, como o primeiro (original) em ordem cronológica, reivindica uma posição de superioridade. Pode-se esclarecer a posição do texto (original) em relação ao texto-tradução com base nas três categorias propostas por Peirce, assim é possível classificar a relação entre o signo e seu objeto: ícone, índice e símbolo. Retomando, em suma, o símbolo refere-se a uma proporção de convencionalidade; o índice refere-se a uma proporção de contiguidade, espaço-tempo, causa e efeito; o ícone refere-se aos signos que possuem uma relação de semelhança (PETRILLI, 2003, p. 378). A relação que é estabelecida entre o texto-original e texto-traduzido tem uma certa quantidade de indexicalidade (desde a tradução, depende, necessariamente, de uma determinada forma a partir do texto original), é um rácio de uma similaridade, principalmente ícônica. É essa semelhança que permite a tradução de libertar-se do original, para reivindicar a sua autonomia e criatividade. Segundo Petrilli (2003),

Essa semelhança, assim como Peirce explica sobre o ícone, não impede, mas ao contrário, é a condição para que a tradução possa

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ter sua capacidade de inventividade, criatividade e autonomia em relação ao texto traduzido. [...] A tradução pode ter diferentes aspirações e demandas: ela pode ser simplesmente um texto que acompanha o texto original, palavra por palavra, mas pode fazer a reclamação, e suceder muito bem, recriando o texto original em outro idioma, a ponto de a tradução prevalecer-se [...] (PETRILLI, 2003, p. 380 [tradução minha]).

A tradução como escritura criativa, não é mera transcrição, está descolada do texto-original, torna-se algo mais, assim como o texto literário (ou texto artístico) em comparação com a realidade que retrata, que rafigura. Um exemplo de tradução como escritura é o texto de Antonin Artaud, Alice in manicomio. Lettere e traduzioni da Rodez (ARTAUD, 2008). Ele criou, ao traduzir uma parte do texto de Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas, um outro texto, deixando assim a percepção de que a obra de Carroll parece uma imitação e o seu texto, portanto, uma obra prima, perfeita. Dessa forma, na tradução (e, especificamente, na tradução sublingual), na transição de uma língua para outra, há, inevitavelmente, uma mudança. Isso ocorre porque a tradução significa, primeiramente, interpretar. Como já mencionei e de acordo com Peirce, o significado de um signo é dado por sua relação com um interpretante. Isto significa que, teoricamente, não existe limite para o interpretante (e significados) do signo, pois o próprio signo vive como um signo de interpretante e, assim, não consegue encontrar apenas um último interpretante (PETRILLI, 2003, p. 163). O mesmo vale para o texto que, por sua natureza, como um signo não pode manter-se inalterado, imóvel, imutável. É, pelo contrário, um “jogo móvel de significantes, sem possível referência a um ou mais significados fixos” (BARTHES, 1998, p. 234 [tradução minha]). Voltando a Bakhtin (2003), o texto pode ser considerado como uma declaração, por escrito, em oposição à oração, frase (signo linguístico), o objeto de estudo da Linguística, que é o plano concreto dos elementos constitutivos da enunciação, imerso em um contexto. A enunciação, ao contrário, mesmo quando ela se realiza no “discurso interior” (consciência), está em uma relação dialógica com a outra pessoa, o outro de si, “a sua compreensão e sua resposta real ou potencial” (BAKHTIN, 2003) está inserida em um contexto feito uma teia de interações sociais. Isso faz com que o texto-enunciação seja um evento único e irrepetível e cada jogo

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seja um novo evento. Enunciado, se repetido, não é mais a mesma afirmação, declaração, não produz o mesmo sentido. Essa mudança é mais do que evidente, como já falei em relação ao textotradução e está igualmente presente no texto de leitura. Ler um texto não significa apenas se relacionar com ele de uma forma passiva. "Ler significa crer, coletar, enriquecer a sua cultura como um capital, digamos, da moral burguesa, é assimilar o texto e tomar posse dele” (BARTHES, 1998, p. 279). Ler significa interpretar, desconstruir e reconstruir um outro texto, em especial o texto escrito, mas também os textos de linguagem não-verbal. Que, como texto (e, portanto, um signo), vive para ser interpretado.

3.3 Textos primários e textos secundários na teoria bakhtiniana

Bakhtin (1952-1953) trabalha com a terminologia “gêneros”, porém utilizo o termo “texto” como enunciado concreto e já situado no início deste capítulo. Assim, os gêneros primários (gêneros simples) serão nominados como textos primários (textos simples) e os gêneros secundários (gêneros complexos) serão chamados de textos secundários (textos complexos). A ideia de “gênero discursivo” coaduna-se perfeitamente com a ideia de “texto como enunciado”, conceitos desenvolvidos pelo filósofo russo, os quais se relacionam bem com a Semiótica do Texto, aqui apresentada. A distinção entre textos primários e textos secundários refere-se à distinção que faz Bakhtin no âmbito dos tipos de discurso, "tipos relativamente estáveis de enunciados" (BAKHTIN, 2011, p. 262). Nesse sentido, é importante ressaltar a vastidão

das

possibilidades

dos

tipos

de

discurso,

devido

à

extrema

heterogeneidade das atividades humanas a que se referem. Com essa diversidade, não pode haver um único plano para o estudo dos gêneros e texto como enunciado, porque aparecem fenômenos distantes uns dos outros, por exemplo, "as réplicas monovocais do dia a dia e o romance de muitos volumes, a ordem militar [...] e uma obra lírica profundamente individual" (idem). Essa, talvez, seja a razão pela qual a questão dos tipos de discurso nunca foi realmente levada em conta.

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Os textos primários representam a realidade, o contexto em que operam e são justificados; os secundários rafiguram, apresentam outra visão da realidade. Em Bakhtin (2003), a rafiguração (Izobrazenie) está intimamente relacionada com o excesso de visão (izbytok videnija), com a alteridade (drugost). Assim, os textos primários (simples) se inserem no âmbito da vida comum, enquanto que os textos secundários (complexos) se inserem na esfera da arte. Em suma, o que os distingue é a capacidade de visão. Os textos primários se referem aos textos do diálogo cotidiano, textos incapazes de ir além da visão da realidade, a partir de um ponto de vista instrumental idêntico; e os secundários se referem aos textos artísticos, peças de teatral, trabalhos científicos, "todos os tipos que rafiguram e objetivam a troca cotidiana, ordinária, objetiva" (PONZIO, A., 2002, p. 85). Bakhtin em sua obra se refere à Arte, principalmente verbal, Literatura, e em particular ao gênero romance, porém sua teoria pode ser aplicada para textos nãoverbais, como os textos artísticos com os textos das artes visuais. Desse posicionamento, Luciano Ponzio (2010) fala do artesto, composição de arte + texto, como conceito do texto artístico que descreve a realidade a partir de um ponto de vista externo a ela. A capacidade de distanciamento, de “exotopia” permite que o texto artístico exceda a visão da realidade e da vida comum (idem). Os textos secundários estão alojados em uma forma mais complexa na dimensão cultural e predominam na modalidade escrita: literários, científicos, sociopolíticos etc. Durante a sua elaboração, absorvem e reelaboram vários textos primários formados dentro da comunicação verbal imediata. Estes, essenciais, passam a fazer parte dos complexos, são transformados e adquirem um caráter especial: perdem a relação imediata com a realidade e as expressões reais dos outros (BAKHTIN, 2011, p. 263). O texto secundário ou texto artístico não está limitado à vida, a reproduzir ou imitar a vida. Além disso, procura descrever um ponto de vista adicional localizado, mas não indiferente. Isso é o que Bakhtin chama de "arquitetônica", "o centro de valor que é qualquer um de nós e em torno do qual se ordena a arquitetônica das relações espaço-temporais" (PONZIO, L., 2002, p. 9). Essa arquitetônica não pode ser entendida de um ponto de vista interno, a partir do sujeito em torno do qual se organiza e se realiza o seu próprio “eu”, por ser impossível o distanciamento e, consequentemente, a visão do outro que é

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necessária, não acontece. E também não pode ser entendida a partir do ponto de vista totalmente indiferente, objetiva, cognitiva, não-participativa. Ela não pode ser baseada na identificação, o que conduziria a uma redução, a uma única visão, mesmo sabendo-se que há dois pontos de vista distintos entre si, pertencentes a duas arquitetônicas diferentes: a do “eu” e a do “outro”. Bakhtin (2011) identifica a capacidade de representação verbal na arte, escritura, literatura, em que é possível a criação de dois centros de valor, de duas consciências: a do autor e a do herói, que surgem em uma relação de alteridade mútua. O texto artístico (como escritura, em oposição à escrita como transcrição), em contraste com os textos primários, através da capacidade de exotopia, capta a alteridade do objeto interpretado como "duplo" em relação ao objeto real, obtendo assim uma rafiguração que não se relaciona com a representação, que é diferente e que mantém relações de similaridade (PONZIO, L., 2008, p. 46). A relação entre o texto artístico e a realidade retratada não é nada mais do que uma relação de tipo icônica, de semelhança, conforme uma das distinções tipológicas realizadas por Peirce (1995), a que eu considero mais importante para a compreensão dos textos secundários. O texto artístico não é um espelho da realidade, não é uma mera reprodução, por isso, a rafiguração está em oposição à transcrição simples.

3.3.1 Os textos simples no contexto da vida O “texto simples” pertence à esfera da vida, do cotidiano, da rotina, da repetição e incorpora o conceito de representação. Este conceito se refere à continuidade das coisas como repetição, não como “evento”, não são enunciativas, não mudam e nem se preocupam em obter uma visão nova. O “texto simples” é um tipo de texto limitado a um contexto (sociais, culturais, religiosos, históricos, de gênero autobiográfico etc.) a uma contemporaneidade, ao tempo atual por ser um texto “consumível”, no sentido de ser lido apenas uma vez e de uma única vez para sempre. Esse tipo de texto tem como objetivo transmitir mensagens, informar, comunicar. A programação de cinema, o pôster, um fax, email, artigo de opinião, receita de um bolo são alguns dos “textos simples” que nascem para informar e funcionam em um determinado contexto prático. Não cabe a

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eles uma interpretação diversa, pois seu objetivo central é apenas comunicar um conteúdo, em um contexto pequeno, em um tempo cronológico, “tempo pequeno”, como fala Bakhtin (2011), na Estética da criação verbal. O tempo da contemporaneidade, da atualidade. Bakhtin (2011) ainda nos apresenta que esses textos simples compõem o que ele chamou de “representação”. Textos que representam a realidade, que transcrevem e repetem a realidade tal como ela se apresenta. Dessa forma, podemos dizer que os textos simples fazem parte da visão de ideologia dominante (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002), compondo o mundo ordinário e convencional. Aos “textos simples” cabe a concepção de “escrita”. O texto como “escrita” é diferente de um “texto de escritura”, pois seu objetivo é de representar a realidade, é de fazer a transcrição, simples e literal.

3.3.2 Textos complexos no “espaço estético”23 Já o “texto complexo”, segundo Bakhtin (2011), compreende e coincide com a infuncionalidade do “texto artístico”, como a obra de arte. Disso depreende-se que a aprendizagem de um texto simples se dá através de uma visão “obtusa” (BARTHES, 1990), a partir do texto complexo. A visão obtusa, o conhecimento e a interpretação do texto complexo possibilita a compreensão de como funciona o “texto simples” e, ao mesmo tempo, o seu limite. O texto de “escritura” é um texto criativo, um “texto complexo”, segundo Bakhtin (2011). É um texto no qual o autor colhe elementos da realidade e os traduz na mesma linguagem (texto artigo para texto artigo) ou em outra (texto literário para texto pictural) e de uma forma diferente (tradução intersemiótica). O objeto da realidade passa a ser “rafigurado” (PONZIO, L., 2008), apresentado em uma outra visão como “objeto” ou “palavra objetivada” (PONZIO, A., 2013). Um pintor (autor-criador) quando faz seus quadros, no âmbito da responsabilidade moral, não quer transmitir uma mensagem, pois esse não é o objetivo do “texto complexo”. Aliás, o texto complexo não tem finalidade, porque não tem um fim, se não o de mostrar o invisível da realidade, mostrar aquilo que ainda

23

Terminologia apresentada por Barros (2012), em sua dissertação sobre o gênero crônicas.

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não é visível. Assim também acontece com o escritor de romance, esses autores produzem seus textos “sem álibi” (BAKHTIN, 2010b). Podemos falar que o “texto complexo” não tem margem, não tem forma, ao contrário do texto convencional (impresso, escrito); o texto secundário é um texto inacabado (BAKHTIN, 2011), é aberto a interpretações diversas e contínuas. Bakhtin faz uma critica ao “acabamento” do texto, por entender que o processo da comunicação se dá na interação e na enunciação, por isso, tal conceito é tido como metafísico. O “texto complexo” foge à contemporaneidade, ao tempo cronológico, ao contexto imediato dos sujeitos situados. É excedente à cotidianidade, é parte extraordinária no mundo atual. O texto secundário não pode ser “consumível”, lido uma única vez, ele deseja ser lido infinitamente e, a cada leitura, se tem uma nova leitura, sempre ressignificada do mesmo texto. Nesse ato está a questão da “enunciação”. Sempre que se lê um mesmo romance literário, por exemplo, lê-se como se fosse a primeira vez. Por isso, o “texto complexo” coincide também com o conceito de enunciação irrepetível e como “evento” (BAKHTIN, 2010b), pois rompe com a “representação” do cotidiano, da rotina da vida, quebrando a cadeia da informação. Os sujeitos no mundo situado não podem deixar de olhar/ler esse “evento” – texto complexo – e de responder a ele, propondo-se a mudar o mundo, ver o seu mundo, o lugar onde habita sob outro prisma, outro ponto de vista.

3.3.3 A responsabilidade que cabe aos textos A responsabilidade é também uma característica dos textos, que se referem aos gêneros discursos. Conforme a distinção entre gêneros primários e secundários feita por Bakhtin (2011), podemos distinguir, nessa mesma linha de pensamento, a responsabilidade dos textos primários (simples) e a responsabilidade dos textos secundários (complexos). A responsabilidade dos textos primários é uma responsabilidade limitada ao papel social, à função social, técnica e prática. É da responsabilidade do autor que escreve na função do autor-homem: um artigo de jornal, escrito na função de jornalista, ou um texto-manifesto em um discurso de Política feito no papel de político em campanha no período eleitoral. Essas responsabilidades que citei são

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exemplos de uma responsabilidade limitada, de papel social, que também ocorre em discurso de ordem da identidade: familiar, sexual, religiosa etc. que adere à realidade, adapta-se a ela e nela encontra a sua justificação. A responsabilidade do trabalho ou do papel social sempre fornece um álibi, uma justificação limitada porque inevitavelmente se refere a um contexto, ao contemporâneo, ao “tempo pequeno”, à escrita na ordem da representação. Esse tipo de responsabilidade é a responsabilidade chamada de técnica, especial ou parcial (BAKHTIN, 2010b). Em contraposição, os textos secundários (escritura) excedem os limites do contexto contemporâneo, vivem no “tempo grande”, estão fora dos limites da responsabilidade técnica, parcial tomando a carga de responsabilidade absoluta, "da responsabilidade do ser humano como um ser no mundo humano, sem álibi" (PONZIO, L., 2002, p. 53). O texto de escritura significa que ele é carregado com responsabilidade ilimitada, livre para sair dos limites do contexto em que é produzido, capaz de “exotopia”. O desempenho da escritura literária, ao contrário dos outros tipos de escrita, que são de transcrição, liberta-se das responsabilidades definidas e circunscritas, delimitadas por álibi. O desempenho das responsabilidades parciais e relativas encarrega a escritura literária de uma responsabilidade absoluta, “sem álibi”, que é a libertação do homem de tudo o que poderia impedir sua livre expressão do que especificamente o caracteriza: “a linguagem, isto é, possibilidade de jogo interminável de construção - e desconstrução - de novos mundos possíveis.” (PONZIO, A., 2002, p. 83 [tradução minha]). Os textos de escritura (os secundários) não podem ser contratados, pois, nesse caso, o texto passaria a pertencer ao “tempo pequeno” (contexto; a realidade contemporânea) e perde a capacidade de “exotopia”, o excedente de visão que o diferencia dos textos pertencentes aos gêneros primários. Esse desligamento não tem nada a ver com a estética da “arte pela arte”, mas com a responsabilidade técnica, relativa, parcial, do papel social: responsabilidade com álibi. A enunciação também é sempre responsabilidade e vai depender dos gêneros do discurso, seja a responsabilidade técnica (com álibi) ou responsabilidade moral (“sem álibi”), ambas estabelecem uma relação dialógica com os textos e obriga os interlocutores a responderem mutuamente e responsavelmente a eles, assim como nos diz Bakhtin (2011):

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Quando o homem está na arte não está na vida e vice-versa. Entre eles, não há unidade e interpenetração do interior na unidade interior do indivíduo. O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com a minha vida para que todo o vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. No entanto, a culpa também está vinculada à responsabilidade. A vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua mas também com a culpa mútua. O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais [...] Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade (BAKHTIN, 2011, p. XXXIII-XXXIV).

3.3.4 O entrelaçamento entre “Arte” e “Vida” na teoria bakhtiniana Compreender o conceito de texto moderno nos tempos atuais requer inicialmente falarmos da configuração filosófica e estética delineada por Bakhtin, como ponto de partida para tal reflexão. Bakhtin (2011) aborda a concepção de linguagem e cultura num mundo que dividiu filosoficamente em duas partes, uma que chamou de “esfera da arte” e a outra de “esfera da vida”. Nessa arquitetônica bakhtiniana, a “arte” e a “vida” tem um envolvimento recíproco, mútuo. A “arte” colhe da vida os elementos para sua visão estética e preenche a vida, e a “vida”, numa vontade não assumida de transcendência se fortalece pela vida da estética, da arte, e renova-se como “vida”. O russo Bakhtin fala também sobre o compromisso entre “arte” e “vida”, em que a arte não deve substituir a vida. Se isso ocorrer, a questão de uma sobreposição entre arte e vida significará a “morte” no discurso literário, por exemplo. Se houver a reprodução da vida na arte, essa ação “mata” o discurso. Esse discurso de “morte” devido à sobreposição, podemos verificar no conto do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), “O retrato oval”, de 1937. Nesse conto, o autor-criador (pintor) pintou sua jovem esposa (herói) por semanas a fio, não percebendo que a vida dela se esvaia. Somente na última pincelada e retoque do quadro com seu retrato, constatou feliz: “Isto é na verdade a própria vida!”, e quando se voltou para contemplar a sua esposa amada, ela já estava morta. Esse texto secundário faz com que possamos refletir sobre essa relação dialógica entre “arte” e “vida”.

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A “esfera da vida” e a “esfera da arte” como ponto de vista não pode ser único, apenas um, sempre haverá duas visões em um tempo só. “Arte” e “vida” têm essa duplicidade, dupla visão do mundo.

3.3.5 O texto complexo como enunciação Bakhtin faz uma separação ou diferenciação entre o conceito de “enunciação” e o conceito de “frase”. A frase (oração) pode ser repetida, infinitamente. A enunciação possibilita a construção de novos sentidos, com renovação da significância em momentos diferentes, podendo se utilizar da mesma materialidade frásica. A enunciação não pode ser repetida. Por isso, esse discurso pode ser aplicado ao “texto complexo” ou “texto secundário” como apresentou Bakhtin (2011) em sua pesquisa estética. Dessa forma, podemos compreender que o texto artístico, de forma geral, como texto complexo, é uma enunciação. Vejamos as duas imagens abaixo, a primeira é a imagem da obra do artista Leonardo Da Vinci (1452-1519), chamada “Mona Lisa” (1503-1506), e a outra imagem da obra do artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), intitulada “L.H.O.O.Q” (1919).

Figura 10: "Mona Lisa", de Leonardo da Vinci (1503-1506)

Figura 11: "L.H.O.O.Q.", de Marchel Duchamp (1919)

Fonte: Imagens Disponíveis em: Acesso em: 10 jun. 2013.

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Um texto artístico é uma enunciação nos termos da configuração estética bakhtiniana, pois não se pode repetir o mesmo texto e sentido, pois já se está em outro momento, outro espaço-temporal, é já uma segunda vez. A pintura de Leonardo da Vinci, “Mona Lisa” (1503-1506) não pode ser repetida, por isso, Marcel Duchamp faz um trabalho enunciativo (TOMKINS, 2004), de enunciação no texto de 1503, acrescentando bigodes e barbichas na figura de Gioconda24. Assim como a pintura, o romance e outros textos artísticos não podem ser lidos apenas uma vez, a cada leitura, a cada enunciação, tem-se uma nova interação, um novo dialogismo intertextual, uma nova construção de sentidos. A questão da enunciação tem relação direta com a interpretação e a tradução por meio da leitura ou escritura. Vejamos outro exemplo concreto que colabora em nossas reflexões. Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor argentino, criou o personagem que deu nome ao conto “Pierre Menard, autor de Quixote”, que está inserido na obra “Ficções” (1944). Nesse conto, o herói Pierre Menard (escritor de ficções do século XX), entre seus afazeres, precisa copiar o texto “Dom Quixote”, Miguel de Cervantes, na mesma língua, em espanhol, sem mudar nada, palavra por palavra.

Enquanto

Pierre vai lendo e reescrevendo o texto, a sua ação de escritura ganha sentido novo, as palavras ganham sentido novo, deixam de ser a mesma da época de Cervantes, do século XVII. Por isso, Borges evoca os esforços de Menard para ir além de uma mera cópia, mas uma “tradução” e releitura/reescritura da obra de Cervantes, considerando-o como o autor de “Quixote”. Esse discurso se relaciona com o discurso de enunciação, porque o texto reescrito pelo personagem Menard não é o mesmo de Cervantes, pois está em outro momento histórico, em outro contexto e as palavras que compõem o texto ganham outro sentido no “tempo grande” (conceito filosófico de Bakhtin).

24

Segundo Tomkins (2004), Duchamp comprou, na rua Rivoli, um cartão-postal barato com a da “Mona Lisa” (de Leonardo da Vinci) e o transformou num readymade. Com um lápis desenhou um bigode de pontas levantadas e um cavanhaque e escreve abaixo, com maiúsculas, L.H.O.O.O. As letras em si não fazem sentido, mas quando lidas em voz alta francês soam como “elle a chaud au cul” (ela tem fogo no cu).

figura preto letras e em

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3.4 O texto moderno no discurso de Barthes

O texto no senso comum está ligado constitutivamente à escrita (o texto como aquilo que é escrito), talvez, segundo Barthes (2010), porque o desenho da letra linear sugere a palavra como traço de um “trame-tissu” (tecido, em francês), o que suscita e dá garantia à coisa escrita (sequência de letras e signos) e daquilo que se conserva (BARTHES, 1998) como significação unívoca. O texto convencional não se separa da dimensão frásica e funciona como texto-testemunha, como garantia de verdade. De um lado se tem a estabilidade, a permanência da inscrição e do outro, a legalidade da letra, o traço irrecusável e indelével. O texto como instrumento contra o tempo, a-temporal, fora do tempo atual, tendo o esquecimento e a astúcia da palavra como significação, que sempre se altera na enunciação. Essa noção primeira de texto está ligada historicamente a um conjunto de instituições como “ordem de discurso” (FOUCAULT, 1996): legislação, Igreja, Literatura, Educação etc. O texto nessas esferas é tido como objeto moral e marca a linguagem escrita como um atributo inestimável: a segurança. Pode-se ligar esse discurso ao registro, à conservação e à memória. Barthes (2010) em seu livro O prazer do texto apresenta-nos sua pesquisa delineando para nós a concepção de texto moderno e também de escrita e escritura. Para ele, escritura pode ser considerada um “conjunto de signos”, um complexo sígnico, não somente como signos alfabéticos, no caso de “texto-livro”, texto impresso, mas como um “tecido” de significantes. Desse contexto, os textos de escrita ou escritura são constituídos de signos dinâmicos que circulam em nossa sociedade. Por isso, a linguagem, os discursos, as línguas, os signos são processos sociais e requerem o olhar de uma Ciência que se preocupe em explicar o seu funcionamento e nos possibilite a sua compreensão. A Semiótica, como ciência da significação, conforme Barthes (2010), ampliou a noção de texto, que considera não só o texto verbal e não-verbal, mas também as manifestações culturais e o homem em sua especificidade, assim como abordou Bakhtin (2010a, 2011), quando delineou o conceito de “corpo grotesco”. Nesse entendimento, podemos ler/analisar o corpo humano, o espaço da sala, da cozinha, os espaços diversos sociais, culturais etc. Todos esses compõem um texto, uma

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estrutura que em essencial pode ser analisada do ponto de vista metodológico, pesquisando em seu interior a mesma “propriedade formal” de um texto convencional, aquele impresso, como o “livro”. O texto não é somente o “texto-livro”, “texto impresso, escrito” de forma mais ou menos limitada e retangular. Sabe-se que a maioria das pessoas responderia que texto é aquilo que está “escrito”, fato que corresponde a um modelo teórico usado como instrumento de descrição. Por si, o texto não se dissocia do seu contexto. Não existe uma separação precisa, declarada, explícita entre “texto” e “contexto”, são elementos orgânicos, indissociáveis. Não se pode dizer, segundo Barthes (2010), que o contexto é aquilo que está no “entorno” do texto. O texto em seu contexto tem um compromisso cultural e está entrelaçado com outros textos, outros discursos, não é dado, pois tem possibilidades de ser interpretado diversa e continuamente. Nessa orientação, o texto se adequa, se forma. Toda vez que o sujeito lê ou escreve um texto, o todo é constituído, o texto se enforma, toma nova forma, assim como o magma do vulcão, a metáfora escolhida por Pasolini (FONTANELLA, 2005), que ao sair, vai de um lado ao outro, contornando o caminho e se prolongando. Portanto, a configuração do texto secundário é inacabada, nada é fechado, está sempre pronto a uma reconfiguração, a uma interpretação, a uma tradução em outras linguagens, em uma cadeia intertextual, intersemiótica (JAKOBSON, 2007), interdiscursiva ou intermediática infinitamente. Para Barthes (2010), o texto nessa visão é plural e está sujeito a múltiplas interpretações. O conceito de “desconstrução” (DERRIDA, 1971) colabora para o nosso entendimento sobre o texto, fazendo uma conexão com o pensamento de Bakhtin (2011) e de Barthes (2010). Segundo Derrida (1971), não existe “fora-texto”, o sujeito é e está sempre em um texto, constitui-se como texto e em contato com textos. Esse movimento corresponde às relações dialógicas enunciadas por Bakhtin. E na sua forma enunciativa, de interação, é impossível de se distinguir o que é “texto” daquilo que acompanha o “texto”, que é o chamado “contexto”. Barthes (2010), juntamente com a arquitetônica delineada por Bakhtin (2011), ajuda-nos a compreender e a configurarmos uma concepção moderna de “texto” ou de “texto moderno”. Ele nos diz que “texto” quer dizer “tecido” (BARTHES, 2010, p. 74), no sentido de que o “texto” se faz, trabalha-se por meio de um entrelaçamento contínuo, em que os sentidos se mantêm mais ou menos ocultos, revelando-se na

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enunciação. Também recobra o termo latino, textus, que significa também uma imagem metafórica, como uma rede ou teia, uma textura, uma trama, uma pintura, uma escrita, uma escritura, uma rede sígnica. Barthes (2010, p.75) disse que se gostasse dos neologismos, “poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha)”. Esse discurso permite a compreensão de que o “texto” tem um movimento de abertura, o qual nos conduz a uma interpretação de texto no sentido mais amplo. Dessa forma, podemos falar de texto cinematográfico, texto teatral, texto literário, texto pictural etc. Tudo pode ser um texto, um texto de leitura. Esse é o ponto de ligação, o elo entre a configuração arquitetônica de Bakhtin e de Barthes. O texto como um corpo permeado, atravessado pela ideologia, pela consciência e a linguagem de uma determinada sociedade. Barthes (1990), em seu livro “O óbvio e o obtuso”, fala que o texto também nos conduz a uma visão “obtusa”, a uma visão mais ampla. Nesse livro, ele faz um elogio à “visão obtusa”, referindo-se à geometria, interpretando o ângulo obtuso em sua forma mais aberta do que a do ângulo agudo, como traços significativos para uma visão filosófica. Entende-se dessa forma que o ângulo agudo é um ângulo fechado, estreito, limitado só em uma direção. E o ângulo obtuso é ilimitado no horizonte interpretativo relacionado à abertura obtusa do texto como possibilidade de ser interpretado e lido infinitamente. Essa noção de “visão obtusa” coincide com o conceito de “dialogicidade” ou “dialogismo” de Bakhtin (2011).

3.4.1 Texto de fruição e Texto de prazer

O prazer do texto é isto: o valor passado ao grau suntuoso de significante. BARTHES (2010, p.77)

No livro “O prazer do texto” (2010), Barthes também faz um discurso sobre o que se compreende por “texto de fruição” e “texto de prazer”, discurso que também está em consonância com a arquitetônica bakhtiniana, que versa sobre os “textos simples” e “textos complexos” ou “artísticos”. Para Barthes (2010), o “texto de fruição” é como o “texto simples” ou “texto primário” que serve para comunicar, transmitir mensagens e que lemos linearmente

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“palavra por palavra”. Texto de fruição, não se pode falar, nem comentar, só consumir, ler uma única vez. O “texto de prazer” é aquele considerado inconsumível, que não se lê uma única vez, pois a cada leitura, a cada enunciação, se tem um novo texto, uma nova leitura. Esse tipo de texto está relacionado com o conceito bakhtiniano de “texto secundário”, “texto complexo” ou “texto artístico”. Nessa concepção, Barthes (2010) explica

que

os

textos

de

Flaubert,

Proust,

Stendhal

são

analisados

inesgotavelmente, pois a crítica literária versa sempre sobre “textos de prazer” e nunca sobre “texto de fruição”. Podemos elencar nessa concepção, as inúmeras teses e dissertações que analisam obras de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Manoel de Barros, só para elencar alguns escritores de “textos de prazer”. Em suma, dos “textos de prazer” é possível se falar infinitamente. Barthes explica ainda que o “prazer” não é um “elemento” do texto, nem algo que depende de uma lógica de entendimento e muito menos é uma sensação. Para ele, trata-se de uma “deriva”, uma metáfora para o discurso que nos remete ao desvio de rota, “que é ao mesmo tempo revolucionário e associal e que não pode ser fixada por nenhuma coletividade, nenhuma mentalidade, nenhum idioleto” (BARTHES, 2010).

Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que a força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto, ao mundo (BARTHES, 2010, p. 26).

Com o discurso da “deriva”, Barthes (2010) explica que o prazer do texto é “atópico”, não tem morada fixa, nem sentido e nem significado único, e nem tampouco monológico, mas é “vagabundo” (que caminha sem rumo determinado) e plural. O artista plástico e pesquisador Luciano Ponzio, em sua pesquisa sobre escritura como texto artístico, fez a obra “Scritture senza dimora” (2006-2007), traduzida em português como “Escritura sem morada”, em homenagem a Roland Barthes e seu discurso sobre texto de escritura como “deriva de uma rolha sobre as ondas”.

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Figura 12: Obra Testo, Tessuto, Trama, Tela, Scrittura Homenagem a Roland Barthes, 2006, de Luciano Ponzio Fonte: Acesso em: 21 jun. 2013.

Barthes (2010) considera que o relacionamento entre leitor e texto é o mesmo que acontece quando se está com quem se ama, pois “produz em mim o melhor prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente; se, lendo-o sou arrastado a levantar muitas vezes a cabeça, a ouvir outra coisa” (ibidem, p.32). Como instituição, ordem de discurso (FOUCAULT, 1996), no jogo da escritura, o escritor faz papel de morto, o autor-homem deve se “calar”, conceito da arquitetônica do autor bakhtiniano. A identidade civil, passional, biográfica desaparece. Desapossada de identidade, o autor-criador tem voz e cria uma nova visão da realidade e o autor-homem não exerce sobre sua obra a formidável paternidade que a história literária apregoa (PONZIO et al., 2007).

3.4.2 Texto como atópico O texto é atópico, como apontei anteriormente pelas palavras de Barthes (2010, p.37), e também inatual, situa-se fora de posição, está no “tempo grande”, em um tempo fora do tempo cronológico, senão por ocasião do seu consumo, pelo menos em sua produção. Não é um falar cotidiano, uma ficção, é um texto “desbordado” (sem bordas), ele transborda ao que se materializou. E esse “desbordamento” é o que se pode chamar de “significância”. Luciano Ponzio (2013b) fala nessa mesma orientação quando trabalha com o conceito de texto como “texto amebóide” (amoeba, [αμοιβάδα], que em grego antigo significa “mudança”,

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“transformação”), texto que se enforma nas relações dialógicas atentando-se sempre ao momento da enunciação. Barthes (2010) diz que o texto atópico pode, primeiramente, liquidar com toda metalinguagem e as vozes (Ciências, Instituições); depois, “enforma-se” até contradizer sua própria categoria discursiva, sua referência sociolinguística, como gênero. Por exemplo, o texto cômico que não faz rir; a ironia que não se sujeita; a jubilação sem mística; a citação sem aspas. Esse tipo de trabalho com a linguagem é um trabalho progressivo de extenuação, o que possibilita também ao texto investirse contra as estruturas canônicas da língua: léxico, semântica e sintaxe (ibidem, p.40). Essa consideração de texto como atópico remete-nos também à questão do autor-criador como criador de linguagem, por estar sempre envolvido na tensão entre a língua “viva” e a língua como sistema fechado. Essa tensão que o constitui pela linguagem (escritura) e que está sempre “fora de lugar”, segundo Augusto Ponzio, no seu livro “Fuori luogo” (2007a), ocorre pelo simples e interessante fato do “dialogismo” (BAKHTIN, 2011). O autor-criador se encontra sempre à margem dos sistemas, à deriva, como alegoricamente falou Barthes (2010), posição que é necessária à construção de sentido, privando o seu texto de um sentido fixo, ampliando-o como espaço de valor e movimento histórico. Essa posição do autor-criador, na concepção estética, está fora da troca, não há negociação e sua obra é de ordem da infuncionalidade, segundo Augusto Ponzio, no livro “Elogio dell’infunzionale” (2004); exceto pelos textos de “fruição” ou “textos simples”, que têm a funcionalidade da representação, da esfera da vida, das funções e obrigações. A “gratuidade” da escritura faz o autor-homem ou autor-primário calar-se (BAKHTIN, 1979), só assim o autor-criador produz, contraindo-se, exercitando os músculos, negando a deriva, recalcando os textos de representação e, quando possível, combatendo “ao mesmo tempo a repressão ideológica”, a língua materna (BARTHES, 1998). Enfim, nesse navegar, o autor-criador brinca com o corpo da língua, dos códigos para levar ao limite o que pode, da materialidade, ser reconhecido.

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No texto de escritura, a regra deve ser abolida, confrontada, porque é um “abuso” e a exceção deve ser uma constante. O autor-criador deve desfrutar-se das exceções (BARTHES, 1998, p. 51). O “texto complexo” ou de “prazer” não diz, não dá os nomes, desfaz a nomeação, a verdade das coisas e é essa defecção que o aproxima da fruição (BARTHES, 2010, p. 55). O belo exemplo disso está na obra “Isto não é cachimbo”, de Magritte, que citamos anteriormente, abaixo da imagem está a frase – nomeação – que não condiz, em primeiro plano, com a imagem, a representação do objeto. Nessa concepção estética, Barthes (2010), quando fala do conceito de estereótipo como “palavra repetida”, o faz em relação a Nietzsche, que discursava sobre a verdade como aquela que não se repete, que é sempre outra, se renova pela caminhada. “Nietzsche fez o reparo de que a ‘verdade’ não era outra coisa senão a solidificação de antigas metáforas” (ibidem, p. 52).

3.5 Leitura como interpretação, tradução e atravessamento

Barthes (2010) fala que não se lê “palavra por palavra”, não se lê as palavras de um texto em seu significado reduzido, aquele do dicionário, mas se lê movimentando a cabeça, lendo o texto e, algumas vezes, levantando a cabeça. Se lermos o texto “palavra por palavra”, o sentido se perde, pois o significado de cada palavra é pesado e não possibilita a interpretação. Essa forma de ler é uma crítica à língua como sistema, pois não se pode dizer tudo que se quer em um código fechado.

O que eu aprecio, num relato, não é, pois, diretamente o seu conteúdo, nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corre, salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar (BARTHES, 2010, p.18, grifos meus).

Esse movimento de leitura permite a relação com outros textos, outros autores e faz com que o leitor interprete o texto, reescrevendo o mesmo texto. A leitura é, assim, diz Barthes (2010), uma reescrita, reescritura, é uma reinterpretação do texto. Enfim, é uma tradução do texto na mesma língua.

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O movimento de se “levantar a cabeça na leitura” coincide com os conceitos de dialogismo (BAKHTIN, 2008; 2011) e de intertextualidade (KRISTEVA, 2005), que permite ao texto viver uma relação dialógica com outros textos e outros autores, pois não existem limites pré-constituídos no texto. O texto nesse sentido “sabe de outros” e tem o “sabor de outros”. O saber e o sabor de outros textos e autores, por isso, são compreendidos múltiplos outros textos que dialogam no seu interior e com o seu exterior. Barthes (2010) fala que é assim que se lê, pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso, não na sequência de palavras, mas na enunciação (ibidem, p. 19). A produção de sentidos se dá pelo referencial, pelas experiências singulares de leituras de cada leitor, no momento em que se lê. Quando se fala em produção de sentido, em posição, ponto de vista, não se deve pensar que estamos “fora” das ideologias que permeiam as esferas da atividade humana. Para Barthes (2010),

[...] a ideologia passa sobre o texto e sua leitura como o rubor sobre um rosto (em amor, alguns apreciam eroticamente esse vermelho); todo escritor de prazer tem suas ruborizações imbecis (Balzac, Zola, Flaubert, Proust; somente Mallarmé talvez é senhor de sua pele) (BARTHES, 2010, p. 40).

Todos estão atravessados pela ideologia, essa “ruborização” - como metáfora de Barthes - está invisivelmente impregnada nos sujeitos situados em seus produtos culturais, por mais que pelo ponto de vista de Barthes, talvez, o poeta Mallarmé, como autor-homem possa ser “senhor de sua pele”, esteja em posição de “neutralidade”. O que penso ser muito difícil, por ser a neutralidade uma posição tendenciosa quando se vive em sociedade. Essa sociedade que exige de todo produto humano uma “unidade moral”, o que aparece (ou não) desbordado (sem bordas) pelo texto. Barthes (2010, p.40-41) aponta que alguns querem um texto (como pintura, escultura etc.) “sem sombra”, retirado da “ideologia dominante” (BAKHTIN, 1997), mas esse querer produziria um “texto estéril”, sem fecundidade, sem produtividade. Para teorizar essa questão, o linguista francês faz referência ao mito da “Mulher sem Sombra” (1919), uma ópera (em três atos) do compositor alemão Richard Strauss (1864-1949). Em resumo, a história da ópera se passa em um império mítico das Ilhas do Sul e envolve cinco personagens: o Imperador, a Imperatriz, sua ama

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Barak, um tintureiro pobre e a mulher do tintureiro. Além deles, há um sexto personagem do Reino Espiritual, responsável pela dinâmica da história. A Imperatriz não é humana, sua forma original era a de uma gazela. Casou-se, mas não tinha sombra, fato que simboliza sua esterilidade. A partir dessa reflexão, não se pode conceber um texto sem “sua sombra”. Essa “sombra” é um “pouco de ideologia, um pouco de representação, um pouco de sujeito” (BARTHES, 2010, p. 41). E sendo assim, o texto como subversão deve produzir seu próprio jogo antagônico “claro-escuro”. Esse discurso também é percebido nas pesquisas de Emmanuel Lévinas (1994). O pensamento do filósofo francês Lévinas (1906-1995), em sua vasta obra, foi direcionado em grande parte ao discurso ético, poucas vezes se debruçou sobre a questão estética. O que se conhece dos comentadores que se dedicam a essa temática, os poucos artigos, capítulos e entrevistas divulgados sobre estética dão uma espécie de “estrutura mínima” como esboço sobre essa concepção. E um desses poucos artigos tido como ponto de partida e referência para a questão estética é o intitulado La réalité et son ombre [A realidade e sua sombra], publicado pela primeira vez em 1948, na Revista Les temps modernes, de 1994. Nesse artigo, o filósofo fala da arte sob o ponto de vista da linguagem, expondo sua concepção estética como uma crítica que terá consequências para a compreensão do estatuto filosófico pensado à linguagem. Discurso que se aproxima da Filosofia de linguagem de Bakhtin, para além dos conceitos de conexão mais acentuados como “diálogo” e “alteridade”, a atração pela escritura, em especial, a escritura literária.

Tudo se passa como se a sensação, pura de toda concepção, esta famosa sensação inapreensível para a introspecção, aparecesse com a imagem. A sensação não é um resíduo da percepção, mas uma função própria: a influência que exerce sobre nós a imagem – uma função de ritmo. O ser-no-mundo, como se diz hoje em dia, é uma existência com conceitos. A sensibilidade se põe como um acontecimento ontológico distinto, mas não se realiza senão pela imaginação (LÉVINAS, 1994, p.113).

A sensibilidade como “sensação”, para Lévinas, possibilita a afirmação e a redução do sentido da linguagem ao conceito, fato que dá acesso ao “ser-no-mundo” como “alteridade” legítima, como “exterioridade” referida a uma “interioridade”.

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Segundo Augusto Ponzio (2013, p. 226), “é surpreendente a analogia entre o conceito levinasiano de ‘exterioridade’ e aquele bakhtiniano de ‘extralocalização’” que, em suma, refletem e evidenciam a alteridade na própria esfera do “eu”. Com Lévinas e Bakhtin, a aproximação de sentido entre ético e estético, uma comunicação através da relação que cada discurso estabelece com a alteridade do ser, “testemunha” e “juiz” do “eu” (BAKHTIN, 2002), geralmente enfrentados em termos de conhecimento e ontologia, é mais uma vez a relação de “exotopia” que a escritura acentua. Por isso, o papel fundamental é atribuído ao outro, à palavra alheia, antes de ser própria, pois a palavra nunca é neutra, ideologicamente vazia, possui uma orientação avaliativa, um sentido, uma ideologia (PONZIO, A., 2013, p. 229).

3.5.1 A leitura e a escritura para além da convencionalidade Nas pesquisas de Barthes, percebemos que a concepção de leitura está para além da decodificação de códigos, pois quando ele diz que ao lermos não lemos “palavras por palavras” (a forma literal que compõe o texto), mas que produzimos imagens, que vemos as imagens da interpretação, interessamo-nos pela forma “poética” ou “literária” do texto. Tudo isso está no movimento de leitura, aquele do “levantar a cabeça”, e da experiência de leituras de cada um. Essa forma de leitura é tida como tradução, como “compreensão respondente” (BAKHTIN, 2011). Nesse sentido, podemos conceber a “escritura” e a “leitura” para além de sua forma literal, de sua textura como material concreto. Barthes (1998, p. 287-289) analisou em suas obras a questão dos leitores no mundo. Verificou que neste mundo temos muitos leitores e a maioria são somente leitores que consomem o texto, que leem apenas uma vez. Esse tipo de leitor foi chamado por Barthes de “leitor-consumidor” de textos simples, textos da comunicação ordinária, cotidiana, em referência à configuração de Bakhtin. Uma vez “consumido” o texto, ele pode ser descartado. Barthes (1998) apresenta outra denominação para o leitor que não apenas “consome” textos: “leitor-escritor”. Para ele, “leitor-escritor” é aquele que reescreve o texto, lê o texto infinitamente e cada vez reescreve-o, fazendo uma nova interpretação do texto. Barthes fala ainda que em cada leitura, ao mesmo tempo em que o leitor lê, ele vai escrevendo um novo texto em sua consciência ou mesmo

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escrevendo literalmente no próprio texto. Fato que podemos relacionar aos estudantes e pesquisadores quando fazem anotações em livros de pesquisa. Nessa concepção, “ler” e “escrever” são atividades inseparáveis. O “leitor-consumidor” é aquele que lê o texto e o descarta depois. Aquele que lê com um objetivo definido, por exemplo, que lê com intenção de fazer provas. Que lê um e-mail, responde e pronto. Não há mais nada a fazer. Esse é sistema de comunicação na atualidade. O movimento do capitalismo e do seu mercado, em que se consome o tempo todo, continuamente. Barthes (1998) ainda fala que prefere fazer do “leitor” um “escritor”, tendo o leitor como “eleitor” (ECO, 1993), aquele que escolhe o percurso de leitura, autônomo, que salta de uma página para outra, de um parágrafo para outro, que lê interessando-se por alguns argumentos e decidindo o que se quer ler. Nesse contexto, podemos nos referir à “hipertextualidade” na internet, na qual, como leitores, escolhemos e decidimos o percurso de leitura que desejamos trilhar, entre tantos links e hiperlinks. Nesse caso, realizamos a leitura como “leitoreleitor”, sem “devorar”, sem “engolir”, mas aparando com minúcias, redescobrindo novos sentidos com muita vivacidade. Na cena do texto não há relação entre sujeito-objeto, pois o “texto prescreve as atitudes gramaticais” e passa a ser o “olho indiferenciado” de que fala um autorcriador (BARTHES, 1998, p. 23). 3.6 Representação e Figuração/Rafiguração25

A questão dos nomes das coisas, das representações no mundo pode, por vezes, não coincidir com os valores axiológicos dos sujeitos situados, como exemplo, citamos os “gostos pessoais”, uns gostam mais de leite, outras não (BARTHES, 2010). Só isso, projetaria um agir no mundo diferenciado em torno das pequenas refeições, quiçá numa análise mais ampla das coisas e dos seus valores. Outro sentido para a representação (ibidem, p.55-56) está na ordem das enunciações por meio de textos, como corpo, unidade portadora de significância. 25

Palavras com a mesma significação conceitual, a primeira (Figuração) cunhada por Barthes, no seu livro O prazer do texto (2010) e a segunda (Rafiguração) cunhada pelo pesquisador italiano Luciano Ponzio, em seu livro Icona e Raffigurazione (2008). Ambos tratam da escritura como representação da realidade, um outro ponto de vista da vida cotidiana e oficial, assumidamente pelo viés da visão artística.

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Numa audiência, o enunciador “representa” algo, utilizando-se do “último estado da realidade” como discurso de memória atrelado a coisas nomeadas. E desse modo, o autor-criador “ao citar, ao nomear”, por ser notável, impõe ao seu interlocutor, o leitor, o “último estado da matéria”, aquilo que não pode ser ultrapassado, por estar “registrado”, mas que não se limita à nomeação, à imaginação. É algo extracorpóreo. Nesse contexto, segundo Barthes (2010), Haveria em suma dois realismos: o primeiro decifra o “real” (o que se demonstra mas não se vê) e o segundo diz a “realidade” (o que se vê mas não se demonstra); o romance, que pode misturar estes dois realismos, junta ao inteligível do “real” a cauda fantasmática da “realidade” [...] (BARTHES, 2010, p. 56)

A frase é a materialidade corpórea utilizada nas práticas sociais e é tida como “hierárquica”, pois implica obediências e reações internas em sua utilização. Nessa direção, consiste o conceito de “acabamento”, também analisado por Bakhtin (MEDVIÉDEV, 2012) em sua teoria da linguagem, como possibilidade de se fechar um discurso, pois sendo um “corpo” hierárquico, não pode permanecer aberto a outras interpretações. Na teoria de Chomsky, segundo Barthes (2010, p. 60) a frase é por direito “infinitamente catalisável”, porém a prática social obriga que os sujeitos terminem o discurso, a frase, realizem um acabamento. Para Barthes (2010), Com efeito, é o poder de acabamento que define a mestria frástica e que marca, como que com um savoir-faire supremo, duramente adquirido, conquistado, os agentes da Frase. O professor é alguém que acaba suas frases. O político entrevistado tem visível dificuldade em imaginar um fim para a sua frase: e se esquecesse o que ia dizer? Toda a sua política seria atingida! (BARTHES, 2010, p.60-61).

A frase é de ordem da representação, da realidade, assim como os discursos que se propõem representar a realidade, situando-se, assim, fora do campo de significação estética. Portanto, a representação é uma visão limitada da vida. Bakhtin, em sua configuração estética falou muito a respeito da representação ao aborda a linguagem na vida, algo muito semelhante na teoria de Barthes, diante disso,

podemos

fazer

um

paralelo:

Vida/Representação

e

Arte/Figuração

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(BARTHES, 2010, p. 66) ou Arte/Rafiguração (PONZIO, L., 2008). Discursos teóricos que nos situam nos limites ou fronteiras da dimensão ética e estética da linguagem e da cultura. A figuração/rafiguração, ambas com o mesmo sentido e concepção, referemse ao modo da textualidade, do perfil que o texto adquire a partir de outro ponto de vista, de um outro olhar e de uma outra posição (exotopia bakhtiniana), que foge da “imitação” dos elementos situados na esfera da vida real. O excedência do “corpo” em um texto biográfico, o desejo de uma personagem no romance, as cores em uma pintura, a saudade em um poema, o amor em um filme etc. Enfim, todos esses movimentos apresentam uma figuração ou rafiguração de um texto com estrutura diagramática e não imitativa. Daí a importância dos textos no campo da estética, de que sempre serão figurativos (rafigurativos) mesmo que não representem nada de definitivo ao sujeito leitor. A representação se compõe por meio de um espaço de álibis: “realidade, moral, verossimilhança, legibilidade, verdade etc.” (BARTHES, 2010, p. 66), atravessado de outros sentidos que não coincidem com os da contemplação, do desejo no “espaço estético” (BARROS, 2011).

3.7 A escrita e a escritura: delineamentos

Na vida, sinto prazer ao me dedicar aos textos de escrita, da cotidianidade, como atitude de comunicar-me com o outro ou mesmo comigo, como faço nos emails institucionais escritos na função de professora, nos diários ou memórias pessoais ou mesmo nesta dissertação de mestrado como acadêmica. Essas escritas com características funcionais e consumíveis em um “pequeno tempo”, num contexto contemporâneo. São escritas que me levam e me satisfazem pela arquitetônica da responsabilidade técnica. Porém, minha preferência como pesquisadora está nos textos de escritura, desde a minha formação acadêmica em 1998, quando elaborando a monografia de conclusão de curso, que se intitulou “A escritura metafórico-metafísica de Clarice Lispector em Água Viva”, sob a orientação do saudoso Prof. Sérgio Dalate, algo (ainda inominável) restou em mim, como curiosidade epistemológica, vontade imanente...

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Somente agora, 2011-2012, com os “encontros” realizados pela vida e na vida, reencontrei o caminho para prosseguir na pesquisa do texto de escritura que tanto havia me tocado na época de faculdade. Com isso, também, reencontrei-me, como valor para, pretensiosamente, contribuir com minhas leituras nas pesquisas e, Linguagem, que, de agora em diante, continuarão a ser galgadas, pois a pesquisa vive no “tempo grande”. E o mais belo de tudo: é um processo e tem sabor de escritura, vai se enformando. Esse processo, Derrida (2010), em seu livro “Memórias de Cego”, compara-o ao ato de “escrever sem ver”: A linguagem fala-se, o que quer dizer da cegueira. Ela fala-nos sempre da cegueira que a constitui. Mas quando ainda por cima escrevo sem ver, quando da experiência excepcional que evocava há instantes, na noite ou com os olhos algures noutro lado, já um esquema se anima na minha lembrança. Virtual, potencial, dinâmico, este gráfico ultrapassa todas as fronteiras dos sentidos, o seu serem-potencial é ao mesmo tempo visual e auditivo, motor e tátil. Mais tarde, a sua forma aparecerá à luz do dia como uma fotografia revelada. Mas de momento, no preciso momento em que escrevo, não vejo literalmente nada destas letras (DERRIDA, 2010, p. 12).

É esse o caminho que a escritura “sem morada” (PONZIO, L., 2006) e “sem memória” é “uma visão sem olhos” (ato físico-óptico de ver, não filosoficamente falando) trilha no campo estético e que nos possibilita a renovação da vida e dos sentidos na vida. Falo um pouco mais da “escrita” e da “escritura”, com intuito de delinear a diferença de concepção nos processos desses textos, associados, respectivamente ao discurso e concepção de texto na teoria de Bakhtin como “textos simples ou primários” e “textos complexos ou secundários”; e na teoria de Barthes como “textos de fruição ou de representação” ou “textos de prazer ou de figuração/rafiguração”. Esses discursos e categorias são essenciais também no processo de análise desta pesquisa.

3.7.1 A escrita e a escritura: sob a visão de Barthes em conexão com Bakhtin Neste item, não apresento uma pesquisa substanciosa sobre o percurso histórico da escrita e da escritura, apenas aponto algumas considerações nessa direção histórica, com base na pesquisa de Barthes (1999) em seu livro Variazioni

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sulla scrittura (trad. Italiana, precede aquela francesa Le Plaisir du texte précédé de Variations sur l'écriture, Éd. du Seuil, Paris, 2000). Retomando, a “escrita” está relacionada aos textos da esfera da vida (dimensão ética) e a “escritura” corresponde aos textos da esfera da arte (dimensão estética). Isso se deve também por motivos de tradução, visto que o termo scrittura, na língua italiana, é compreendido por “escrita” ou “escritura”, no mesmo tempo. Considerações feitas, passo aos apontamentos históricos feitos por Barthes (1999) que se interessou primeiramente pela escritura como objeto de pesquisa, além da escrita, ambas feitas pelas mãos. A escrita, segundo ele, serve para transmitir. Isso se referindo ao momento histórico que atribuía a escrita às funções práticas de contabilidade e de comunicação. A escritura é muito anterior à linguagem oral (BARTHES, 1999, p.23). Para Barthes (1999), a história mostra que a escritura tem a característica de esconder aquilo que deveria mostrar. Sobre isso, o filósofo diz que o texto de escritura tem duas partes, uma que se chama “legível”, por se tratar daquilo que é possível compreender na escritura porque pertence ao sistema, ao código; e a outra se chama “ilegível”, uma opacidade gráfica, a parte que não se pode ler totalmente. Esse termo “ilegível” não significa que a escritura seja defeituosa, monstruosa, mas que contém a verdade da escritura (ibidem, p. 10), a parte criativa. Nesse sentido, sobre textos de escritura, Barthes (1999) também vai dizer que há textos que são: inaudível, como a composição “4’33”, de John Cage (19121992); invisível, que não se pode ver (o branco da escritura, da pintura imaterial e não-objetiva de Duchamp e de Malevich); indizível, que não se pode dizer ou exprimir através da língua (poesia transmental ou visual e a Filosofia que é o nãoobjeto por excelência). Em seu todo enunciativo, tanto a escrita quanto à escritura pode ser compreendida como registro, como memória (mnemotécnica). Porém, com a diferença entre ser “funcional” para a escrita (com intenção de comunicar, informar) e “infuncional” para a escritura (sem o objetivo de comunicar). Uma pintura, por exemplo, não aspira “dizer” alguma coisa, “comunicar” alguma mensagem. Os conceitos de “funcionalidade” e “infuncionalidade” para os textos de escrita e escritura, respectivamente, são delineados por Augusto Ponzio (2009a), e referemse aos objetivos do texto. Para esse renomado pesquisador, a “funcionalidade” está atrelada às questões de comunicação, de informação, tem caráter de prestação de

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serviço, de servir para algo. Discurso da oficialidade tomado pelos “textos primários” ou “simples” de Bakhtin. Já a “infuncionalidade” está na essência dos “textos secundários” ou “complexos”, que não têm a intenção de comunicar, de transmitir uma mensagem. Para exemplificar esse conceito de “infuncionalidade”, cito o Monumento ao Cristo Redentor (1931), no Rio de Janeiro, obra criada pelo engenheiro Heitor da Silva Costa (autor do projeto), pelo artista plástico Carlos Oswald (autor do desenho final) e pelo escultor francês de origem polonesa Paul Landowski (executor dos braços e do rosto da escultura). É um “texto complexo”, “artístico” (monumento) e não tem funcionalidade, pois não se pode pensar e dizer que o “Cristo Redentor” esteja ali, naquele lugar, de braços abertos, para “matar mosquitos”, isso seria um absurdo. Por isso, o monumento, como “texto de escritura” no campo estético, é “infuncional”, não serve para algo, está na ordem da enunciação e da contemplação.

Figura 13: Monumento ao Cristo Redentor (1931) Rio de Janeiro Fonte: Acesso em: 20 ago. 2013

A escritura é, portanto, nas palavras de Barthes, impregnada de um simbolismo, signos, como corpo de significação infinita. E o texto de escrita, também tem simbolismo, porém como ordem simples (grafia) e absoluta da memória (registro). Na trajetória histórica, a Humanidade experimentou todo o tipo de escrita: vertical, horizontal, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Cada uma delas pertencendo a um sistema limitado de som, de material, de corpo. A escritura tinha a capacidade de fissurar, de romper uma argila, um material plano, um papel,

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uma parede, uma pedra. E ambas representavam a economia (BARTHES, 1999, p.41), perfazendo um paralelo entre a invenção do alfabeto e a moeda. A letra ou desenhos como instrumento de memória e a moeda como medida das coisas. A palavra scrittura (escrita e escritura, ao mesmo tempo, neste caso) é ambígua, aponta Barthes, primeiramente porque demanda um sentido como gesto físico-corporal, como inscrição e segundo, em outro sentido, em que é um processo para “além do papel”, mostrando-se como um complexo “texto” indissociável de valores estéticos, linguísticos, sociais, históricos e metafísicos. Recortei e apresento aqui as três determinações semânticas principais que Barthes (1999) configurou sobre a scrittura. 1. É um gesto manual, em oposição ao gesto vocal, como inscrição. 2. É um registro legal e permanente de signos (que não se pode cancelar, é memória, “está escrito”). Escritura destinada a triunfar sobre o tempo para sempre, sobre o erro (exemplo: “está escrito ali”) e sobre a mentira. Estando escrito, não se pode dizer que é mentira. 3. A scrittura como prática infinita, na qual todos os sujeitos estão envolvidos. Em suma, a scrittura é gesto, lei e prazer. Tais tendências configuravam a scrittura na sociedade da antiguidade, porém relegada a uma atividade “servil”. Barthes (1999) diz ainda que continuamos com a mesma concepção propagada na antiga Roma, a de que “escrever” era ocupação “servil”, não era uma atividade nobre (ibidem, p. 43). Naquele tempo, o homem livre não escrevia, apenas ditava a um escravo. No tempo de Barthes, a máquina de escrever era o instrumento de classe, hoje, posso dizer que essa relação se mantém com o uso do computador. Esses instrumentos de trabalho estão ligados ao exercício do poder, que supõe uma hierarquia, uma instituição, um substituto moderno para o serviço dos escravos escreventes na antiga Roma. Os instrumentos de classe, máquina de escrever e os computadores modernos são tidos ainda como instrumentos não-humanos, segundo Barthes (1999), porque exigem uma assinatura depois da escrita por meio dos instrumentos. Isso ainda acontece em algumas instituições, por mais que já se tenha assinaturas digitais à disposição da funcionalidade, dos serviços burocráticos. Essa escrita em forma de assinatura (firma) assegura e autentica o compromisso da pessoa, pois se mostra como expressão de uma identidade, que compõe a esfera da representação, a esfera oficial da vida. Segundo Barthes (1999,

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p.48), a escrita como firma faz parte do sistema econômico, no início do Capitalismo, criada pelo Rei Henrique II (Rei da França de 1547 – 1559), no ano de 1554, por meio de decreto-lei, que definia a obrigatoriedade de se assinar/escrever abaixo do texto escrito. Esse discurso de scrittura (BARTHES, 1999) nos remete ao sujeito que antigamente (até recentemente) escrevia à mão ou mesmo aos poetas e escritores que escreviam seus textos em pedaços de folhas velhas, por exemplo. Assim, hoje, a questão da escrita e da escritura manuscrita permanece como registro de valores afetivos e axiológicos do homem em sociedade. Cada uma delas, com seu processo constitutivo no campo ético ou no campo estético. Podemos depreender dessas noções que a escritura está na ordem do “evento” (categoria bakhtiniana), da alteridade e não como identidade ou repetição. E a escrita está na ordem dos fatos, da cotidianidade que tem como metáfora o “carrossel”, que gira sempre e na mesma direção, uma repetição constante e rotineira.

3.7.2 Leitura como escritura No livro “Scritti”, coletânea de texto de Barthes (1998), consta um capítulo dedicado à leitura. Segundo o escritor, a palavra leitura não tem relação direta com o seu conceito, mas é um conjunto de ações que está na prática social (idem, p.261). Nesse sentido, Barthes diz que há duas dimensões para se entender o processo de leitura como prática histórica e social: 1) A dimensão social e política; 2) A dimensão individual e ética. Tais noções nos reportam a arquitetônica da responsabilidade (técnica e moral) definida por Bakhtin (2010) em seu livro “Para uma filosofia do ato responsável”. Da leitura como técnica de decodificação, por conta dos códigos que são convencionais (BARTHES, 1998, p. 262), à leitura dinâmica, há sempre uma aprendizagem que requer pedagogia, pois vai se adaptando aos novos tempos. Nesta reflexão, a leitura é vista como prática social. Segundo Barthes (1998) tal prática, o saber ler, foi por milênios um “brutal operador de discriminação social” e funcionava como escritura, dimensionando o poder como padrão de tempo, de comunicação, de memória (ibidem, p.262).

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O conceito de “corpo grotesco” de Bakhtin (1998, 2010a, 2011) ajuda-nos a refletir essa concepção “corpórea da leitura” como modo de identidade e alteridade, de significar o corpo em função de uma ação, seja por ócio, prazer, trabalho, lazer etc. O corpo vai falar, mostrando ao outro o significado de sua leitura. O corpo como unidade comunicativa. Podemos também dizer que a leitura como escritura é um trabalho de texto, tem uma parte ativa (BARTHES, 1999, p. 287). Assim, o corpo tem também essa parte ativa, pois participa do processo de leitura, não é passivo. De um lado, tem-se a frase (no caso dos textos de escrita ou literários), como fronteira na linguagem, e do outro fica o discurso, o contexto de recepção. A leitura faz parte de uma ciência do discurso e do texto (BARTHES, 1999). E por isso, na contemporaneidade, em que se têm mais textos simples do que complexos, a leitura e a escritura não dependem mais da mesma competência. Em se tratando de orientações educacionais, os processos de ensino e aprendizagem podem se pautar em atividades articuladas conjuntamente, sem a ilusão de que o nível sistematicamente apreendido será o mesmo.

3.8 Apontamentos textuais

Aqui sistematizo em apontamentos a visão de texto como enunciado apresentado pelas teorias resenhadas neste capítulo. Antes, porém, retomo a concepção de linguagem, da qual me servi para estudar o objeto desta pesquisa. Trago para este estudo a terceira concepção de linguagem, aquela que corresponde à linguagem como interação. Para sistematizar a compreensão dessa concepção, busco os discursos da teoria de Bakhtin, o maior representante dessa concepção no Brasil, e da Semiótica do Texto, um diálogo estabelecido com Peirce, Barthes e Sebeok. Pesquisadores que consideram, assim, como Bakhtin, a enunciação e a linguagem não-verbal, e não somente a língua, como signo verbal. A linguagem é o instrumento mediador das comunicações discursivas, pensando-se assim, não se pode reduzir a linguagem apenas à língua. A sala de aula é um texto e lá entrarão diariamente em diálogo os demais textos: professor, aluno, ambiente, tempo, espaço etc. Os sujeitos interlocutores negociam os sentidos nesse espaço educativo e como textos potenciais se comunicam, se expressam

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mostrando sua posição no mundo. O sujeito é constituído na e pela linguagem. Quando se enuncia, enuncia-se sempre em direção a um “tu”, mesmo que o diálogo seja interior (consciência), consigo mesmo. Nesse sentido está a noção da alteridade, um dos princípios da teoria bakhtiniana, que toma a relação dialógica entre textos, uma ação entre duas consciências. Evidentemente que nesse espaço de enunciação existe sempre uma tensão que é inerente à linguagem, ao dialogismo, ao encontro. Tem-se a alteridade como constitutiva da linguagem. E a linguagem só se realiza por meio de signos ideológicos, os quais perpassam a enunciação limitando as fronteiras da comunicação discursiva apresentadas pelos sujeitos interlocutores. Para concluir este capítulo, retomo as considerações que me levaram a ver a linguagem no sentido aqui apresentada, composta de signos verbais e não-verbais, articulando, para esse fim, o discurso de Bakhtin e seu Círculo, com a concepção de “texto como enunciado” (BAKHTIN, 2011, p. 308) à Semiótica do Texto, e consequentemente relacionando os “gêneros do discurso” ao “texto como enunciado e enunciação”. Isso implica compreender o “texto” para além da sua textualidade, articulando-o ao “contexto”, aos elementos extracorpóreos coexistentes na enunciação. Apresento a seguir a síntese das concepções discutidas neste capítulo que têm como centro condutor de reflexões o “texto como enunciado”.

TEXTO COMO ENUNCIADO Texto que corresponde a diversas formas arquitetônicas da comunicação discursiva e é constituído por signos não-verbais e/ou verbais. ESFERA DA VIDA

ESFERA DA ARTE

Textos primários

Textos secundários

Autor-primário

Autor-secundário

Autor-homem / autor-pessoa

Autor-criador

Texto com acabamento provisório

Texto inacabado

Sem possibilidade de interpretação diversa

Aberto a interpretações

Implica uma única leitura

Implica leituras infinitas

Objetivo: comunicar

Objetivo: refletir e refratar

Responsabilidade técnica/especial/parcial

Responsabilidade moral/ética

Responsabilidade com álibi

Responsabilidade sem álibi

Refere-se ao papel social

Refere-se ao autor-criador

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Escrita como representação

Escritura como rafiguração/figuração

Ação de transcrição

Ação de criação, invenção, interpretação, tradução

Uso da palavra objetiva

Uso da palavra objetivada

Texto de fruição

Texto de prazer

Leitura informativa

Leitura como escritura Quadro 3: A dimensão do “texto como enunciado”

Essa dimensão de texto como enunciado colabora com o trabalho pedagógico do professor em sala de aula, para reflexão sobre sua própria prática e também em relação à utilização de diversos textos, principalmente se levar em conta o contexto sócio-histórico e de interesse do aluno, em suas práticas de letramento. Os alunos interagem diariamente, seja no ambiente de educação formal ou fora dele, na comunidade em que habitam. Vale pesquisar na comunidade os tipos letramentos que circulam por lá e que são funcionais, de utilidade no cotidiano. Além disso, a diversidade textual em sala de aula atende à proposta das Orientações Curriculares da Educação Básica de Mato Grosso (MATO GROSSO, 2010, p. 13), ao falar que “o trabalho é orientado pelo texto, unidade básica de estudo que se refere às atividades discursivas em uso, sejam elas orais, escritas e/ou multimodais”.

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Prenúncio do Capítulo 4 “Descoberta da literatura”, João Cabral de Mello Neto (1994) No dia-a-dia do engenho, toda a semana, durante, cochichavam-me em segredo: saiu um novo romance. E da feira do domingo me traziam conspirantes para que os lesse e explicasse um romance de barbante. Sentados na roda morta de um carro de boi, sem jante, ouviam o folheto guenzo, a seu leitor semelhante, com as peripécias de espanto preditas pelos feirantes. Embora as coisas contadas e todo o mirabolante, em nada ou pouco variassem nos crimes, no amor, nos lances, e soassem como sabidas de outros folhetos migrantes, a tensão era tão densa, subia tão alarmante, que o leitor que lia aquilo como puro alto-falante, e, sem querer, imantara todos ali, circunstantes, receava que confundissem o de perto com o distante, o ali com o espaço mágico, seu franzino com o gigante, e que o acabassem tomando pelo autor imaginante ou tivesse que afrontar as brabezas do brigante. (E acabaria, não fossem contar tudo à Casa-grande: na moita morta do engenho, um filho-engenho, perante cassacos do eito e de tudo, se estava dando ao desplante de ler letra analfabeta de Corumbá, no caçanje próprio dos cegos de feira, muitas vezes meliantes.)

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CAPÍTULO 4 MEMÓRIA DE PESQUISA E ENUNCIAÇÃO: EU E OS DADOS

Neste capítulo, apresento, inicialmente, a Memória de pesquisa, parte que destino a narrar o caminho trilhado por mim na realização deste estudo, situando o campo em que se localiza o objeto de estudo, a motivação, a pesquisa, os objetivos e as questões de pesquisa, assim como a abordagem e a metodologia para coleta de dados e seleção do corpus para análise. Na segunda parte, Enunciação: eu e os dados, narro o encontro, propriamente dito, do meu “eu” com os dados da pesquisa, a partir do corpus selecionado. Na segunda parte, escrevo de forma mais descritiva e analítica a contextualização do Caderno Se bem me lembro..., objeto desta pesquisa, para demonstrar como se constituiu o projeto de ensino do gênero memórias literárias, de que perspectiva as autoras se posicionaram e como elas releem esse gênero e realizam sua didatização para o ensino. Antes disso, faço uma leitura semiótica da capa, do nome do caderno Se bem me lembro... e do tema, o lugar onde vivo, que norteia a proposta de ensino. Para entender a proposta de ensino do gênero memórias literárias, apresento a base teórico-metodológica que lhe dá fundamento, a Escola de Genebra, para, em seguida, fazer a análise da organização interna da sequência didática nas oficinas selecionadas, verificando quais os elementos do gênero foram privilegiados no processo de didatização. Dessa forma, para analisar o Caderno Se bem me lembro..., das orientações aos professores às atividades dirigidas aos alunos, recorro-me às teorias e concepções apresentadas nos capítulos anteriores. Após apresentar a sócio-história do gênero no primeiro capítulo, tecendo considerações das áreas da Filosofia, História e Literatura em torno da temática “memória”, descrevo algumas oficinas do Caderno Se bem me lembro... a fim de observar e analisar as orientações apresentadas teoricamente no material de apoio ao professor e a forma como auxiliam na construção de uma prática social de escrita e leitura para o desenvolvimento dos alunos e dos professores. Isso também me possibilita compreender as aproximações e os distanciamentos entre conceitos em relação ao gênero memórias literárias e o projeto de ensino.

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Fecho o capítulo com a análise das oficinas selecionadas e com o levantamento das sugestões de materiais didáticos e dos gêneros mobilizados nas atividades internas dessas oficinas, para compreender como essas sugestões colaboram para a formação dos alunos-autores e professores-autores e mediadores de conhecimento. Acredito que todo projeto de ensino tem orientação dupla, à medida que se ensina, se aprende, porque para ensinar é necessário realizar pesquisa constante, renovando percursos e compreensões, e no diálogo com o outro, a pesquisa continua. É nessa prospectiva que se encontra meu ponto de vista.

Primeira parte 4.1 O percurso inicial da pesquisa

O meu objeto de pesquisa, o Caderno Se bem me lembro..., pertence à Coleção da Olimpíada do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) instituído em 2008. Esse programa traz em seu planejamento anual e bienal, respectivamente, a formação continuada de professores e o concurso de textos. Nesse contexto de política pública, eu, na qualidade de gestora e representante da SEDUC, pude articular com a Universidade Federal de Mato Grosso convidando a Profa. Dr.ª Simone de Jesus Padilha, professora do Instituto de Linguagens atuando na Graduação e na Pós-Graduação da UFMT, para atuar como docente na formação de professores multiplicadores. As formações dos professores da rede pública acontecem nos anos ímpares desde 2009 e têm como conteúdo principal a reflexão teórica sobre os materiais didáticos alternativos do Programa OLPEF. Os professores multiplicadores que participam dessas formações na capital retornam aos seus polos de atuação e realizam as ações de multiplicações para os professores em sala de aula. Para realizar as formações nos anos ímpares, o MEC e os parceiros do Programa OLPEF instituíram a Rede de Ancoragem em Mato Grosso composta por instituições que se articulam e realizam essas formações: UFMT, SEDUC-MT, UNDIME-MT. A Prof.ª Simone Padilha é coordenadora do Grupo de Pesquisa Relendo Bakhtin – REBAK e nas ações desse grupo foi incluído o Programa OLPEF como

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objeto de estudo na vertente de Formação de Professores. Vertente em que se situa minha pesquisa. Narrei o meu interesse pelo objeto de estudo aqui focado lá na Introdução desta pesquisa, porém, pela necessidade do gênero (escrita de dissertação de mestrado), retomo aqui uma síntese de meu interesse e, talvez, com mais – ou novos – detalhes. Coisas de “memória”. Inicialmente, posso dizer que o gênero “memórias” e a Literatura sempre me movimentaram pela vida, seja na esfera familiar, seja na acadêmica e também na profissional. Desde que me compreendo por sujeito, fui constituída por essas atividades discursivas e estéticas, como leitora e escritora. Na esfera profissional, trabalhando na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, sede da instituição, desde 2008, fui indicada para coordenar as ações do Programa OLPEF no Estado, em suma: organizar e sistematizar o trabalho de formação continuada presencial e online, nos anos ímpares; organizar o concurso de textos, nos anos pares. De todos os gêneros textuais trabalhados pelo Programa OLPEF (poemas, crônicas, memórias literárias, artigo de opinião), o que mais me chamou atenção foi o gênero intitulado “memórias literárias”. Que gênero é esse? Logo eu que sou formada em Letras, com habilitação em Português e Literatura, como ainda não conhecia esse gênero, suas propriedades? Esse nome gerou em mim muita curiosidade, desde a divulgação dele pelo Programa OLPEF em 2008, e se estendeu até o início desta pesquisa, em 2012. Até então, não tinha ouvido falar em tal gênero, tampouco estudado sua constituição. Penso que os professores também chegaram a se indagar sobre esse nome; porém, a primeira atitude era de pensar no gênero “memórias”, que já estava presente em nossa Literatura. Assim, movida pela curiosidade pessoal e pela responsabilidade técnica (por coordenar ações de formação), busquei ler a teoria que permeia o material alternativo do Programa OLPEF participando do Grupo de Pesquisa Rebak, como mencionado. A teoria de Bakhtin, de Vigotski e os conceitos dos pesquisadores de Genebra, como modelo didático e sequência didática permeiam os materiais do referido programa. Tudo isso me interessou. Na época da academia, UFMT de 1994 a 1998, não li nada sobre Bakhtin e sua teoria enunciativo-discursiva, por isso, concentrei-me nos conceitos elaborados por esse filósofo, pois minha responsabilidade era dupla, sentia-me um Jano

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bifronte, duas faces a serem alimentadas com muita leitura, uma na esfera da vida e a outra na esfera da arte. Enfim, depois de três anos estudando, três provas de seleção para o mestrado realizadas na UFMT, consegui o êxito. Dali em diante, era preciso delinear a pesquisa, para satisfazer a minha curiosidade inicial e pensar na linguagem como um todo. Penso que fazendo a descrição do gênero “memórias literárias”, pesquisando a história social desse gênero e sua constituição neste tempo presente, eu possa contribuir para a formação teórica, pelo menos em parte, de algumas concepções que aparecem nas atividades discursivas presentes na sequência didática desenhada e presentes no Caderno Se bem me lembro... Acredito também que esta pesquisa tem sua relevância na área educacional, quando me proponho a pesquisar a sócio-história do gênero “memórias literárias” e a descrever a didatização planejada para o ensino, em função das reflexões acerca da Linguagem e da formação teórica dos professores em sala de aula. Com esse desejo de compreensão e colaboração, penso que a metodologia mais adequada ao que busco seja a pesquisa de base qualitativa, bibliográfica e documental. As fontes constituídas por material impresso disponível em biblioteca ou internet são nominadas como fontes bibliográficas. As fontes diversificadas e diversas são nominadas por fonte documental, na qual se encontram os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as Orientações Curriculares para a Educação Básica de Mato Grosso (OC).

4.2 Da abordagem sócio-histórica e qualitativa à definição dos objetivos

Escolhi para esta pesquisa a abordagem sócio-histórica para a investigação qualitativa no âmbito das Ciências Humanas, apoiando-me nas ideias de Bakhtin e seu Círculo e de Vigotski. Segundo Freitas (2002, p. 21), em seu artigo A abordagem sócio-histórica como orientação da pesquisa qualitativa, tal abordagem é considerada uma “forma outra de fazer ciência” que envolve a “arte da descrição complementada pela explicação”. Pretendo que esta pesquisa qualitativa, desenvolvida a partir de uma orientação sócio-histórica, enfatize a compreensão dos fenômenos da linguagem identificados no Programa OLPEF e envolvidos no projeto de ensino do gênero

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“memórias literárias” a partir de seu acontecer histórico, situado, no qual suas características particulares são consideradas uma instância da totalidade social, visto como uma relação entre sujeitos, entre textos, portanto, de caráter dialógico. Bakhtin e Vigotski, ao desenvolverem suas teorias, estabeleceram como principal elemento constitutivo a dimensão social. Para Volochinov/Bakhtin (2002), o signo é o fenômeno do mundo exterior, tem sua objetividade e encarnação material. Nesse sentido “a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos” (ibidem, p. 32). Vigotski (1988) considera

os

signos

exteriores

como

instrumentos

mediadores

para

o

desenvolvimento e aprendizagem humana. Essas concepções baseiam-se no fato de que o conhecimento e a constituição do ser humano se dão nas interações, mediadas pela linguagem. Nesse contexto, para compreender o objeto de estudo, elaborei os seguintes objetivos para nortear as perguntas desta pesquisa.  Analisar o gênero Memórias Literárias no Caderno de Orientação do Professor Se bem me lembro... para descrever sua origem e composição.  Analisar a releitura e a didatização que o Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro apresenta no Caderno de Orientação do Professor Se Bem me lembro... Esses objetivos de pesquisa norteiam os seguintes questionamentos:  Qual é a origem e como se constitui o gênero “Memórias Literárias”?  Como o caderno da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) Se bem me lembro... relê e didatiza esse gênero? Apresentado o percurso inicial da pesquisa, passo a contornar a seleção do corpus para análise dos dados.

4.3 Metodologia de coleta de dados

Na seção anterior, descrevi o percurso que fiz até o início da pesquisa optando pelo enfoque sócio-histórico, na perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin e de ensino-aprendizagem de Vigotski. Além disso, também mencionei que a natureza da pesquisa adotada no processo de coleta e seleção dos dados é a investigação qualitativa numa abordagem dialógica.

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Pelo caminho inicial das leituras, compreendi que seria impossível pesquisar em pouco tempo a imensa riqueza de dados que estão contidos no Caderno Se bem me lembro... do Programa OLPEF e, ainda, desenhar o modelo didático ao término das análises, como apontamento discursivo dado ao tratamento didático das atividades elaboradas na sequência didática. Desta feita, investiguei a história social do gênero “memórias literárias”, pela natureza da primeira questão de pesquisa; e para responder a segunda questão, quanto à didatização, centrei minha visão em três aspectos: 1) a função social do projeto de ensino do gênero “memórias literárias”; 2) a relação do aluno-autor com o texto de “memórias literárias”; 3) a escrita e a escritura no projeto de ensino para o gênero “memórias literárias”. Inicialmente, para identificar a história social do gênero, precisei verificá-la à luz da esfera da atividade humana em que se situa esse gênero. Esse procedimento caracteriza a abordagem dialógica ao se estudar um determinado gênero, já que o próprio gênero do discurso não pode ser estudado de forma isolada, como se ele existisse distante e independentemente de sua manifestação concreta na vida. Assim, todo gênero tem sua história. Por isso, traço como percurso de pesquisa um breve levantamento da história da esfera da atividade humana que constituiu e constitui o gênero “memórias literárias”, caminho esse que se faz necessário para compreender dialogicamente a sua constituição e, a partir dela, identificar as suas atuais considerações no contexto de uso escolar. Porém não só levantar o histórico, mas percorrer alguns tecidos e discursos sobre “memória” pelo viés da Filosofia, da História e da Literatura. Esse recorte, que todo pesquisador precisa fazer, é indispensável para a delimitação de um ponto de vista, entre tantos possíveis. Penso que isso colabora com a pesquisa em Linguística Aplicada de forma que não seja tão cansativo ao leitor e seja mais aproveitada no contexto pragmático. Penso também que a metodologia sociológica do Círculo de Bakhtin colabora para esse ponto de vista, partindo da materialidade linguística do objeto de estudo (no meu caso, o gênero “memórias literárias”), indo em direção à esfera da atividade humana a que pertence (esfera de produção, de circulação e de recepção, à luz, é claro, de sua transformação histórica), para então retornar à materialidade linguística do objeto de estudo. É evidente que esse retorno traz consigo elementos essenciais

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para a abordagem do objeto que não existiam no primeiro momento, na primeira observação, no primeiro manuseio do Caderno Se bem me lembro... Esses três movimentos constituem o movimento de análise e não podem ser três movimentos distintos e isolados. Essa perspectiva analítica condiz com a metodologia proposta na obra Marxismo e filosofia da linguagem:

A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 124, grifos no original).

A descrição do gênero “memórias literárias” em seu tripé: conteúdo temático, forma composicional e estilo será apresentada como resultado do movimento de análise, em sua esfera de circulação escolar, após a análise do corpus aqui delineado. Para isso, reafirmo, utilizo-me do método sociológico de Bakhtin (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002). O professor em sala de aula realiza o trabalho com gênero ou texto, porém muitas vezes sem ter consciência desses movimentos metodológicos ou mesmo não abordando todos os aspectos do gênero. Essa é a cadeia de comunicação, dos elos enunciativos estabelecidos em uma interação. A cada dia e momento, cada sujeito se situa numa determinada esfera de atividade humana, elabora seus discursos tendo em vista um gênero e utiliza-se de uma materialidade textual, a mais adequada ao momento enunciativo. É por esse percurso que se pode compreender a citação de Brait (2006): Nesse ponto, fica explicitado como já estava indicado em Marxismo e filosofia da linguagem o fato de que a abordagem do discurso não pode se dar somente a partir de um ponto de vista interno, ou, ao contrário, de uma perspectiva exclusivamente externa. Excluir um dos polos é destruir o ponto de vista dialógico, proposto e explicitado pela teoria e pela análise, e dado como constitutivo da linguagem (BRAIT, 2006, p. 59).

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Diante dessa abordagem, meu ponto de vista dialógico contemplará a abordagem do discurso “memórias literárias” a partir de uma visão interna (constituição do gênero e sua escritura como materialidade textual) e de uma visão externa ao gênero (a função social realizada a partir do projeto de ensino de gênero escolarizado e a visão do aluno autor de texto de “memórias literárias”). Para coleta e seleção dos dados do Caderno Se bem me lembro..., sirvo-me de duas versões desse documento, uma impressa e a outra digital. O acesso ao documento impresso me é permitido, pois, como disse, represento tecnicamente a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso nas ações referentes ao Programa OLPEF neste estado. E a versão digital é acessível a todos os professores e pessoas interessadas cadastradas no site da Olimpíada, intitulado Comunidade Virtual: www.escrevendo.cenpec.org.br. A seguir, apresento a seleção do corpus para análise.

4.4 A seleção do corpus para análise dos dados

Para proceder à seleção e análise dos dados de forma a responder as questões de pesquisa realizei os procedimentos descritos a seguir. Em relação aos dados do Caderno Se bem me lembro... havia definido que uma das questões primordiais era analisar o encaminhamento didático do projeto de ensino, em sua totalidade, ou seja, na descrição e análise das 16 oficinas pedagógicas e suas atividades desenhadas no referido caderno. Desse modo, ao término da pesquisa, obteria, além das respostas encontradas, o “modelo didático” do gênero escolarizado como “memórias literárias”. Para isso, fiz uma leitura minuciosa de todo o projeto de ensino, o que deve também fazer o professor em sala de aula, para conhecimento, reflexão e apreciação axiológica do material que está a sua disposição, uma vez que em se tratando de Educação, a formação de professor, conforme defende Nóvoa (2009, p. 28), é “construída dentro da profissão”. Nessa leitura, fiz o levantamento das oficinas e seus objetivos, bem como de suas atividades. A sequência didática do gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro... está organizada em 16 oficinas, descritas em quadros, sobre

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os quais fiz uma análise de forma geral e ampla, contemplando a estrutura e o movimento da sequência didática elaborada para o ensino. Com essas informações, percebi que as descrições da organização interna de todas as oficinas ficariam extensas, cansariam o meu leitor e a mim como pesquisadora. Esse fato poderia deixar minha pesquisa inutilizável no sentido prático e de leituras no âmbito escolar. Por isso, centrei-me em selecionar as oficinas pedagógicas que contemplassem os dados para a análise da didatização observando os três aspectos que retomo aqui e já citando a categoria de análise, que são: 1) a função social do projeto de ensino do gênero “memórias literárias” – Categoria Responsabilidade; 2) a relação do aluno-autor com o texto de “memórias literárias” – Categoria Exotopia; 3) a noção de escrita e de escritura no projeto de ensino para o gênero “memórias literárias” – Categoria Inacabamento. Esses são os aspectos e as categorias de análise com os quais situo minha visão de pesquisadora para a verificação da didatização do gênero, ora objeto de minhas leituras e reflexões, além da investigação da história social desse gênero e da esfera na qual se situou (passado) e se situa (presente) e como se apresenta no Caderno Se bem me lembro.... Partindo dessas reflexões e com base nas leituras teóricas e dos documentos oficiais para o ensino de Língua Portuguesa, os PCN (1998) e as OC (2010), tomo por base algumas oficinas, as quais apresento em forma de quadro, apontando a organização interna de cada uma e, em seguida, apresento a análise mais detalhada. As oficinas selecionadas são: Oficina 1 – “Naquele tempo...” Oficina 2 – “Vamos combinar?” Oficina 5 – “Tecendo os fios da memória” Oficina 8 – “Na memória de todos nós” Oficina 11 – “A entrevista” Oficina 12 – “Da entrevista ao texto de memórias literárias” Por fim, ao término das análises mais detalhadas, apresento em forma de síntese, também em quadro, os recursos didáticos sugeridos nessas oficinas e os gêneros mobilizados. São os dados que podem apontar para aspectos interessantes do projeto de ensino da escrita em tempos de globalização e do avanço cada mais aprimorado das tecnologias de informação e comunicação.

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O corpus selecionado serviu para reflexão sobre as atividades discursivas no âmbito escolar, partindo de um projeto de ensino de gênero escolar, inicialmente considerado como “novo” na dimensão das práticas sociais escolarizadas. Na próxima seção, procedo à análise do Caderno Se bem me lembro... por meio do corpus delimitado e selecionado acima para orientação das definições sobre o gênero “memórias literárias”, da relação do aluno-autor com o referido gênero e, por último, sobre o ensino da escrita ou escritura de textos na escola.

Segunda parte 4.5 A Coleção da Olimpíada: situando o Caderno Se bem me lembro...

Os cadernos pedagógicos do Programa OLPEF são de excelente qualidade gráfica, coloridos e com um design que encanta os olhos dos professores e alunos. A Coleção da Olimpíada visa a colaborar com o professor no ensino de leitura e da escrita para os alunos do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. A Coleção é formada por um Caderno do Professor, um CD-ROM e uma Coletânea de textos para cada um dos quatro gêneros da Olimpíada: Poema, Memórias literárias, Crônica e Artigo de opinião. A partir do ano de 2012, por ocasião da 3ª edição da Olimpíada, via Concurso de textos, que acontece nos anos pares desde 2008, a equipe organizadora do CENPEC e MEC começou a preparar também um caderno de atividades complementares à coleção.

Figura 14: Coleção Olimpíada Fonte: site da OLPEF Acesso em: 03 mar. 2013.

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O Caderno do Professor traz propostas de ensino da escrita que articulam a produção de um determinado gênero textual a atividades de leitura, oralidade e conhecimentos linguísticos. A metodologia utilizada pelo Programa OLPEF é a sequência didática para o ensino do gênero, uma releitura do conceito já existente no meio educacional da França e desenvolvida pelos pesquisadores de Genebra, Schneuwly e Dolz (2004), de quem falarei adiante, organizada em forma de oficinas. Tais oficinas, segundo as informações do Site da Olimpíada, “atendem aos conteúdos curriculares previstos” em cada ano escolar e “possibilitam a incorporação das atividades ao planejamento do ano escolar”. O Caderno do Professor vem acompanhado por um CD-ROM, mídia que traz os mesmos textos da Coletânea de textos e outros complementares, em duas modalidades: 1. sonora, com faixas de alguns textos lidos em voz alta e sonorizados; 2. gráfica, em que os textos são arquivos que podem ser reproduzidos por impressora ou projetados em datashow. A Coletânea de textos se constitui em um repertório de textos do gênero que será estudado e cada gênero da Coleção Olimpíada tem a sua coletânea. Até o ano de 2013, cada caderno/gênero é acompanhado por 10 (dez) exemplares idênticos e compõem a Coletânea de textos. Os cadernos de Atividades Complementares trazem outras sugestões de atividades que complementam as orientações do Caderno do Professor, em cada gênero da Coleção Olimpíada. Todos os materiais, em forma de coleção, foram enviados para as escolas públicas do Brasil e também são disponibilizados no site da Olimpíada. Chamarei esses materiais didáticos do Programa OLPEF de materiais didáticos alternativos, de acordo com a nominação dada por Santos (2011), por serem materiais didáticos que não são submetidos à avaliação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), mas que adentram a escola através de programas subsidiados por investimentos e parcerias público-privadas. O Kit do gênero “memórias literárias”, foco desta pesquisa, compõe-se dos seguintes materiais (ver figura abaixo): Caderno do Professor Se bem me lembro... (impresso e enviado às escolas públicas do Brasil), Coletânea de Memórias Literárias (impresso, acompanha o Caderno) e Atividades Complementares Memórias (suporte digital, site da OLPEF).

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Figura 15: KIT do gênero "Memórias Literárias" Fonte: site da OLPEF Acesso em: 03 mar. 2013.

4.6 Os conceitos do Grupo de Genebra

A interação social tão difundida nas teorias de Bakhtin e de Vigotski foi retomada pelos pesquisadores de Genebra, Dolz e Schneuwly, quando efetivaram o conceito de “gênero como instrumento” e das metodologias: “modelo didático” e “sequência didática”, para delinearem um programa para o ensino de gêneros. O pensamento desses pesquisadores foi inserido nos PCN de Língua Portuguesa (1998) e também nos cadernos da Coleção Olimpíada, nestes últimos, criando-se sequências didáticas para o ensino de quatro gêneros textuais. A seguir, apresento as reflexões sobre os conceitos dos pensadores de Genebra que colaboram para a abordagem sócio-histórica e qualitativa que faço nesta pesquisa: modelo didático de gênero, sequência didática e gênero como um megainstrumento.

4.6.1 Modelo didático de gênero Anna Raquel Machado e Vera Lúcia Lopes Cristovão (2006), no artigo “A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentos para o ensino de gêneros” mostram que as pesquisas em diferentes gêneros na sua variedade de contextos sociais expandiram-se para diversos núcleos de pesquisa e de intervenção didática, sobretudo após a edição e lançamento dos PCN, em 1998,

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o que confere maior legitimidade às orientações curriculares no interior da comunidade científica. As regras e propriedades dos gêneros acabam por ser apropriadas, sofrem modificações contínuas, nascem, morrem, se renovam. Como diz Bakhtin (2011), são “formas relativamente estáveis de enunciados”, assim como também acontece com os processos de aprendizagem social. A permanente modificação dos gêneros se dá pela constante transformação das atividades sociais, mas também das transformações introduzidas pelos próprios produtores (MACHADO; CRISTOVÃO, 2006). Nesse momento, interessa-me uma questão metodológica decisiva, quais gêneros então ensinar na escola e como? Aqui faço a referência ao conceito de “modelo didático de gênero”, que tem lugar de destaque para o ensino de um dado objeto de conhecimento, definido pela equipe de Didática de Língua Materna da Universidade de Genebra. Dolz, Schneuwly e de Pietro (1998, apud, ROJO, 2001), que assumem o gênero do discurso como objeto central no ensino de língua materna, mesmo objeto definido no Brasil por meio dos PCN (1998), consideram que a construção de um modelo didático para o ensino de um determinado gênero discursivo se constitui em um dos momentos centrais na elaboração de um plano de ensino, numa sequência didática. Assim, o modelo didático de gênero, segundo esses autores, define

[...] princípios, orienta a intervenção didática e, enfim, torna possível uma progressão entre os diferentes graus de aprendizagem. [...] O modelo define, com efeito, os princípios (por exemplo, o que é um debate?), os mecanismos (reformulação, retomada, refutação) e as formulações (modalizações, conectivos) que devem constituir objetivos de aprendizagem para os alunos (DOLZ, SCHNEUWLY & DE PIETRO, 1998, pp.34-35, apud, ROJO, 2001, p. 316).

Segundo Rojo (2001, p. 316), de fato o “modelo didático de gênero” ou “modelização didática”, como a autora prefere nominar, constitui-se no mecanismo que transforma uma descrição de gênero, ou qualquer outro objeto de ensino, num programa de ensino, ou no dizer dos autores de Genebra, numa sequência didática. Para Dolz e Schneuwly, trata-se de “explicitar o conhecimento implícito do gênero,

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referindo-se ao conhecimento formulado, tanto no domínio da pesquisa científica, quanto pelos profissionais especialistas” (SCHNEUWLY; DOLZ, 1999, p. 11). Segundo esses pesquisadores de Genebra, diante da multiplicidade de conhecimentos de referência em jogo na elaboração de modelos, pode-se teorizar o ensino do gênero por meio de um processo didático que compreenda “três momentos em forte interação e em perpétuo movimento”, que foram descritos pelos autores como a aplicação de três princípios ao trabalho didático:  Princípio de legitimidade (referência aos conhecimentos que emanam da cultura ou elaborados por profissionais especialistas);  Princípio de pertinência (referência às capacidades dos alunos, às finalidades e objetivos da escola, aos processos de ensino/aprendizagem);  Princípio de solidarização (tornar coerentes os conhecimentos em função dos objetivos visados) (SCHNEUWLY; DOLZ, 1999, p. 11)

Dessa forma, o “modelo didático” é responsável pela seleção mais ou menos complexa das características do gênero a serem ensinadas e pela sua adequação às possibilidades e necessidades de aprendizagem dos alunos. Em outras palavras, o “modelo didático de gênero” tem sua responsabilidade diretamente associada à ZPD, criado pelas necessidades de ensino e afinado com as possibilidades de aprendizagem dos aprendizes. Na descrição do gênero observa-se o gênero em questão e compara-o, ora com gêneros diferentes, ora com gêneros assemelhados, chegando-se a uma descrição do que seja esse gênero, em sua forma composicional, conteúdo temático, estilo e ainda levando-se em conta que é um objeto da cultura, de uso e aprendizagem social e, composto, portanto, de uma “forma relativamente estável de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262). Nas atividades escolares, o professor, ao pensar nos conteúdos que serão ensinados, deve elaborar inicialmente o “modelo didático”, esse instrumento de planejamento se constitui como fundamento, com pressupostos teóricos que orientam a seleção de objetos de ensino. Além disso, o “modelo didático” apresenta duas grandes características: 1) constitui uma síntese com objetivo prático, destinada a orientar as intervenções dos professores; 2) evidencia as dimensões ensináveis a partir das quais diversas sequências didáticas podem ser concebidas (SCHNEUWLY; DOLZ, 1999, p. 11).

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Segundo Schneuwly e Dolz (idem), no interior de cada uma dessas dimensões citadas, uma progressão é possível, podendo se movimentar de uma simples sensibilização na recepção a um aprofundamento maior em produção. Ainda de acordo com esses pensadores de Genebra, toda introdução do gênero na escola faz dele, necessariamente, um gênero escolar, uma variação do gênero de origem, mudando-se os tipos e graus de variação (SCHNEUWLY; DOLZ, 1999). Por isso, a construção de um “modelo didático de gênero” permite a visualização das dimensões constitutivas de um gênero e a seleção dos elementos que podem ser ensinados, selecionados pelo professor de acordo com o nível de interesse dos alunos, das práticas sociais da comunidade, definindo os objetivos de ensino e criando uma determinada sequência didática. Segundo os pesquisadores de Genebra, a construção de “modelos didáticos” não precisa ser teoricamente perfeita e “pura”, abrindo-se a possibilidade da utilização de teorias diversas, de diferentes pontos de vista por meio de observação e de análise de práticas sociais que envolvem o gênero. Para a construção de “modelo didático de gênero” é necessária a análise de um conjunto de textos que possam ser considerados pertencentes ao gênero selecionado para o ensino, levando-se em conta, no mínimo, os seguintes elementos: a) Situação de produção: contextualização do gênero (esfera de produção, circulação e recepção do gênero: os interlocutores, objetivo, suporte); b) Gênero: forma composicional e conteúdo temático; c) Materialidade textual: estilo do gênero, estilo do autor. Essas categorias de observação para a construção de um “modelo didático de gênero” estão baseadas na teoria e no método sociológico de Bakhtin, porém tal construção pode ser delineada e composta em outras teorias de análise discursiva, que sejam compatíveis ou mesmo estejam em diálogo com outros pensadores. Além disso, no decorrer da análise podem aparecer outros elementos que sejam essenciais para a caracterização de um gênero. Quando isso ocorre, devem ser considerados. Segundo Machado e Cristovão (2006), não se pode admitir que “os dados concretos sejam ‘ajustados’ para que caibam dentro do modelo de análise” (idem, p. 558). Em suma, Dolz e Schneuwly (1998) afirmam que na construção de um “modelo didático do gênero” se deve conhecer o estado da arte dos estudos sobre

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esse gênero; as capacidades e as dificuldades dos alunos ao estudarem com textos pertencentes ao gênero selecionado; as experiências de ensino e aprendizagem desse gênero, assim como as prescrições presentes nos documentos oficiais sobre o trabalho do professor.

4.6.2 Sequência didática A construção do conceito de “sequência didática” (doravante SD) foi considerada uma forma de superar os problemas básicos advindos de uma transposição didática, este conceito apresentado pelos pesquisadores de didática de disciplinas escolares, corrente conhecida como “Escola de Didática” francesa, de cujas reflexões o grupo de Genebra se serve e as reelabora. Essas questões que podem ser conferidas no artigo de Anna Rachel Machado e Vera Lúcia Lopes Cristovão (2006), intitulado “A construção de modelos didáticos de gêneros: aportes e questionamentos para o ensino de gêneros”, citado nas referências desta pesquisa. Diante dessa proposta como superação dos problemas educacionais, de transpor os “conhecimentos científicos” para os “conhecimentos a serem ensinados”, a SD foi oficialmente assumida nas instruções oficiais para o ensino de línguas na França, em 1996. Nos documentos franceses, a SD é definida como “abordagem que unifica os estudos de discurso e a abordagem dos textos, implica uma lógica de descompartimentalização dos conteúdos e das capacidades: elas deveriam englobar as práticas de escrita, de leitura e as práticas orais” (MACHADO; CRISTOVÃO, 2006, p. 554). Machado e Cristovão (2006) destacam que esse conceito inicial de SD no ensino francês não representava ainda o de “sequências didáticas de gêneros”, mas de sequências abertas a diferentes objetos de conhecimentos, consideradas um “conjunto de sequências de atividades progressivas, planificadas, guiadas ou por um tema, ou por um objetivo geral, ou por uma produção de texto final” (ibidem, pp.554555). Segundo Bronckart (2006), em Genebra, as primeiras sequências didáticas foram construídas pela Commission pédagogie du texte, em 1985 e 1988. Somente na década de 90 é que a SD começou a focar o ensino de gêneros, sobretudo com os trabalhos que visavam ao ensino de gêneros da linguagem escrita, e depois, com

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os gêneros formais do oral, com os estudos de Dolz e Schneuwly, Pour um enseignement de l’oral: initiation aux genres formels à l’école (1998). Retomando a questão da SD, o Grupo de Genebra, para a construção das sequências didáticas, evidenciou a necessidade da construção prévia de um “modelo didático de gênero” para guiar a elaboração das atividades das SD. Por isso, abordei primeiramente a importância dessa estratégia para a seleção do objeto de ensino e de suas características, como elementos a serem ensinados em um planejamento educacional. Para definir a SD, retomo as palavras de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97), que a conceituam como “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. Precisamente, no pensamento desses pesquisadores, as atividades organizadas têm por finalidade ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. O aconselhamento desses pensadores é de que o trabalho escolar deva ser realizado sobre “gêneros que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente” (ibidem) A SD possibilita o acesso dos alunos a práticas de linguagem novas ou “dificilmente domináveis”, segundo os pesquisadores de Genebra. Para eles, a estrutura de base de uma sequência didática pode ser representada pelo esquema abaixo:

Quadro 4: Esquema da Sequência didática Fonte: (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 97)

Em síntese, a metodologia de SD, conforme se vê no esquema acima, se compõe por: apresentação da situação, na qual é descrita de maneira detalhada a

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tarefa de expressão oral ou escrita que os alunos deverão realizar; produção inicial, o aluno elabora um primeiro texto inicial, oral ou escrito, que corresponde ao gênero trabalhado. Essa etapa serve de diagnóstico ao professor, que avaliará as capacidades já adquiridas pelos alunos e ajustará as atividades planejadas da SD para atender às dificuldades reais da turma. As atividades da SD reelaboradas em função das necessidades da turma serão distribuídas em módulos, quantos forem necessários, de forma que os alunos se apropriem do gênero em questão. Esses módulos, como asseveram Schneuwly e Dolz (2004), são constituídos por várias atividades que exercitam os elementos do gênero de forma sistemática e aprofundada. Após o último módulo, ocorre a produção final, na qual o aluno põe em prática os conhecimentos adquiridos durante a SD, momento em que a produção é avaliada pelo professor, com possibilidade de revisão e reescrita. As próprias atividades desenvolvidas poderão exigir um retorno ao “modelo didático” para modificá-lo no que for necessário; essa ação vai depender das relações, dos conhecimentos dos alunos. Por isso, o “modelo didático do gênero” jamais é definitivo, pois se encontra em processo contínuo de transformação. Da mesma forma são as atividades e os módulos pensados para uma SD. Para Schneuwly e Dolz (2004, p. 108), a avaliação ocorrida na produção final é uma questão de comunicação e de trocas, orientando os professores para uma “atitude responsável, humanista e profissional”. Os princípios teóricos da SD giram em torno de escolhas pedagógicas (avaliação formativa, processo de ensino e aprendizagem, projeto que motiva alunos a escrever), psicológicas (transformar o comportamento da linguagem no aluno, pelos processos de consciência: cérebro, memória, lógica etc.) e linguísticas (instrumentos, signos, gêneros) que guiam sua elaboração e suas principais finalidades de preparar o estudante e melhorar suas capacidades de escrever e de falar. A estrutura por módulos tem como princípio geral nas SD pôr em relevo os processos de observação e de descoberta, passando por uma vivência, do “fazer” com reflexão, numa perspectiva construtivista, interacionista e social. Por isso, a ordem das atividades na SD não é aleatória, já que algumas apresentam uma base para a realização de outras.

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A perspectiva adotada nas SD é uma perspectiva textual que leva em conta os diferentes níveis do processo de elaboração de textos. E o nível de textualização dá base para outras abordagens de trabalho com a linguagem. Para os pesquisadores de Genebra, a questão de gramática e sintaxe não está diretamente integrada nas atividades da SD, porém, o aluno pode se confrontar com problemas provenientes dessa natureza. Nessa dimensão, as observações pontuais podem ser feitas pelo professor, tendo em vista a reescrita do texto. Os autores dizem que não se trata de realizar um trabalho sistemático no interior da SD, cujo objetivo principal continua a ser a aquisição de condutas de linguagem, num contexto de produção bem definido (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 115). Em suma, o procedimento da SD exige que os alunos escrevam frequentemente e os textos solicitados, mesmo na etapa inicial do estudo formal, podem ser relativamente longos e difíceis. O projeto de escrita que responde a uma demanda da linguagem, situação de produção contextualizada, por meio da SD, tem como um dos princípios de base a revisão e a reescrita dos textos. Estes podem ser observados de vários pontos de vista da língua como: ortografia, coesão, coerência, correção gramatical etc., desde que sejam efetivados no final do percurso, após o aperfeiçoamento de outros níveis textuais (ibidem, p. 118).

4.6.3 – Gênero como “megainstrumento” Schneuwly (2004) mobilizou a noção de gênero, com base bakhtiniana, em seus objetivos de pesquisa proporcionando um das concepções mais importantes para a questão do ensino-aprendizagem de gêneros, bem como para a elaboração de materiais didáticos ou mesmo para análise de materiais educativos. Para essa reflexão, Schneuwly partiu dos estudos desenvolvidos por Rabardel (1993, apud, SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 22) sobre “a gênese instrumental”, uma reinterpretação do termo vigotskiano “instrumento”, o que lhe deu base para definir a sua tese de que o “gênero é um instrumento”, um instrumento mediador (ou ferramenta). Apoiado na proposição de Rabardel, Schneuwly compreende que o “instrumento” contém duas faces: de um lado, há o “artefato material ou simbólico”; e de outro, o sujeito. Nessa reflexão, os artefatos se encontram à disposição dos sujeitos em uma determinada sociedade e só poderão ser considerados

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“instrumentos” ou “verdadeiras ferramentas semióticas” para o agir desse sujeito situado, quando esse sujeito se apropriar do gênero (objeto), conhecendo seus esquemas de utilização nos contextos das práticas sociais. O pensador suíço (1994, apud MACHADO; CRISTOVÃO, 2006, p. 551) diz que a participação dos sujeitos em diferentes atividades sociais vai lhes possibilitando o desenvolvimento das funções superiores e a construção de conhecimentos sobre os gêneros e seus esquemas de utilização, sabendo-se que os gêneros mais informais podem ser apropriados na cotidianidade e os mais formais, precisam de um ensino formal, sistematizado. Daí decorre a responsabilidade da escola: proporcionar o estudo e o domínio de diferentes gêneros usados na sociedade. Articular o gênero à base de orientação da ação discursiva é o primeiro esquema de utilização mencionada por Schneuwly: de um lado, o “gênero como instrumento” (conteúdo temático, forma composicional e estilo), com o qual o sujeito adapta o seu dizer a um destinatário preciso, com conteúdo preciso, finalidade e situação determinada. Assim, os gêneros prefiguram as ações de linguagem possíveis. De outro lado, há a possibilidade de escolha do gênero, mesmo que de forma parcial, prefigurada pelos meios. Aqui se concretiza a imbricação do “conhecimento” e da “concepção da realidade” parcialmente contidas nos meios, nos instrumentos, neste caso, nos gêneros. Para delinear esse pensamento, Schneuwly (2004, p. 24) desenvolveu a ideia metafórica do gênero como um “megainstrumento”, como uma configuração estabilizada de vários subsistemas semióticos (signos verbais e não-verbais, mobilizados no interior de um gênero ou entre gêneros) para o sujeito agir em situações de linguagem. Uma das particularidades desse megainstrumento é a de ele ser constitutivo da situação de comunicação, na qual o gênero se “enforma” definido em três dimensões essenciais:

1) Os conteúdos que são (que se tornam) dizíveis por meio dele; 2) A estrutura (comunicativa) particular dos textos pertencentes ao gênero; 3) As configurações específicas das unidades de linguagem, que são sobretudo traços da posição enunciativa do enunciador, e os conjuntos particulares de sequências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 52).

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Agir no mundo eficazmente numa situação de comunicação evoca as capacidades de linguagem (DOLZ, PASQUIER E BRONCKART, 1993) requeridas ao sujeito para a produção de um gênero, numa situação de interação, e resumidamente se apresentam como: capacidades de ação, adaptar-se às características do contexto e do referente; capacidades discursivas, mobilizar modelos discursivos; capacidades linguístico-discursivas, dominar as operações psicolinguísticas e as unidades linguísticas (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 52). A aprendizagem do gênero possibilita o desenvolvimento das capacidades de linguagem que se constituem, parcialmente, em um movimento de reprodução, com base nos modelos de práticas de linguagem disponíveis no espaço social. Nesse sentido, em todas as esferas, os membros da sociedade que dominem determinado gênero têm a possibilidade de adotar, mesmo sem plena consciência e conhecimento, estratégias explícitas para que os aprendizes possam se apropriar do instrumento: gênero (ibidem). Schneuwly (2004, p.28), para concluir essas reflexões, compara o gênero “megainstrumento” ao megainstrumento em que se constitui uma fábrica: “conjunto articulado de instrumentos de produção que contribuem para a produção de objetos de um certo tipo”. Portanto, esse megainstrumento está inserido num sistema complexo de megainstrumentos que contribuem para a sobrevivência de uma sociedade. Isso equivale a dizer que os gêneros são produtos sociais e culturais de uma determinada sociedade, por isso são complexos tecidos semióticos, diversos em sua “forma” e dinâmicos pela própria evolução da humanidade, da cultura e dos tempos.

4.7 Do nome do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) à releitura e didatização do gênero “memórias literárias”

O termo Olimpíada que nomeia esse programa educacional de Língua Portuguesa ocorre também em outros programas e projetos sejam promovidos pelo Ministério da Educação, como política pública, ou por instituições diversas, de âmbito nacional e internacional. Algumas dessas Olimpíadas são: Olimpíada Brasileira de Matemática, Olimpíada Nacional em História do Brasil, Olimpíada Brasileira de Astronomia, Olimpíada Brasileira de Química, Olimpíada Brasileira de

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Física, Olimpíada Brasileira de Biologia, Olimpíada Brasileira de Geografia, Olimpíada Brasileira de Linguística etc. Esse termo em si, como carro-chefe do Programa OLPEF, traz uma concepção enraizada de aprendizagem que não é própria da Filosofia Humanista à qual os documentos oficiais, PCN (1997, 1998) e OC-MT (2010), propagam. Para falar disso, resgato o significado da palavra “Olimpíada”. Ela é de origem latina “Olympia”, que segundo Faria (1962, p. 678) refere-se à cidade de Olímpia, região da Élida – Grécia, onde ficava o templo de Zeus e onde se realizavam os Jogos Olímpicos. Nos dias reservados às Olimpíadas na Grécia, que ocorreram de 776 a.C (quando houve o primeiro registro dos resultados dos jogos) a 393 a.C., realizavam-se grandes festivais, momentos de paz estabelecida entre as 160 cidades-estado da Grécia. Era um misto de evento de cunho religioso, de competição e de expressão artística. Segundo Bulfinch:

Além dos exercícios para mostrar agilidade e força corporal havia concurso de música, poesia e eloquência. Desse modo, os jogos ofereciam aos poetas, músicos e escritores a melhor oportunidade de apresentar suas produções ao público, e a fama dos vencedores espalhava-se amplamente (BULFINCH, 2002, p. 191).

Assim, a estética, o físico e o intelecto faziam parte da cultura grega em busca da perfeição. Para eles, ter um belo corpo era tão importante quanto uma mente brilhante (RECCO, 2000). Os Jogos Olímpicos ou Olimpíadas eram originalmente conhecidas como Festival Olímpico, faziam parte dos 4 grandes festivais pan-helênicos celebrados na Grécia Antiga. O mundo grego era uma unidade só em tempos dos jogos. Os outros 3 festivais foram: Pítico, Istmico e Nemeu. No século V a.C, com a rivalidade entre as cidades, principalmente Esparta e Atenas, ocorreu a guerra civil, Guerra do Peloponeso, abrindo caminho para o domínio macedônico e, dois séculos após, para o imperialismo romano. Os Jogos Olímpicos foram banidos em 393 a.C. pelo imperador cristão Teodósio. As Olimpíadas foram reeditadas em 1896, na cidade de Atenas, por iniciativa do educador Francês Pierre de Frédy, o barão de Coubertin (1863-1937). O ideal olímpico representado pela velha máxima “O importante não é vencer, é participar”, foi defendido pelo bispo da Pensilvânia, em 1908, durante um sermão aos atletas

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que participariam das Olimpíadas de Londres (RECCO, 2000). Essa frase não representa bem os ideais dos jogos na era Moderna, nos quais o importante é competir. Esse ideal dos Jogos Olímpicos da Era Moderna e a teoria da seleção natural, a sobrevivência do mais apto, de Charles Darwin (1809-1882), associados às tendências das teorias de aprendizagem comportamentalista (1960-1970) e cognitivistas (divulgadas em 1990) moldam as práticas sociais em vigor na atualidade. Assim, podemos situar a existência de programas institucionais que trazem essas marcas que são contraditórias à tendência “de uma educação fundamentada na e para a formação humana, no âmbito das relações socioculturais” (MATO GROSSO, 2010, p. 7) apresentada nos documentos oficiais da Educação. Além disso, cada sujeito deve olhar para outras práticas sociais realizadas na sociedade e que trazem esse modelo de competição, por exemplo: a seleção para qualificação (mestrado, doutorado); a seleção profissional (concursos); permanência em fila para conseguir uma vaga em uma escola pública de referência; participação no Exame Nacional do Ensino Médio; a seleção do vestibular etc. Em si, as ideias de competição e a sobrevivência do mais apto estão enraizadas nessas ações sociais. Dessa forma, mesmo compreendendo que a Educação passa por contradições entre o modelo executado e o modelo pensado nos documentos oficiais, ainda creio que possamos fazer aproximações, agindo conscientemente com base nas teorias, em direção a uma formação mais humanista. A tendência humanista da aprendizagem vê o ser que aprende como pessoa, na sua totalidade. O que importa nessa Filosofia é o crescimento pessoal, não limitado ao aumento de conhecimentos, mas sim compreendido como formação integral: sentimentos, pensamentos e ações. Essa aprendizagem influi nas escolhas e atitudes do sujeito. Não há sentido falar em cognição sem considerar o domínio afetivo, os sentimentos do sujeito que aprende (MOREIRA, 1999, p. 15). Com relação aos textos produzidos na perspectiva do Programa OLPEF, sejam produzidos pelos alunos ou pelos professores, quando escrevem o “relato de experiência” do seu trabalho na sequência didática para o gênero “memórias literárias”, estão produzindo “documentos”, como nos apresentou Le Goff (2003) na trajetória histórica dos registros diversos da Antiguidade à Contemporaneidade. Esses textos-documentos já produzidos para o Programa OLPEF compõem um acervo de época resgatada, recuperada pela voz e testemunha de um morador

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mais idoso, registrada na voz de um aluno. São textos que se constituem no princípio do dialogismo, textos que recuperam o que já passou e projetam algo para o futuro. Não há texto isolado. Todos os sujeitos utilizam-se da linguagem como mediação e construção de sentidos na enunciação. Numa sociedade contraditória e marcada por interesses divergentes, é necessário lutar, conscientemente, por uma educação pública de qualidade social. Os professores com mais leituras teóricas conseguem articular pensamentos e ideais entre teoria e a sua prática pedagógica. Isso possibilita a superação dos ranços e contradições enraizados na Educação Brasileira. Os sujeitos produtores de texto e sentido se modificam cotidianamente por meio das interações que estabelecem com interlocutores diferenciados. Esse movimento diálogo é inerente ao ser humano e querendo ou não acontece. O sujeito se modifica, assim como disse o escritor Manoel de Barros (2009, p. 81), retomando sua frase que escolhi como epígrafe desta pesquisa: “Pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”. A segunda parte do nome Escrevendo o futuro, como é vislumbrada pela logo do Programa OLPEF, é escrita em letra cursiva e com o lápis, tecnologia do século XIX, presente em tempos de altas tecnologias. A expressão que acompanha o nome “comercial” (Olimpíada) do referido programa traz em si a concepção de memória na teoria de Bakhtin, o jogo entre “memória do passado” e “memória do futuro”, um jogo que fala de textos, da relação de um texto com outro, do texto que foi no passado e o texto que pode ser projetado. Assim, trabalha a Literatura no processo de escritura, quando o autor-criador deve olhar para o passado, não para revivê-lo como referência à história da Humanidade, de si, do mundo. Isso é um processo natural e causal do texto (BAKHTIN, 2011, p. 310) em relação ao processo de autoria, em que o sujeito se situa e se posiciona frente ao mundo, ao outro e a si mesmo. Um texto, então, nunca está isolado, mas está sempre em relação, em diálogo com outro texto. Essa é a ideia do dialogismo, princípio bakhtiniano, de que o texto busca algo que já passou e projeta algo para o futuro. A consciência e a memória dos sujeitos interlocutores trabalham nessa orientação. Como leitura semiótica, os signos apresentados na logo do Programa OLPEF possibilitam ainda mais o diálogo com os conhecimentos da linguagem e ampliação da visão sobre texto como enunciado.

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Não poderia deixar de registrar que o signo “lápis” também traz em si as cores que fazem referência ao agente financiador e criador do projeto que deu origem à Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. O Prêmio Escrevendo o Futuro criado em 2002 e era financiado pela Fundação Itaú Social. Hoje, essa fundação da esfera privada continua como parceiro da política pública no âmbito educacional, no Programa OLPEF. Isso importa às reflexões sobre linguagem e ideologia, pois cada sujeito, cada instituição, pública ou privada, está pleno de ideologias, de discursos construídos histórica e socialmente situados. Cabe a cada sujeito refletir sobre as ideologias, os discursos que permeiam as atividades humanas e se posicionar com responsabilidade técnica, limitada a fronteiras invisíveis e com responsabilidade moral, essa correspondente ao ser humano e aos valores

essencialmente

humanos,

de

solidariedade,

de

compreensão,

de

colaboração. Esse agir situado e político, no sentido de posicionamento, é o agir almejado pelas diretrizes educacionais. Por isso, acredito que a leitura ideológica, crítica e semiótica deva permear as atividades pedagógicas, as quais contribuirão para ampliar a visão do sujeito, mais próxima da formação desejada, a do Ciclo de Formação Humana (MATO GROSSO, 2010).

Figura 16: Logo do Programa OLPEF Fonte: Site da OLPEF. Disponível em: Acesso em: 03 jun. 2013

Continuando as leituras iniciais, retomo e enfatizo que as categorias de análise aqui definidas são: responsabilidade, exotopia e inacabamento, por acreditar que o Programa OLPEF, mesmo carregado de sentidos como prática competitiva e algumas incoerências em relação à proposta dos documentos oficiais, ainda assim, apresenta uma metodologia e atividades, especialmente falando, que possibilitam a aproximação de uma formação humana, situando o sujeito, reforçando as atitudes

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de responsabilidade técnica e moral para consigo próprio, com o outro e com o mundo. Agora, retomo a composição interna do Caderno Se bem me lembro... O material é destinado aos professores e alunos do 7º e 8º anos do Ensino Fundamental e encontra-se dividido em dezesseis oficinas, nominação que considero oportuna aos objetivos pensados para um projeto de escrita, o saber de mão a mão. Para isso, recupero a própria etimologia da palavra “oficina”, proveniente do latim “officina” que significa, no sentido figurado, “escola”, segundo Faria (1962). Portanto, compreendo as oficinas como oficinas pedagógicas que supõem um contexto pedagógico tendo o conhecimento como um processo (cri)ativo de apropriação e transformação da realidade circundante.

Figura 17: Organização das Oficinas no Caderno Se bem me lembro... (CLARA et.al., 2010)

Posso dizer ainda que a oficina é uma metodologia de trabalho em grupo, caracterizada pela “construção coletiva de um saber, de análise da realidade, de confrontação e intercâmbio de experiências” (CANDAU, 1999, p. 23), no qual o saber se constitui no processo de construção do conhecimento e não somente no resultado final da aprendizagem. Por isso, como estratégia de ensino serve de meio tanto para a formação do professor quanto para a construção coletiva, colaborativa de conhecimento por alunos, professores e comunidade escolar. As autoras organizaram as atividades didáticas no interior de cada oficina, de forma sequencial, em torno de um assunto que também é subdividido em etapas.

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O conjunto de atividades apresentadas no Caderno Se bem me lembro... tem por objetivo final levar o aluno a escrever um texto no gênero “memórias literárias”, de modo que todas as atividades (leitura, entrevista, pesquisas, debates, escrita, oralidade, discussão escolar etc.) estão voltadas para a alimentação temática e o exercício das características do gênero. Dessa forma, a aluno é orientado a saber o que dizer e de como dizer em sua produção textual e dentro dos parâmetros estabelecidos para o gênero “memórias literárias”. A proposta da OLPEF no Caderno Se bem me lembro... adota um procedimento didático de enfoque em um gênero específico e modificado para a prática escolar, constituindo-se em um projeto de escrita direcionado. Esse procedimento retoma a concepção de “sequência didática” (para o ensino de gênero) desenvolvida pelo Grupo de Genebra, a qual foi delineada no artigo de Dolz, Noverraz e Schneuwly (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004). A seguir, foco na releitura do gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro..., no levantamento dos textos utilizados como referência para o ensino, nas oficinas e nas atividades, de onde busco compreender a forma de didatização delineada pelas autoras do material, em diálogo com a fundamentação teóricometodológica que apontei nesta pesquisa. Essa metodologia me possibilita o delineamento do “modelo didático de gênero”, segundo a concepção de Schneuwly e Dolz (2004), pensado inicialmente pelas autoras, e me dará o corpus síntese que colaborará na análise final em atendimento aos objetivos desta pesquisa. Tal delineamento objetiva responder a segunda questão de minha pesquisa: Como o caderno da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) Se bem me lembro... relê e didatiza esse gênero? O gênero escolar em foco é “memórias literárias”.

4.7.1 Da capa do Caderno Se bem me lembro... à Apresentação O gênero memórias literárias se apresenta inicialmente expresso nos signos verbais e não-verbais que compõem a capa do Caderno do Professor Se bem me lembro... (CLARA et al, 2010), da qual faço uma leitura interpretativa, com base na teoria dos signos de Peirce (1995), em especial, considerando a parte icônica, que dá abertura para esse tipo de leitura. Essa teoria amplia a visão leitora do sujeito e

179

pode ser utilizada diversamente pelos diferentes textos primários ou secundários. Desta feita, a capa é composta de: a imagem de uma senhora de cabelos brancos portando um guarda-chuva, o que demonstra os cuidados com a pele e a saúde, hábitos de pessoas mais idosas; as cores marrom e laranja presente na capa, com mais destaque: a cor marrom é a cor da terra por excelência e representa a maturidade, consciência e responsabilidade e a cor laranja é a cor quente, mistura do amarelo com o vermelho, cor ativa representa a comunicação e a sabedoria; o formato de ondas horizontais para focar a expressão linguística Se bem me lembro..., muito utilizada pelas pessoas quando se trata de recorrer à memória em função de uma interação com o outro. Todos esses signos colaboram para a construção inicial de sentido em torno da temática que orientará o projeto de escrita.

Figura 18: Imagem da Capa do Caderno do Professor Se bem me lembro... (CLARA et al., 2010)

Abrindo o caderno, há uma segunda capa que também mescla linguagens, de um lado, os signos verbais: no título “Se bem me lembro...” com as reticências que dão ar de recordação, e uma epígrafe do escritor Gabriel Garcia Márquez (nascido em 1927), “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda pra contá-la.”; de outro lado, os signos não-verbais: a ilustração de vários tipos de relógios e as cores, a roxa em linhas verticais e a branca no centro da página. A cor roxa representa a espiritualidade, a intuição e o pensamento reflexivo,

180

simboliza também o mundo metafísico; já a cor branca, por excelência, é o signo da pureza e da paz.

Figura 19: Segunda capa (folha de rosto) do Caderno Se bem me lembro... (CLARA et. al., 2010)

Esse tecido textual, em seu todo, traz a reflexão que eleva a temática do gênero a ser ensinado, valoriza as experiências vividas seja pelas pessoas mais velhas ou pelos alunos que serão autores nesse projeto. O desejo do ser humano em contar sua história e os fatos acontecidos num tempo cronológico, dos quais, muitos continuam nas recordações, no tempo psicológico. Dessa forma, a capa e a folha de rosto, segunda capa, funcionam como uma “entrada” ao projeto de escrita. Outra parte inicial do Caderno Se bem me lembro... que considero interessante é a parte da “apresentação”, na qual as autoras Clara, Altenfelder e Almeida (2010), em uma escrita semelhante a uma carta, apresentam a 2ª edição da OLPEF como programa de política pública formada pela parceria com o MEC, Fundação Itaú Social (FIS) e Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). Segundo elas, os parceiros têm um objetivo comum: “proporcionar ensino de qualidade para todos.” (CLARA et al., 2010). Em seguida, as autoras apresentam o Caderno do Professor dizendo que ele traz uma sequência didática desenvolvida para estimular a vivência de uma metodologia de ensino de língua que trabalha com o conceito de gênero textual, esclarecendo ao professor que: As atividades aqui [no Caderno do professor] sugeridas propiciam o desenvolvimento de habilidades de leitura e de escrita previstas nos currículos escolares e devem fazer parte do seu dia a dia como

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professor. Ao realizá-las, você estará trabalhando com conteúdos de língua portuguesa que precisam ser ensinados durante o ano letivo (CLARA et al., 2010, p. 3, grifos meu).

Fiz o destaque na fala das autoras, pois nessa palavra “sugeridas” concentrase o desejo de orientação e perspectiva de que as atividades inseridas no caderno possam ser um caminho possível para se atingir o objetivo comum: a melhoria da qualidade do ensino da leitura e escrita. Essa metodologia de SD, conforme os pesquisadores de Genebra, possibilita ao professor a adequação das atividades de acordo com o seu público, com as reais necessidades de aprendizagem, contexto, prática e leituras. As autoras continuam a esclarecer ao professor que para o aluno produzir um texto de qualidade é “fundamental a participação e o envolvimento dos professores, contando com o apoio da direção da escola, dos pais e da comunidade.” (ibidem, p.3) Esse movimento dialógico é de grande importância e um desejo conhecido na comunidade escolar. Além disso, a participação e envolvimento de todos numa comunidade escolar corresponde à responsabilidade no ponto de vista bakhtiniano que delineei nesta pesquisa, a arquitetônica da responsabilidade, de forma a equilibrar, tanto a responsabilidade técnica (a de ensinar sistematicamente, por professores da escola; a de aprender, por parte dos alunos; a de incentivar, acompanhar e participar, por parte dos pais; a de colaborar na formação integral dos alunos, por parte de todos profissionais da educação), quanto à responsabilidade moral, à de cunho ético, de comportamento humano e preocupação com o outro. Outro aspecto comentado pelas autoras chamou-me a atenção: trata-se das produções dos alunos. De acordo com elas, as atividades elaboradas e apresentadas nas oficinas servem para o aluno aperfeiçoar o seu conhecimento em relação ao texto escrito, desenvolvendo habilidades e competências para escrever no gênero memórias literárias, porém esse processo não quer revelar alunosautores talentosos. Não é esta a meta, conforme escrevem as autoras:

A Olimpíada não está em busca de talentos, mas tem o firme propósito de contribuir para a melhoria da escrita de todos. O importante é que os seus alunos cheguem ao final da sequência didática tendo aprendido a se comunicar com competência no gênero estudado (CLARA et al., 2010, p. 3).

Essa forma de apresentar o projeto de escrita, o Programa da OLPEF, e ainda afirmando que não querem buscar talentos, visa a esclarecer que o projeto de

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escrita é uma possibilidade de ensino e aprendizagem da escrita, sem deixar de levar em conta a leitura. Retomando o pensamento de Vigostki (2001b), todo ser humano nasce com talentos, mesmo que alguns sejam deixados de lado em algum momento da vida, pode-se compreender esse projeto de escrita como uma possibilidade de educação, mais do que o propósito de formar um aluno-autorcriador ou mesmo de se buscar talentos na escrita. No título da “Apresentação”: Ler e escrever: um desafio para todos (CLARA et al., 2010, p.8), as autoras sugerem que o desafio é de todos os participantes desse projeto OLPEF, em especial dos alunos. Porém, vejo que o desafio não é só dos alunos, mas de “todos”, sejam dos organizadores dos materiais, das instituições, dos formadores de professores, da academia, dos professores em sala de aula, da direção escolar, dos alunos e da comunidade. São relações interconexas que se movimentam em função do ensino da escrita e da leitura, pois o domínio da leitura e da escrita é uma questão de sobrevivência na atual sociedade (GERALDI, 1996). Essa parte introdutória tem funcionalidade de formação continuada aos professores, uma contextualização da situação de linguagem e produção textual, que segundo as autoras compõe o quadro dos objetivos do Programa OLPEF.

4.7.2 O lugar onde vivo: alguns apontamentos Ainda na parte introdutória do Caderno Se bem me lembro..., as autoras apresentam o tema do concurso de textos, que acontece nos anos pares, e que o Programa OLPEF propõe: o lugar onde vivo. Segundo elas, o tema “requer leituras, pesquisas e estudos, que incitam um novo olhar acerca da realidade e abrem perspectivas de transformação” (CLARA et al., 2010, p. 3). Esse tema dá destaque à questão do encontro com o passado mais próximo do tempo atual e o encontro de gerações. A perspectiva da temática que o Programa OLPEF aborda em seu cerne é a da dimensão social, pela valorização das pessoas que viveram muito e têm o registro de suas experiências na localidade onde viveram e ainda vivem. Tais experiências são memórias vivas de uma sociedade e podem ser contadas por um morador antigo da comunidade; além disso, não fazem parte da história oficial, são histórias que os livros não trazem. A memória das pessoas mais velhas nos ajuda a

183

compreender a nossa própria história, neste tempo contemporâneo, cheio de contradições e exclusões da minoria. Para pensar e falar do lugar onde se vive, as autoras retomam a questão da memória como encontro, identificação e alteridade ao mesmo tempo, situação, pois toda vivência é referendada num tempo presente, tanto individual quanto coletivamente e em um determinado espaço. É nessa ordem que a memória das pessoas, com quem se interage e com quem se convive compõe a história da humanidade, reflete e refrata a imagem social de um povo. Essa temática, “o lugar onde se vive”, é articulada à constituição do sujeito e se dá como um espaço constitutivo. Cada espaço onde se vive ou se viveu, seja como habitação, como lugar de atuação profissional, como lugar de fé etc. é um espaço que tem memória, que conta história de vida, de relações ali estabelecidas, das linguagens ali praticadas. São essas memórias advindas do espaço e do tempo vivenciados que constituem o ser humano que também é determinante nas nossas identificações sociais, como sentimento de pertencimento a este ou àquele grupo, a esta ou àquela tradição, a esta ou àquela pátria, aos hábitos e aos comportamentos de uma determinada cultura. Portanto, essa temática possibilita o resgate e a valorização de um locus de vivência única e singular. Isto posto, o espaço de vivência convoca a memória que faz recordar gente, objetos, outros lugares, cheiros etc., por meio das atividades mentais acionadas pela sensibilidade do coração, como explicitado no capítulo 1, no discurso da memória.

4.7.3 O gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro... Agora é o momento de situar a maneira como as autoras conceituam o gênero memórias literárias no Caderno. Para isso, discuto como a apresentação é realizada. As autoras do Caderno de memórias literárias apresentam a noção conceitual do gênero no capítulo “Introdução ao gênero” (CLARA et al., 2010, p. 1617), inicialmente com um trecho do texto intitulado “Toda memória tem uma história”, da escritora, poetisa e professora Ilka Brunhilde Laurito (1925-2012).

184

Figura 20: Introdução ao gênero “memórias literárias” (CLARA et. al., 2010, p. 17)

O texto motivador retrata a situação de diálogo entre uma netinha e seu avô. Os dois personagens da narrativa ficcional são compreendidos por “herói” na teoria literária de Bakhtin (2011). Nesse sentido, a relação do autor-criador (narrador) para com seu herói (netinha; avô) é um “interesse desinteressado”, “pode-se falar de um amor estético objetivo” e “entendendo-a como princípio da visão estética” (BAKHTIN, 2010b, p.128). Além disso, é importante destacar que o centro valorativo da arquitetônica do evento (enunciação) da visão estética é o ser humano refratado nos heróis: netinha, avô. A escuta da netinha em relação ao avô é o exercício do princípio do dialogismo e da alteridade. Conceitos essenciais para a compreensão da linguagem como interação social. A autora Ilka na função de autor-pessoa (vida concreta) inclui-se na narrativa como herói contando suas memórias, quando faz esse movimento de escritura de si, ela assume a posição exotópica de autor-criador. Nessa narrativa ficcional, a função de autor-criador se equivale ao herói.

185

Após a apresentação do texto de motivação, as autoras falam sobre as memórias, mencionando que elas são evocadas ou por perguntas, imagem, cheiro, som. Incluem também as memórias que constam em registros como possibilidade de se perpetuarem e se conservarem por meio da Literatura, apresentando, para isso, outro texto motivador do livro “Memórias inventadas: a terceira infância”, de Manoel de Barros. Assim, conceituam e apresentam o parâmetro do gênero “memórias literárias” no Programa OLPEF. Antes de prosseguir na verificação da concepção que as autoras trazem para esse gênero escolar, faço uma incursão pela estrutura do Programa OLPEF. Nesse sentido, a estrutura de oferta do referido programa optou por parametrizar e didatizar 4 gêneros e desse conjunto 3 foram situados na esfera literária: poema, crônica e memórias literárias. Essa informação sugere a reflexão sobre três questões que estão imbricadas em um assunto só, a formação do professor: 1) o Ensino da Literatura nas escolas públicas; 2) a formação de leitores de textos literários e 3) formação de escritores de textos literários. Segundo Azevêdo (2011):

A literatura trabalhada na escola servia como modelo para exercício de redação; os poemas e fragmentos de textos literários eram para ser memorizados e compartilhados como referências da coletividade cultural ou nacional; as fábulas e contos curtos para educar em relação a valores e comportamentos. Nunca o prazer literário na escola. À escola tradicional cabia uma formação conteudista, informativa (AZEVÊDO, 2011, p. 78).

Como já disse, a educação contemporânea indicada pelos documentos oficiais é a formação humanizadora tida como prioridade, em que se busca formar “sujeitos conscientes, autônomos e criativos” (AZEVÊDO, 2011, p. 79). Porém, ainda se verifica uma ausência de qualificação no processo de formação do professor com relação aos saberes específicos de leitura e de Literatura. Diante disso, sabendo que a Coleção da Olimpíada distribuída pelo MEC tem alcance significativo nas escolas públicas do Brasil, verifiquei as referências bibliográficas apresentadas ao final das oficinas no Caderno Se bem me lembro...

186

Figura 21: Referências do Caderno Se bem me lembro... (CLARA et al., 2010)

Diante da figura exposta, vemos que foram citadas 15 referências de leitura distribuídas

por

sete

assuntos:

Linguística/Gêneros

(4

incidências);

Metodologia/didática (4 incidências); Literatura (2 incidências); Releituras de textos/obras (2 incidências); Psicologia, Filosofia e Aprendizagem (1 incidência

187

cada).

Pela

descrição,

verifica-se

que

a

preocupação

centra-se

na

Linguística/Gêneros e na Metodologia de ensino do gênero, em detrimento dos conhecimentos da Teoria Literária, Filosofia, Psicologia e Teoria de Aprendizagem. São ausências que prejudicam ou restringem a concepção do gênero “memórias literárias” e sua compreensão no âmbito literário. Isso também pode ter ocorrido pelo fato de que a história social desse gênero seja de natureza não canônica, como apresentei no primeiro capítulo desta pesquisa. Agora, retomando a concepção trazida pelas autoras temos que:

Figura 22: Conceito apresentado para o gênero “memórias literárias” (CLARA et. al., 2010, p. 19)

As autoras definem o gênero “memórias literárias” tendo como base o gênero “memórias” da esfera literária, com origem nos gêneros confessionais. A partir da visão dessa esfera é possível questionar essa concepção e já compreendendo que, talvez, isso ocorra pela insuficiência de referências da teoria literária e dos estudos literários presentes nas obras de Mikhail Bakhtin, nossa referência teórica de pesquisa. Elenco alguns pontos que chamam mais atenção, sobre o autor-criador (narrador), o gênero e o herói (personagem). 1) Como dizer que os escritores rememoraram o passado? Se as “memórias” são narrativas ficcionais por se tratarem de uma criação.

188

2) A afirmativa “integram ao vivido o imaginado”, seria uma definição própria para “memórias literárias”? Se toda narrativa faz isso pelo trabalho com a linguagem e como tradução da realidade, uma interpretação da realidade ou rafiguração, conceito ponziano para a representação estética (PONZIO, L., 2008). É adequado pensar nesse aspecto somente em relação às memórias literárias? 3) Falar de “experiências vividas pelo autor no passado”, colabora para a compreensão da arquitetônica composicional do gênero “memórias literárias”? Será que o leitor saberá o que foi vivido pelo autor-homem? É possível saber? 4) É possível em um texto literário conduzir o leitor por cenários e situações reais? A Literatura é realidade? Se for, como compreender obras literárias que são memórias como “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ou “Memórias da Emília”, de Monteiro Lobato. Elas não são “memórias literárias”? Essas questões filosóficas precisam ser resolvidas de forma que os professores possam compreender melhor a definição do gênero “memórias” na esfera literária e, assim, entender a arquitetônica composicional desse novo gênero escolar institucionalizado em uma política pública. Além de ampliar a visão conceitual dos gêneros de “memórias” situados nas esferas da vida, tais como: diários, autobiografia, biografia, relatos. São textos que correspondem à narrativa ficcional não literária e considerados textos primários ou gêneros primários. Diante dos dados, é necessário que a visão ampla sobre o gênero “memórias” e a Teoria Literária e Filosófica seja incluída no Caderno Se bem me lembro... de forma a contribuir para a formação teórica dos professores que leem o material. Por outro lado, podemos compreender que o nome composto “memórias literárias”, criado pelas autoras do Caderno Se bem me lembro..., situam-no na esfera escolar definitivamente, pois o gênero “memórias” na Literatura Clássica não aparece com o adjetivo literárias. Dessa forma, o nome composto criou uma logomarca para esse gênero escolar, já que sua forma composicional, conteúdo temático e estilo seguem os parâmetros estabelecidos pelas autoras do caderno no Programa OLPEF, que atendem à determinada situação de produção e circulação própria para o Concurso de Texto, a Olimpíada. Essa arquitetônica composicional não coincide com o gênero confessional “memórias”, narrativa ficcional em prosa, e nem às narrativas múltiplas existentes em outras esferas artísticas, literárias e esferas da vida.

189

Como parâmetros de escritura os alunos devem recorrer às memórias de pessoas mais velhas para escrevem a narrativa, assumindo a escritura em primeira pessoa. Os textos de referência apresentados no início do caderno situam a escritura dos alunos na esfera literária ou mais próximo possível dessa esfera. Os textos apresentados foram: o primeiro, da escritora Ilka Brunhilde Laurito, que escreveu as lembranças e vivências de sua mãe no livro “A menina que fez a América” (2002, apud, CLARA et. al., 2010, p. 17); o segundo, um trecho do livro “Memórias inventadas: a terceira infância”, de Manoel de Barros (2008, apud, idem, p. 19). Em síntese, os parâmetros estabelecidos para a escrita do aluno-autor aparecem também no texto de Elizabeth Marcuschi, intitulado “Como escrever as memórias do outro, revelando toda sua singularidade?” 26 (RANGEL, 2011), e são basicamente três: 1) Recuperar lembranças sobre o passado da localidade pela perspectiva de um antigo morador; 2) Apresentar as reminiscências recolhidas como se fossem suas, ou seja, escrever uma narrativa em primeira pessoa, buscando envolver o leitor; 3) Cuidar para que seu texto entremeie acontecimentos reais e ficcionais, com uma linguagem própria, autoral e pertinente à esfera da literatura. (RANGEL, 2011, p. 25, grifos da autora)

Esse processo de produção textual deve estar inserido na escritura literária e, por meio dessa linguagem, o aluno-autor deverá entremear os fatos reais vivenciados pela pessoa mais velha e fatos ficcionais, próprios do dizer com criatividade, pertinentes aos recursos literários, os quais determinam que o gênero “memórias literárias” pertence à esfera literária. O tratamento didático dispensado à definição do gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro... se constitui também pelos textos referenciais utilizados nas oficinas. Cada texto utilizado apresenta-se grafado como “memórias literárias”. No quadro de levantamento, transcrevo o nome do autor, título e composição do texto referenciado como “memórias literárias”, além da esfera em que se situam os textos.

26

Texto em que Marcuschi faz uma análise de 385 memórias literárias produzidas pelos alunosautores participantes da 2ª edição da Olimpíada realizada em 2010.

190

Antes de apresentar o quadro, porém, apresento o visual do primeiro texto, com apontamento lateral de que seja um texto de “memórias literárias”. Dessa mesma forma acontece com os demais textos que elenco no quadro. Algumas oficinas não apresentaram textos nominados como “memórias literárias”.

Figura 23: Primeiro texto grafado como “memórias literárias” (CLARA et. al., 2010, p. 36)

Oficina

2

3

5

6

7

Autor

Papeis sociais

Títulos dos textos apontados como “Memórias Literárias”

Esferas de Produção predominante

Gabriel Garcia Marques

Escritor, jornalista, editor, ativista, político

Viver para contar (memórias, autobiografia)

Literária

João Ubaldo Ribeiro

Escritor

Memória de livros (contos, crônicas)

Literária

Kelli Carolina Bassani

Aluna vencedora da 3ª edição do Premio Escrevendo o Futuro (2006)

O valetão que engolia meninos e outras histórias de Pajé (memórias literárias)

Escolar

Tatiana Belinky

Escritora

Transplante de menina (crônicas)

Literária

Zélia Gattai

Escritora, fotógrafa, memorialista

Anarquistas, graças a Deus (memórias, contos)

Literária

Fernando Sabino

Cronista, romancista, contista, editor, documentarista

O menino no espelho (crônicas)

Literária

Escritor, advogado e fazendeiro

O Lavador de Pedra (contos)

Literária

João Ubaldo Ribeiro

Escritor

Memória (contos)

Literária

Antonio Gil

Escritor

Como num filme (memórias literárias)

Manoel Barros

de

8

13

de

livros

Educacional Literária

e

Quadro 5: Levantamento dos textos de referência para o gênero “memórias literárias” citados nas oficinas do Caderno Se bem me lembro...

191

De acordo com os dados do quadro, é verificável que os textos indicados como referência à escritura no gênero “memórias literárias” são, em sua maioria, de escritores consagrados de nossa Literatura, alguns menos conhecidos e outros mais, como: Manoel de Barros, poeta cuiabano que escreve suas lembranças em forma de contos e poemas; Zélia Gattai, memorialista que escrevia suas reminiscências em forma de contos e também de memórias; Tatiana Belinky, falecida em junho/2013, que escrevia suas lembranças no gênero crônicas e contos. Na descrição ainda aparecem dois autores de textos, que indiquei como de fato sendo texto de “memórias literárias”, o gênero escolar, são eles: a aluna Kelli Carolina Bassani e o escritor Antonio Gil. Os textos deles seguem os parâmetros definidos pelo Programa OLPEF, a escritura das lembranças vivenciadas por outra pessoa e transcritas, utilizando-se da escritura em primeira pessoa, numa narrativa com elementos da linguagem literária, que encantam o leitor. Os demais escritores, citados por mim, como consagrados na Literatura, escrevem suas reminiscências utilizando-se de gêneros discursivos e literários diversos: contos, crônicas e memórias, para citar os três gêneros mais evidentes no quadro analítico. Nesse sentido, pode-se compreender que as memórias integram variados gêneros, da ordem de “valor biográfico”, nos quais seus autores assumem a primeira ou terceira pessoa, por delegação do autor-criador (narrador), e narram as vivências do autor-escritor ou autor-pessoa (autor-homem), como situa Bakhtin (2011). Outro exemplo de gênero que comporta as memórias é o poema, pela escritura de Manoel de Barros. Na esfera do cotidiano e das atividades sociais podem-se citar outros tantos gêneros, como foi elencado no quadro do capítulo 1. Os dados do quadro acima reafirmam as informações e orientações no sentido de que o aluno-autor deverá produzir um texto literário nos parâmetros escolarizados para o gênero “memórias literárias” e com recursos literários. Informações literárias um pouco ausentes no Caderno Se bem me lembro... Esse gênero escolarizado mantém uma relação dialógica com os outros dois gêneros do Programa OLPEF que são: poema (5º e 6º ano EF) e crônicas (9º ano do EF e 1º do EM), também pertencentes à esfera literária. Além da análise que fiz sobre a incidência maior dos gêneros literários no Programa OLPEF, penso que esse programa considera a esfera literária como possibilidade de abertura, tanto de escritura, quanto de leitura, pois se trata de uma

192

escritura ficcional e potencialmente biográfica na qualidade de textos criados a partir das experiências estéticas dos seus autores. Segundo Vigotski (2001b), a Educação Estética é possível de ser ensinada, pois o talento nasce com cada sujeito e pode ser aprimorado. Dessa forma, a leitura literária e a escritura literária são atividades que possibilitam a apropriação da linguagem literária e devem ser contempladas nos currículos desde o primeiro ciclo da Educação Básica. Além disso, essas atividades ampliam a capacidade de reflexão sobre a linguagem e a vida. Para isso, a mediação colaborativa do professor, que corresponde ao que Vigotski chamou de “bom ensino”, tem um melhor resultado como “bom ensino” quando o professor tem conhecimento teórico e desenvolve suas atividades com consciência e propriedade. Já em relação à “boa aprendizagem”, o processo educativo se estabelece em uma relação de responsabilidade técnica entre os sujeitos professor (aquele que ensina) e aluno (aquele que aprende) e também responsabilidade ética-moral referente ao diálogo e à alteridade na interação realizada. Em relação ao Caderno Se bem me lembro..., para que se efetive o “bom ensino”, conforme os dizeres vigotskianos, são necessários a melhor definição e apontamentos teóricos sobre o gênero escolarizado “memórias literárias”. Quanto à “boa aprendizagem” percebe-se que as atividades selecionadas no corpus para análise trabalham com o princípio do conceito de responsabilidade de cada sujeito interlocutor na atividade educativa. De forma que esse trabalho corresponde à Arquitetônica da Responsabilidade de Bakhtin (2010b). Retomando as atividades, as mentoras do Caderno de “memórias literárias” esclarecem que os alunos precisam se apropriar das peculiaridades do gênero e para isso, faz parte do processo de ensino, a realização de entrevistas com pessoas mais velhas da comunidade. Essas atividades de interação social desenvolvem o princípio do dialogismo bakhtiniano, exercício de identidade (de um “eu”) em relação à alteridade (de um “outro”). Nessa interação, o ato responsável se concretiza em cada interlocutor. Tendo em vista as reflexões delineadas acima, passo a definir minha visão sobre o gênero “memórias”, seja da esfera da Vida ou da Arte, apenas como “memórias”. Quando se fala em “memórias” da Literatura, na esfera da Arte, deve-se compreender que se trata de textos de escritores da Literatura Clássica, da

193

Literatura Infanto-Juvenil ou ainda de outras esferas artísticas, que escrevem ou utilizam-se de outras linguagens como narrativas múltiplas ficcionais a partir da sua visão singular sobre o mundo. Nessa função e responsabilidade de autor-criador não há álibi na existência, segundo Bakhtin (2010b).

4.7.4 O nome do Caderno Se bem me lembro... O nome do caderno Se bem me lembro... é uma homenagem (in memoriam) à escritora e educadora Alaíde Lisboa de Oliveira (1904-2006), que em seu livro de mesmo nome, narrou suas lembranças em prosa e verso, conforme esclarecem as autoras do Caderno de “memórias literárias” (CLARA et. al., 2010, p. 20). Concernente à especificidade desse gênero, penso que é pertinente apresentar um pouco da história dessa grande educadora. Segundo Silva Júnior (2004), Alaíde Lisboa sempre dizia, ao citar James Joyce, que ela é um pouco de tudo o que encontrou pelo caminho. Morreu com 104 anos, plena de experiências e sentimentos recolhidos pela estrada do tempo, um cronotopo interessante, diria Bakhtin (1998, 2010a, 2011) se fosse vivo. Foi escritora, educadora, vereadora (em 1950, a primeira vereadora da capital mineira), professora da UFMG (onde se aposentou), integrante da Academia Mineira de Letras, atividades estas que demonstraram o seu perfil múltiplo e de vanguarda, grande personalidade brasileira nas áreas da educação e da literatura infantil. Alaíde Lisboa foi definida por Silva Júnior (2004) como uma “mulher à frente de seu tempo”. Para ela, a possibilidade do sonho é a principal meta do ser humano. "O que seria de nós se não sonhássemos um pouco? Ou melhor: que seria do mundo se os homens não sonhassem?", escreveu em uma de suas obras. Em sua trajetória intelectual, publicou mais de trinta livros, além de inúmeros artigos em revistas e jornais brasileiros. Em sua memória, o Professor Guido de Almeida e sua ex-aluna Maria Ângela de Faria Resende escreveram uma biografia poética, intitulada “Meu coração ou Alaíde Lisboa de Oliveira”. Está no acervo da Universidade Federal de Minas Gerais. Se bem me lembro... torna-se uma expressão orientadora nos discursos que versarão sobre as memórias próprias e memórias dos outros, nos quais os alunos deverão se embasar para produzirem seus textos.

194

Para encerrar a parte de “Introdução do gênero”, as autoras do Caderno Se bem me lembro... falam sobre “o tempo das oficinas”, indicando que cada uma das oficinas tratará de um assunto, por isso, cada professor deve conhecer as atividades propostas para organizar o seu tempo e os materiais que utilizará nas aulas. Novamente, uma indicação e sugestão didática diretamente ao professor. A seguir, passo à análise do corpus selecionado na seção anterior deste mesmo capítulo, no que tange ao encaminhamento didático do projeto de ensino, para responder a segunda parte da pergunta de número dois desta pesquisa, tendo em vista que a primeira parte, sobre a releitura do gênero feita pelas autoras, foi discutida até aqui. Retomo a segunda questão de pesquisa:  Como o caderno da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) Se bem me lembro... relê e didatiza esse gênero? Inicio apresentando a organização das oficinas e o projeto de ensino por sequência didática, com uma interpretação qualitativa dos módulos pedagógicos.

4.8 Corpus no Caderno Se bem me lembro...: as oficinas pedagógicas

A sequência didática do gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro... está organizada em 16 oficinas. A seguir, apresento-as em sua organização sequencial com título e objetivos.

Sequência didática do gênero “memórias literárias” no Caderno Se bem me lembro... Oficinas

Título

Objetivos

1

Naquele tempo...

Valorizar a experiência das pessoas mais velhas. Compreender o que é memória. Perceber como objetos e imagens podem trazer lembranças de um tempo passado. Observar que as memórias podem ser registradas oralmente e por escrito.

2

Vamos combinar?

Conhecer a situação de comunicação de textos de memórias literárias.

3

Semelhantes, diferentes

Conhecer gêneros que se assemelham por terem como principal ponto de partida experiências vividas pelo autor. Orientar o aluno a identificar as principais características do texto que ele deverá escrever.

porém

195

4

Primeiras linhas

5

Tecendo os memória

6

Lugares que moram na Perceber as diferentes características da descrição gente em textos de memórias literárias. Observar o efeito provocado pela forma como o autor descreve fatos, sentimentos e sensações nesse gênero de texto.

7

Nem sempre foi assim

8

Na memória de todos Analisar marcas linguísticas que contribuem para a nós articulação e a progressão textual.

9

Marcas do passado

Observar o uso do pretérito perfeito e do imperfeito em textos de memórias literárias. Relembrar usos e flexões dos tempos verbais. Identificar palavras e expressões usadas para remeter ao passado.

10

Ponto a ponto

Observar o uso de sinais de pontuação em textos de memórias literárias.

11

A entrevista

12

Da entrevista ao texto Analisar, juntamente com os alunos, os de memórias literárias procedimentos realizados para a transformação de um trecho de entrevista em fragmento de memórias literárias (retextualização).

13

“Como num filme”

14

Ensaio geral

15

Agora é a sua vez

Escrever individualmente a primeira versão do texto final.

16

Últimos retoques

Fazer a revisão e o aprimoramento do texto produzido na oficina anterior.

fios

Produzir o primeiro texto de memórias literárias da

Explorar o plano global do texto de memórias literárias. Observar o foco narrativo presente em boa parte desses textos.

Observar como os autores comparam o tempo antigo com o atual.

Planejar e realizar entrevistas.

Analisar um texto de memórias literárias produzido em situação semelhante àquela que será proposta aos alunos. Observar como o autor organiza as vozes presentes no texto. Produzir um texto coletivo.

Quadro 6: Levantamento das oficinas pedagógicas e os objetivos delineados na sequência didática do Caderno Se bem me lembro...

No quadro acima, é possível confirmar que a sequência didática para o gênero “memórias literárias” foi organizada em 16 oficinas. Essas oficinas ao longo do material didático, por meio da leitura e interpretação de seus objetivos, compõem três grandes partes: A primeira, da oficina 1 a 4, apresenta para os professores e alunos o Programa OLPEF e o gênero “memórias literárias” em seu parâmetro de escrita

196

escolar, diferenciando-se “memória” de “memórias”, finalizando-se com a primeira produção do aluno que servirá de diagnóstico ao professor, que poderá adaptar as próximas oficinas, de acordo com as necessidades reais da turma. Agindo assim, o professor estará adequando as atividades para atuar na ZPD dos alunos, o que possibilita mais aprendizagens, mais apropriações, mais desenvolvimento. Para Vigotski (1998), como já disse no capítulo 2, a Zona Proximal de Desenvolvimento:

[...] é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração como companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1998, p. 112).

Na segunda parte, da oficina 5 a 11, o professor e alunos trabalham com as principais características do gênero “memórias literárias”, especialmente referentes à forma composicional, ao estilo do gênero (seleção linguística, gramatical, sintática, figuras de linguagem) e ao estilo do autor. Esta parte se encerra com a realização da entrevista com o morador mais antigo da comunidade, que possibilita também o recolhimento de dados para a construção textual do aluno. A terceira e última parte, da oficina 12 à 16, ocorre o trabalho de escrita propriamente dito, o de retextualização como diz Marcuschi (2001), pela qual o aluno escreve seu texto de forma coletiva, primeiramente, e depois individualmente, com base nas atividades realizadas e reflexões sobre as principais marcas do gênero “memórias literárias”. Essa parte se encerra com a revisão e reescrita do texto, de forma individual. A visão completa do Caderno Se bem me lembro... possibilita uma melhor compreensão por parte dos professores quanto ao funcionamento e o movimento das atividades planejadas na sequência didática, bem como a necessidade de se entender quais foram os elementos ensináveis selecionados pelas autoras do referido caderno. Essas atividades podem, é claro, como dizem os pensadores de Genebra (2004), ser uma sequência didática readaptável às reais necessidades e dificuldades dos alunos, ponto que ressalta a importância da primeira produção, na oficina 4. Percebe-se que as oficinas, por meio dos diferentes objetivos, são mobilizadas de forma que professores e alunos compreendam o gênero “memórias

197

literárias” e se apropriem dos parâmetros estabelecidos para essa escrita no contexto escolar. Faço aqui apenas a constatação dos movimentos, sem a análise aprofundada de todos os movimentos internos das oficinas, pois não é objeto nem foco desta pesquisa.

4.8.1 A organização interna das oficinas selecionadas Aqui passo a descrever as oficinas selecionadas em sua organização interna. Logo depois, início as análises concentradas em alguns aspectos didáticos apontadas no desenvolvimento das atividades.

Oficinas

Organização interna das oficinas

Oficina 1 Naquele tempo...

Objetivos Prepare-se! Material 1ª Etapa: Início de conversa Atividades Boxe explicativo: Para saber mais Conversa com os idosos Boxe explicativo: A importância de participar 2ª Etapa: Vestígios do passado Atividades 3ª Etapa: A exposição Atividades Um pouco por dia Boxe explicativo: Há palavras que o vento não leva

Oficina 2 Vamos combinar?

Objetivo Prepare-se! 1ª Etapa: A situação de produção Orientação sobre o projeto de escrita, a entrevista, a produção de um texto com as lembranças de um antigo morador e a apresentação do projeto da OLPEF, concurso de texto 2ª Etapa: Viver para contar Atividades Boxe explicativo: Buscando sentido 3ª Etapa: Plano de trabalho

Oficina 5 Tecendo memória

os

fios

da

Objetivos Prepare-se! Material Plano Global Boxe explicativo: Biblioteca 1ª Etapa: Início, meio e fim Atividades 2ª Etapa: No tempo e no espaço Atividades 3ª Etapa: O narrador Atividades Boxe explicativo: Pronomes

198

Atividades Oficina 8 Na memória de todos nós

Objetivo Prepare-se! Material 1ª Etapa: O Lavador de Pedra Atividades Boxe explicativo: Pequena biografia de Manoel de Barros 2ª Etapa: Sede noturna Atividades Boxe explicativo: Pequena biografia de João Ubaldo Ribeiro 3ª Etapa: Como dizer Atividades

Oficina 11 A entrevista

Objetivo Prepare-se! Material 1ª Etapa: O entrevistado e o tema Atividades Boxe explicativo: Temas que podem despertar lembranças nos entrevistados 2ª Etapa: Preparando a entrevista Atividades 3ª Etapa: A realização da entrevista Boxe de atenção Atividades

Oficina 12 Da entrevista ao texto de memórias literárias

Objetivo Prepare-se! 1ª Etapa: Registro da entrevista Atividades Boxe explicativo: Retextualização 2ª Etapa: As mudanças Atividades

Quadro 7: Levantamento da organização interna das oficinas selecionadas

Recuperando as informações do quadro acima, faço a análise com base em três aspectos, os quais me darão norte para a verificação da didatização do gênero nas oficinas selecionadas e descritas acima. Os três aspectos acompanhados das categorias bakhtinianas selecionadas por mim são: 1) a função social do projeto de ensino do gênero “memórias literárias” – Categoria Responsabilidade; 2) a relação do aluno-autor com o texto de “memórias literárias” – Categoria Exotopia; 3) a noção de escrita e de escritura no projeto de ensino para o gênero “memórias literárias” – Categoria Inacabamento. Tomando por base a descrição no quadro, é possível identificar algumas repetições constantes na parte interna das oficinas selecionadas no Caderno Se bem me lembro..., que são: Objetivo(s) e Prepare-se! Essas partes correspondem à abertura de cada oficina, como preparação e orientação auxiliar ao professor, de como ele pode conduzir as atividades que se seguirão na sequência didática.

199

Figura 24: Estrutura da abertura das Oficinas no Caderno Se bem me lembro... (CLARA et. al., 2010, p. 23)

Além disso, também é percebível que as oficinas se dividem em etapas, que correspondem às atividades didáticas organizadas sistematicamente em forma de conversa orientativa ao professor, todas com sua temática. Também há partes particulares como o “boxe explicativo” e o “box de atenção”. Essa organização interna das oficinas é característica própria de uma “sequência didática”, como concebeu o Grupo de Genebra, o qual chamou as etapas do projeto de ensino do gênero de “módulos”. Tal divisão e subdivisão nas oficinas possibilitam a retomada de conceitos e atividades para o aprofundamento e a potencialização da aprendizagem do aluno. Passo a analisar as atividades em cada oficina selecionada.

Figura 25: Oficina 1: Naquele tempo... (CLARA et al., 2010, p. 23-24)

200

Na Oficina 1, intitulada “Naquele tempo...”, há três etapas para o ensino de “memórias literárias”. Na primeira etapa, o discurso autoral27 motiva os professores a iniciar o trabalho com o gênero, propondo a audição de dois trechos de livros que estão no CD que acompanham o Caderno Se bem me lembro... e depois a realização de uma conversa sobre os textos.

Figura 26: Primeira etapa: Início de conversa (CLARA et al., 2010, p.24)

Ainda nessa etapa, há uma diferenciação sobre “memória” e “memórias” (boxe explicativo: para saber mais), segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. E por fim, as autoras sugerem a leitura do trecho do livro “Velhos amigos”, de Ecléa Bosi, e incentivam os professores a falar sobre os idosos com base no livro “Memória e Sociedade – Lembranças de velhos” (1994), também de Ecléa Bosi, e também a iniciarem as atividades com a entrevista, com a conversa com as pessoas mais idosas da comunidade, apresentando uma lista das pessoas que podem contribuir na pesquisa e na entrevista. Na visão das autoras, todos os alunos devem participar das oficinas, pois poderão aprimorar a escrita, mesmo que os textos produzidos não sejam encaminhados ao concurso de textos da OLPEF (CLARA et al, 2010, p.27). Na segunda etapa, “Vestígios do passado”, as autoras orientam aos professores a solicitarem aos alunos uma pesquisa de fotografias e objetos antigos, pois, segundo elas, são elementos importantes para promover a aproximação dos alunos com o passado, história da comunidade e mesmo das pessoas moradoras,

27

Tomo de empréstimo a definição de discurso autoral desenvolvida por Santos (2011, p. 136), em sua dissertação de mestrado, quando considera que a autoria é o “trabalho criador valorativamente endereçado e sociossituado.”

201

não deixando de considerar que as pessoas são as principais fontes de “memória”, ou a mais rica delas.

Figura 27: Segunda etapa: Vestígios do passado (CLARA et al, 2010, p. 28)

Na terceira etapa, “Exposição”, o discurso autoral orienta e sugere os procedimentos para se realizar uma exposição com as fotos e objetos antigos que os alunos conseguiram encontrar na pesquisa de campo, incluindo a sugestão de convidar alunos de outras turmas e familiares para esse evento escolar. Depois, antes do encerramento da oficina, as autoras sugerem que o professor converse com a turma sobre as memórias dos entrevistados e que o aluno reconte fragmentos da entrevista para a turma. Esse exercício, segundo as autoras, é parte importante do trabalho com o gênero memórias literárias, “recontar a história de alguém”. A oficina termina com indicações de leitura no gênero “memórias” de: Ilka Brunhilde Laurito, Fernando Sabino, Bartolomeu Campos de Queirós, Tatiana Belinky e Zélia Gattai.

202

Figura 28: Oficina 2: Vamos combinar? (CLARA et al., 2010, pp. 32-33)

Na Oficina 2, “Vamos combinar?”, as autoras apresentam a situação de comunicação para a produção do texto em “memórias literárias”, solicitando ao professor que leia o texto de Gabriel García Márquez, texto motivador “Viver para contar”, que vai impulsionar a apresentação da proposta e o sentido da escrita, que só se escreve o que se conta, e se conta o que se vive. Assim, também falou Tatiana Belinky, na entrevista exclusiva gravada pela Cortez Editora, publicada no you tube no dia 17/06/2013, nominada como “A importância da leitura na infância”: “Escrever é contar o que você conta em casa, por escrito”. Outro ponto interessante nessa oficina é a orientação ao professor para a leitura de um trecho da obra de Gabriel Garcia Márquez, chamado “Viver para contar”.

A questão da leitura “em voz alta” atende ao que prescrevem os

documentos oficiais. Segundo os PCN (1998, p. 37), o primeiro objetivo geral de Língua Portuguesa é justamente “utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos escritos”, o que condiz com a atividade discursiva orientada. A concepção de “escuta”, de acordo com o documento oficial, está na perspectiva referente “aos movimentos realizados pelo sujeito para compreender e interpretar textos orais.” Essa concepção coincide com a perspectiva que Augusto Ponzio (2010, p. 23) chama de “Filosofia da escuta”, a escuta da palavra do outro e da sua recepção, da sua compreensão responsiva. Além disso, essa concepção está inserida em um dos dois eixos apontados nos PCN (1998, p. 34) para os conteúdos de Língua Portuguesa, o eixo do “uso”.

203

Quadro 8: Os eixos organizadores dos conteúdos de Língua Portuguesa (PCN, 1998, p.34)

O eixo do “uso” também se refere à apresentação da situação de comunicação, delineada na primeira etapa dessa oficina, conforme figura abaixo.

Figura 29: Primeira etapa: a situação de produção (CLARA et al., 2010, p. 34)

De acordo com o PCN (1998, p. 35), os conteúdos das práticas discursivas que constituem o eixo “uso” se referem ao processo de interação, no qual se define, inicialmente, o “contexto de produção”: interlocutores envolvidos, objetivo da interação (produção textual), tempo e espaço de produção, esfera de situação (contexto). Essa etapa é particular como articuladora de sentidos, de produção de significação na atividade discursiva que se pretende delinear pela sequência didática e projeto de ensino.

204

Figura 30: Oficina 5: Tecendo os fios da memória (CLARA et al, 2010, pp. 50-51)

A Oficina 5 é a primeira após a produção inicial dos alunos. Nela, as autoras do Caderno Se bem me lembro... orientam o professor a dominar o “plano global” do gênero “memórias literárias”. Na concepção bakhtiniana o plano global corresponde a “forma composicional”. Nesse sentido, as atividades elencadas trabalham com a organização do texto com referência a um texto de memórias literárias, produzido pela aluna Kelli, finalista da 3ª edição do Prêmio Escrevendo o Futuro, em 2006. Na primeira etapa dessa oficina, os alunos recebem trechos do texto da aluna (ver figura abaixo), para em grupo organizarem os trechos separados.

205

Figura 31: Texto de “memórias literárias” produzido pela aluna Kelli (CLARA et al, 2010, p. 54)

Ainda na oficina 5, segunda etapa intitulada “No tempo e no espaço”, as autores do Caderno Se bem me lembro... apresentam trechos de livros dos autores João Ubaldo Ribeiro e Fernando Sabino, como referência para leituras e observações de como se escreve inicialmente um texto de memórias. Frisam que no primeiro parágrafo o aluno deve tanto situar o seu leitor, quanto situar o tempo e o espaço em que se narram as lembranças do autor-criador. A pessoa entrevistada ao narrar suas lembranças desempenha o papel de autor-criador, assim como o aluno ao escrever coloca-se no papel de autor-criador. São duas posições exotópicas

206

assumidas na produção de um texto de memórias, isto incorpora uma relação mútua de alteridade e dialogismo. Na terceira etapa da Oficina 5, intitulada “O narrador”, as atividades são destinadas à identificação das marcas da presença do narrador, o que chamo de autor-criador, na teoria bakhtiniana. O uso de pronomes pessoais, pronomes possessivos e os verbos também compõem os exercícios de marca linguística discursiva. Fator importante para se organizarem os relatos de experiências vividas, como acontece nos gêneros: diários, memórias de cunho literário, entre outros gêneros. Aqui retomo o conceito de arquitetônica do autor que permeará o trabalho de produção textual do aluno. Na escritura de um texto literário, o aluno-criador (produtor de texto escolar, nesse caso) deve manter uma relação exotópica com o seu próprio “eu” identitário, como aluno-adolescente e, no ato da escritura, se posicionar de outro ponto de vista, daquele que observa a vida e colhe dela os assuntos para contar pela vida.

Figura 32: Terceira etapa: Conceito de narrador (CLARA et al, 2010, p. 58)

O conceito de narrador citado no caderno pode ser relacionado com os conceitos

bakhtinianos

da

Arquitetônica

do

Autor,

conforme

a

seguinte

correspondência:

Escritor

Autor-homem; autor-pessoa

Narrador

Autor-criador

Narrador-personagem Narrador-testemunha Personagem

Autor-criador Herói

Quadro 9: Relação do conceito de narrador com a Arquitetônica do Autor na teoria bakhtiniana

207

A relação apresentada acima pode colaborar para a compreensão respondente do professor que lê a teoria literária de Bakhtin (2011), em especial, os conceitos de autor e herói que estão no livro “Estética da criação verbal”.

Figura 33: Oficina 8: Na memória de todos nós (CLARA et al., 2010, pp. 74-75)

Na Oficina 8, as autoras apresentam atividades de leitura e comparação de marcas linguísticas. Para iniciar a atividade, o professor precisa ler trechos dos textos de Manoel de Barros, “O Lavador de Pedra”, e de João Ubaldo Ribeiro, “Memória de livros”. A preocupação apontada pelas autoras está em torno da leitura para “além das linhas”, ou seja, dos sentidos que as palavras podem despertar no leitor conforme são escritas. De todas as oficinas, é a primeira e única que fala na articulação dos “recursos que proporcionam ao leitor uma experiência estética particular”, conforme se vê na imagem abaixo.

Figura 34: Terceira etapa: Como dizer (CLARA et al, 2010, p.81)

208

Nesta oficina, destaco o trabalho inicial com os recursos literários, porém escassos a meu ver, pois as autoras, por meio da leitura coletiva dos textos de referência, já citados, destacam: neologismo, comparação, metonímia, metáfora, hipérbole e ironia. Não apresentam conceitos, isso é um avanço em termos de livros didáticos ou materiais didáticos, no modelo de ensino como transmissão de conteúdos, porém, também não propõem exercícios mais sistematizados que possibilitariam o “jogo com a linguagem”, o brincar com o “modo de dizer”, como intitulam a terceira etapa dessa oficina. Isso também evidencia que o professor deve ter conhecimentos prévios sobre a Teoria da Literatura, caso contrário, não fará um trabalho pedagógico com mais propriedade.

Figura 35: Uso dos recursos linguísticos (CLARA et al, 2010, pp. 84-85)

As autoras quando situam o gênero “memórias literárias” na esfera literária, também deveriam trazer mais elementos dessa esfera para compor as atividades com o texto literário, não se restringindo a poucas figuras de linguagem ou a criação de um novo termo e modo de dizer, como o neologismo. A dimensão estética, conforme apresentei nos capítulos 1, 2 e 3, pelo discurso da memória como processo mental superior, juntamente com a consciência e inconsciência, emanam

209

outros procedimentos de percepção, de produção de sentidos, de visão para a composição de um texto. Apenas nesta oficina, das 16 apresentadas pelo Caderno Se bem me lembro..., são mencionadas as figuras de linguagem como parte da linguagem literária, porém, esse tipo de atividade do tipo leitura e comparação, leitura e identificação se torna insuficiente para a construção de sentido e produção de um texto com propriedades literárias, com os recursos que “encantam”. Evidência disso está na análise dos textos vencedores na etapa estadual do Concurso de Textos, da Olimpíada de Língua Portuguesa, na categoria memórias literárias produzidos na edição de 2010. A análise desses textos foi feita pela Professora Elizabeth Marcuschi (RANGEL, 2011). Segunda ela,

A maioria das memórias literárias analisadas reconstruiu lembranças de tempos antigos, mas nem sempre explicitamente da localidade desse antigo morador. Também foi comum que o ponto de vista narrativo oscilasse entre a primeira e a terceira pessoa. No entanto, as maiores dificuldades evidenciadas foram o entrelaçamento realidade/ficção e o uso da linguagem literária, bastante restritos nos textos (RANGEL, 2010, p.25, grifos da autora).

Antes de finalizar esta análise, quero apontar a atividade de leitura de textos que apresenta como objetivo central a identificação de elementos estilísticos nos trechos das obras literárias, utilizadas como referência. Isso necessitaria de mais elementos, da leitura não apenas como identificação ou decodificação, mas como reflexão.

Figura 36: Questão de leitura (CLARA et al., 2010, pp. 82-83)

210

Figura 37: Oficina 11: A entrevista (CLARA et al., 2010, pp. 100-101)

A Oficina 11, intitulada “A entrevista”, está dividida em três etapas e consiste, como produto final, na realização de uma entrevista (gênero oral) com uma pessoa mais velha da comunidade local, onde o aluno mora, previamente discutida e organizada em sala, com a orientação do professor. Essa oficina dialoga com a Oficina 1, quando se montou um quadro com as entrevistas realizadas. De acordo com as autoras do Caderno Se bem me lembro..., “esta é uma etapa muito importante do trabalho” (ver figura abaixo).

Figura 38: Primeira etapa: O entrevistado e o tema (CLARA et al., 2010, p. 102)

Antes de continuar a descrição, considerarei a vivência da entrevista como vivência estética do ponto de vista vigotskiano. O discurso interior ou psique individual ou ainda consciência tanto do aluno, quanto do entrevistado colabora na interação, pois os discursos constitutivos de cada um, religioso, social, econômico

211

etc., permeará o diálogo que ocorrerá entre eles. É uma relação de tensão, não por causa do encontro deles, mas como qualquer interação que ocorra entre sujeitos, ou no mínimo entre duas consciências, sempre haverá tensão, sempre haverá negociação de sentidos. No encontro entre aluno e entrevistado os sentidos que serão produzidos decorrerão da interação semiótica, retomando a concepção de linguagem apresentada por Sebeok (2003), lá no capítulo 3, na qual se consideram os elementos corpóreos e extracorpóreos dotados de sentidos, como: a vestimenta, o corpo, os gestos, o corte do cabelo, a cor do cabelo, a entonação, a linguagem verbal utilizada, o tempo e o espaço em que se realizada a entrevista etc. Todos os elementos corpóreos, extracorpóreos e os eventos psicológicos constroem sentidos no ato enunciativo e são ideológicos. Os sentimentos e a imaginação que decorrem desse momento são a percepção e expressão da Arte que Vigotski (2001a) discute em sua obra Psicologia da Arte. A percepção decorre do contato com os signos exteriores e expressão da Arte como a busca da expressão viva que está na relação dos sentimentos humanos. Para uma Educação Estética não é preciso iniciar o trabalho pedagógico pelas emoções estéticas elementares, mas sim, pela vivência estética que é dada pela vida e nas interações. A Arte não se reduz a textos de lições de moral, à política, a conteúdos de disciplinas etc. Ao contrário, a Arte, na perspectiva da Educação Estética, expande-se para o trabalho que permite consciência sobre emoções e que promove a ampliação dos modos de pensar e de dizer, em um movimento dialógico de vivência estética e alteridade, de experiência individual e coletiva. Retomando a imagem da primeira etapa, da Oficina 11, as autoras definem os temas que podem despertar lembranças nos entrevistados; na segunda, prepara-se um roteiro de perguntas com questões contextualizadas e discursivas do tipo “Sabemos que, na época em que o(a) senhora era criança, houve uma grande enchente na cidade que destruiu tudo” (CLARA et al., 2010, p. 105). E na terceira, apresentam as orientações para a realização da entrevista. A sugestão é que a entrevista seja realizada na própria escola e com duração até de 40 minutos. As atividades discursivas são preparatórias para o encontro com a pessoa a ser entrevistada, conforme roteiro de assuntos delineados abaixo.

212

Figura 39: Roteiro para entrevista (CLARA et al., 2010, p. 104)

Sobre o exercício de entrevista, a professora Ecléa Bosi, na Revista na Ponta do Lápis n. 11 (BOSI, 2009), denomina-o como “Uma experiência humanizadora”. Ela chama a atenção para a questão ética, para o ato responsável que o alunocriador, no papel de escutador, terá em relação ao idoso e às suas memórias que serão contadas. Essa relação constituirá o dialogismo que é de natureza social. Segundo Bakhtin (2010b):

213

O ato responsável é, precisamente, o ato baseado no reconhecimento desta obrigatória singularidade. É essa afirmação do meu não-álibi que constitui a base da existência sendo tanto dada como sendo também real e forçosamente projetada como algo ainda por ser alcançado. É apenas o não-álibi no existir que transforma a possibilidade vazia em ato responsável (BAKHTIN, 2010b, p. 99).

Para finalizar a análise, reflito ainda em relação ao fato de o aluno se posicionar como autor-criador, aquele que deve desenvolver uma escritura em primeira pessoa, imprimindo sua assinatura e sua arquitetônica sobre o que escutou e

conseguiu

registrar,

em

um

exercício

intenso

de

responsividade

e

responsabilidade. Nesse sentido, para a atividade de escrita, o aluno deve olhar para os seus registros escritos e buscar em sua memória também os fatos que lhe foram narrados pelo idoso, que pode ser seu tio-avô, o próprio avô (o que possibilita além do exercício de cidadania e respeito aos mais velhos, a valorização e a aproximação dos idosos na própria família). Esses registros no caderno e na memória norteiam a escrita e colaboram para a construção de sentidos e de criatividade, desde que sejam exercícios constantes no ambiente escolar. Sem a prática de reflexões e escrita não há habilidade desenvolvida. Dessa forma, acredito que esses exercícios, em torno de entrevista e do trabalho com a linguagem oral e escrita, oportunizam espaços de reflexão e refração na vida do aluno, do professor, do idoso e dos demais sujeitos envolvidos nas atividades pedagógicas.

Figura 40: Oficina 12: Da entrevista ao texto de memórias literárias (CLARA et al., 2010, p. 110-111)

Na Oficina 12, nominada como “Da entrevista ao texto de memórias literárias”, consiste em duas etapas. A primeira com o nome “Registro da entrevista”,

214

trata das orientações para que o professor retome com seus alunos as lembranças de que a entrevista realizada na oficina anterior servirá de “matéria-prima” para a escritura do texto em memórias literárias. Por isso, a importância do registro da entrevista, pela anotação ou pela gravação. Essa “memória” registrada da entrevista deverá ser retextualizada, transformada de um texto oral (depoimento da pessoa entrevistada, que foi registrado pelo aluno) para o texto escrito (memórias literárias). A segunda etapa, chamada de “As mudanças”, refere-se às atividades que possibilitaram a retextualização, apresentando-se inicialmente a diferença na forma composicional de um depoimento, por meio de perguntas e respostas, com o texto já na forma de memórias literárias. O texto referência para essa atividade é de “memórias literárias” escrito por Antonio Gil Neto28, intitulado “Como num filme”. Para escrevê-lo, Gil percorreu o caminho didático planejado e parametrizado pelo Programa OLPEF, realizando a entrevista como instrumento de coleta de dados. Gil realizou a entrevista com o Sr. Amalfi Mansutti, de 82 anos, morador de São Paulo. Antes de iniciar as orientações dessas atividades, as autoras apresentam a conceito de “Retextualização” para que o professor se aproprie desse termo e aplique-o nos exercícios.

Figura 41: Conceito de Retextualização (CLARA et al., 2010, p. 112)

As autoras não apresentam o teórico que definiu esse conceito, o que colaboraria no momento de leitura do material e estudos do professor em sua preparação para as aulas. Esse conceito, conforme minhas leituras, foi desenvolvido 28

É professor, pesquisador e colaborar do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) - uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, criada em 1987.

215

por Luiz Antônio Marcuschi (2001, p. 46), ressignificado em seu livro “Da fala para a escrita: atividades de retextualização”, quando ele se apropria da expressão que foi empregada por Neusa Travaglia, em 1993, em sua tese de doutorado sobre a tradução de uma língua para outra. Marcuschi (2001) diz que o uso do termo “retextualização”, tal como empregado por Travaglia,

se recobre

apenas

parcialmente, na medida em que se trata de uma “tradução”, mas de uma modalidade para outra, permanecendo-se na mesma língua. Retextualização é o termo que se refere aos conceitos de Jakobson (2007) como as formas de tradução. Aqui faço referência a duas delas, a endolingual (a tradução interna numa mesma língua) como acontece na “retextualização” e a intersemiótica, que consiste na interpretação de signos não-verbais por meio de sistemas sígnicos não-verbais e vice-versa (PONZIO et al., 2007, p. 36). Essas duas formas podem colaborar na ideia de “retextualização” e vem ao encontro com a minha quando digo que a tradução é uma interpretação, com base em muitas reflexões esboçadas no capítulo 3 desta pesquisa. O que vale ressaltar é que na vida o ser humano sempre faz essa atividade de “retextualização”, por exemplo, quando se pede um esclarecimento, uma definição, uma explicação semântica, esse é um pedido de tradução e a resposta é uma interpretação, uma retextualização. O consumo de energia elétrica em uma casa é traduzido em uma conta a ser paga todo mês. Enfim, há uma série de exemplos para a retextualização. No caso da entrevista, o aluno-criador também fará a tradução, interpretação não só do que conseguiu anotar em seu registro, mas dos movimentos corporais e sentimentos que o entrevistado manifestou do momento de recordar e falar. Essa percepção é que dará um colorido especial no texto de memórias literárias. Assim, no caso do exercício pensado nesta oficina, penso ser interessante a compreensão por parte do professor de que a retextualização, como interpretação ou tradução, [...] não é um processo mecânico, já que a passagem da fala para a escrita não se dá naturalmente no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos da relação oralidade-escrita (MARCUSCHI, 2001, p. 46).

O processo de retextualização é mais do que textualização, é interpretação, é construção de sentido, e a escrita, para os textos primários, ou a escritura, para os

216

textos secundários, na escola, ou na vida, deve seguir o que disse Tatiana Belinky, em sua entrevista à Cortez Editora (2013), respondendo a pergunta de onde vem a “inspiração para escrever os livros”, A inspiração vem do ar. Agora, essa vontade de escrever vem do ambiente, vem dos olhos de ver, dos ouvidos de ouvir, da curiosidade, das coisas que acontecem. Todos os dias acontecem coisas interessantes. O cotidiano é tão rico. É só prestar atenção (BELINKY, 2013, s.p.).

Talvez, esses apontamentos conceituais possam colaborar com as atividades do professor nesta oficina, para não se privilegiar apenas a textualização no texto escrito, sem deixar de valorizar as marcas linguísticas e a reflexão da língua para o uso social. As atividades pensadas pelas autoras tratam dos recursos que são necessários para os alunos retextualizarem um trecho de entrevista em fragmentos de memórias literárias: contextualizando, descrevendo lugares e aspectos referentes ao tempo passado. Além do trabalho com os recursos linguísticos, retomando as Oficinas 5 (em que se trata da forma composicional e modo de dizer em primeira pessoa) e 8 (em que se localizam as atividades com as marcas linguísticas que articulam e dão movimento de progressão ao texto), o professor é orientado a verificar se o aluno já está escrevendo de forma a dar “um colorido especial” ao texto. Porém, não retomam oficinas e nem os recursos literários ensinados. O último exercício dessa etapa é a de apreciação texto produzido, ressaltando-se o que ficou bem e o que poderia ser melhorado. Na dimensão social, discorro sobre a Arquitetônica da Responsabilidade, na qual estão imbricados os conceitos bakhtinianos de: responsabilidade, exotopia e inacabamento, subjacentes nas duas oficinas, 11 e 12. Em cena a atividade de entrevista e produção textual. O aluno assumirá ao retextualizar/traduzir o discurso do outro – o entrevistado – o papel de autor-criador; o entrevistado, uma pessoa mais velha da comunidade, assumirá a função de herói na narrativa, e o contexto: escrever um texto de “memórias literárias” para as atividades de Língua Portuguesa e também com objetivo de participar no Concurso de Textos do Programa OLPEF. Posso dizer que essa relação dialógica é o encontro de uma complexa interrelação de texto (objeto de estudo e reflexão) e de contexto (dimensões que

217

produzem sentidos, sempre de ordem ideológica); é o encontro de dois textos (o que está pronto nas lembranças a serem verbalizadas, da parte da pessoa entrevistada) e o que ficará pronto (retextualizado pelo entrevistador, pelo aluno-autor, a partir de sua apreensão ativa e apreciativa); e por fim, consequentemente, é o encontro de dois sujeitos, dois autores, duas consciências. A atitude desses interlocutores também pode ser compreendida como texto, assim como nos explica Bakhtin (2011, p. 312), pela citação que reproduzo novamente aqui: “A atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida (como atitude humana e não ação física) unicamente no contexto dialógico da própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de motivos).” O que de fato vai interessar nesse diálogo, nesse encontro, é o ato em si, com as mútuas relações dialógicas, as compreensões respondentes, mais ativa ou menos,

as

apreensões,

todas

ligadas

ao

posicionamento

axiológico

dos

interlocutores. Cada ser humano tem diferentes valorações sociais, e a vida, por assim dizer, é uma complexa colcha axiológica, em que os desencontros e encontros acontecem naturalmente. Nenhum enunciado é desprovido de contexto e de relações dialógicas. Bakhtin, em sua célebre citação, enuncia que “a vida é dialógica por natureza” (BAKHTIN, 2011, p. 348). O aluno-criador precisará escutar com atenção os enunciados de seu interlocutor, no caso, do entrevistado, e para esse exercício, precisará dar-se o tempo de escutar o outro, para então conseguir obter uma recepção ativa do discurso do outro, algo que é fundamental como diálogo. Nisso importa compreender que a peculiaridade do homem não é ser um animal que fala, que trabalha, mas que é o único animal capaz de escutar. Esse escutar é da ordem do calar, associado à compreensão dos sentidos. O espaço do calar e o tempo é a intertextualidade na enunciação. Por isso, a escuta é a arte da palavra, compreensão respondente, é diálogo como substância e não indiferença ao outro, como vivência com relação ao outro, como encontro de palavras. As palavras enunciadas pelo aluno-criador retrataram suas experiências vividas e relembradas com toda sua singularidade. Vale constar que o entrevistado é mais velho que o entrevistador, que geralmente estará com idade entre 12 e 14 anos (aluno de ensino regular), mas que também já tem seus valores e sua forma de apreciar o discurso do outro. Enfim, ambos são sujeitos que vivem na mesma

218

comunidade, portanto num mesmo cronotopo29, o que lhes possibilita um elo de aproximação por afinidades. O aluno-autor só compreenderá o discurso do entrevistado, quando construir identidades de sentidos, quando expressar sua contrapalavra, de acordo com seu mundo cultural. Quando o aluno-autor se propõe a realizar a entrevista com a pessoa mais velha da comunidade, ele está se preparando para o exercício da alteridade, algo que nos últimos tempos e na comunicação discursiva é essencial, não somente a essa relação humana viva, mas com relação à palavra outra, que segundo Augusto Ponzio (2010, p. 25), parece muito com a palavra do escritor que: “[...] fala em modo indireto, no seu nome não diz nada, coloca-se em uma posição de escuta”. Essa escuta é tratada como o centro valorativo na relação com a outra palavra. Colocar-se na posição de escuta é colocar-se em escuta, que significa dar tempo ao outro (o outro de mim e o outro eu). Em suma, os sujeitos envolvidos na comunicação dar-se-ão um tempo. É o tempo que se dá ao outro-de-si e ao outro: dar tempo e dar-se tempo. Ponzio (idem, p 26) discorre sobre esse tempo ao outro, que “é o tempo disponível, disponível para a alteridade, a alteridade de si mesmo em relação à própria identidade e a alteridade do outro em relação à sua identidade”. Esse exercício de se dar tempo e dar-se tempo, na contemporaneidade, em que há transformações e o surgimento de inúmeros aspectos identitários sendo delineados

na

relação

humana

e

produtiva,

torna-se

imprescindível

o

desenvolvimento da alteridade na formação humana. Cada ser humano precisa estar atento a isso. Bakhtin (2010b) já falava em seu tempo de uma crise dos valores, e ainda vive-se com uma crise semelhante, conforme nos aponta:

Bakhtin caracteriza a crise contemporânea dos valores como crise do ato, aqui incluído o ato de palavra, que se tornou ação técnica. Identifica tal crise na separação entre o ato, inclusive o ato de palavra, o dizer como encontro de palavras, e o seu produto, o dito, que de tal modo perde o sentido (BAKHTIN, 2010b, p. 37).

29

Bakhtin formulou o conceito de cronotopo a partir dos estudos sobre as categorias de tempo e espaço representadas no romance.

219

No caso da entrevista, mesmo com diferença de idade entre os interlocutores, constrói-se a compreensão, seja ela ativa (com mais aproximação do discurso que será proferido) ou passiva (com menos apropriação do discurso). Reforçando que não há compreensões totalmente passivas, de certa forma, o interlocutor sempre responderá ao outro, consciente ou inconscientemente. O aluno-criador ao se calar para escutar o entrevistado está processando seu discurso interno e isso é um ato de dimensão ética. Quem cala está falando e isso é da ordem da alteridade. A concessão é da alteridade, caracterizada pelo escutar plenamente, amorosamente, sem indiferença. O produto desse encontro é a compreensão que não tem precedente, produzido num tempo e espaço e com determinados e insubstituíveis interlocutores, que resultará em apreensões apreciativas. Sobre isso, Bakhtin (2002) nos pontua que:

Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. E no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante” (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 147).

Dessa forma, o resultado da entrevista (Oficina 11) estará registrado tanto em papel, quanto na memória do aluno-autor, que terá o discurso do outro como texto, como matéria-prima para a elaboração do seu texto na forma de memórias literárias (que tem finalidade e característica diferente do gênero “entrevista”), gênero que pertence ao discurso literário, em que se “transmite com muito mais sutileza que os outros,

todas

as

transformações

na

interorientação

sócio-verbal”

(VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p.153). Cada palavra anotada estará prenhe de sentidos, da expressividade e tonalidade emocional do entrevistado e do entrevistador. E nesse contexto se entrecruzam os dois discursos: o discurso do aluno-autor e o do aluno-criador, que corresponde a “arquitetônica do autor”, o momento de exotopia interna que ocorre naquele que se é (adolescente) - naquele que escreve (criador), duas

220

responsabilidades do ato, imbricadas, a responsabilidade moral-ética ou “sem álibi” na existência (a do adolescente, como ser humano em sua completude) e a responsabilidade técnica ou especial (a do adolescente no papel social de aluno, com deveres de aluno). É essa simultânea participação de dois discursos que se efetivarão numa enunciação, concretizada num determinado gênero discursivo escolar (com as particularidades do estilo, da forma composicional e do conteúdo). As inferências discursivas e constitutivas são perceptíveis nesse ato de escritura, nessa vivência dialógica. Para Bakhtin (2011), essa relação acontece de forma que:

O discurso do outro, desse modo, tem uma dupla expressão: a sua, isto é, a alheia, e a expressão do enunciado que acolheu esse discurso. Tudo isso se verifica, antes de tudo, onde o discurso do outro [...] é citado textualmente e destacado com nitidez (entre aspas): os ecos da alternância dos sujeitos do discurso e das suas mútuas relações dialógicas aqui se ouvem nitidamente. Contudo, em qualquer enunciado, quando estudado com mais profundidade em situações concretas de comunicação discursiva, descobrimos toda uma série de palavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade (BAKHTIN, 2011, p. 299).

Essa é a essência do discurso e do diálogo, a preocupação e a atenção com o outro: princípio da alteridade. E o exercício de retextualização (Oficina 12) deve ter exatamente esse cuidado com a questão da alteridade, na proposição acontece, e na realização, há de se pensar na compreensão ativa do professor para realizá-lo de forma mais consciente e com propriedade. Passo, a descrever os materiais sugeridos e os gêneros mobilizados nas atividades elaboradas nas oficinas pedagógicas selecionadas.

4.8.2 Os materiais e os gêneros auxiliares nas oficinas selecionadas O levantamento que será descrito procura apresentar um panorama de quais materiais didáticos foram sugeridos na sequência didática e quais gêneros foram utilizados nas atividades para se trabalhar as capacidades de linguagem. Como já mencionei o recorte está nas observações e descrições de 6 oficinas, “Naquele tempo”, “Vamos combinar?”, “Tecendo os fios da memória”, “Na memória de todos nós”, “A entrevista” e “Da entrevista ao texto de memórias literárias”.

221

Oficinas

Material

Oficina 1 Naquele tempo...

Oficina 2 Vamos combinar?

 CD-ROM de memórias literárias  Aparelho de som  Fotos e objetos antigos (recolhidos pelos alunos)  Livros de memórias literárias  Caderno (será o seu Diário da Olimpíada)

Papel Kraft ou cartolina Canetas hidrográficas

Gêneros mobilizados (auxiliares)  Fotografia  Verbete de dicionário  Memórias  Aula expositiva  Relato  Registro  Depoimento  Quadro  Carta  Cartaz  Convite  Exposição oral  Resenha  Diário (para o professor)  Relato de experiência professor)

Memórias Memórias literárias Anotações

Oficina 8 Na memória todos nós

Contos Exposição Oral Depoimento

CD-ROM de memórias literárias Datashow Coletânea de memórias literárias

o

Relato Depoimento Memórias Biografia de escritores Desenho Plano de trabalho Cartaz

Oficina 5 CD-ROM de memórias Tecendo os fios da literárias memória Aparelho de som Datashow Coletânea de memórias literárias Cópias do texto “O valetão que engolia meninos e outras histórias de Pajé”, já recortadas nas linhas pontilhadas (p. 54) de

(para

Oficina 11 A entrevista

Gravadora ou filmadora Papel Kraft

Entrevista Depoimento Registro Vídeo Quadro Questionário Autorização Roteiro Relato Anotações

Oficina 12 Da entrevista ao texto de memórias literárias

Sem sugestão

Entrevista Memórias literárias Caderno do entrevistador Dicionário

Quadro 10: Levantamento dos materiais didáticos sugeridos e dos gêneros auxiliares mobilizados nas oficinas selecionadas no Caderno Se bem me lembro...

222

Com base nesse quadro, verifico que foram mobilizados para o ensino do gênero memórias literárias o total de 28 gêneros que os chamo de auxiliares. O que ressalta a diversidade de textos com que as ações discursivas, mesmo com objetivo de se ensinar um determinado gênero, podem colaborar nessa aprendizagem. Talvez isso ainda não seja evidente para o professor, quando na prática para se ensinar o gênero “carta”, fica por aulas seguidas só explorando e se utilizando desse gênero apenas. Essa forma de desenvolver um projeto de ensino no gênero ainda é tão visível nas práticas atuais e isso torna o ensino cansativo, tanto para o aluno quanto para o professor. Essa diversidade de textos comportam os gêneros orais e escritos e tem maior incidência nos próprios gêneros que são utilizados na escola. Uma menor incidência de gêneros é utilizada também nas práticas sociais. A riqueza desses dados se traduzem na multimodalidade, na composição dos textos que mesclam a linguagem verbal (código linguístico) e a linguagem não-verbal (som, imagem, cor, forma, desenho, imagem em movimento etc.). O trabalho articulado a vários textos atende a proposta dos textos multimodais (MATO GROSSO, 2010), e é possível realizar o “bom ensino”, como aponta Vigotski (2001b). Para isso, o professor precisa ler as teorias e articulá-las à sua prática de forma a refletir sobre ela, articulando métodos de ensino aos conteúdos ensináveis. O professor trabalhará consciente do seu fazer pedagógico. Isso propulsiona a “boa aprendizagem” e a qualidade do ensino. Ainda em relação aos textos, novamente se evidencia a falta de sugestões de textos da esfera literária, pois a maior incidência se refere aos “textos primários”, da esfera da Vida. É possível que os gêneros sugeridos colaborem para a alimentação temática e alguns aspectos estilísticos da narrativa literária, porém, ainda falta a essência do trabalho com a Literatura, com a linguagem literária e o contado com textos literários. A prática docente que se centra no ensino de um gênero por ele próprio, não trabalha com o princípio do dialogismo e demostra que não tem conhecimento ou compreensão da funcionalidade tanto de um “modelo didático” como um instrumento pedagógico que colabora no levantamento das características e peculiaridades de um objeto de ensino (nesse caso, de um determinado gênero), quanto de uma “sequência didática”, de acordo com a releitura conceitual feita pelos pesquisadores

223

de Genebra, e também apresentada nos PCN (1998), com o nome de “módulos didáticos”. No documento oficial, as “sequências didáticas “ são . [...] sequências de atividades e exercícios, organizados de maneira gradual para permitir que os alunos possam, progressivamente, apropriar-se das características discursivas e lingüísticas dos gêneros estudados, ao produzir seus próprios textos (BRASIL, 1998, p. 88).

Em seguida, o PCN (1998) também orienta que o planejamento desses “módulos didáticos” deve partir do “diagnóstico das capacidades iniciais dos alunos, permitindo

identificar

quais

instrumentos

de

ensino podem

promover a

aprendizagem e a superação dos problemas apresentados” (BRASIL, 1998, p.88, grifos meus). O diagnóstico no Caderno Se bem me lembro... se apresenta pela primeira produção do aluno, orientada na Oficina 4, logo depois de conhecida a situação de comunicação que será desenvolvida no projeto de ensino do gênero aqui focado. De forma que o professor seja autônomo para realizar as adequações no material sugerido para melhor desenvolvimento do projeto em sala e na escola. Quanto à sugestão dos materiais que constam em cada oficina, com exceção da Oficina 12, contemplam o uso de suportes tanto das tecnologias mais atuais, como CD-ROM, aparelho de som, datashow, gravadora e filmadora, quanto as mais antigas: livros, cadernos, papel Kraft, cartolina e canetas hidrográficas. De acordo com os PCN (1998, p. 91), o uso das tecnologias não deve servir como eventuais recursos didáticos, mas “de considerar as práticas sociais nas quais estejam inseridos”. Dessa forma, esses recursos e os conhecimentos que serão desenvolvidos pela sequência de atividades num projeto de ensino são os instrumentos ou megainstrumentos (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) que favorecem a aprendizagem e, consequentemente, possibilitam o desenvolvimento humano. No contexto atual emerge o conceito de “multiletramentos” que se refere a dois tipos singulares de multiplicidade presente na sociedade, a cultural, referente à população humana e sua produção, e a semiótica, referente à constituição dos textos, nesse sentido utilizando-se da linguagem verbal e não-verbal (ROJO, 2012). A diversidade textual no âmbito escolar é “plural”, uma em referência às linguagens múltiplas que circulam por meio dos textos, e em especial com o advento das novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, e outra, em referência a

224

cultura, aos comportamentos sócio-históricos de cada ser humano, e este último é o destaque para tal apropriação dos professores nos contextos escolares. Nesse contexto, considero pertinente o elenco de diversos textos numa sequência didática e de que a formação dos professores ainda é o melhor instrumento de reflexão, conhecimento e apropriação para um fazer pedagógico mais consciente e significativo.

225

CONSIDERAÇÕES FINAIS O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é velho e novo ao mesmo tempo [...] O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. BAKTHIN ( 2008, p.121).

Entre o dever e o prazer. Assim inicio a escrever minhas considerações finais, dever, pois é minha responsabilidade bidirecional, técnica e moral, nos termos bakhtinianos, e pela natureza e necessidade do gênero dissertação, o que não é uma missão fácil de realizar; prazer, por ser o ato final desta pesquisa. Portanto, é um texto de prazer, nas palavras de Barthes (2010), e de certo modo, é prazeroso escrevê-lo. Pensando dessa forma, opto por apresentar as respostas encontradas de forma a buscar auxílio no percurso percorrido nesta pesquisa, retomando quando necessário os discursos já escritos e articulando-os aos resultados. Conforme apresentado na Introdução, delineei 2 questões de pesquisa a serem respondidas e para embasá-las precisei elaborar três capítulos, sendo estes os passos teóricometodológicos desenvolvidos aqui. A primeira questão de pesquisa foi esta:  Qual é a origem e como se constitui o gênero “Memórias Literárias”?

Para responder à questão acima, foi necessário fazer um levantamento inicialmente da temática “memórias”, principais conceitos que circulam na esfera literária. Verifiquei que a Literatura como arte da escritura tem origem na Antiguidade Clássica, bem próxima dos discursos Filosóficos e Históricos, em que a estética tinha seu espaço garantido. Muitos pensamentos e conceitos daquela época se encontram enraizadas nos conhecimentos propagados pelas academias e outros circulam com novos entendimentos, ressignificados. Portanto, não era possível me deter apenas nas leituras da esfera literária, apesar do Caderno Se bem me lembro... apresentar ausências significativas sobre a teoria literária. Assim, viajei e mergulhei em algumas leituras de Filosofia, de Heráclito a Augusto Ponzio, pois é assim que o identifico, um pensador que me fez refletir

226

muito, entre outros pesquisadores, e de História, pelos escritos de Le Goff (2003), fechando com algumas leituras na área de Literatura, por meio das palavras de Maciel (2004) e de outros estudiosos brasileiros, além de contar com a leitura de Bakhtin e seu Círculo, na busca pela origem e a história social do gênero “memórias literárias”. Justifiquei essa necessidade de leitura lá no Capítulo 4, na primeira parte, Memória da pesquisa, quando disse que para se realizar o estudo de determinado gênero do discurso, com base no método sociológico de Bakhtin, é impossível fazêlo com qualidade se o objeto for subtraído de sua esfera de atividade, em que foi produzido inicialmente. Todos os gêneros do discurso são situados e transformados, assim como a história e as práticas sociais. Esse é um de meus apontamentos práticos para a área educacional, já me antecipando, de que para se compreender um determinado gênero não se pode reduzi-lo exclusivamente aos elementos: conteúdo temático, forma composicional e estilo (BAKHTIN, 2011, p. 261) como uma fórmula mágica, que uma vez aplicada, o professor dará conta da compreensão e ensino de gêneros, de leitura e de escrita. Evidentemente que a noção de gênero do discurso nas escolas brasileiras ainda é pouca compreendida, porém é preciso reconhecer que esse conceito, produzido pelo pensamento bakhtiniano, é fruto de um contexto, de uma época, de uma forma e visão de conhecimento, linguagem e relação do homem com o mundo, e que pode ser também retomado e ressignificado no presente, para um estudo do gênero situado. Outra questão levantada é a compreensão do que seja “memória”, diferentemente do que é o gênero “memórias”. Não retomarei esses apontamentos para não me tornar repetitiva, porém elas são concepções importantes no estabelecimento das relações dialógicas, como processo mental superior: a memória e a consciência interferem em nossa linguagem, concomitantemente, nas práticas sociais. Os processos de “esquecimento” e de “recordação” são tão importantes quanto os processos da memória. A recordação é o processo que dá graça ao ser humano, pois é típica e potencialmente uma característica do ser humano. As “memórias”, na esfera literária, se estabeleceram como gênero no final da Idade Média, quando ainda se ignorava as narrativas em primeira pessoa, segundo Bakhtin (2011).

Isso porque esse tipo de narrativa na Antiguidade e à época

Medieval era injustificável, sem valor utilitário. Com o crescimento da população e a

227

moda do gênero Confissão, a exemplo dos textos de Santo Agostinho, o gênero “memórias” teve impulsão. Talvez por isso, o gênero “memórias” passou a ser considerado um “gênero confessional”,

como

aponta

Maciel

(2004),

juntamente

com

os

gêneros:

autobiografia, diário, relato. E por um determinado tempo, esses gêneros confessionais foram considerados “literatura menor”, em referência aos tempos anteriores ao crescimento da burguesia. De todo esse levantamento, se vê que o gênero “memórias” é a narrativa ficcional, inicialmente relatos de vida, uma forma que possibilita a transcendência, a objetivação do “eu” num plano artístico, como propõe Bakhtin (2011). As clássicas composições de “memórias” na Literatura, inclusive as que foram utilizadas como referência no Caderno Se bem me lembro..., apresentam-se em formato de livros, de obras completas. O modo de dizer dessas narrativas apresentam marcas linguísticas que compõem o estilo do gênero e se materializam em diversas formas composicionais como: contos, crônicas, poemas – na esfera literária. Mesmo na esfera da vida, do cotidiano, o fato do sujeito contar eventos passados ajuda a compor outros gêneros, em primeira ou terceira pessoa, como: procuração, ata, relato de experiência, bilhete, memorial descritivo, carta, diário escolar, boletim etc. O gênero “memórias literárias” na escola passa a ser considerado gênero escolarizado, que assume uma forma arquitetônica e nova em relação aos gêneros escolares tradicionais. Considero-o como um novo gênero constituído para fins educacionais, fato que não restringe o uso desse gênero apenas ao ambiente de educação formal. Dessa forma, retomo a epígrafe destas Considerações finais para qualificar o gênero proposto pelo Programa OLPEF como aquele que é velho e novo ao mesmo tempo, gênero que recorda o passado, que tem memória. Frente às leituras, posso sentenciar que se trata de um gênero originário da tradição literária. Nesse sentido, retomo as palavras de Bakhtin (2008), quando diz que:

Ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substitui quaisquer gêneros já existentes. Qualquer gênero novo nada mais faz que completar os velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existentes. Ora, cada gênero tem seu campo predominante de existência em relação ao qual é insubstituível [...] Ao mesmo tempo, porém, cada novo gênero é essencial e importante, uma vez surgido, influencia todo o círculo de gêneros velhos: o novo gênero torna os

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velhos, por assim dizer, mais conscientes, fá-los melhor conscientizar os seus recursos e limitações, ou seja, superar a sua ingenuidade (BAKHTIN, 2008, p.340).

Este ponto de vista é importante para o campo da Linguística Aplicada, da Literatura e da formação de professores, pois dá abertura para as novas possibilidades de compreensão dos gêneros que estão a surgir com os avanços da tecnologia e dentre outras áreas, podendo captar a sua atualidade, sua inovação, sua dimensão individual e coletiva e, ao mesmo tempo, poder fazer inferências aos gêneros da mesma esfera de produção. Dos gêneros estudados de forma isolada, fora da esfera a que pertencem, somente será possível a apreensão de sua estrutura, seus objetivos, finalidades, exigências, suportes, avanços tecnológicos. Esse é um dos pontos interessantes apresentados pelo Caderno Se bem me lembro... quando as autoras elencam os textos referenciais como modelo concreto para a elaboração do modelo didático e consequentemente das sequências didáticas, recuperando os gêneros de origem literária. Por outro lado, o material, como se percebeu pelas análises das atividades, descrição dos gêneros utilizados e as referências bibliográficas ao final do caderno, apresenta lacunas, ausência dos conhecimentos literários, o que prejudica na concepção e compreensão da origem de constituição e de circulação do gênero “memórias”, agora em âmbito escolar. Assim, o gênero escolar “memórias literárias” se constituiu, recuperando a memória dos gêneros confessionais e se estabelecendo como narrativa ficcional escolar, com extensão limitada a duas laudas, considerando-se o formato A4, pois é o limite de espaço para a produção desse gênero no âmbito do Concurso de Textos que o Programa OLPEF realizada a cada dois anos, desde 2008. Não se pode dizer que a narrativa a ser ensinada nesse projeto é de cunho “literário”, por mais que o gênero esteja situado nessa esfera, visto que faltam bases teóricas para os professores sobre o trabalho com a linguagem literária e, consequentemente, faltará base para o ensinamento. A forma arquitetônica do gênero “memórias literárias” é diferente do gênero “memórias” da esfera literária, da Literatura Clássica e Literatura Infanto-Juvenil, e também da esfera artística. Como já explicitei nas análises, os recursos da linguagem literária ausentes ou restringidos ao trabalho com as figuras de linguagem, norteiam o trabalho em direção ao estudo literário estruturalista, sem articulação com os elementos que propulsionam o ato criativo, para além da

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estruturação. É necessário um trabalho que se aproveite mais dos processos da memória e da consciência, ou mesmo inconsciência, a partir das Teorias da Literatura, em especial, já que se pretende trabalhar nessa esfera. Essa restrição aos conhecimentos literários se faz presente nas práticas escolares, pois o que se vê ainda é o ensino da Literatura subdivida pelas Escolas Literárias, sempre do Quinhentismo ao Pós-Modernismo e ainda se restringindo aos clássicos da Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa. É evidente que esse conteúdo é importante para a formação humana, porém devemos refletir e rever a forma de trabalhar tal conteúdo em sala de aula e, principalmente, atentar ao fato de que por muito tempo se considerou que as obras estavam estritamente relacionadas à vida do autor-homem e seu contexto. Precisamos urgentemente reformular essa concepção auxiliados pelos conceitos da Arquitetônica do Autor (BAKHTIN, 2011), apresentados e discutidos nesta pesquisa. Esse assunto vem à tona ao analisar o Caderno Se bem me lembro... do ponto de vista de pesquisadora e não gestora de programa institucional. Evidentemente que a visão foi ampliada, dessa forma a gestora passa a ter visão de pesquisadora e isso contribui para o meu exercício profissional consciente e com mais qualidade. A escritura no gênero “memórias literárias” corresponde à produção textual de gêneros secundários, tomando por base os conceitos de Bakhtin (2011), como exemplo: pintura, escultura, música clássica, romance, conto, crônica etc. A escritura se diferencia da escrita pelo ponto de partida, a primeira (escritura) é da ordem da criatividade, como ato de criação, interpretação, tradução e a segunda (escrita) é da ordem da comunicação, da informação. Assim, o gênero escolar “memórias literárias” está inserido no âmbito da escritura literária. Uma escritura que não é simples e que exige leituras, sobretudo de observação e atenção à vida, aos pequenos acontecimentos da vida. E por sua natureza, a escritura não tem memória (PONZIO, L., 2006). A questão de escritura na escola por meio desse gênero ainda é preocupante, pois como nos apontou Marcuschi (RANGEL, 2011), os alunos não conseguem articular com propriedade os três parâmetros definidos para essa escritura, sendo a principal dificuldade quanto ao uso da linguagem literária. Novamente recaímos na ausência em especial da teoria literária.

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Penso que a explicitação dos conceitos de escritura e escrita no Caderno Se bem me lembro... colaborariam também para o desenvolvimento e adaptação das atividades sugeridas na sequência didática desse caderno, além de contribuir para a formação teórica aliada à prática do professor em sala de aula. Isso para que ao se pensar ou falar em escritura literária, o sujeito se situe na dimensão estética, na Literatura com os seus muitos conceitos já estabelecidos e outros em transformação, pois as pesquisas nessa área não cessam. O processo de escritura do aluno no gênero “memórias literárias” é diferente do processo de um escritor consagrado da Literatura, porém se falarmos da arquitetônica do autor no processo criativo, este será semelhante como elemento de análise. O escritor da esfera literária tem inúmeras estratégias para seu momento criativo, de escritura. O aluno-autor na esfera escolar tem estratégias compartilhadas apresentadas pelo projeto de ensino do gênero, evidente que sua parte individual, seu conhecimento de vida, experiências irá influenciar nos momentos coletivos de aprendizagem. Pelo Caderno Se bem me lembro..., o movimento criativo do aluno inicia-se pela realização de uma entrevista com o morador mais antigo da comunidade, atividade que principia na Oficina 1 e vai se aprimorar na Oficina 11, em que os registros da entrevista ocorrem de forma mais sistemática por anotações, gravações ou filmagem. Assim, o aluno-criador narra em primeira pessoa as lembranças de outra pessoa, como se fossem suas próprias experiências vividas. Como não se trata de um texto autobiográfico, o aluno-autor precisa aprender a escrever como se fosse o próprio entrevistado e narrar com um olhar de hoje o passado de outrem, e também, valorizar a singularidade e a estética literária. Essa questão social e de formação humana permeia as atividades, em especial, a preparação e a realização da entrevista com esse outro, mais experiente, mais conhecedor da vida. Ponto extremamente positivo na elaboração desse caderno. O que falta ainda para a urdidura do pleito divulgado pelo Caderno Se bem me lembro... é a inclusão de sugestões textuais, de reformulações teóricas sobre a visão de “memória”, “recordação”, “esquecimento”, a origem social e histórica do gênero e as teorias da Literatura com base nas reflexões resenhadas nos capítulos teóricos. Resumidamente, após as leituras de pesquisa concluo que o gênero escolar “memórias literárias” tem origem em diversos contextos e se constitui como uma

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narrativa ficcional, por meio da linguagem escrita ainda sem os aprofundamentos da teoria literária. Em síntese, delineio a ficha identitária desse gênero escolar. Ficha identitária: Origem do gênero “memórias literárias” Esfera Literária I

Período histórico: Idade Média Procedente dos Gêneros Confessionais: memórias, confissões, diários, autobiografias, biografias, relatos, cartas, crônicas etc. Elementos estéticos: sem definição da qualificação estética e sem informações sobre os elementos literários de composição. Talvez, por isso, esses gêneros foram considerados como “literatura menor” por um tempo (PERRONE-MOISÉS,1998, apud, MACIEL, 2004, p. 75). Esfera de produção: várias Esfera de circulação: várias

Esfera Literária II

Período histórico: Idade Moderna e Contemporânea Referência: as narrativas ficcionais literárias ou imagéticas de autores consagrados na Literatura Clássica e na Literatura InfantoJuvenil. Formas arquitetônicas: memórias, contos, crônicas, poemas. Esfera de produção: Literária Esfera de circulação: Literária, Cultural, Escolar, Lazer

Esfera da Vida

Período histórico: Da Antiguidade à Contemporaneidade Referências: textos documentais, fotografias, vídeo-documento. Formas

arquitetônicas:

relatos

históricos,

leis,

certidão

de

nascimento, relato de experiência, textos escolares, ata, boletim de ocorrência etc. Esfera de produção: várias Esfera de circulação: várias Esfera da Arte

Período histórico: Da Antiguidade à Contemporaneidade Referências: textos artísticos, monumentos, imagens. Formas arquitetônicas: esculturas, obras de arte, pinturas, música clássica, arquiteturas etc. Esfera de produção: Artística Esfera de circulação: várias

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Ficha identitária: Constituição do gênero escolar “memórias literárias” Esfera Escolar

Período histórico: Contemporâneo – 2008 Referências: gêneros da Literatura Clássica (contos, crônicas, memórias, poemas etc.). Esfera de produção: escolar Esfera de circulação: escolar

Aspectos

Conteúdo temático: falar do lugar onde vive

tridimensionais

Estilo do gênero: (pretende-se) narrativa ficcional literária Estilo do autor: (pretende-se) trabalho com a linguagem literária Forma composicional: narrativa ficcional de pouca extensão (duas laudas), uso da linguagem escrita.

É possível concluir que o texto a ser produzido como gênero “memórias literárias” pode alçar sua qualidade literária, desde que o material possa proporcionar também essa complementação teórica ao professor mediador. Além de fornecer material de apoio teórico para os professores que participam das formações continuadas realizadas pelo Programa OLPEF e do Concurso de Textos, abordando conhecimentos das áreas de Filosofia da Linguagem, Literatura, História e Semiótica. Agora, passo a responder a questão de número 2 desta pesquisa:  Como o caderno da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) Se bem me lembro... relê e didatiza esse gênero?

Inicialmente, devo trazer uma pequena reflexão que fiz ao analisar o nome do Programa OLPEF, na função de pesquisadora, e relacionar o nome à conjectura educacional e a história da Educação. As leituras ideológicas devem permear as práticas sociais, pois o ideológico, os valores, perpassam todas as ações em sociedade. Esta sociedade está enraizada por práticas pedagógicas tradicionais e também sociais originárias da Antiguidade Clássica à Era Moderna e se estendem pela contemporaneidade. A essência da competição é um desses elementos que precisamos refletir, principalmente em ambientes de formação. Partindo da compreensão de que o signo é ideológico, tem sua função e intenção de ser, verifica-se que o Programa OLPEF reflete essa sociedade, como não poderia deixar

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de ser. Como então analisar o material que apresenta de início uma contradição em relação às práticas educativas e de formação humana suscitada nos documentos oficiais: PCN (1998) e OC (2010)? Como excluí-lo desse contexto? A resposta é simples, se for excluir propostas que em essência trazem essa orientação precisaríamos de uma revolução radical, visto que isso acontece em várias outras práticas sociais e de formação humana. Exemplificando, cito apenas uma prática social, a de Seleção para Mestrado, como exemplo próprio. Levei 3 anos para estudar, compreender e sobreviver como apta entre tantos candidatos que concorriam a mesma vaga. Eram bravos candidatos como eu pleiteando uma vaga na Academia. Por fim, todo programa institucional reflete uma prática cristalizada, sem dúvida. Além de tudo, situados no sistema capitalista. Agora, passo a apresentar a minha visão axiológica sobre a didatização desse gênero. Confesso que meu desejo inicial era de poder fazer a leitura sistemática e analítica de todas as 16 oficinas, para ao término, além de apresentar os resultados, desenharia o “modelo didático do gênero” levantado e criado pelas autoras do Caderno Se bem me lembro... Não sendo possível, devido ao pouco tempo de pesquisa, a limitação do gênero dissertação e pela fortuna de dados que eu teria em mãos, decidi fazer o recorte, a delimitação das oficinas a serem analisadas. Como metodologia aplicada, recorri à leitura ampla de todas as oficinas e, ao término, conclui que a sequência didática forma três movimentos de aprendizagem. O primeiro, em que se estabelece a situação de comunicação, a apresentação do projeto de ensino, o objetivo de escrita para o Concurso de Texto e para o aprimoramento da escrita e leitura, a noção de “memórias” a partir de textos de escritores consagrados da Literatura, terminando com a produção inicial do aluno, que servirá de diagnóstico para o professor readequar as atividades sugeridas. Projeto que se apresenta, em linhas, coerente com o desenvolvimento de autoria pelo professor a partir da produção inicial do aluno. Não sendo algo estático que deve ser obedecido com rigor e sem alterações. Levar em conta as práticas de letramentos dos sujeitos-alunos existentes na comunidade onde se trabalha também deve ser essencial, o que resulta em um “bom ensino”, segundo Vigotski (2001b). O segundo movimento refere-se ao momento da aprendizagem corresponde às atividades relacionadas à forma composicional, ao estilo do gênero e do autor. Os conhecimentos da teoria literária ficam insuficientes nas atividades apresentadas

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nesse movimento. Assim, prejudica-se o trabalho com a linguagem literária e consequentemente o texto produzido não contemplará propriedades características de uma escritura literária. O terceiro momento corresponde à ação, da entrevista, da escritura, da revisão e da reescritura. As atividades deste bloco têm o cunho de formação humana, em especial, pela preparação e realização da entrevista com a pessoa mais velha da comunidade. Promoção social fortemente situada, o que ressalta a importância de atividades, mesmo partindo de contradições educacionais, de formação humana e continuada. Desses três movimentos, recortei duas oficinas de cada momento de aprendizagem, pelo princípio de “início, meio e fim” do trabalho com os alunos no projeto de ensino do gênero “memórias literárias”. Assim o corpus ficou definido: Oficina 1 e 2; Oficina 5 e 8; Oficina 11 e 12, de onde parte minhas considerações mais detalhada, sem desconsiderar a leitura do caderno em sua composição total, como também demonstrei no quadro em que apresentei a organização da sequência didática, com título de cada oficina e seus respectivos objetivos. Nesse universo, também propus uma orientação discursiva para a verificação da didatização do gênero com base em três aspectos que foram: 1) a função social do projeto de ensino do gênero “memórias literárias”; 2) a relação do aluno-autor com o texto de “memórias literárias”; 3) a noção de escrita e de escritura no projeto de ensino para o gênero “memórias literárias”.

Após a análise, apresentei os

apontamentos com apoio nos conceitos da Arquitetônica da Responsabilidade (BAKHTIN, 2011): responsabilidade, exotopia e inacabamento, definidos nesta pesquisa como categorias de análise. Conforme demonstrei nos quadros descritivos e pela análise das atividades nas oficinas pedagógicas selecionadas do Caderno Se bem me lembro..., o projeto de ensino começou a ser situado na elaboração da capa do referido material, por isso

se

fez

necessária

a

leitura

daquele

espaço

semiótico,

como

diz

Volochinov/Bakhtin na obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1929). Esses pensadores afirmaram que “a própria compreensão não pode manifestar-se senão através de um material semiótico”, e ainda que “o signo se opõe ao signo, que a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos” (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 33). Dizendo de outra forma:

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[...] a lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem. [...] esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comunicação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2002, p. 36).

Tendo entendimento da importância e visando a contribuir com a compreensão desse espaço semiótico na linguagem é que busquei elementos teóricos que pudessem se articular com os conhecimentos já postos nas práticas escolares com o uso da linguagem, dos conceitos de texto e de gênero, ainda pouco compreendida em termos teóricos no âmbito escolar. Assim, nasceu a escrita do Capítulo 3, Texto em potencial, com os pressupostos teóricos e as leituras da disciplina Semiótica do texto. Desta feita, com a leitura da capa, do tema, da introdução ao gênero e das oficinas 1 e 2, posso afirmar que as autoras do Caderno Se bem me lembro... tiveram a preocupação em fornecer ao professor e, consequentemente, ao aluno uma base a respeito da situação de produção escolar, subsídios para a alimentação temática, utilizando-se de textos referenciais literários para dar conta da estrutura textual que foi definida para o Programa OLPEF. Entretanto, foi desvelada pelo corpus de análise a ausência de teorias que contribuem para a reflexão filosófica sobre a formação humana e o resgate de histórias pela memória. As teorias literárias, filosóficas e históricas são de suma importância para o desenvolvimento dessa temática “lugar onde eu vivo” e do projeto de escritura. Além disso, faltou a inserção discursiva da situação de produção original do gênero, a história social do gênero “memórias” que deu origem e contribuiu para a parametrização do gênero escolar “memórias literárias”. Visto que na medida em que um gênero se constitui para atender demandas de comunicação, neste caso constituído para a esfera escolar, o processo de sua constituição tem referência em gêneros precedentes, anteriores, como bem esclarece Bakhtin (2008), citado como epígrafe deste capítulo. O resgate sócio-histórico desse gênero compõe um percurso importante para a formação teórica do professor e para o processo de ensino e aprendizagem do gênero na escola, “na medida em que essa reconstrução permite estabelecer

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critérios por meio dos quais certas características do gênero devem ser enfatizadas, enquanto outras podem ser até mesmo descartadas” (GARCIA; RANGEL, 2013). Esse estudo comporia o que Schneuwly e Dolz (2004) chamaram de “modelo didático do gênero”, instrumento que deve vir primeiro quando for o momento da elaboração de um planejamento escolar. A partir desse instrumento de planejamento é que se elaboram as atividades escolares, em uma ordenação progressiva e adaptável ao contexto, às reais necessidades dos alunos, às práticas sociais e culturais da comunidade onde esse aluno vive. Essas atividades pensadas a partir do “modelo didático” compõem o conceito de “sequência didática para o ensino de gêneros” reelaborado pelos pesquisadores de Genebra. Segundo Rojo (2001, p. 314), os PCN, de 1997 (Introdução para o 1º e 2º ciclos) e de 1998 (3º e 4º ciclos), têm enfatizado e insistido na importância essencial do projeto educativo da escola, apontando-o: em seu caráter coletivo, reflexivo e contínuo

de

planejamento

(“planejamento

do

início

do

ano”

ou

apenas

“planejamento” que daria sentido às ações do cotidiano – PCN, 1997, p. 48-49), ou ainda em seu caráter burocrático, imposto pelas Secretarias de Educação, como mero preenchimento de formulários para arquivo (PCN, 1998, p. 85-88). No entanto, nenhum dos documentos se preocupa em detalhar o que é planejar e nem quais os aspectos importantes para a realização de um planejamento. Assim, o planejamento educacional, diante desse contexto, envolve na capacidade de planejar, as ações de: definir, selecionar e organizar “conteúdos” que podem ser tematizados por meio de atividades didáticas distribuídas e organizadas conforme o tempo e o espaço escolar. Isso tudo pode ser desenvolvido, de forma mais autônoma, com a elaboração do “modelo didático do gênero”, especificamente para o propósito que é do ensino de gênero e, consequentemente, a elaboração de sequências didáticas. Isso é possível, pois segundo Rojo (2001):

Por minhas experiências com a formação de professores, creio que a realidade da ação do professorado fica entre um ponto e outro. Nem o desprezo total ao planejamento como “mais uma burocracia a realizar”, nem a autonomia para a realização de um planejamento efetivo (ROJO, 2001, p. 314).

Por isso, arrisco-me a dizer que a inserção do “modelo didático” do gênero escolar “memórias literárias” pode ser inserido no Caderno Se bem me lembro...

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como subsídio à formação do professor, que é o leitor preferencial do referido caderno. O que também suscitaria outras leituras acerca dos conceitos dos pesquisadores genebrinos e também brasileiros sobre a questão do “modelo didático”. Creio fielmente que a leitura das teorias envolvidas e o desenho do objeto de ensino colaborarão para um ensino mais significativo, pois oportunizam ao professor a ampliação de sua visão partindo do objeto de ensino para objeto de estudo. Assim, ao lecionar o professor também aprende, estuda, aprofunda conhecimentos e apropria-se deles. Consequentemente sua prática tende a ser mais consciente e de qualidade. Em relação ao modelo concreto discursivo delineado para o gênero “memórias literárias” sugerido pelos textos apresentados no Caderno Se bem me lembro..., conforme demonstrado no quadro 5, retirados dos aportes literários, todos foram sintetizados como “memórias literárias” e muitos pertencem a outras formas composicionais. A maior parte das obras citadas são contos ou crônicas literárias. A indicação dessas outras formas composicionais de gêneros literários, como característica do dizer em primeira pessoa, pode ampliar a visão do professor e dos alunos para perceberem que os textos dialogam com outros textos por natureza, que nenhum texto vive isolado e que alguns carregam traços semelhantes, isso tudo corresponde ao princípio do dialogismo bakhtiniano. Os textos dialogam entre si, o sujeito dialoga com tudo a sua volta e ao ler um texto está dialogando com outros textos, materializados ou ainda na consciência ou inconsciência. Aqui cabe a sugestão de que sejam retiradas as “etiquetas” de “memórias literárias” para os textos literários de escritores da Literatura, já que se apresentam em formas composicionais diferentes daquela que o Programa OLPEF parametrizou para o gênero escolar. Por outro lado, a comparação entre diferentes formas composicionais em uma mesma esfera literária abre a possibilidade de reflexão sobre as formas narrativas ficcionais literárias. A aproximação de textos literários, de formas diferenciadas, colabora para a apropriação e o entendimento do movimento de escritura e dos aspectos que correspondem ao estilo do gênero e ao estilo do autor-criador no momento da criação. As diferenças e semelhanças de gêneros literários ajudariam a compor o “modelo didático do gênero” e, em seguida, o professor poderia criar sua sequência didática. Outro ponto interessante que li sobre a metodologia da sequência didática (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004) é o fato de que ela (SD) não

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precisa atender a todas as características de um determinado gênero, em uma única sequência didática e nem precisa ser perfeita e completa. Uma sequência deve primar por atender uma demanda de comunicação situada e de interesse do aluno e da comunidade escolar. Nesse caso, pensando-se nos letramentos da referida localidade. Em relação às atividades que pleiteiam o aprendizado da linguagem literária, de modo singular referente ao estilo do gênero, percebe-se que a proposta ficou centrada no trabalho com as figuras de linguagem. Já em relação às atividades que procuram desenvolver o entendimento da forma composicional foi apresentado um texto produzido no contexto do Prêmio Escrevendo o Futuro e dentro dos parâmetros do Programa OLPEF. Serve de modelo para a produção textual do aluno. Além disso, preocupa-se em trabalhar o foco narrativo, com informações sucintas. Percebe-se que houve uma preocupação em situar o papel do autor, do tempo e o espaço na narrativa ficcional, além de trabalhar o modo de dizer por meio dos recursos expressivos ou estilísticos. Ficou evidente que não houve uma preocupação mais aprofundada com relação aos recursos estilísticos, especificamente da esfera literária, conforme já apontei em outro momento. Penso que sejam produtivas as inserções sobre o signo memória como uma das dimensões da estética, pelo viés do pensamento filosófico e histórico, conforme apresento no Capítulo 1. Elemento que julgo interessante para a compreensão da dimensão artística e propulsora de criação. Sobre a organização didática, posso considerá-la muito pertinente, primeiro por disseminar a concepção de “sequência didática” para o ensino do gênero escolar; segundo, por se constituir como instrumento de planejamento, de formação, reflexão e refração ao professor em sala de aula, além de sugerir atividades referentes à produção de linguagens, destacando-se a leitura, a escrita e a escritura. A proposta é uma possibilidade metodológica e deve ser vista não como impositiva, nem categórica. A autonomia do professor no planejamento, na coautoria para as adequações delineadas na sequência didática já estabelecida no Caderno Se bem me lembro..., apresenta-se nos discursos orientativos das autoras do caderno e também pelo norteamento que se dá pela primeira produção textual do aluno. Para melhor compreender esses movimentos didáticos e estabelecer-se com autoria pedagógica, o professor precisa ser leitor e conhecedor das teorias e dos

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instrumentos modelo didático de gênero e sequência didática para o ensino do gênero. Uma ressalva ao projeto de escrita se refere às atividades de leitura que em sua maioria objetiva mais o reconhecimento ou identificação de aspectos da forma composicional e funcional necessários para a produção do texto, do que o desenvolvimento da capacidade de leitura e interpretação em função de uma compreensão responsiva e crítica dos textos. Destaco um ponto forte no projeto do Caderno Se bem me lembro... que se refere à utilização de diversos gêneros na mobilização das atividades apresentadas nas oficinas selecionadas, conforme demonstrado no quadro 10, para o projeto de ensino do gênero escolar “memórias literárias”. Aspecto relevante, pois o ensino de um gênero não se restringe a ele, “gênero pelo gênero”, aos moldes da concepção de “arte pela arte”. Não há mais espaço e ensino significativo para propostas que circulem em torno de um único gênero e por atividades infinitas. O ensino nessas condições, um gênero só, torna o ensino cansativo. Sou da opinião de que “um gênero (só) não possibilita aprendizagens”, parafraseando a famosa frase de Aristóteles (1991, p. 8): uma andorinha não faz verão. No contexto de origem desse enunciado, o filósofo versava sobre a punição, em que o individuo não deveria ser julgado por um ato isolado. Aqui, por meio de minha paráfrase, quero enunciar que o ensino do “gênero” não pode ser realizado de forma isolada, afastado de outros textos, afastado de sua esfera de atividade de origem, de sua memória de gênero (AMORIM, 2009), nem do contexto, do momento enunciativo. Ainda em relação à diversidade de gêneros, outro aspecto interessante é a possibilidade de se trabalhar com a multimodalidade dos textos, que segundo Paes de Barros (2009), é um traço constitutivo tanto do discurso oral como do escrito e que a escrita tem apresentado “cada vez mais arranjos não-padrões” em função do desenvolvimento tecnológico, o que requer dos leitores modificações em seus modos habituais de ler (PAES DE BARROS, 2009, p. 162).

E por fim, ainda sobre a diversidade de gêneros, destaco a pouca incidência de textos literários, uma vez que o projeto pleiteia a formação e a produção de texto de arquitetônica literária. É fundamental propor um trabalho com textos e com a

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linguagem almejada. A leitura de textos literários colabora para a apropriação da linguagem literária, além de ampliar, enriquecer e transformar a própria experiência de vida. Nesse sentido, o trabalho ganha aspecto de função social ao se propor o encontro com a Literatura ainda no âmbito escolar com mais propriedade. Acredito que esse fazer pedagógico com os textos literários deve ser realizado desde o 1º ciclo da Educação Básica, porém não como facilitador do trabalho com conteúdos, tendo o texto literário como pretexto, mas como atividade de leitura pelo prazer estético ou, como diria Barthes (2010), a leitura de textos de prazer. A dimensão estética ou Educação Estética, como aponta Vigotski (2001b), deve ser primada e desenvolvida no âmbito escolar, pois o “talento” está em cada sujeito, nascemos com talento. O que se vê nas atividades escolares é a ausência desse tipo de trabalho e também ausência de materiais que colaborem na formação do professor na ordem estética, no discurso estético, na reflexão do talento. Não se deve pensar em “talento” como algo construído em torno dos escritores consagrados pela Literatura, por exemplo, mas como um trabalho com a linguagem, especialmente, com a linguagem literária e a dimensão estética. Talento não é inspiração, é trabalho consciente com a linguagem. Dessa forma, concordo que a metodologia assumida permite um trabalho orientado para o ensino do gênero escolar, em sua organização: apresentação do material e do projeto de escrita na visão dos pesquisadores de Genebra, da situação de produção, primeira produção, atividades diversificadas e recortadas que representam algumas propriedades do gênero selecionadas como ensináveis, a produção final e a reescrita. Além disso, a utilização dos gêneros como megainstrumentos

possibilitando

aprendizagens

que

colaboram

para

o

desenvolvimento do aluno e do próprio professor. Porém, que seja refletida a organização acerca dos conhecimentos, especialmente, de Literatura, Filosofia e História. A escolha do tema para o Kit da Olimpíada, O lugar onde vivo, corresponde às necessidades atuais de ensino e aprendizagem, que vai da articulação dos saberes locais com os globais e vice-versa. Além disso, a temática proporciona a reflexão sobre a vida cotidiana, sobre a história das pessoas e do lugar onde o aluno e professor vivem, sobre as relações dialógicas estabelecidas e proporciona o desenvolvimento do sentimento de pertencimento, de resgate da cultura e da

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valorização das pessoas mais velhas. Essa dimensão social e a preocupação com a formação humana, para além do ensino formal de conteúdos, estão contempladas nos documentos oficiais. Por fim, considero que cada palavra (cada signo) dos textos com os quais o ser humano mantém contato e/ou elabora cotidianamente, leva-os ao horizonte de possibilidades de interpretação porque está correlacionada a outros textos, que antecederam ao momento presente e que antecipam um prospectivo futuro contextual. Isso tudo está na vida e na arte. Os sujeitos ao agir nesse mundo, transformam-no e são transformados por ele. Por isso, penso que os capítulos teóricos podem colaborar com a fundamentação teórica do professor para a realização das atividades de leitura, de escrita, de escritura, enfim, o trabalho com linguagens no âmbito escolar pelo viés da Filosofia, História, Literatura, Educação Estética e Semiótica do Texto. Além disso, penso que as autoras do Caderno Se bem me lembro... podem considerar os apontamentos teóricos e críticos,

aqui apresentados,

para

reelaborarem o material aqui situado, a fim de colaborarem ainda mais para a formação teórica dos professores, bem como estimular o ensino da Literatura e Educação Estética e também da formação de leitores literários e de escritores de textos literários. A Educação Estética deve ser compreendida como formação do ser humana de maneira ampla, como direito de todos os sujeitos de criarem linguagem e de melhor se expressar na vida. Sujeitos criadores e criaturas de sentido, portanto, educação aproximada da arte como conhecimento e articulada à experiência individual emocional. Retomo a Introdução desta pesquisa, em que relembro que sou professora por formação para falar sobre a tensão que existe entre a formação inicial e as exigências atuais do exercício profissional acerca das questões de linguagem. É notório o distanciamento das academias e o fazer real que acontecem nas instituições educacionais, escolas. Os conceitos trabalhados na academia ainda estão longe dos conceitos compreendidos e executados na escola. Essa articulação entre academia e instituições educacionais deve ser mais próxima, não somente para ações consideradas pontuais, como ocorre com a formação do Programa OLPEF (e que ótimo que existe essa ação), a cada dois anos. As reflexões sobre a aproximação entre essas instituições devem primar pela abrangência dos espaços formativos e dialógicos, a fim de que a qualificação e apropriação de conhecimentos

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teóricos seja cada vez mais uma realidade nas escolas públicas. Isso colaborará, sem dúvida, para o desenvolvimento do “bom ensino” e com qualidade social. Sendo assim, esta pesquisa almeja, além das reflexões realizadas, apontar algumas perspectivas que possam ser adotadas na esfera educacional, ainda que sejam contribuições modestas. A primeira implicação prática diz respeito à formação dos professores da área de Linguagens, mas especialmente a de Língua Portuguesa, por meio das reformulações no Caderno Se bem me lembro... atendendo aos aspectos aqui apontados. Destacando que o referido caderno é instrumento de formação e está disponível nas escolas públicas, portanto é formador de opinião e de conceitos. Temo pela restrição do pensamento acerca do gênero “memórias” e dos conhecimentos da linguagem literária. Por isso, sugiro a inserção das discussões teóricas aqui apresentadas no âmbito da política pública de formação apresentada pelo MEC e parceiros ao realizarem as formações do Programa OLPEF, por meio do CENPEC, e também no estado de Mato Grosso, por meio do Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica do Estado de Mato Grosso – CEFAPRO. Assim, reproduzo em quatro tópicos a síntese do que considero importante a ser retomado no Caderno Se bem me lembro...: 1) apresentar o contexto sócio-histórico do gênero, abordagem que abranja o gênero escolar “memórias literárias” em sua dimensão sócio-histórica, atentando para os aspectos do seu processo de produção, circulação e recepção, bem como as dimensões ideológicas envolvidas nessas inter-relações; 2) elaborar atividades que trabalhem com as diversas possibilidades arquitetônicas dos textos de “memórias”, colaborando para a ampliação do conceito para além do que está se construindo como “aquelas narrativas em que um eu escreve sobre a vida de outra pessoa”, o que é uma redução do gênero; 3) reformular as concepções apresentadas sobre “memória” e o gênero “memórias” com base nas Teorias da Literatura, Filosofia, História, Psicologia e Semiótica do Texto, ampliando a visão e a possibilidade de trabalho com a linguagem e com os recursos da memória, da consciência, da recordação e do esquecimento. 4) incluir uma proposta de escrita das “memórias” do próprio aluno em duas instâncias, as suas próprias memórias vividas e recordadas por si mesmo e as memórias de mim pela visão do outro, neste último caso, o aluno pode recorrer aos

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pais para perguntar a origem do seu nome, por que os pais escolheram esse nome para o aluno e, ainda, perguntar como foi o nascimento dele. São dados que trazem à tona o diálogo sobre a identidade do aluno pelo viés da alteridade, pelo olhar e visão desse outro que o constituiu e ainda o constitui. Essa sugestão parte da Psicologia Social e que é pertinente a um projeto que tem em sua essência a qualidade de desenvolvimento individual e social. 5) ampliar a qualificação das atividades em direção ao desenvolvimento da dimensão estética, com base na Psicologia da Arte de Vigotski (2001a) e Teoria da Literatura, de Bakhtin, que constam em várias obras do filósofo. Em um trecho de sua obra, Vigotski (2001b) versa sobre o talento, para ele todo ser humano nasce com talento e com os anos se passando, o talento vai sumindo devido às inúmeras limitações da vida. Em suma, esse ensino com dimensão estética pode colaborar para diminuir a perda desse talento devido às diversas limitações, principalmente às da vida adulta. Espero que a Educação Estética como teoria possa ser uma realidade na formação profissional e discutida como política pública nas instituições, academias e nas escolas. Para fechar essa síntese de recomendações, os conceitos teóricos não cabem no Caderno Se bem me lembro..., apenas as reformulações com base teórica, porém os textos teóricos que aqui resenhei e sistematizei podem se transformar em um Caderno de “Apontamentos”, que em italiano quer dizer “encontro”, e ser encaminhado juntamente com o material do Programa OLPEF. Essa proposição sugere o encontro do professor com a teoria, de modo que ele possa lê-la, estudá-la e compreendê-la cada vez mais. A apropriação de conhecimentos teóricos amplia a visão sobre as atividades pedagógicas a serem planejadas pelo professor ou mesmo sendo apresentadas por meio de materiais didáticos, pois antes de executá-las, o professor refletirá e refratará sobre tais exercícios didáticos. Feitas as considerações didáticas e sugestões ao material e à ação formativa, parto para a escrita conclusiva. Ressalto nestas últimas linhas que me propus a escrever esta dissertação em primeira pessoa, assim como objetiva o projeto de ensino do gênero escolar “memórias literárias”. Um desafio e um exercício potencial que requer um posicionamento, uma atitude responsível e responsável em dizer e como dizer, um dizer pleno de sentidos, vozes e palavras outras. No meu caso, são 40 anos de vida e de constituições múltiplas pelas relações com as pessoas, com os

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lugares e com o mundo. Como proposta educativa, considero este projeto de escrita, do escrever em primeira pessoa, como fundamental à formação crítica, cidadã e de responsabilidade moral. E chegando próximo de minhas derradeiras conclusões, retomo a fotografia da capa deste trabalho, que traz a Cachoeira das Nuvens, em Tangará da Serra-MT, momento de viagem quando estava retornando a Cuiabá, depois de minha participação em um evento educacional na cidade de Juara-MT. A cachoeira me traz a recordação da escritura de Clarice Lispector, no romance Água Viva (1973), que foi objeto de minha monografia de graduação, como já citei no capítulo anterior. A “água viva” é uma metáfora que se refere ao movimento de escritura e, ao mesmo tempo, movimento de vida, retomando também o pensamento de Heráclito, filósofo da Antiguidade Grega. Movimento que é um ato. O ato de escritura como produtor de sentido para a vida, de atenção à vida. Ato que transgride as convenções do tempo e espaço ao reivindicar um “instante-já”. Lispector (1990) encerra seu romance dizendo: “Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar” (LISPECTOR, 1990, p. 101). Porém o que ela escreve continua no “tempo grande”. Assim, despeço-me desta dissertação, ela continua e eu também, de forma diferente, eu como sujeito inacabado, sempre em construção, e ela [dissertação] se movimentando pela visão de seus futuros leitores. Acredito que esta pesquisa oferece contribuições pertinentes para o estudo da linguagem, sobretudo com ênfase no Ensino da Literatura como a linguagem que resiste à redução da língua (sistema fechado), a exemplo das reflexões feitas por Orweel (2001), no romance “1984”. Além disso, penso que as questões aqui apresentadas colaboram de forma geral na esfera educacional, especialmente em relação à dimensão estética e à formação continuada. Concluo dizendo que cumpri com o que me propus a realizar, e, sendo assim, posso entusiasmadamente observar a vida, dançar, viajar e continuar a pesquisar e escrever livremente e, quiçá, tornar-me mestre no assunto.

Muita geleia amanhã e geleia ontem para você, caro leitor! Que sua memória funcione nos dois sentidos. (In: Alice, Através do espelho). Que você olhe para o passado, escrevendo o futuro!

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